1964, ENTRE FANTASIAS, ALUCINAÇÕES E
SENTIMENTOS DE INFERIORIDADE
(procurem-nos no endereço pistasdotempo.blogspot.com)
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UMA ANTIGA HERANÇA
No início do século XIX, quem olhasse
para o conjunto das regiões do planeta, com os povos aí instalados, não teria
dúvida em dizer que a América Latina era, com certeza, o continente do futuro,
o próximo a usufruir das riquezas geradas pelo capitalismo, que iam adiantadas
na Europa e faziam uma auspiciosa abertura nos Estados Unidos, e que esse
futuro luminoso não tardaria: talvez começo do século XX. A América Latina
tinha tudo para se tornar uma das áreas mais ricas do planeta, transformando as
três Américas, em termos políticos e econômicos, num supercontinente!
A causa de semelhante afirmação é que
qualquer grande capitalista cordato daquela época, que mirasse, com sede de
investimento, as oportunidades apresentadas em outras regiões do globo não
hesitaria em apostar todas as suas fichas nas jovens nações latino-americanas,
afinal elas já vinham de um contato intenso e profícuo, em termos econômicos,
com a matriz do capitalismo mundial, a Europa, mais até que os Estados Unidos,
e já eram veteranas, após trezentos anos de convivência com o sistema que
revolucionava a história recente do mundo. As línguas dominantes eram bem
conhecidas dos europeus, o espanhol um pouco mais que o português, os costumes
e a religião dominante também eram compatíveis com as conhecidas ou professadas
na Europa (1).
Uma mirada sobre outros continentes e
populações daria ainda mais razão a esse capitalista. A África, por exemplo, ao
norte havia populações estabelecidas em grandes cidades, relativamente próximas
e prósperas, que bem poderiam usufruir dos bens ou mercadorias produzidas pelo
sistema capitalista europeu, e realizar permutas com grandes vantagens para
ambas as partes: europeus e norte-africanos. Entretanto essas populações
partilhavam uma cultura religiosa que, até aquele momento, era figadalmente
oposta à praticada na Europa Ocidental, o que dificultava, quando não
inviabilizava acordos abrangentes e de longo prazo. Mais ao sul, separados pelo
maior deserto de areia da Terra, viviam povos tribais, alguns em transição para
a formação de estados, precocemente desestruturados pelos contatos esporádicos
com os europeus ao longo da costa ocidental do continente, mas nem por isso inermes
ou incapacitados para exercer uma feroz e por vezes eficaz resistência a
qualquer tentativa mais desabusada dos europeus em penetrar o interior do
continente ou contestar, sem a autorização do governante local, o modo de vida
tradicional daquela gente (2). Sua
língua e sua religião eram completamente diferentes da conhecidas ou utilizadas
na Europa. A aventura e o custo de estabelecer proveitosas e contínuas relações
de troca eram enormes.
Na Ásia mourejavam os restos de
antiquíssimas civilizações, envolvidos por um interminável manancial de gente, a
deixar em êxtase, até os dias de hoje, quem quer que se proponha a enxergá-las
como “mercado” ou como “consumidores”: a alegria de qualquer produtor
capitalista. Entretanto, envolvidas por séculos de tradições e costumes
surgidos, consolidados e cristalizados à revelia da Civilização Ocidental, e em
muitos casos em relação antagônica com os derivados desta. Como já possuíam o
know how de estados organizados e ações coletivas em larga escala, opuseram uma
tremenda resistência à penetração Ocidental, quer ela se desse à ponta de
baioneta ou pelo discurso melífluo de um sagaz vendedor. Os confrontos entre
Ocidente e Oriente, na Ásia, regam o chão desse continente de sangue até os
dias de hoje. Havia, além disso, as dificuldades da língua e das peculiaridades
dos hábitos locais, quando não uma histórica e feroz e militante aversão, como
acontecia com os povos islâmicos do Oriente Médio e do Centro da Ásia. O
capitalismo, desde o seu início, e estou falando dos séculos XVIII e XIX, nunca
teve, aí, vida fácil.
Do outro lado do mundo, praticamente no
“fim do mundo”, de um ponto de vista espacial, visto do Ocidente, ficava a
Oceania, um continente formado por volumes incalculáveis de água e algumas
poucas e minúsculas áreas secas, exceto a grande ilha da Austrália e a modesta
Nova Zelândia. Uma ocupada por grandes áreas desérticas, ocasionalmente percorridas
por populações nômades, cujo número total oscilava em torno de 1 milhão, correspondente
à população de Londres na época, usando ferramentas e utensílios do dia a dia equiparáveis
aos do Paleolítico, enquanto a outra, envolvida por densa vegetação, era
habitada pelos combativos maoris, apodados como “caçadores de cabeças” (3). As dificuldades, nestes casos, são
simplesmente todas.
Com base nisso, sem falar de muitos
outros elementos que colocavam, de muito, a América Latina à frente dos outros
continentes, como a futura área de prosperidade do capitalismo nascente, como então
explicar que, 200 anos depois, o nosso continente esteja disputando com a
África um triste campeonato, para ver quem será capaz de criar e enviar mais
desesperados para as zonas prósperas do planeta, enquanto muitos países,
outrora em situação muito mais precária, assumem a dianteira, e criam as novas
zonas de prosperidade e boa qualidade de vida, entre eles, inclusive, uma
ex-potência comunista (a China), enquanto crescem entre nós, latino-americanos,
os indícios de que a situação geral do continente ainda vai piorar, até que
possamos reverter a marcha para a prosperidade?
Poderíamos continuar nessa digressão,
abarcando toda a América Latina, mas não é esse o compromisso deste trabalho,
ficando adstrito à realidade brasileira, e nesse momento eu para uma das
crônicas mais reveladoras da alma nacional, que toca bem no cerne de nossa
incapacidade de aceitar e lutar por nosso lugar no mundo desenvolvido: Complexo de vira-latas, de Nelson
Rodrigues, escrita um pouco antes da Copa da Suécia, em 1958.
Ele inicia a crônica chamando atenção
para o falatório dos frequentadores de botecos e pontos de reunião, que são a
marca de um Rio nostálgico, alegre e generoso, que, em virtude da nossa
indiferença, sempre ela, hoje não existe mais. Naqueles tempos, as figuras sociais
mais marcantes era o sambista e o malandro, deslocados com o tempo pelo
traficante e o sniper – um termo que nem brasileiro é – e o que ele escuta
invariavelmente nas conversas é que, na Suécia, “o Brasil não vai nem se
classificar!” E aí ele se pergunta: “Não será essa atitude negativa, o disfarce
para um otimismo inconfesso e envergonhado?”
Tão decepcionado, tão curtido pelos
desencantos do passado, acreditando que a vida é dura só para ele ou que a sua
vida é mais dura que a de todos os outros povos, que os corruptos aqui são mais
numerosos e piores que em qualquer outro lugar, embora não apresente nenhum
critério objetivo para essa conclusão, o brasileiro, mesmo com todas as
perspectivas de sucesso, recusa-se a acreditar que este acontecerá, como se no
fundo não se julgasse merecedor do prêmio maior. Nelson Rodrigues mata então a
charada: “Eis a verdade, amigos: — desde
50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo... O tempo passou em
vão sobre a derrota [os 2 x 1 de 1950]. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito
anos, que, aos berros, Obdulio [Obdulio Varela, o capitão da equipe uruguaia]
arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: “extraiu”
de nós o título como se fosse um dente”. E eu completaria: sem anestesia...
E afinal vem a explicação do conceito
que o cronista tenta demonstrar: “Por
“complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se
coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e,
sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica
inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Por que, diante do quadro inglês,
louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão
evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo (4).
Entretanto, o grande dramaturgo ainda
assim crê! “eu acredito no brasileiro, e
pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo... [pois] A pura,
a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando se
desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em
matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: — temos dons em
excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas
qualidades...” Justo o complexo de vira-latas (5).
Desconhecedores da cultura da época,
alguns analistas e pesquisadores tentaram corrigir a Nelson Rodrigues – coisa
fácil de fazê-lo, estando ele já morto – e reapresentá-lo indigno e preconceituoso,
como o despreparado energúmeno que o denunciou por “racismo ecológico”, por
conta dessa crônica – justo quando imaginávamos haver já alcançado o topo da
idiotice... mas nada ofende mais a um vira-latas sem “raça”, contumaz, que ser
chamado de “vira-latas”, sem falar do desejo incontido pelos quinze minutos de
fama, à custa daqueles que têm o talento que lhe falta. Ora, quem tem um mínimo
de cultura e um nada de preconceito, e leu a crônica original, sabe que o termo
aí usado se refere não ao fato de o vira-lata ser uma mescla indefinida de
raças, mas sim ao fato de ele ser desprestigiado, não ter reconhecimento
oficial e ser tratado de forma vil. Talvez hoje o termo que melhor traduziria
aquilo que Nelson Rodrigues falou seria “cão sarnento”, prostrado, não ao peso
de seus males físicos, da sarna, ou de sua ambiguidade racial, mas ao peso de
sua enorme descrença em si mesmo. O texto de Rodrigues é basilar para o entendimento
da alma nacional (6).
De fato, o vira-latas, se nos apegarmos
ao significado estritamente biológico do conceito, é um animal resistente, versátil,
inteligente, que na vida real não hesita em enfrentar enormes e perigosos cães
de laboratório para defender o seu dono, tem uma “nobreza” canina genética. Transpondo
para o figurativo, o simbólico, nós somos sim muito vira-latas; mas os
americanos também o são! Entre os povos de raça branca, ou predominantemente
branca, eles são os mais misturados. Como explicar, pois, que esse vira-latas do
norte tenha chegado a uma tal força e grandiosidade, que enfrentou e venceu as
mais poderosas raças do mundo, desde o mastim inglês até o belicoso pastor
alemão, o destrambelhado pastor do Cáucaso, e agora se vê às turras, em posição
de superioridade, com o mastim tibetano.
Mas ainda fica por se responder a
pergunta: por que eles, e nós não? Tenho, em mim, uma resposta para essa
pergunta e vou arriscar-me a escrevê-la agora, como o fazem todos os que
militam na história, esperando que ela ajude a aquecer o frígido e impassível
momento desta ciência no Brasil, apesar do risco que corro, sem ter a grandeza
de Nelson Rodrigues, de hoje ou no futuro ser mal compreendido ou mesmo
deturpado, a ponto de algum idiota achar em meus textos pistas de crimes que
sequer imagino...
O problema dessa disposição
psicológica, desse “viralatismo” ou “sarnentismo” simbólico, que, diga-se de
passagem, não é apanágio apenas dos brasileiros, mas antes acomete em menor ou
maior grau aos nossos vizinhos, talvez possa ser rastreado a partir de nossa
formação colonial, pois se tomarmos como referência o elemento cultural mais comum
e marcante nos países do continente, seremos levado inevitavelmente ao
catolicismo ibérico; e friso bem o termo “ibérico”, ignorando o qualificativo
“romano”.
De fato, se consideramos que as grandes
descobertas geográficas, para os europeus, aconteceram ali por volta do século
XVI, envolvidas por um conturbado pano de fundo, que condicionou profundamente
a colonização das três Américas, talvez possamos ter pistas consistentes sobre
os condicionantes de nossa formação nacional.
O pano de fundo desse período épico,
para os europeus, era a guerra religiosa difusa, travada no continente entre
católicos e protestantes, motivada por interesses diversos, onde inúmeras
variáveis sociais, políticas e econômicas se entrelaçavam, prometendo novos
amálgamas e combinações ao sabor de circunstâncias muito originais; de um lado
se via o embrião do moderno estado nacional, forcejando para romper o domínio
político, ideológico e econômico do clero e da aristocracia agrária, ajudado
pela divisão interna da mais poderosa instituição religiosa da Europa: a Igreja
Católica Romana. Do encontro dessas circunstâncias moldou-se um tipo de
catolicismo, que haveria de ser o alicerce ideológico da empreitada colonial na
América.
De um lado havia a briga várias vezes
secular entre o poder temporal e o poder religioso: o Estado ou o príncipe que
o personalizava contra os representantes do bispo de Roma, disputando corações,
mentes e bolsos de súditos e fieis cristãos, e que teve o seu momento mais
crítico na chamada Querela da Investiduras, iniciada em 1075, entre o Papa
Gregório VII e Henrique IV da Alemanha, de tal sorte que no crepúsculo da Idade
Média, pode-se dizer, havia um sentimento generalizado entre monarcas europeus,
já reinantes ou potenciais, de um dia se livrar da tutela de Roma e até de
inverter essa tutela, o que era visto com muita preocupação pelo clero. Ora,
esse sentimento era partilhado inclusive por aqueles soberanos que faziam
questão de disputarem-se como campeões do catolicismo, fato cada dia mais raro,
entre eles os reis ibéricos, de Portugal e Espanha, nossos “padrinhos” europeus,
que não sossegaram enquanto não puseram firmemente a nobreza e o clero sob
estrito controle – no caso português, por exemplo, é verdade que o quarto rei
Afonso II (1223-1248), foi excomungado e deposto por uma coalizão de padres e
nobres, em 1238, por investir contra os privilégios destes, mas foi um tiro na
água, pois o substituto arranjado, Afonso III (1238-1253), continuou com a
mesma política, tanto que morreu excomungado, e com ele o seu reino. O sucessor
de Afonso III, seu filho, D Dinis I, de longo reinado (1279-1325), acabou
definitivamente com a questão jugulando definitivamente a nobreza e o clero
portugueses, forçando ao Papa a aceitar o fato consumado: em Portugal, quem
mandava era o rei...
Por outro lado, quando, em 1519, o
monge alemão Martinho Lutero resolveu por “fogo na casa” de sua Igreja, por
divergências de cunho tanto político-nacional quanto teológico-moral, e o fogo
se alastrou com tanta agressividade e em tantas frentes, que muitas autoridades
católicas desse período devem ter perdido noites de sono ou sentiam
estremecimentos ao lerem Mc 3,24: Se um
reino se dividir contra si mesmo, tal reino não poderá subsistir... Atacada
de dentro para fora, não havia como a Igreja resistir às constantes investidas
dos reis, que, evidentemente, perceberam que a ocasião lhes era propícia, e não
perderam a oportunidade, aproveitando-a para arrancar mais concessões do Santo
Padre, e, nos países ibéricos, aprofundando o instituto do Padroado em
benefício do Estado, principalmente pela estatização da cobrança do dízimo (7).
Em virtude dos desvios dos fundos
resultantes da cobrança do dízimo eclesiástico, pelo estado português, daquela
que deveria ser a sua principal função: a formação de um clero bem preparado,
foram mandados ao Brasil muitos padres de precária formação, em meio a uma
crise de valores típica de tempos de transição e de estados periféricos, que,
de repente, se veem diante de uma grande oportunidade de enriquecimento fácil,
ou países ou grupos que se propõem a um empreendimento muito superior às suas
forças, pois o estado português ao mesmo tempo em que queria controlar
minuciosamente o movimento de pessoas e mercadorias para o Brasil, em vista da
riqueza potencial da terra, não podia impor elevadas condições morais à gente que
quisesse vir. Foi assim, por exemplo, que na mais próspera das capitanias,
Pernambuco, na segunda metade do século XVI, apareceu um bizarro aventureiro,
um padre e ex-jesuíta renegado, que se dizia especialista na arte da mineração,
e que passou ao imaginário popular com o título de Padre do Ouro ou Padre Mágico,
que era dado à nigromancia, ao abuso de índios, e toda sorte de vício (8)... Já os padres mais preparados e
honestos, a maioria eu creio, aqui portavam com uma clara missão: preparar as
almas normalmente muito arredias da gente da terra, para curvar-se ao domínio
de El-Rei e ao seu projeto colonial.
É interessante como essa missão aparece
no discurso eclesiástico de uma maneira difusa, presente até os dias de hoje,
num discurso que privilegiou muito, no passado, a importância da “obediência”,
em detrimento do “perdão”, por exemplo, o que naquela época tinha uma dupla
finalidade, nem sempre consciente: primeiro de garantir e ampliar o poder de um
rei que protegia a Igreja; depois a de reforçar a necessidade do fiel comum em
resistir à “sedução” da mensagem protestante dentro da Igreja, no novo
continente (9). A obediência, entretanto,
ressalta uma situação social de hierarquia, onde há um que pode ou é menos, o
homem comum, e outro que pode ou é mais, o rei e os nobres, enquanto o perdão é
próprio dos iguais, inclusive aquele que perdoa o seu ofensor, quem lhe
prejudica, muitas vezes se coloca numa posição superior, pelo menos no plano
moral, a este. O perdão nos torna, por assim dizer, amigos e irmãos da
divindade que perdoa gratuitamente, e que está muito acima do rei e dos nobres.
Pois bem, enquanto a obediência incondicional ou socialmente determinada verga
a pessoa sob o peso de obrigações que ela não entende, e sequer pode pedir um
esclarecimento sobre elas, como vemos em nossas crianças na brincadeira “o rei
mandou!” Já o perdão liberta, expande e dá confiança.
A mensagem era clara e continuamente reforçada
na população em todos os momentos em que havia algum ajuntamento de povo, o que
regularmente acontecia durante as procissões penitenciais, onde se acentuava a
insuficiência, a natureza precária do indivíduo, e também nas pesadas homilias
e práticas devotas, que acentuavam o caráter do fiel como “servo” da divindade
e dos mantenedores de sua Igreja, em especial os padres, os nobres e o rei, ao
mesmo tempo em que os ajuntamentos ao redor do pelourinho ou cadafalso, para
ver a flagelação dos escravos e a execução de bandidos, reforçava a certeza da
punição civil, material, daqueles que ousavam “rezar fora da cartilha” do rei.
Ao longo de todos período colonial e imperial, e Jorge Caldeira relata muito
bem isso em seus livros – especialmente História
do Brasil com empreendedores e História
da riqueza do Brasil – uma das principais, senão a principal, política do
estado em relação ao povo brasileiro foi mantê-lo obediente, sob controle,
mesmo nas situações mais controvertidas. Não é por acaso que o centro das
cidades coloniais na América Hispano-portuguesa, é formado pela igreja do santo
patrono, tendo defronte a ela uma praça, e do outro lado da praça, de frente
para a igreja, o prédio da municipalidade, onde também ficava a cadeia
pública...
Bem diferente, por exemplo, do que nos
Estados Unidos, onde foi dado aos vira-latas locais ampla liberdade para
empreender e usar do seu tempo. Li num livro de Lauro de Oliveira Lima, Estórias da educação de Pombal a Passarinho,
provavelmente inspirado em outro livro famoso e contemporâneo: Bandeirantes e pioneiros, de Viana Moog,
que em contraste com as nossas “vilas”, a vida social das “villages” e “towns”
americanas girava em torno do “bank”, onde o vira-latas guardava os frutos de
seu trabalha ou tentava multiplica-los, ou do “saloon”, onde os homens, e
algumas mulheres... diferentes, da época, se divertiam depois de uma semana de
labuta pesada e por vezes estéril. Mas não nos enganemos: havia também a
repressão, e ela também atraía grandes multidões de homens e mulheres – por
isso não se admitia, lá, como era comum aqui, o chicoteio de um homem nu, como
ocorria em nossos pelourinhos – sem falar do enforcamento de assassinos e
ladrões de cavalos. Mas havia uma diferença significativamente maior nessas
punições: elas não eram fruto da decisão arbitrária e unilateral do governante ou
do proprietário do escravo; não, ela era, em geral, e decerto que havia
exceções e abusos, a consequência do julgamento em um tribunal do júri, com a
participação de membros da comunidade, expressão de um código civil e penal do
conhecimento de todos, portanto a lei da comunidade, portanto na presença
maciça de pessoas nessas execuções a comunidade expressava o seu apoio à lei,
aos legisladores e aos executores saídos do seu meio... É verdade que também
houve excessos, que os colocavam em desvantagens diante de nós, como os brutais
linchamentos por motivos banais e por vezes torpes, embora mesmo aí havia algo
a ser considerado: a comunidade apresenta-se unida e coesa como agente dessa “justiça”,
francamente injusta e selvagem, expressando rigorosamente a vontade e os
costumes de uma parcela da população (10),
ao contrário do Brasil onde se vulgarizou a decisão monocrática, e nem por isso
mais justa, do magistrado de plantão, ao arrepio do clamor público, quando o
julgador se investe do caráter do império absoluto, como se fosse D. Pedro
III...
Outro mandato cultural, também derivado
da natureza de nosso processo colonial, que privilegiava, “monocraticamente”, o
aspecto fiscal ou a cobrança de impostos, é o do ódio à riqueza, afinal o rei
de Portugal, confortavelmente instalado a milhares de quilômetros do Brasil,
precisava ter um controle perfeito sobre a os fenômenos econômicos de sua
colônia, não só para garantir a sua parte em todas as transações possíveis,
assim como garantir que ninguém enriqueceria sem a sua autorização, esvaziando
a proteção que ele, e depois deles seus descendentes no trono do Brasil, davam
aos amigos ou a quem lhes interessava que enriquecessem. Ninguém, no Brasil
colonial ou imperial, enriquecia por mérito próprio ou por força de trabalho,
mas apenas pelo beneplácito do rei, que conhecia, melhor que os indivíduos, o
lugar de cada um.
Nesse tipo de controle social,
desempenhou um papel importante a pregação dos missionários a ressaltar, além
da obediência já citada, a imagem do Cristo pobre e sofredor, a imagem do povo
brasileiro, em que pese a tutela tão “sábia” e “provedora” de representantes
tão augustos – reis e imperadores portugueses e brasileiros. Não é de admirar,
portanto, que saiam do imaginário popular frases como: “o dinheiro não traz
felicidade”, “o abuso da riqueza é pior que a falta dela”, “grande riqueza é
saber ser pobre”, “a maior riqueza é a saúde”, quanto maior a riqueza, maior a
ambição”, “a riqueza tudo encobre, a pobreza tudo descobre”, “riquezas fazem
riquezas, e piolhos fazem piolhos”, etc. A riqueza, enfim, é quase sempre
tratada a partir de seu aspecto moral, e quase nunca como uma consequência
natural do trabalho, da inteligência e da sabedoria no uso do dinheiro, que é a
essência de um saudável empreendedorismo (11).
Assim, ao longo de 400 anos de processo
colonial e imperial, este um mero prolongamento daquele, pesadas correntes
foram adicionadas à coleira do jovial, buliçoso e empreendedor vira-latas
brasileiro, tolhendo a seu natural disposição e espírito empreendedor,
criando-lhe um espírito introspectivo, inseguro, típico do sentimento de
inferioridade, até que com a Proclamação da República, por um tempo pensou-se que
esse incrível vira-latas latino iria dar a volta por cima a assumir seu posto
entre os grandes desse mundo. Ledo engano, pois à frente do movimento
republicano, e sempre pronto a tutelado com “braço forte e mão... pesada”,
vieram os militares positivistas, eivados do mais profundo senso de
superioridade intelectual e desprezo pela massa ignara. O dístico desse grupo
bem poderia ser: “o povo não sabe votar!” Que escutamos à exaustão durante o
lamentável período de 1964-85. O positivismo, com a sua crença de uma ditadura
militar tão iluminada quanto absoluta, foi mais uma corrente a pesar no lombo
do vira-latas, que, evidentemente continuou sobrecarregado de muitos vestígios
da história anterior. O passado não é como uma roupa que a gente se desfaz
quando quer.
Na primeira etapa da formação de nossa
república, a herança imperial e o positivismo inibiram todas, e escassas,
tentativas de atualizar economicamente o nosso país, que gradativamente foi
perdendo de vista a cauda do vira-latas americano, antes coladinha à sua, numa
época, início do século XIX, em que o vira-latas brasileiro podia encarar o
americano de igual para igual; mas que fazer uma vez que este se especializou
arrebentar correntes enquanto nós, até agora, as colecionamos (12)?
Em 1922, mais uma poderosa corrente (ou
melhor seria dizer sarna?), uma das mais pesadas, vem adicionar-se à pilha de
correntes que se amontoavam sobre o pobre vira-latas brasileiro, com um charme
extra: embora gestada no exterior, fazia tabula rasa das diferenças culturais,
afirmando ligeiramente a unidade e a igualdade da espécie humana, mesmo em seus
aspectos mais secundários e periféricos, que qualquer um pode ver logo que são antes
condicionados pela cultura e até por fatores ambientais; refiro-me à fundação do
Partido Comunista do Brasil (PCB). A notícia de que a realidade não passa de um
esquema fixo e fácil, senão pueril, de relações sociais, dada ao nosso
vira-latas, a quem nunca foi dada uma oportunidade séria de estudar e conhecer
com tempo e qualidade – alguém já achou o nosso Prêmio Nobel? – pois embora não
nos falte inteligência, falta-nos hábitos, antes bons hábitos, para não falar
de um sistema educacional eficaz, deve ter lhe causado uma grande alegria,
turbinada pelo fato de haver um “decreto de igualdade absoluta”, logo feito por
um alemão, que no nosso imaginário mais “sarnento”, sempre apareceu como um “povo
superior”, o povo mais profundamente intelectualizado, filosófico e sábio da Europa, da mesma estirpe de nosso
sacrossanto imperador, Pedro II, metade austríaco, metade... português; a tudo
isso acrescente-se outra “descoberta” sensacional, igualmente feita pelo
benemérito e raivoso alemão: “se você está em dificuldades, a culpa é sempre de
outro”. Se o operário é pobre, a culpa é do patrão, se a o patrão brasileiro é
pobre, a culpa é do patrão americano ou europeu, assim por diante, talvez até
chegar em outro planeta, de onde, parece, proveio essa doutrina. Em algum canto,
muito vira-latas deve ter chorado de emoção: “eu sabia que a culpa não era
minha, eu sabia!” Estreava no Brasil, na forma de uma organização pesadamente
burocratizada, como partido ou entidade religiosa, o chamado marxismo-leninista
(13).
Bem, se não há culpa, então não há
responsabilidade, e se não há responsabilidade também não há necessidade de
melhorar, de evoluir como pessoa ou como comunidade, que fique pois tudo como
está, posto que dá menos trabalho! Ledo engano, pois o novo “profeta do
apocalipse” tinha uma missão atlântica a ser posta sobre os ombros de todos os oprimidos:
mudar o mundo, acabar com os sofrimentos e as dores da humanidade, em benefício
da vanguarda do proletariado ou dos burocratas do partido, pois logo surgiu,
quando da aplicação dessa doutrina impraticável, a tese de que o povo trabalhador,
para ser bem-sucedido em sua luta, deve ser necessariamente orientado pela “vanguarda
do operariado”, ou seja, os funcionários do partido comunista, a partir do
entendimento de que o povo, os trabalhadores, em que pese o seu papel
maravilhoso de mudar a sociedade e dar fim à história, com a criação do paraíso
terrestre marxista, não tem a consciência de sua missão, é um coitado ignorante,
devendo portanto se comportar, diante dos chefes, a “vanguarda”, como um
perfeito idiota, ou o mais sarnento dos vira-latas, que tem o dever de mudar o
mundo, mas não tem permissão para criticar o seu superior! (14).
Bem, ao longo da Primeira República o
vira-latas brasileiro levou chute de todos os lados, dados pelos mais
inesperados e pessoais motivos, embora também tenha mordido muito, foi um
período de guerra social quase permanente, até que em 1930 algo aconteceu...
https://thumbs.jusbr.com/filters:format(webp)/imgs.jusbr.com/publications/images/59b4c225e90a4677ccc0859030b38240
É melhor dormir ao relento embalado por nobres ideais, que viver em palácios desprovido de valores ou vendido a valores alheios. O pior dos vira-latas é o que perdeu essa crença.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjMS7s0zxA_-4QnZFZNZuXDpAMLUTH8jFpLTMcQUoQiOlLWf8e1TnX0fiT_BURidUEBjg0agG1940TPYlFX2Kds4iNVHYLO_8ezgFof4bM9D3lPHO0aoFdxv9oL6RieqDhjTsYi1-sjzBQ/s320/pare+de+dizer+isso.jpg
Notas
1
– Karl Marx e Engels fazem um vibrante elogio, repleto de medo e desconfiança,
à capacidade do capitalismo em gerar riquezas no seu Manifesto do Partido Comunista, pg 10-15, ed Ridento Castigat
Mores, online, 1999, muito bem observado por Schumpeter em seu Capitalismo, socialismo e democracia.
2
– A narrativa, por vezes espalhada em livros didáticos, e até especializados,
de que os mercadores europeus ou gente a seu mando, desde a época dos
descobrimentos, devassavam o interior do continente africano a procura de
escravos a seu bel prazer, defendida até hoje pelos representantes menos
qualificados da nossa intelectualidade esquerdista, é um completo atestado de
desconhecimento dos fatos – para se curar disso basta ler os capítulos
correspondentes a esse tema nas monumentais coleções História Geral da África (volume V) e Histoire de l’Humanité (volume IV), ambas editadas pela UNESCO. Uma
prova concreta de que essa penetração europeia jamais poderia ter acontecido,
em plenos séculos XV e XVI, sem a autorização ou conluio de chefes locais, que
na quase totalidade dos casos resistiram fortemente à entrada de europeus, é
duríssima luta travada pelos portugueses contra a rainha Njinga, de Angola, na
primeira metade do século XVII, sem falar da esmagadora derrota do melhor
exército colonial do mundo, o inglês, na batalha de Isandadhlwana, em janeiro
de 1879, infringida pelos zulus. Imagine-se essa dificuldade trezentos anos
antes!
3
– Essa parte do mundo era tão desconsiderada pela metrópole inglesa, que esta
fez dela a sua Sibéria, mandando para essas ilhas (Austrália, Tasmania e ilha
Norfolk) algo em torno de 161.000 prisioneiros, entre os quais umas 24 a 25 mil
mulheres, invariavelmente convertidas em prostitutas ao chegar – quando
comparamos esses números gigantescos aos 400 ou 600 degredados que vieram para
cá, com os governadores gerais, percebemos o quão é ridículo e sintomático de
um entranhado complexo de inferioridade é o refrão que até hoje escutamos de
que o Brasil não dá certo por causa dos degredados que vieram para cá. O nosso
problema é muito mais o de não assumirmos responsabilidade por nada, de que
esse aforismo é um sinal; a culpa é sempre dos outros!
4
– Nelson Rodrigues se refere aqui ao jogo acontecido em 9 de maio de 1956, no
estádio de Wembley, na Inglaterra, o primeiro Brasil x Inglaterra da história,
quando os ingleses ganharam por 4 x 2. Os filmes da época mostram cenas de
verdadeiros apagões na defesa brasileira, semelhante àquele ocorrido nos 7 x 1
da Alemanha. Se Nelson ainda fosse vivo, em 2014, certamente teria morrido ali,
pois constataria que após tantas lutas e conquistas nos agarrávamos ao velho
viralatismo, como um amuleto de estimação, como quem, por apego ao mito do cão
sarnento, se recusa à grandeza que lhe é devida.
5 – Os textos de
Nelson Rodrigues foram retirados de A
sombra das chuteiras imortais: crônicas do futebol; seleção e notas de Ruy
Castro; Companhia das Letras; p 61-62 – on-line. Treme Proust!
6 – “Complexo de
vira-latas” é uma forma coloquial, popular, de designar um sintoma que na
psicanálise é chamado de COMPLEXO DE INFERIORIDADE. Sabendo que o termo
“complexo” é definido como o conjunto de representações inconscientes, que
mediam ou moldam nossas respostas às provocações do ambiente social, a forma
inconsciente como nos posicionamos em relação ao mundo, portanto na área de
atuação do superego, a conceituação de seu complemento, na forma de “complexo
de inferioridade”, foi desenvolvida por um discípulo de Freud, Alfred Adler
(1870-1937), definido como um sentimento difuso de incapacidade, que faz com
que o indivíduo sempre se coloque como inferior ou dependente dos que o cercam,
sem ânimo para iniciativas que demonstrem na prática, o quão inconsistente é
esse sentimento nele; pelo contrário, o indivíduo não raro inventa os mais
bizarros pretextos e atitudes para provar essa “verdade”, se sabotando miseravelmente...
É claro que carregar um sentimento desses gera um peso e um desconforto
psicológico tremendo, desconforto esse cuja fonte é ignorada pelo seu portador
(em geral se encontra na infância remota, e em uma relação ambígua com os pais
ou cuidadores), e que pode fazê-lo agir com uma fúria desproporcional, toda vez
que ele percebe que alguém está clara ou sub-repticiamente, expondo a sua incapacidade
ao público (hipersensibilidade à opinião alheia). Esta é a base do chamado mecanismo
de compensação, que faz com que a pessoa aja ora como alguém muito humilde e
cordato ora como um animal furioso, desvairado, ou então tenta permanecer a
todo custo no seu inverso, na autossuficiência, como acontece com os chefes que
adoram pisar em seus subalternos.
7 – Era uma
instituição medieval definida como “o direito concedido a certas pessoas,
físicas ou morais, de nomear ou apresentar um clérigo idôneo para ocupar um
cargo eclesiástico. A esse clérigo a autoridade religiosa competente [no caso a
Igreja representada pelo bispo ou pelo Papa] devia conferir, em seguida, a
instituição canônica... Em vários países com relações estabelecidas entra a
Igreja e o Estado [onde invariavelmente o catolicismo se tornava a religião
oficial], esse direito era reconhecido ao poder civil [representado pelo Poder
Legislativo ou Executivo]” (Enciclopédia Mirador Internacional; 1986; p 8.397).
O Padroado era particularmente forte nos países ibéricos, e no caso português,
por exemplo, era Estado quem recolhia o dízimo eclesiástico, por meio da Ordem
de Cristo, sob controle do soberano, para gastá-lo em atividades que mais lhe
interessava, o que não era, precipuamente, a construção de igreja, seminários,
o aperfeiçoamento intelectual e moral dos sacerdotes, e não raro terminavam
financiando operações de guerra em lugares remotos, empreitadas comerciais
suspeitas, sem falar que tornou padres e bispos dependentes do Estado, tipo
funcionários públicos qualificados, embora às vezes nem isso, mais sujeito aos
interesses e às ordens do rei que às do Papa e da Igreja em Roma. Segundo Alceu
Amoroso Lima (1893-1983), num artigo na Enciclopédia Delta Larousse, durante a
Questão Religiosa (1874-76), que redundou na condenação e prisão de dois
bispos, D. Vital Maria, de Olinda e Recife (1872-1876), e D Antônio de Macedo,
de Belém do Pará (1861-1890), apesar de haver cinco padres deputados no
Parlamento, todas intervenções em favor dos bispos foi feita por deputados
católicos leigos.
8 – Eis o que diz
Frei Vicente de Salvador a respeito dessa estranha personagem: “veio um clérigo a
esta capitania, a que vulgarmente chamavam o Padre do Ouro, por ele se jactar
de grande mineiro, e... era mui estimado de Duarte Coelho de Albuquerque
[donatário de Pernambuco], e o mandou ao sertão com 30 homens brancos, e 200
índios, que não quis ele nem lhe eram necessários; porque em chegando a
qualquer aldeia do gentio, por grande que fosse, forte, e bem povoada, depenava
um frangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas , ou folhas lançava para o
ar tantos demônios negros vinham do inferno lançando labaredas pela boca, com
cuja vista somente ficavam os pobres gentios machos, e fêmeas, tremendo de pés
e mãos, e se acolhiam aos brancos, que o padre levava consigo; os quais não
faziam mais que amarrá-los, e levá-los aos barcos, e aqueles idos, outros
vindos, sem Duarte Coelho de Albuquerque, por mais repreendido que foi de seu
tio, e de seu irmão Jorge de Albuquerque, do reino, querer nunca atalhar tão
grande tirania, não sei se pelo que interessava nas peças [os índios], que se
vendiam, se porque o Padre Mágico o tinha enfeitiçado; e foi isto causa para
que El-Rei d. Sebastião o mandasse ir para o reino, donde passou, e morreu com
ele na África [na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578]... E o Padre do Ouro
também foi preso em um navio para o reino, o qual arribou às ilhas [Açores] ,
donde desapareceu uma noite sem mais se saber dele”.
9 – É comum, nas homilias durante as missas,
a observação tão genérica de que “somos todos pecadores”, onde os padres se
incluem, procurando reduzir o peso de um dado tão assustador, uma vez que o
pecado afasta o crente daquilo que ele mais almeja: a salvação eterna, uma
missão assaz pesada para quem já vive numa realidade tão contraditória. No
passado isso era mais presente, e não raro reforçado pela imagem de padres com
ares carrancudos, usando batina, chapéu e sapatos todos pretos. Quando as
crianças faziam traquinagens sempre tinha alguém para dizer: “o padre vem aí!”,
como se fosse um bicho-papão. E comum até os dias de hoje, por exemplo, menções
à obrigação dos filhos obedecerem sem titubear aos pais, ignorando a
complexidade de que de hoje se reveste essa relação, mas que se torna mais
compreensível quando se sabe que, ao longo de 400 anos de nossa história, a
figura do rei e depois a do imperador era apresentada à nação como semelhante à
de um pai.
10 – É impressionante ver a decidida e
certamente selvagem gana dos linchadores americanos, mirando ostensivamente a
câmara do fotógrafo, como a dizer “fui eu mesmo”, diante da vítima brutalizada,
pendendo atrás... numa forca, não negando a sua autoria em tão bárbaro desenlace.
É uma comunidade que assume decididamente seus acertos e seus erros, sem se
esconder ou dissimular. Em fevereiro de 2019, havia uma iniciativa no Congresso
dos Estados Unidos para tornar o linchamento um crime federal, o Justice for
Victms of Lynching Act of 2018 (pasmem!), embora a décadas, não muitas, os
linchamentos sejam punidos exemplarmente de acordo com o código penal pelos
estados. Mas para que se tenha a noção da impregnação cultural deste horror, o
último linchamento nos EUA, até agora, foi o de James Craig Anderson, um
honesto e pacato trabalhador negro, espancado e depois atropelado por uma
gangue de jovens brancos, com uma camionete pesada... em junho de 2011.
11 – Recentemente, em um ofício religioso, um
padre terminou sua homilia dizendo uma pérola dessa sabedoria antiprosperidade:
“pouco com Deus é muito, e muito sem Deus é nada”. Mas será que não existem
pobres que se afastam a Deus, como aqueles que se engajam na venda de drogas e nas
ações armadas do crime organizado, e ricos que fazem trabalhos meritórios, como
aqueles que ajudam em ações filantrópicas, e outras, que ajudam a distribuir a
sua riqueza na sociedade, sem falar dos salários que pagam e ajudam a manter
milhares de famílias? Isso não vale nada diante de Deus ou de seus
representantes nesse mundo? Por que devemos nos apegar aos extremos, quando
existem claras exceções às regras, se é que as exceções não são a regra!
12 – Vale a pena, nesse momento, refletir
sobre os números apresentados livro de Jorge Caldeira, História da riqueza no Brasil (Estação Brasil, Rio de Janeiro,
2017, p 295-296), primeiro citando Angus Maddison: a renda per capita média
provável do Brasil saltou de 1820 a 1890, de US$670 para US$704, quase nada!
Enquanto, “Nos Estados Unidos, [nesse mesmo período] a renda per capita mais
que triplicou... A população [americana] de 35 milhões de habitantes em 1865,
saltou para 63 milhões em 1890 [a população brasileira provável, em 1820, era
de 4,4 milhões de habitantes, e a americana de uns 5,1 milhões; em 1890, o
censo brasileiro computou 14.095.983 habitantes]. Apesar de tal incremento (a
população dos Estados Unidos era então 4,5 vezes maior que a brasileira...) A
renda per capita cresceu 55% no mesmo período [1865-1890]”. Uma coisa que
Caldeira não fala é sobre o analfabetismo; no Brasil, em 1872, o censo detectou
82,3% de analfabetos na população, enquanto em 1900 eram pouco mais de 65%, com
forte suspeita, nesses dois casos, de subnotificação. Nos EUA os índices eram
20% e 10,7% respectivamente, segundo o National Center for Education Statistics.
13 – Ao contrário do que diz Jorge Caldeira
em História da riqueza no Brasil,
desde o início o PCB envidou todos os esforços para pertencer à Internacional
Comunista (IC), também chamada de Terceira Internacional, garantindo que estava
pronto para obedecer minuciosamente, as 21 condições necessárias para ser
aceito, conforme se pode ver no precioso texto a esse respeito: Os primeiros anos do PCB e a Internacional
Comunista, da professora Marly de Almeida gomes Vianna. Para se ter uma
ideia do quão pesada era essa corrente, veja-se o texto das 21 condições: “1)
toda propaganda e agitação cotidiana devem ter caráter efetivamente comunista e
dirigida por comunistas; 2) toda organização desejosa de aderir à IC deve
afastar de suas posições os dirigentes comprometidos com o reformismo; 3) em
quase todos os países da Europa e da América, a luta de classes se mantém no
período de guerra civil. Os comunistas não podem, nessas condições, se fiar na legalidade
burguesa. É de seu dever criar, em todo lugar, paralelamente à organização
legal, um organismo clandestino; 4) o dever de propagar as idéias comunistas
implica a necessidade absoluta de conduzir uma propaganda e uma agitação
sistemática e perseverante entre as tropas; 5) uma agitação racional e
sistemática no campo é necessária; 6) todo partido desejoso de pertencer à IC
tem por dever não só o de denunciar o social-patriotismo como o seu
social-pacifismo, hipócrita e falso; 7) todos os partidos desejosos de
pertencer à IC devem romper completamente com o reformismo e a política do
centro. A IC exige, imperativamente e sem discussão, essa ruptura, que deve ser
feita no mais breve de tempo; 8) nas colônias, os partidos devem ter uma linha
de conduta particularmente clara e nítida; 9) todo partido desejoso de
pertencer à IC deve realizar uma propaganda perseverante e sistemática nos
sindicatos, cooperativas e outras organizações das massas operárias; 10) todo
partido pertencente à IC tem o dever de combater com energia e tenacidade a
Internacional do sindicatos amarelos de Amsterdã; 11) todos os partidos
desejosos de pertencer à IC devem rever a composição de suas frações
parlamentares; 12) os partidos pertencentes à IC devem ser construídos com base
no princípio do centralismo democrático; 13) os partidos comunistas, onde são
legais, devem ser depurados periodicamente para afastar os elementos
pequeno-burgueses; 14) os partidos desejosos de entrar na IC devem sustentar,
sem reservas, todas as repúblicas soviéticas nas suas lutas com a
contra-revolução; os partidos que ainda conservam os antigos programas
socialdemocratas têm o dever de revê-los e, sem demora, elaborar um novo
programa comunista adaptado às condições especiais de seu país e no espírito da
IC; 16) todas as decisões do Congresso da IC e de seu Comitê Executivo são
obrigatórias para todos os partidos filiados à IC; 17) todos os partidos
aderentes à IC devem modificar o nome e se intitular “Partido Comunista”. A
mudança não é simples formalidade e, sim, de uma importância política
considerável, para distingui-los dos partidos socialdemocratas ou socialistas,
que venderam a bandeira da classe operária; 18) todos os órgãos dirigentes e da
imprensa do partido são importados do Comitê Executivo da IC; 19) todos os
partidos pertencentes à IC são obrigados a se reunir, quatro meses após o II
congresso da IC, para opinar sobre essas 21 condições; 20) os partidos que
quiserem aderir, mas que não mudaram radicalmente a sua antiga tática, devem
preliminarmente cuidar para que 2/3 dos membros de seu comitê central e das
instituições centrais sejam compostos de camaradas que, antes do II Congresso,
tenham se pronunciado pela adesão do partido à IC; 21) os aderentes partidários
que rejeitam as condições e as teses da IC devem ser excluídos do partido. O
mesmo deve se dar com os delegados ao Congresso Extraordinário” (fonte https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=109).
14 – Todos sabem que a teoria marxista foi
autorrevelada de uma vez por toda a Karl Marx e Frederich Engels, na segunda
metade do século XIX, cabendo aos seus seguidores fazer todo tipo de contorção
mental para mantê-la minimamente operacional e “científica”, adicionando-lhe
inúmeros anexos que ocultem a sua matriz fantasiosa, quiçá de cunho freudiano.
Não adianta, portanto, na análise do pensamento comunista no Brasil do início
do século XX, apelarmos às variantes mais lúcidas ou modernas, que aqui e ali
se adicionam à teoria, portanto vamos nos prender à compreensão que havia
naquela época sobre esse fenômeno, em especial, àquela matriz que desde o
início prendeu a mais bem-sucedida organização comunista brasileira: o de
matriz leninista-soviético, que pode ser resumido num único aforismo: “ou você
obedece ou está fora”, de onde uma legião de fundadores e grandes figuras do PCB
original, que acabaram expulsos ou se afastaram do partido, como Astrojildo
Pereira, Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Octávio Brandão, Antônio Canellas,
Mario Pedrosa, Cristiano Cordeiro, Leôncio Basbaum, etc. Ninguém aguenta!
Vejamos o que dizem a esse respeito, de forma
um tanto escolástica, Guy Besse e Maurice Caveing, stalinistas de boa cepa, na
linha do Partido Comunista Francês, em seu Principes
fondamenteaux de philosophie – só encontrei a edição francesa de 1954 –
entre as páginas 141 e 144, (online): “Como se realiza concretamente a fusão
entre o movimento dos trabalhadores e o socialismo científico? Pela
constituição de um partido, que agrupa e organiza a vanguarda do proletariado,
que educa ao operariado no socialismo científico e dirige a luta revolucionária
de toda a classe trabalhadora e seus aliados. Esse é o partido dos comunistas,
ao qual Marx e Engels definem como tarefa no Manifesto, tanto no plano internacional como dentro de cada país,
prover ao proletariado de [citando Marx-Engels] ‘uma clara compreensão das
condições, da marcha e dos objetivos gerais do movimento proletário’
(...Manifesto do Partido Comunista (II “proletários e comunistas”, p 41 [da
edição francesa]))” Continua a seguir: “A necessidade de um tal partido é um
dado fundamental do socialismo científico [é, portanto, “científica” a
obrigação de todos se submeterem ao partido!], e é conforme aos ensinamentos do
materialismo dialético histórico. Por quê? Porque se é verdade que o
proletariado, explorado pela burguesia é, pelas suas condições materiais,
levado a lutar contra essa mesma burguesia, isso não significa absolutamente
que sua consciência seja espontaneamente socialista. A tese da espontaneidade
da consciência revolucionária é contrária ao marxismo, pois a teoria
revolucionária é científica [a palavra mágica!], e não existe ciência
espontânea [então ela é produto de uma ideologia, ou de um conhecimento prévio
socialmente estruturado, mas se ela é produto de uma ideologia, então que valor
acrescenta ao marxismo o fato dele se autoproclamar “científico”, desmoronando,
pois, todo o peso deste argumento?]” Mas a loucura prossegue: “É em razão de
seu caráter científico, que o marxismo tem um valor universal e não é só
reservado aos proletários. Ele é acessível a todo homem que se esforça
seriamente para compreender a história das sociedades...” Sendo “científica” só
há uma conclusão ou um sentido possível para a história da sociedade: aquele
prescrito por Marx-Engels, a partir Deus sabe lá do quê, uma vez que eles, como
todos os outros homens, inclusive para reforçar o caráter “científico” de suas
conclusões, estavam mergulhados em um mundo ideologicamente configurado antes
que eles nascessem, sem considerar que, de acordo com o texto, ao final quem
fará as mudanças acontecerem são aqueles mais intelectualizados, portanto não-operários,
os intelectuais, que, usando dos operários como bucha de canhão, construirão o
mundo que eles, os ditos intelectuais, em geral gente distante da realidade,
imaginam que seja o mais justo ou melhor. Nesse caso é a “superestrutura” (o
mundo das ideias) que determina a infraestrutura (o mundo do trabalho). Que
mixórdia!
“Na sociedade capitalista, prosseguem eles, a
ideologia oferecida espontaneamente ao operariado é a ideologia burguesa; é o
caso, por exemplo da religião... A ideologia burguesa ainda tem a seu favor a
força da tradição e dos enormes recursos materiais provindos do estado
burguês... A classe operária é atraída espontaneamente para o socialismo, mas a
ideologia burguesa, que é a mais propagada (e constantemente aperfeiçoada), não
é, ela própria, espontaneamente apresentada ao proletariado, mas antes lhe é
imposta (Lenin, Que fazer? P 44, note, Ed. Sociales, 1947)” Esse argumento
desfalece já na próxima esquina, uma vez que a burguesia, mesmo sufocada pela
ideologia do clero e do baronato feudo-medieval, conseguiu, pelo trabalho,
mudar as feições do mundo de uma maneira espetacular, leiam o Manifesto
comunista sobre isso, sem ter uma teoria ou uma doutrina minimamente articuladas
para dirigir suas ações – a teoria capitalista por excelência, o liberalismo,
só surgirá no século XVIII, pela pena de Adam Smith ou Richard Cantillon, Ensaio sobre a natureza do comércio em geral,
quando o mundo burguês-capitalista já estava a todo vapor! O capitalismo surgiu
da ação lógica, baseada nas necessidades humanas, e espontânea dos burgueses,
enquanto o socialismo surgirá dos devaneios abstratos dos intelectuais,
instigando, da retaguarda, a massa ignara na direção de um paraíso teórico, que
essas mesmas massas não compreendem bem (de onde a necessidade do partido
revolucionário centralizador)!
E por fim! «Portanto, é por meio de uma
luta pertinaz contra a ideologia burguesa [que jamais poderá ser levada a cabo
por operários submetidos a largas jornadas de trabalho no mundo real; e se eles
perdem o comando já no início da luta como poderão retomá-lo, e participar,
posteriormente, do que será decidido em seu nome?], difundida por toda parte
que o socialismo científico abrirá o caminho para a classe trabalhadora. Tarefa
impossível de realizar sem um partido que seja conhecedor da ciência
revolucionária e ligado às massas trabalhadoras, onde faz seu recrutamento,
para desenvolver-lhe uma consciência socialista. O interesse revolucionário do
proletariado o induz assim a defender o partido contra todo e qualquer ataque e
fortalecê-lo, uma vez que a sua existência é necessária para a sua vitória”
Pior ainda fez Lênin, pois, num artigo imperdível de um
ex-guerrilheiro comunista, mais um desiludido, o professor Leôncio Martins
Rodrigues, Lênin: o partido, o Estado e a
burocracia, em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451988000200005
Faz uma revelação esmagadora do enorme prejuízo, tanto às condições da classe
trabalhadora como à melhoria das
condições políticas e econômicas da sociedade russa, provocado pelo desvario
que se seguiu à aplicação dos conceitos fundamentais do marxismo, nos anos que
se seguiram à tomada do poder pelos comunistas em 1917. O problema central era
o crescimento do aparato burocrático, que crescia e sufocava o estado
socialista, inviabilizando a vivência, na realidade, do paraíso anunciado pelos
fundadores do marxismo. Lenin não entendia que a necessidade de controlar em
minúcia a sociedade só podia gerar mais complexidade na administração pública e
por isso mais burocracia. As instâncias decisórias se multiplicaram e se
superpuseram à justiça, ao pão na mesa, à dignidade, que antes viraram como que
piadas de mal gosto. Para não me alongar mais deixo um trecho desse escrito
simplesmente precioso, que explica, cristalino, o grande drama da União
Soviética e do marxismo em geral, até os dias de hoje: “Em
outras palavras: para a luta imediata contra a burocracia, que
tomava conta do novo Estado, e que o mortificava, Lenin sugere apenas medidas
autoritárias, que somente significavam o reforço das próprias tendências
burocráticas que ele tanto odiava. Em outras palavras, as sugestões de Lenin
vão no sentido de combater burocraticamente a burocracia... O
problema, contudo, era como combater esta burocracia que tomava conta de tudo,
inclusive de seu partido. Dado o isolamento dos bolcheviques,
"uma gota d'água no mar do povo", Lenin não pôde "apelar para as
massas", porque não contava mais com o apoio popular; Qualquer tentativa
de conter o avanço da burocracia por meio de medidas de caráter democrático
teria como resultado, quase fatal, o fim do governo bolchevique e sua substituição,
mais provavelmente por um governo socialista-revolucionário. Assim, Lenin não
tinha outra alternativa senão tentar combater a burocracia por meios
autoritários, de modo a não colocar em risco o monopólio do poder bolchevique
e, consequentemente, o seu próprio poder. Neste combate
burocrático contra a burocracia, o vencedor seria sempre a burocracia. No final
de sua vida, aquele que declarara em fins de 1918: "Nós reservamos o poder
do Estado para nós mesmos e somente para nós", via que o
poder, na realidade deslizava para as mãos de um inimigo que, pouco antes da
tomada do poder, Lenin julgara ser característico das sociedades capitalistas e
muito fácil de ser eliminado numa sociedade em que a burguesia fosse afastada
do poder político”.