quarta-feira, 11 de dezembro de 2019


1964, ENTRE FANTASIAS, ALUCINAÇÕES E SENTIMENTOS DE INFERIORIDADE

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UMA ANTIGA HERANÇA
         No início do século XIX, quem olhasse para o conjunto das regiões do planeta, com os povos aí instalados, não teria dúvida em dizer que a América Latina era, com certeza, o continente do futuro, o próximo a usufruir das riquezas geradas pelo capitalismo, que iam adiantadas na Europa e faziam uma auspiciosa abertura nos Estados Unidos, e que esse futuro luminoso não tardaria: talvez começo do século XX. A América Latina tinha tudo para se tornar uma das áreas mais ricas do planeta, transformando as três Américas, em termos políticos e econômicos, num supercontinente!
         A causa de semelhante afirmação é que qualquer grande capitalista cordato daquela época, que mirasse, com sede de investimento, as oportunidades apresentadas em outras regiões do globo não hesitaria em apostar todas as suas fichas nas jovens nações latino-americanas, afinal elas já vinham de um contato intenso e profícuo, em termos econômicos, com a matriz do capitalismo mundial, a Europa, mais até que os Estados Unidos, e já eram veteranas, após trezentos anos de convivência com o sistema que revolucionava a história recente do mundo. As línguas dominantes eram bem conhecidas dos europeus, o espanhol um pouco mais que o português, os costumes e a religião dominante também eram compatíveis com as conhecidas ou professadas na Europa (1).
         Uma mirada sobre outros continentes e populações daria ainda mais razão a esse capitalista. A África, por exemplo, ao norte havia populações estabelecidas em grandes cidades, relativamente próximas e prósperas, que bem poderiam usufruir dos bens ou mercadorias produzidas pelo sistema capitalista europeu, e realizar permutas com grandes vantagens para ambas as partes: europeus e norte-africanos. Entretanto essas populações partilhavam uma cultura religiosa que, até aquele momento, era figadalmente oposta à praticada na Europa Ocidental, o que dificultava, quando não inviabilizava acordos abrangentes e de longo prazo. Mais ao sul, separados pelo maior deserto de areia da Terra, viviam povos tribais, alguns em transição para a formação de estados, precocemente desestruturados pelos contatos esporádicos com os europeus ao longo da costa ocidental do continente, mas nem por isso inermes ou incapacitados para exercer uma feroz e por vezes eficaz resistência a qualquer tentativa mais desabusada dos europeus em penetrar o interior do continente ou contestar, sem a autorização do governante local, o modo de vida tradicional daquela gente (2). Sua língua e sua religião eram completamente diferentes da conhecidas ou utilizadas na Europa. A aventura e o custo de estabelecer proveitosas e contínuas relações de troca eram enormes.
         Na Ásia mourejavam os restos de antiquíssimas civilizações, envolvidos por um interminável manancial de gente, a deixar em êxtase, até os dias de hoje, quem quer que se proponha a enxergá-las como “mercado” ou como “consumidores”: a alegria de qualquer produtor capitalista. Entretanto, envolvidas por séculos de tradições e costumes surgidos, consolidados e cristalizados à revelia da Civilização Ocidental, e em muitos casos em relação antagônica com os derivados desta. Como já possuíam o know how de estados organizados e ações coletivas em larga escala, opuseram uma tremenda resistência à penetração Ocidental, quer ela se desse à ponta de baioneta ou pelo discurso melífluo de um sagaz vendedor. Os confrontos entre Ocidente e Oriente, na Ásia, regam o chão desse continente de sangue até os dias de hoje. Havia, além disso, as dificuldades da língua e das peculiaridades dos hábitos locais, quando não uma histórica e feroz e militante aversão, como acontecia com os povos islâmicos do Oriente Médio e do Centro da Ásia. O capitalismo, desde o seu início, e estou falando dos séculos XVIII e XIX, nunca teve, aí, vida fácil.
         Do outro lado do mundo, praticamente no “fim do mundo”, de um ponto de vista espacial, visto do Ocidente, ficava a Oceania, um continente formado por volumes incalculáveis de água e algumas poucas e minúsculas áreas secas, exceto a grande ilha da Austrália e a modesta Nova Zelândia. Uma ocupada por grandes áreas desérticas, ocasionalmente percorridas por populações nômades, cujo número total oscilava em torno de 1 milhão, correspondente à população de Londres na época, usando ferramentas e utensílios do dia a dia equiparáveis aos do Paleolítico, enquanto a outra, envolvida por densa vegetação, era habitada pelos combativos maoris, apodados como “caçadores de cabeças” (3). As dificuldades, nestes casos, são simplesmente todas.
         Com base nisso, sem falar de muitos outros elementos que colocavam, de muito, a América Latina à frente dos outros continentes, como a futura área de prosperidade do capitalismo nascente, como então explicar que, 200 anos depois, o nosso continente esteja disputando com a África um triste campeonato, para ver quem será capaz de criar e enviar mais desesperados para as zonas prósperas do planeta, enquanto muitos países, outrora em situação muito mais precária, assumem a dianteira, e criam as novas zonas de prosperidade e boa qualidade de vida, entre eles, inclusive, uma ex-potência comunista (a China), enquanto crescem entre nós, latino-americanos, os indícios de que a situação geral do continente ainda vai piorar, até que possamos reverter a marcha para a prosperidade?
         Poderíamos continuar nessa digressão, abarcando toda a América Latina, mas não é esse o compromisso deste trabalho, ficando adstrito à realidade brasileira, e nesse momento eu para uma das crônicas mais reveladoras da alma nacional, que toca bem no cerne de nossa incapacidade de aceitar e lutar por nosso lugar no mundo desenvolvido: Complexo de vira-latas, de Nelson Rodrigues, escrita um pouco antes da Copa da Suécia, em 1958.
         Ele inicia a crônica chamando atenção para o falatório dos frequentadores de botecos e pontos de reunião, que são a marca de um Rio nostálgico, alegre e generoso, que, em virtude da nossa indiferença, sempre ela, hoje não existe mais. Naqueles tempos, as figuras sociais mais marcantes era o sambista e o malandro, deslocados com o tempo pelo traficante e o sniper – um termo que nem brasileiro é – e o que ele escuta invariavelmente nas conversas é que, na Suécia, “o Brasil não vai nem se classificar!” E aí ele se pergunta: “Não será essa atitude negativa, o disfarce para um otimismo inconfesso e envergonhado?”
         Tão decepcionado, tão curtido pelos desencantos do passado, acreditando que a vida é dura só para ele ou que a sua vida é mais dura que a de todos os outros povos, que os corruptos aqui são mais numerosos e piores que em qualquer outro lugar, embora não apresente nenhum critério objetivo para essa conclusão, o brasileiro, mesmo com todas as perspectivas de sucesso, recusa-se a acreditar que este acontecerá, como se no fundo não se julgasse merecedor do prêmio maior. Nelson Rodrigues mata então a charada:  “Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo... O tempo passou em vão sobre a derrota [os 2 x 1 de 1950]. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio [Obdulio Varela, o capitão da equipe uruguaia] arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: “extraiu” de nós o título como se fosse um dente”. E eu completaria: sem anestesia...
         E afinal vem a explicação do conceito que o cronista tenta demonstrar: “Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Por que, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo (4).
         Entretanto, o grande dramaturgo ainda assim crê!  “eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo... [pois] A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: — temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades...” Justo o complexo de vira-latas (5).
         Desconhecedores da cultura da época, alguns analistas e pesquisadores tentaram corrigir a Nelson Rodrigues – coisa fácil de fazê-lo, estando ele já morto – e reapresentá-lo indigno e preconceituoso, como o despreparado energúmeno que o denunciou por “racismo ecológico”, por conta dessa crônica – justo quando imaginávamos haver já alcançado o topo da idiotice... mas nada ofende mais a um vira-latas sem “raça”, contumaz, que ser chamado de “vira-latas”, sem falar do desejo incontido pelos quinze minutos de fama, à custa daqueles que têm o talento que lhe falta. Ora, quem tem um mínimo de cultura e um nada de preconceito, e leu a crônica original, sabe que o termo aí usado se refere não ao fato de o vira-lata ser uma mescla indefinida de raças, mas sim ao fato de ele ser desprestigiado, não ter reconhecimento oficial e ser tratado de forma vil. Talvez hoje o termo que melhor traduziria aquilo que Nelson Rodrigues falou seria “cão sarnento”, prostrado, não ao peso de seus males físicos, da sarna, ou de sua ambiguidade racial, mas ao peso de sua enorme descrença em si mesmo. O texto de Rodrigues é basilar para o entendimento da alma nacional (6).
         De fato, o vira-latas, se nos apegarmos ao significado estritamente biológico do conceito, é um animal resistente, versátil, inteligente, que na vida real não hesita em enfrentar enormes e perigosos cães de laboratório para defender o seu dono, tem uma “nobreza” canina genética. Transpondo para o figurativo, o simbólico, nós somos sim muito vira-latas; mas os americanos também o são! Entre os povos de raça branca, ou predominantemente branca, eles são os mais misturados. Como explicar, pois, que esse vira-latas do norte tenha chegado a uma tal força e grandiosidade, que enfrentou e venceu as mais poderosas raças do mundo, desde o mastim inglês até o belicoso pastor alemão, o destrambelhado pastor do Cáucaso, e agora se vê às turras, em posição de superioridade, com o mastim tibetano.
         Mas ainda fica por se responder a pergunta: por que eles, e nós não? Tenho, em mim, uma resposta para essa pergunta e vou arriscar-me a escrevê-la agora, como o fazem todos os que militam na história, esperando que ela ajude a aquecer o frígido e impassível momento desta ciência no Brasil, apesar do risco que corro, sem ter a grandeza de Nelson Rodrigues, de hoje ou no futuro ser mal compreendido ou mesmo deturpado, a ponto de algum idiota achar em meus textos pistas de crimes que sequer imagino...
         O problema dessa disposição psicológica, desse “viralatismo” ou “sarnentismo” simbólico, que, diga-se de passagem, não é apanágio apenas dos brasileiros, mas antes acomete em menor ou maior grau aos nossos vizinhos, talvez possa ser rastreado a partir de nossa formação colonial, pois se tomarmos como referência o elemento cultural mais comum e marcante nos países do continente, seremos levado inevitavelmente ao catolicismo ibérico; e friso bem o termo “ibérico”, ignorando o qualificativo “romano”.
         De fato, se consideramos que as grandes descobertas geográficas, para os europeus, aconteceram ali por volta do século XVI, envolvidas por um conturbado pano de fundo, que condicionou profundamente a colonização das três Américas, talvez possamos ter pistas consistentes sobre os condicionantes de nossa formação nacional.
         O pano de fundo desse período épico, para os europeus, era a guerra religiosa difusa, travada no continente entre católicos e protestantes, motivada por interesses diversos, onde inúmeras variáveis sociais, políticas e econômicas se entrelaçavam, prometendo novos amálgamas e combinações ao sabor de circunstâncias muito originais; de um lado se via o embrião do moderno estado nacional, forcejando para romper o domínio político, ideológico e econômico do clero e da aristocracia agrária, ajudado pela divisão interna da mais poderosa instituição religiosa da Europa: a Igreja Católica Romana. Do encontro dessas circunstâncias moldou-se um tipo de catolicismo, que haveria de ser o alicerce ideológico da empreitada colonial na América.
         De um lado havia a briga várias vezes secular entre o poder temporal e o poder religioso: o Estado ou o príncipe que o personalizava contra os representantes do bispo de Roma, disputando corações, mentes e bolsos de súditos e fieis cristãos, e que teve o seu momento mais crítico na chamada Querela da Investiduras, iniciada em 1075, entre o Papa Gregório VII e Henrique IV da Alemanha, de tal sorte que no crepúsculo da Idade Média, pode-se dizer, havia um sentimento generalizado entre monarcas europeus, já reinantes ou potenciais, de um dia se livrar da tutela de Roma e até de inverter essa tutela, o que era visto com muita preocupação pelo clero. Ora, esse sentimento era partilhado inclusive por aqueles soberanos que faziam questão de disputarem-se como campeões do catolicismo, fato cada dia mais raro, entre eles os reis ibéricos, de Portugal e Espanha, nossos “padrinhos” europeus, que não sossegaram enquanto não puseram firmemente a nobreza e o clero sob estrito controle – no caso português, por exemplo, é verdade que o quarto rei Afonso II (1223-1248), foi excomungado e deposto por uma coalizão de padres e nobres, em 1238, por investir contra os privilégios destes, mas foi um tiro na água, pois o substituto arranjado, Afonso III (1238-1253), continuou com a mesma política, tanto que morreu excomungado, e com ele o seu reino. O sucessor de Afonso III, seu filho, D Dinis I, de longo reinado (1279-1325), acabou definitivamente com a questão jugulando definitivamente a nobreza e o clero portugueses, forçando ao Papa a aceitar o fato consumado: em Portugal, quem mandava era o rei...
         Por outro lado, quando, em 1519, o monge alemão Martinho Lutero resolveu por “fogo na casa” de sua Igreja, por divergências de cunho tanto político-nacional quanto teológico-moral, e o fogo se alastrou com tanta agressividade e em tantas frentes, que muitas autoridades católicas desse período devem ter perdido noites de sono ou sentiam estremecimentos ao lerem Mc 3,24: Se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não poderá subsistir... Atacada de dentro para fora, não havia como a Igreja resistir às constantes investidas dos reis, que, evidentemente, perceberam que a ocasião lhes era propícia, e não perderam a oportunidade, aproveitando-a para arrancar mais concessões do Santo Padre, e, nos países ibéricos, aprofundando o instituto do Padroado em benefício do Estado, principalmente pela estatização da cobrança do dízimo (7).
         Em virtude dos desvios dos fundos resultantes da cobrança do dízimo eclesiástico, pelo estado português, daquela que deveria ser a sua principal função: a formação de um clero bem preparado, foram mandados ao Brasil muitos padres de precária formação, em meio a uma crise de valores típica de tempos de transição e de estados periféricos, que, de repente, se veem diante de uma grande oportunidade de enriquecimento fácil, ou países ou grupos que se propõem a um empreendimento muito superior às suas forças, pois o estado português ao mesmo tempo em que queria controlar minuciosamente o movimento de pessoas e mercadorias para o Brasil, em vista da riqueza potencial da terra, não podia impor elevadas condições morais à gente que quisesse vir. Foi assim, por exemplo, que na mais próspera das capitanias, Pernambuco, na segunda metade do século XVI, apareceu um bizarro aventureiro, um padre e ex-jesuíta renegado, que se dizia especialista na arte da mineração, e que passou ao imaginário popular com o título de Padre do Ouro ou Padre Mágico, que era dado à nigromancia, ao abuso de índios, e toda sorte de vício (8)... Já os padres mais preparados e honestos, a maioria eu creio, aqui portavam com uma clara missão: preparar as almas normalmente muito arredias da gente da terra, para curvar-se ao domínio de El-Rei e ao seu projeto colonial.
         É interessante como essa missão aparece no discurso eclesiástico de uma maneira difusa, presente até os dias de hoje, num discurso que privilegiou muito, no passado, a importância da “obediência”, em detrimento do “perdão”, por exemplo, o que naquela época tinha uma dupla finalidade, nem sempre consciente: primeiro de garantir e ampliar o poder de um rei que protegia a Igreja; depois a de reforçar a necessidade do fiel comum em resistir à “sedução” da mensagem protestante dentro da Igreja, no novo continente (9). A obediência, entretanto, ressalta uma situação social de hierarquia, onde há um que pode ou é menos, o homem comum, e outro que pode ou é mais, o rei e os nobres, enquanto o perdão é próprio dos iguais, inclusive aquele que perdoa o seu ofensor, quem lhe prejudica, muitas vezes se coloca numa posição superior, pelo menos no plano moral, a este. O perdão nos torna, por assim dizer, amigos e irmãos da divindade que perdoa gratuitamente, e que está muito acima do rei e dos nobres. Pois bem, enquanto a obediência incondicional ou socialmente determinada verga a pessoa sob o peso de obrigações que ela não entende, e sequer pode pedir um esclarecimento sobre elas, como vemos em nossas crianças na brincadeira “o rei mandou!” Já o perdão liberta, expande e dá confiança.
         A mensagem era clara e continuamente reforçada na população em todos os momentos em que havia algum ajuntamento de povo, o que regularmente acontecia durante as procissões penitenciais, onde se acentuava a insuficiência, a natureza precária do indivíduo, e também nas pesadas homilias e práticas devotas, que acentuavam o caráter do fiel como “servo” da divindade e dos mantenedores de sua Igreja, em especial os padres, os nobres e o rei, ao mesmo tempo em que os ajuntamentos ao redor do pelourinho ou cadafalso, para ver a flagelação dos escravos e a execução de bandidos, reforçava a certeza da punição civil, material, daqueles que ousavam “rezar fora da cartilha” do rei. Ao longo de todos período colonial e imperial, e Jorge Caldeira relata muito bem isso em seus livros – especialmente História do Brasil com empreendedores e História da riqueza do Brasil – uma das principais, senão a principal, política do estado em relação ao povo brasileiro foi mantê-lo obediente, sob controle, mesmo nas situações mais controvertidas. Não é por acaso que o centro das cidades coloniais na América Hispano-portuguesa, é formado pela igreja do santo patrono, tendo defronte a ela uma praça, e do outro lado da praça, de frente para a igreja, o prédio da municipalidade, onde também ficava a cadeia pública...
         Bem diferente, por exemplo, do que nos Estados Unidos, onde foi dado aos vira-latas locais ampla liberdade para empreender e usar do seu tempo. Li num livro de Lauro de Oliveira Lima, Estórias da educação de Pombal a Passarinho, provavelmente inspirado em outro livro famoso e contemporâneo: Bandeirantes e pioneiros, de Viana Moog, que em contraste com as nossas “vilas”, a vida social das “villages” e “towns” americanas girava em torno do “bank”, onde o vira-latas guardava os frutos de seu trabalha ou tentava multiplica-los, ou do “saloon”, onde os homens, e algumas mulheres... diferentes, da época, se divertiam depois de uma semana de labuta pesada e por vezes estéril. Mas não nos enganemos: havia também a repressão, e ela também atraía grandes multidões de homens e mulheres – por isso não se admitia, lá, como era comum aqui, o chicoteio de um homem nu, como ocorria em nossos pelourinhos – sem falar do enforcamento de assassinos e ladrões de cavalos. Mas havia uma diferença significativamente maior nessas punições: elas não eram fruto da decisão arbitrária e unilateral do governante ou do proprietário do escravo; não, ela era, em geral, e decerto que havia exceções e abusos, a consequência do julgamento em um tribunal do júri, com a participação de membros da comunidade, expressão de um código civil e penal do conhecimento de todos, portanto a lei da comunidade, portanto na presença maciça de pessoas nessas execuções a comunidade expressava o seu apoio à lei, aos legisladores e aos executores saídos do seu meio... É verdade que também houve excessos, que os colocavam em desvantagens diante de nós, como os brutais linchamentos por motivos banais e por vezes torpes, embora mesmo aí havia algo a ser considerado: a comunidade apresenta-se unida e coesa como agente dessa “justiça”, francamente injusta e selvagem, expressando rigorosamente a vontade e os costumes de uma parcela da população (10), ao contrário do Brasil onde se vulgarizou a decisão monocrática, e nem por isso mais justa, do magistrado de plantão, ao arrepio do clamor público, quando o julgador se investe do caráter do império absoluto, como se fosse D. Pedro III...
         Outro mandato cultural, também derivado da natureza de nosso processo colonial, que privilegiava, “monocraticamente”, o aspecto fiscal ou a cobrança de impostos, é o do ódio à riqueza, afinal o rei de Portugal, confortavelmente instalado a milhares de quilômetros do Brasil, precisava ter um controle perfeito sobre a os fenômenos econômicos de sua colônia, não só para garantir a sua parte em todas as transações possíveis, assim como garantir que ninguém enriqueceria sem a sua autorização, esvaziando a proteção que ele, e depois deles seus descendentes no trono do Brasil, davam aos amigos ou a quem lhes interessava que enriquecessem. Ninguém, no Brasil colonial ou imperial, enriquecia por mérito próprio ou por força de trabalho, mas apenas pelo beneplácito do rei, que conhecia, melhor que os indivíduos, o lugar de cada um.
         Nesse tipo de controle social, desempenhou um papel importante a pregação dos missionários a ressaltar, além da obediência já citada, a imagem do Cristo pobre e sofredor, a imagem do povo brasileiro, em que pese a tutela tão “sábia” e “provedora” de representantes tão augustos – reis e imperadores portugueses e brasileiros. Não é de admirar, portanto, que saiam do imaginário popular frases como: “o dinheiro não traz felicidade”, “o abuso da riqueza é pior que a falta dela”, “grande riqueza é saber ser pobre”, “a maior riqueza é a saúde”, quanto maior a riqueza, maior a ambição”, “a riqueza tudo encobre, a pobreza tudo descobre”, “riquezas fazem riquezas, e piolhos fazem piolhos”, etc. A riqueza, enfim, é quase sempre tratada a partir de seu aspecto moral, e quase nunca como uma consequência natural do trabalho, da inteligência e da sabedoria no uso do dinheiro, que é a essência de um saudável empreendedorismo (11).
         Assim, ao longo de 400 anos de processo colonial e imperial, este um mero prolongamento daquele, pesadas correntes foram adicionadas à coleira do jovial, buliçoso e empreendedor vira-latas brasileiro, tolhendo a seu natural disposição e espírito empreendedor, criando-lhe um espírito introspectivo, inseguro, típico do sentimento de inferioridade, até que com a Proclamação da República, por um tempo pensou-se que esse incrível vira-latas latino iria dar a volta por cima a assumir seu posto entre os grandes desse mundo. Ledo engano, pois à frente do movimento republicano, e sempre pronto a tutelado com “braço forte e mão... pesada”, vieram os militares positivistas, eivados do mais profundo senso de superioridade intelectual e desprezo pela massa ignara. O dístico desse grupo bem poderia ser: “o povo não sabe votar!” Que escutamos à exaustão durante o lamentável período de 1964-85. O positivismo, com a sua crença de uma ditadura militar tão iluminada quanto absoluta, foi mais uma corrente a pesar no lombo do vira-latas, que, evidentemente continuou sobrecarregado de muitos vestígios da história anterior. O passado não é como uma roupa que a gente se desfaz quando quer.
         Na primeira etapa da formação de nossa república, a herança imperial e o positivismo inibiram todas, e escassas, tentativas de atualizar economicamente o nosso país, que gradativamente foi perdendo de vista a cauda do vira-latas americano, antes coladinha à sua, numa época, início do século XIX, em que o vira-latas brasileiro podia encarar o americano de igual para igual; mas que fazer uma vez que este se especializou arrebentar correntes enquanto nós, até agora, as colecionamos (12)?
         Em 1922, mais uma poderosa corrente (ou melhor seria dizer sarna?), uma das mais pesadas, vem adicionar-se à pilha de correntes que se amontoavam sobre o pobre vira-latas brasileiro, com um charme extra: embora gestada no exterior, fazia tabula rasa das diferenças culturais, afirmando ligeiramente a unidade e a igualdade da espécie humana, mesmo em seus aspectos mais secundários e periféricos, que qualquer um pode ver logo que são antes condicionados pela cultura e até por fatores ambientais; refiro-me à fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB). A notícia de que a realidade não passa de um esquema fixo e fácil, senão pueril, de relações sociais, dada ao nosso vira-latas, a quem nunca foi dada uma oportunidade séria de estudar e conhecer com tempo e qualidade – alguém já achou o nosso Prêmio Nobel? – pois embora não nos falte inteligência, falta-nos hábitos, antes bons hábitos, para não falar de um sistema educacional eficaz, deve ter lhe causado uma grande alegria, turbinada pelo fato de haver um “decreto de igualdade absoluta”, logo feito por um alemão, que no nosso imaginário mais “sarnento”, sempre apareceu como um “povo superior”, o povo mais profundamente intelectualizado, filosófico  e sábio da Europa, da mesma estirpe de nosso sacrossanto imperador, Pedro II, metade austríaco, metade... português; a tudo isso acrescente-se outra “descoberta” sensacional, igualmente feita pelo benemérito e raivoso alemão: “se você está em dificuldades, a culpa é sempre de outro”. Se o operário é pobre, a culpa é do patrão, se a o patrão brasileiro é pobre, a culpa é do patrão americano ou europeu, assim por diante, talvez até chegar em outro planeta, de onde, parece, proveio essa doutrina. Em algum canto, muito vira-latas deve ter chorado de emoção: “eu sabia que a culpa não era minha, eu sabia!” Estreava no Brasil, na forma de uma organização pesadamente burocratizada, como partido ou entidade religiosa, o chamado marxismo-leninista (13).
         Bem, se não há culpa, então não há responsabilidade, e se não há responsabilidade também não há necessidade de melhorar, de evoluir como pessoa ou como comunidade, que fique pois tudo como está, posto que dá menos trabalho! Ledo engano, pois o novo “profeta do apocalipse” tinha uma missão atlântica a ser posta sobre os ombros de todos os oprimidos: mudar o mundo, acabar com os sofrimentos e as dores da humanidade, em benefício da vanguarda do proletariado ou dos burocratas do partido, pois logo surgiu, quando da aplicação dessa doutrina impraticável, a tese de que o povo trabalhador, para ser bem-sucedido em sua luta, deve ser necessariamente orientado pela “vanguarda do operariado”, ou seja, os funcionários do partido comunista, a partir do entendimento de que o povo, os trabalhadores, em que pese o seu papel maravilhoso de mudar a sociedade e dar fim à história, com a criação do paraíso terrestre marxista, não tem a consciência de sua missão, é um coitado ignorante, devendo portanto se comportar, diante dos chefes, a “vanguarda”, como um perfeito idiota, ou o mais sarnento dos vira-latas, que tem o dever de mudar o mundo, mas não tem permissão para criticar o seu superior! (14).
         Bem, ao longo da Primeira República o vira-latas brasileiro levou chute de todos os lados, dados pelos mais inesperados e pessoais motivos, embora também tenha mordido muito, foi um período de guerra social quase permanente, até que em 1930 algo aconteceu...

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É melhor dormir ao relento embalado por nobres ideais, que viver em palácios desprovido de valores ou vendido a valores alheios. O pior dos vira-latas é o que perdeu essa crença.

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Notas
1 – Karl Marx e Engels fazem um vibrante elogio, repleto de medo e desconfiança, à capacidade do capitalismo em gerar riquezas no seu Manifesto do Partido Comunista, pg 10-15, ed Ridento Castigat Mores, online, 1999, muito bem observado por Schumpeter em seu Capitalismo, socialismo e democracia.
2 – A narrativa, por vezes espalhada em livros didáticos, e até especializados, de que os mercadores europeus ou gente a seu mando, desde a época dos descobrimentos, devassavam o interior do continente africano a procura de escravos a seu bel prazer, defendida até hoje pelos representantes menos qualificados da nossa intelectualidade esquerdista, é um completo atestado de desconhecimento dos fatos – para se curar disso basta ler os capítulos correspondentes a esse tema nas monumentais coleções História Geral da África (volume V) e Histoire de l’Humanité (volume IV), ambas editadas pela UNESCO. Uma prova concreta de que essa penetração europeia jamais poderia ter acontecido, em plenos séculos XV e XVI, sem a autorização ou conluio de chefes locais, que na quase totalidade dos casos resistiram fortemente à entrada de europeus, é duríssima luta travada pelos portugueses contra a rainha Njinga, de Angola, na primeira metade do século XVII, sem falar da esmagadora derrota do melhor exército colonial do mundo, o inglês, na batalha de Isandadhlwana, em janeiro de 1879, infringida pelos zulus. Imagine-se essa dificuldade trezentos anos antes!
3 – Essa parte do mundo era tão desconsiderada pela metrópole inglesa, que esta fez dela a sua Sibéria, mandando para essas ilhas (Austrália, Tasmania e ilha Norfolk) algo em torno de 161.000 prisioneiros, entre os quais umas 24 a 25 mil mulheres, invariavelmente convertidas em prostitutas ao chegar – quando comparamos esses números gigantescos aos 400 ou 600 degredados que vieram para cá, com os governadores gerais, percebemos o quão é ridículo e sintomático de um entranhado complexo de inferioridade é o refrão que até hoje escutamos de que o Brasil não dá certo por causa dos degredados que vieram para cá. O nosso problema é muito mais o de não assumirmos responsabilidade por nada, de que esse aforismo é um sinal; a culpa é sempre dos outros!
4 – Nelson Rodrigues se refere aqui ao jogo acontecido em 9 de maio de 1956, no estádio de Wembley, na Inglaterra, o primeiro Brasil x Inglaterra da história, quando os ingleses ganharam por 4 x 2. Os filmes da época mostram cenas de verdadeiros apagões na defesa brasileira, semelhante àquele ocorrido nos 7 x 1 da Alemanha. Se Nelson ainda fosse vivo, em 2014, certamente teria morrido ali, pois constataria que após tantas lutas e conquistas nos agarrávamos ao velho viralatismo, como um amuleto de estimação, como quem, por apego ao mito do cão sarnento, se recusa à grandeza que lhe é devida.
5 – Os textos de Nelson Rodrigues foram retirados de A sombra das chuteiras imortais: crônicas do futebol; seleção e notas de Ruy Castro; Companhia das Letras; p 61-62 – on-line. Treme Proust!
6 – “Complexo de vira-latas” é uma forma coloquial, popular, de designar um sintoma que na psicanálise é chamado de COMPLEXO DE INFERIORIDADE. Sabendo que o termo “complexo” é definido como o conjunto de representações inconscientes, que mediam ou moldam nossas respostas às provocações do ambiente social, a forma inconsciente como nos posicionamos em relação ao mundo, portanto na área de atuação do superego, a conceituação de seu complemento, na forma de “complexo de inferioridade”, foi desenvolvida por um discípulo de Freud, Alfred Adler (1870-1937), definido como um sentimento difuso de incapacidade, que faz com que o indivíduo sempre se coloque como inferior ou dependente dos que o cercam, sem ânimo para iniciativas que demonstrem na prática, o quão inconsistente é esse sentimento nele; pelo contrário, o indivíduo não raro inventa os mais bizarros pretextos e atitudes para provar essa “verdade”, se sabotando miseravelmente... É claro que carregar um sentimento desses gera um peso e um desconforto psicológico tremendo, desconforto esse cuja fonte é ignorada pelo seu portador (em geral se encontra na infância remota, e em uma relação ambígua com os pais ou cuidadores), e que pode fazê-lo agir com uma fúria desproporcional, toda vez que ele percebe que alguém está clara ou sub-repticiamente, expondo a sua incapacidade ao público (hipersensibilidade à opinião alheia). Esta é a base do chamado mecanismo de compensação, que faz com que a pessoa aja ora como alguém muito humilde e cordato ora como um animal furioso, desvairado, ou então tenta permanecer a todo custo no seu inverso, na autossuficiência, como acontece com os chefes que adoram pisar em seus subalternos.
7 – Era uma instituição medieval definida como “o direito concedido a certas pessoas, físicas ou morais, de nomear ou apresentar um clérigo idôneo para ocupar um cargo eclesiástico. A esse clérigo a autoridade religiosa competente [no caso a Igreja representada pelo bispo ou pelo Papa] devia conferir, em seguida, a instituição canônica... Em vários países com relações estabelecidas entra a Igreja e o Estado [onde invariavelmente o catolicismo se tornava a religião oficial], esse direito era reconhecido ao poder civil [representado pelo Poder Legislativo ou Executivo]” (Enciclopédia Mirador Internacional; 1986; p 8.397). O Padroado era particularmente forte nos países ibéricos, e no caso português, por exemplo, era Estado quem recolhia o dízimo eclesiástico, por meio da Ordem de Cristo, sob controle do soberano, para gastá-lo em atividades que mais lhe interessava, o que não era, precipuamente, a construção de igreja, seminários, o aperfeiçoamento intelectual e moral dos sacerdotes, e não raro terminavam financiando operações de guerra em lugares remotos, empreitadas comerciais suspeitas, sem falar que tornou padres e bispos dependentes do Estado, tipo funcionários públicos qualificados, embora às vezes nem isso, mais sujeito aos interesses e às ordens do rei que às do Papa e da Igreja em Roma. Segundo Alceu Amoroso Lima (1893-1983), num artigo na Enciclopédia Delta Larousse, durante a Questão Religiosa (1874-76), que redundou na condenação e prisão de dois bispos, D. Vital Maria, de Olinda e Recife (1872-1876), e D Antônio de Macedo, de Belém do Pará (1861-1890), apesar de haver cinco padres deputados no Parlamento, todas intervenções em favor dos bispos foi feita por deputados católicos leigos.
8 – Eis o que diz Frei Vicente de Salvador a respeito dessa estranha personagem: “veio um clérigo a esta capitania, a que vulgarmente chamavam o Padre do Ouro, por ele se jactar de grande mineiro, e... era mui estimado de Duarte Coelho de Albuquerque [donatário de Pernambuco], e o mandou ao sertão com 30 homens brancos, e 200 índios, que não quis ele nem lhe eram necessários; porque em chegando a qualquer aldeia do gentio, por grande que fosse, forte, e bem povoada, depenava um frangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas , ou folhas lançava para o ar tantos demônios negros vinham do inferno lançando labaredas pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobres gentios machos, e fêmeas, tremendo de pés e mãos, e se acolhiam aos brancos, que o padre levava consigo; os quais não faziam mais que amarrá-los, e levá-los aos barcos, e aqueles idos, outros vindos, sem Duarte Coelho de Albuquerque, por mais repreendido que foi de seu tio, e de seu irmão Jorge de Albuquerque, do reino, querer nunca atalhar tão grande tirania, não sei se pelo que interessava nas peças [os índios], que se vendiam, se porque o Padre Mágico o tinha enfeitiçado; e foi isto causa para que El-Rei d. Sebastião o mandasse ir para o reino, donde passou, e morreu com ele na África [na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578]... E o Padre do Ouro também foi preso em um navio para o reino, o qual arribou às ilhas [Açores] , donde desapareceu uma noite sem mais se saber dele”.
9 – É comum, nas homilias durante as missas, a observação tão genérica de que “somos todos pecadores”, onde os padres se incluem, procurando reduzir o peso de um dado tão assustador, uma vez que o pecado afasta o crente daquilo que ele mais almeja: a salvação eterna, uma missão assaz pesada para quem já vive numa realidade tão contraditória. No passado isso era mais presente, e não raro reforçado pela imagem de padres com ares carrancudos, usando batina, chapéu e sapatos todos pretos. Quando as crianças faziam traquinagens sempre tinha alguém para dizer: “o padre vem aí!”, como se fosse um bicho-papão. E comum até os dias de hoje, por exemplo, menções à obrigação dos filhos obedecerem sem titubear aos pais, ignorando a complexidade de que de hoje se reveste essa relação, mas que se torna mais compreensível quando se sabe que, ao longo de 400 anos de nossa história, a figura do rei e depois a do imperador era apresentada à nação como semelhante à de um pai.
10 – É impressionante ver a decidida e certamente selvagem gana dos linchadores americanos, mirando ostensivamente a câmara do fotógrafo, como a dizer “fui eu mesmo”, diante da vítima brutalizada, pendendo atrás... numa forca, não negando a sua autoria em tão bárbaro desenlace. É uma comunidade que assume decididamente seus acertos e seus erros, sem se esconder ou dissimular. Em fevereiro de 2019, havia uma iniciativa no Congresso dos Estados Unidos para tornar o linchamento um crime federal, o Justice for Victms of Lynching Act of 2018 (pasmem!), embora a décadas, não muitas, os linchamentos sejam punidos exemplarmente de acordo com o código penal pelos estados. Mas para que se tenha a noção da impregnação cultural deste horror, o último linchamento nos EUA, até agora, foi o de James Craig Anderson, um honesto e pacato trabalhador negro, espancado e depois atropelado por uma gangue de jovens brancos, com uma camionete pesada... em junho de 2011.
11 – Recentemente, em um ofício religioso, um padre terminou sua homilia dizendo uma pérola dessa sabedoria antiprosperidade: “pouco com Deus é muito, e muito sem Deus é nada”. Mas será que não existem pobres que se afastam a Deus, como aqueles que se engajam na venda de drogas e nas ações armadas do crime organizado, e ricos que fazem trabalhos meritórios, como aqueles que ajudam em ações filantrópicas, e outras, que ajudam a distribuir a sua riqueza na sociedade, sem falar dos salários que pagam e ajudam a manter milhares de famílias? Isso não vale nada diante de Deus ou de seus representantes nesse mundo? Por que devemos nos apegar aos extremos, quando existem claras exceções às regras, se é que as exceções não são a regra!
12 – Vale a pena, nesse momento, refletir sobre os números apresentados livro de Jorge Caldeira, História da riqueza no Brasil (Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2017, p 295-296), primeiro citando Angus Maddison: a renda per capita média provável do Brasil saltou de 1820 a 1890, de US$670 para US$704, quase nada! Enquanto, “Nos Estados Unidos, [nesse mesmo período] a renda per capita mais que triplicou... A população [americana] de 35 milhões de habitantes em 1865, saltou para 63 milhões em 1890 [a população brasileira provável, em 1820, era de 4,4 milhões de habitantes, e a americana de uns 5,1 milhões; em 1890, o censo brasileiro computou 14.095.983 habitantes]. Apesar de tal incremento (a população dos Estados Unidos era então 4,5 vezes maior que a brasileira...) A renda per capita cresceu 55% no mesmo período [1865-1890]”. Uma coisa que Caldeira não fala é sobre o analfabetismo; no Brasil, em 1872, o censo detectou 82,3% de analfabetos na população, enquanto em 1900 eram pouco mais de 65%, com forte suspeita, nesses dois casos, de subnotificação. Nos EUA os índices eram 20% e 10,7% respectivamente, segundo o National Center for Education Statistics.
13 – Ao contrário do que diz Jorge Caldeira em História da riqueza no Brasil, desde o início o PCB envidou todos os esforços para pertencer à Internacional Comunista (IC), também chamada de Terceira Internacional, garantindo que estava pronto para obedecer minuciosamente, as 21 condições necessárias para ser aceito, conforme se pode ver no precioso texto a esse respeito: Os primeiros anos do PCB e a Internacional Comunista, da professora Marly de Almeida gomes Vianna. Para se ter uma ideia do quão pesada era essa corrente, veja-se o texto das 21 condições: “1) toda propaganda e agitação cotidiana devem ter caráter efetivamente comunista e dirigida por comunistas; 2) toda organização desejosa de aderir à IC deve afastar de suas posições os dirigentes comprometidos com o reformismo; 3) em quase todos os países da Europa e da América, a luta de classes se mantém no período de guerra civil. Os comunistas não podem, nessas condições, se fiar na legalidade burguesa. É de seu dever criar, em todo lugar, paralelamente à organização legal, um organismo clandestino; 4) o dever de propagar as idéias comunistas implica a necessidade absoluta de conduzir uma propaganda e uma agitação sistemática e perseverante entre as tropas; 5) uma agitação racional e sistemática no campo é necessária; 6) todo partido desejoso de pertencer à IC tem por dever não só o de denunciar o social-patriotismo como o seu social-pacifismo, hipócrita e falso; 7) todos os partidos desejosos de pertencer à IC devem romper completamente com o reformismo e a política do centro. A IC exige, imperativamente e sem discussão, essa ruptura, que deve ser feita no mais breve de tempo; 8) nas colônias, os partidos devem ter uma linha de conduta particularmente clara e nítida; 9) todo partido desejoso de pertencer à IC deve realizar uma propaganda perseverante e sistemática nos sindicatos, cooperativas e outras organizações das massas operárias; 10) todo partido pertencente à IC tem o dever de combater com energia e tenacidade a Internacional do sindicatos amarelos de Amsterdã; 11) todos os partidos desejosos de pertencer à IC devem rever a composição de suas frações parlamentares; 12) os partidos pertencentes à IC devem ser construídos com base no princípio do centralismo democrático; 13) os partidos comunistas, onde são legais, devem ser depurados periodicamente para afastar os elementos pequeno-burgueses; 14) os partidos desejosos de entrar na IC devem sustentar, sem reservas, todas as repúblicas soviéticas nas suas lutas com a contra-revolução; os partidos que ainda conservam os antigos programas socialdemocratas têm o dever de revê-los e, sem demora, elaborar um novo programa comunista adaptado às condições especiais de seu país e no espírito da IC; 16) todas as decisões do Congresso da IC e de seu Comitê Executivo são obrigatórias para todos os partidos filiados à IC; 17) todos os partidos aderentes à IC devem modificar o nome e se intitular “Partido Comunista”. A mudança não é simples formalidade e, sim, de uma importância política considerável, para distingui-los dos partidos socialdemocratas ou socialistas, que venderam a bandeira da classe operária; 18) todos os órgãos dirigentes e da imprensa do partido são importados do Comitê Executivo da IC; 19) todos os partidos pertencentes à IC são obrigados a se reunir, quatro meses após o II congresso da IC, para opinar sobre essas 21 condições; 20) os partidos que quiserem aderir, mas que não mudaram radicalmente a sua antiga tática, devem preliminarmente cuidar para que 2/3 dos membros de seu comitê central e das instituições centrais sejam compostos de camaradas que, antes do II Congresso, tenham se pronunciado pela adesão do partido à IC; 21) os aderentes partidários que rejeitam as condições e as teses da IC devem ser excluídos do partido. O mesmo deve se dar com os delegados ao Congresso Extraordinário” (fonte https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=109).
14 – Todos sabem que a teoria marxista foi autorrevelada de uma vez por toda a Karl Marx e Frederich Engels, na segunda metade do século XIX, cabendo aos seus seguidores fazer todo tipo de contorção mental para mantê-la minimamente operacional e “científica”, adicionando-lhe inúmeros anexos que ocultem a sua matriz fantasiosa, quiçá de cunho freudiano. Não adianta, portanto, na análise do pensamento comunista no Brasil do início do século XX, apelarmos às variantes mais lúcidas ou modernas, que aqui e ali se adicionam à teoria, portanto vamos nos prender à compreensão que havia naquela época sobre esse fenômeno, em especial, àquela matriz que desde o início prendeu a mais bem-sucedida organização comunista brasileira: o de matriz leninista-soviético, que pode ser resumido num único aforismo: “ou você obedece ou está fora”, de onde uma legião de fundadores e grandes figuras do PCB original, que acabaram expulsos ou se afastaram do partido, como Astrojildo Pereira, Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Octávio Brandão, Antônio Canellas, Mario Pedrosa, Cristiano Cordeiro, Leôncio Basbaum, etc. Ninguém aguenta!
Vejamos o que dizem a esse respeito, de forma um tanto escolástica, Guy Besse e Maurice Caveing, stalinistas de boa cepa, na linha do Partido Comunista Francês, em seu Principes fondamenteaux de philosophie – só encontrei a edição francesa de 1954 – entre as páginas 141 e 144, (online): “Como se realiza concretamente a fusão entre o movimento dos trabalhadores e o socialismo científico? Pela constituição de um partido, que agrupa e organiza a vanguarda do proletariado, que educa ao operariado no socialismo científico e dirige a luta revolucionária de toda a classe trabalhadora e seus aliados. Esse é o partido dos comunistas, ao qual Marx e Engels definem como tarefa no Manifesto, tanto no plano internacional como dentro de cada país, prover ao proletariado de [citando Marx-Engels] ‘uma clara compreensão das condições, da marcha e dos objetivos gerais do movimento proletário’ (...Manifesto do Partido Comunista (II “proletários e comunistas”, p 41 [da edição francesa]))” Continua a seguir: “A necessidade de um tal partido é um dado fundamental do socialismo científico [é, portanto, “científica” a obrigação de todos se submeterem ao partido!], e é conforme aos ensinamentos do materialismo dialético histórico. Por quê? Porque se é verdade que o proletariado, explorado pela burguesia é, pelas suas condições materiais, levado a lutar contra essa mesma burguesia, isso não significa absolutamente que sua consciência seja espontaneamente socialista. A tese da espontaneidade da consciência revolucionária é contrária ao marxismo, pois a teoria revolucionária é científica [a palavra mágica!], e não existe ciência espontânea [então ela é produto de uma ideologia, ou de um conhecimento prévio socialmente estruturado, mas se ela é produto de uma ideologia, então que valor acrescenta ao marxismo o fato dele se autoproclamar “científico”, desmoronando, pois, todo o peso deste argumento?]” Mas a loucura prossegue: “É em razão de seu caráter científico, que o marxismo tem um valor universal e não é só reservado aos proletários. Ele é acessível a todo homem que se esforça seriamente para compreender a história das sociedades...” Sendo “científica” só há uma conclusão ou um sentido possível para a história da sociedade: aquele prescrito por Marx-Engels, a partir Deus sabe lá do quê, uma vez que eles, como todos os outros homens, inclusive para reforçar o caráter “científico” de suas conclusões, estavam mergulhados em um mundo ideologicamente configurado antes que eles nascessem, sem considerar que, de acordo com o texto, ao final quem fará as mudanças acontecerem são aqueles mais intelectualizados, portanto não-operários, os intelectuais, que, usando dos operários como bucha de canhão, construirão o mundo que eles, os ditos intelectuais, em geral gente distante da realidade, imaginam que seja o mais justo ou melhor. Nesse caso é a “superestrutura” (o mundo das ideias) que determina a infraestrutura (o mundo do trabalho). Que mixórdia!
“Na sociedade capitalista, prosseguem eles, a ideologia oferecida espontaneamente ao operariado é a ideologia burguesa; é o caso, por exemplo da religião... A ideologia burguesa ainda tem a seu favor a força da tradição e dos enormes recursos materiais provindos do estado burguês... A classe operária é atraída espontaneamente para o socialismo, mas a ideologia burguesa, que é a mais propagada (e constantemente aperfeiçoada), não é, ela própria, espontaneamente apresentada ao proletariado, mas antes lhe é imposta (Lenin, Que fazer? P 44, note, Ed. Sociales, 1947)” Esse argumento desfalece já na próxima esquina, uma vez que a burguesia, mesmo sufocada pela ideologia do clero e do baronato feudo-medieval, conseguiu, pelo trabalho, mudar as feições do mundo de uma maneira espetacular, leiam o Manifesto comunista sobre isso, sem ter uma teoria ou uma doutrina minimamente articuladas para dirigir suas ações – a teoria capitalista por excelência, o liberalismo, só surgirá no século XVIII, pela pena de Adam Smith ou Richard Cantillon, Ensaio sobre a natureza do comércio em geral, quando o mundo burguês-capitalista já estava a todo vapor! O capitalismo surgiu da ação lógica, baseada nas necessidades humanas, e espontânea dos burgueses, enquanto o socialismo surgirá dos devaneios abstratos dos intelectuais, instigando, da retaguarda, a massa ignara na direção de um paraíso teórico, que essas mesmas massas não compreendem bem (de onde a necessidade do partido revolucionário centralizador)!
E por fim! «Portanto, é por meio de uma luta pertinaz contra a ideologia burguesa [que jamais poderá ser levada a cabo por operários submetidos a largas jornadas de trabalho no mundo real; e se eles perdem o comando já no início da luta como poderão retomá-lo, e participar, posteriormente, do que será decidido em seu nome?], difundida por toda parte que o socialismo científico abrirá o caminho para a classe trabalhadora. Tarefa impossível de realizar sem um partido que seja conhecedor da ciência revolucionária e ligado às massas trabalhadoras, onde faz seu recrutamento, para desenvolver-lhe uma consciência socialista. O interesse revolucionário do proletariado o induz assim a defender o partido contra todo e qualquer ataque e fortalecê-lo, uma vez que a sua existência é necessária para a sua vitória”       
Pior ainda fez Lênin, pois, num artigo imperdível de um ex-guerrilheiro comunista, mais um desiludido, o professor Leôncio Martins Rodrigues, Lênin: o partido, o Estado e a burocracia, em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451988000200005 Faz uma revelação esmagadora do enorme prejuízo, tanto às condições da classe trabalhadora  como à melhoria das condições políticas e econômicas da sociedade russa, provocado pelo desvario que se seguiu à aplicação dos conceitos fundamentais do marxismo, nos anos que se seguiram à tomada do poder pelos comunistas em 1917. O problema central era o crescimento do aparato burocrático, que crescia e sufocava o estado socialista, inviabilizando a vivência, na realidade, do paraíso anunciado pelos fundadores do marxismo. Lenin não entendia que a necessidade de controlar em minúcia a sociedade só podia gerar mais complexidade na administração pública e por isso mais burocracia. As instâncias decisórias se multiplicaram e se superpuseram à justiça, ao pão na mesa, à dignidade, que antes viraram como que piadas de mal gosto. Para não me alongar mais deixo um trecho desse escrito simplesmente precioso, que explica, cristalino, o grande drama da União Soviética e do marxismo em geral, até os dias de hoje: “Em outras palavras: para a luta imediata contra a burocracia, que tomava conta do novo Estado, e que o mortificava, Lenin sugere apenas medidas autoritárias, que somente significavam o reforço das próprias tendências burocráticas que ele tanto odiava. Em outras palavras, as sugestões de Lenin vão no sentido de combater burocraticamente a burocracia... O problema, contudo, era como combater esta burocracia que tomava conta de tudo, inclusive de seu partido. Dado o isolamento dos bolcheviques, "uma gota d'água no mar do povo", Lenin não pôde "apelar para as massas", porque não contava mais com o apoio popular; Qualquer tentativa de conter o avanço da burocracia por meio de medidas de caráter democrático teria como resultado, quase fatal, o fim do governo bolchevique e sua substituição, mais provavelmente por um governo socialista-revolucionário. Assim, Lenin não tinha outra alternativa senão tentar combater a burocracia por meios autoritários, de modo a não colocar em risco o monopólio do poder bolchevique e, consequentemente, o seu próprio poder. Neste combate burocrático contra a burocracia, o vencedor seria sempre a burocracia. No final de sua vida, aquele que declarara em fins de 1918: "Nós reservamos o poder do Estado para nós mesmos e somente para nós", via que o poder, na realidade deslizava para as mãos de um inimigo que, pouco antes da tomada do poder, Lenin julgara ser característico das sociedades capitalistas e muito fácil de ser eliminado numa sociedade em que a burguesia fosse afastada do poder político”.