sábado, 1 de junho de 2024

ATANÁSIO DE ALEXANDRIA (295-373) E A CRISE ARIANA

 

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Eduardo Simões (a Margarida Maria)

Uma das questões mais angustiantes da atualidade católica é a declaração Fiducia Supplicans, um documento elaborado pela autoridade máxima em matéria de doutrina da Igreja, o prefeito do Dicastério Para a Doutrina e a Fé, antiga Congregação Para a Doutrina e a Fé, antigo Santo Ofício, o cardeal Victor Fernandez, autorizando padres e bispos a darem a sua benção a casais em condições irregulares – em situação de homossexualismo ou adultério – se desviando profundamente dos ensinamentos ministrados até aqui pela Igreja, ainda mais grave porque a dita declaração traz a assinatura do Papa.

            Essa situação é tanto mais ambígua e perigosa, e constitui uma novidade na história da Igreja, porque fez nascer no interior do centro de comando da Igreja, no Vaticano, uma doutrina, a princípio mascarada apenas como uma orientação pastoral, em clara contradição com a doutrina oficial e os textos revelados, que condenam explicitamente as duas situações, numa condição de clara e iminente heresia, dentro de uma comunidade que aprendeu, desde 1870, a considerar a pessoa dos papas como assistidas de um modo muito especial pelo Espírito Santo, por meio do dom da infalibilidade, que, mesmo previsto para situações muito específicas, é facilmente generalizado e suposto (Catecismo da Igreja §891), inclusive por meio de termos técnicos e ambiguidade, cujo verdadeiro alcance e significado escapa ao alcance das pessoas comuns (idem, §892).

            Que fazer se, supostamente, o Santo Padre se desvia ou concorda com um desvio? É sabido que ao longo da história da Igreja, alguns poucos homens, aos quais não seria incorreto apoda-los, embora seja constrangedor faze-lo, de... canalhas..., que apropriaram-se, inclusive por meios condenáveis do trono de São Pedro, e nele assentados cometeram os mais graves crimes contra os costumes e as leis dos homens e da Igreja, mas nunca, ao que se sabe, ousaram tocar na doutrina, dando início a correntes ou movimentos que implicassem em dividir doutrinariamente aos católicos, até o atual papa inaugurar esse caminho que, queira Deus, será curto.

            Creio, portanto, que esse seja o momento para os católicos conhecerem, um pouco que seja, e meditarem muito, sobre a vida extraordinária de um homem nada comum: Atanásio, bispo de Alexandria, quando esta era maior e mais importante cidade da província do Egito, do Império Romano, 5 vezes expulso de sua sé episcopal, por causa da defesa apaixonada, movida por uma fé sincera, honesta e inquebrantável, naquilo que é até hoje o símbolo básico de nossa fé cristã-católica: o Símbolo ou Credo de Niceia, porque foi estabelecido solenemente em um grande concílio, regularmente convocado e aprovado pela forma correta, e até hoje proclamado em nossas missas, de tal sorte que podemos afirmar que Cristo fundou a Igreja, Paulo consolidou o cristianismo, mas foi Athanásio quem consolidou a Igreja Catolica.

            É inacreditável o que esse homem sofreu e os riscos porque passou, para preservar a inteireza da fé católica que hoje professamos, e é por ter existido homens como ele, e foram muitos ao longo da história, com esse grau de disponibilidade e iniciativa, que não podemos abrir mão do direito de resistir a qualquer iniciativa que vise enfraquecer, deformar, distorcer, adulterar, perverter, etc., aquilo que nos foi legado pela Revelação, pelo Magistério e pela Tradição, venha de onde vier...  

Um contexto de crise

Uma das questões que mais empolgou os teólogos e sacerdotes dos primeiros séculos do cristianismo foi a compreensão e a correta explanação do que acontecia no interior de um Deus que era ao mesmo tempo uno e trino, tendo uma só natureza, mas se manifestando em três pessoas, com uma delas, a mais importante para nós, se encarnando na forma de um homem, logo como uma criatura sua, para redimi-la, e diviniza-la em seguida. Essa pelo menos é a crença cristã predominante.

            Como compreender e transmitir algo tão complexo em uma base social tão heterogênea, abrangida por um império tão vasto como o romano, que por sua vez tinha os seus interesses específicos, enquanto unidade política e convergência de interesses religiosos e profanos, e que a essa época cambaleava ao peso de suas contradições, uma das quais era estava na questão religiosa precariamente resolvida, quando não encarniçadamente polarizada, exacerbadas pelos desafios externos provindos da migração de povos vizinhos e disputas contras outros impérios, além de suas fronteiras, que exigiam um novo rearranjo das forças sociais internas. Culturalmente o império se diversificava cada vez mais, em virtude de mudanças naturais ou politicamente provocadas no seio de seu do seu vasto espaço geográfico: a bacia do Mediterrâneo. Aparentemente, os desafios da preservação do império estavam muito além da compreensão e possibilidades tecnológicas da época. O seu esfacelamento era inevitável e as pessoas que viviam dentro dele sentiam o efeitos de sua lenta agonia.

            O Império Romano, como toda unidade político-estatal vitoriosa, foi construída em cima de valores políticos e sociais específicos, claros e majoritários, no caso os da cultura ocidental greco-romana, e a valorização de sua história, mas à medida que o império crescia, ainda sob o regime de República, e ia absorvendo culturas com valores e uma história diferentes, e ia se modificando por causa disso, em especial aquelas situadas na Ásia e na África do Norte, o sólido e profundo alicerce da cultura ocidental começou a se liquefazer, exigindo uma nova superestrutura política, sem deixarmos de citar aqui o efeito profundamente deletério, pelo menos no nível das elites, da expansão do escravismo, outro resultado inesperado das conquistas militares.

            Ora, as conquistas militares, por sua vez trouxeram um outro problema grave para um estado criado sobre os pilares do poder civil e da representação mais ou menos popular, que foi a hipertrofia da classe militar, em especial depois das reformas de Mário, séc. II A.C,  que profissionalizaram as legiões de Roma, tornando-as ainda mais poderosas, mas também desarticuladas dos valores fundamentais que guiaram e fizeram a glória das antigas legiões durante o período republicano. Um desses valores era aquele que servir a legião era um dever de gratidão do cidadão, por tudo que a cidade-império fizera por ele, e uma honra, um penhor de reconhecimento público da sua comunidade. Com a profissionalização, qualquer um, inclusive aqueles que por algum motivo odiavam o sentido da civilização romana – deserdados da sorte, estrangeiros, etc. – podia agora fazer parte da legião, e por meio delas, em especial do seu comandante, exigir reparações e vantagens fora do alcance do cidadão comum, não legionário. O centro da fidelidade do soldado será o seu comandante, que, com a sua competência o guiará a ricos botins entre os povos limítrofes, e não mais o direito de defesa e a missão civilizatória que supostamente Roma teria entre os outros povos, e que a elite intelectual e a antiga história romana cultivava.

            O descompasso era tamanho que quando os generais começaram a lutar entre si para se apropriar do que restava da antiga República, o primeiro deles: Otavio Augusto, governou como um rei, o tempo de seu mandato era vitalício, mas preservando todas as instituições da República, criando um regime que não era uma coisa nem outra. Ele se autointitulava princeps, que significaria o “primeiro” o “principal”, entre os cidadãos de Roma, tanto que nem ele, nem os que se seguiram a ele, nem o Senado, que foi paulatinamente esvaziado, se preocuparam em fazer qualquer regra de sucessão para o cargo mais importante do Império, deixando tudo ao “Deus dará” ou ao “discernimento”, nem sempre ajuizado, do governante de plantão: o caos era inevitável, assim como a eleição de um bode expiatório sobre o qual jogar a culpa de todas essas tremendas contradições e desordens geradas pelo oportunismo da época, no caso os cristãos. Que amargaram sangrentas perseguições motivadas tanto por razões políticas, não queriam se submeter irrestritamente ao imperador, e nesse sentido eles agiram, por incrível que pareça, como guardiões da tradição ocidental, embora fosse uma corrente religiosa oriental, como por razões econômicas, membros das mais abastadas famílias faziam parte desse grêmio, o que acendia a inveja e a ganância de muita gente da elite, e social, uma vez que propunha certas mudanças que mexeriam profundamente na ordem social romana, tornando-a mais horizontal, como era na Antiga República, mas também lentava questões religiosas graves: pregava fortemente um monoteísmo revelado, em meio a um mar de politeísmo fabricado ou mitológico. Assim os cristão ganharam fama de ser um elemento politicamente desestabilizador do Império e causa de tudo de ruim, que a ordem caótica das coisas, provocasse.       

            Era um mundo em transição, mais ou menos como agora, onde o choque das mudanças estremece os alicerces das muralhas do entendimento até aqui construídas, e que mantinham esse mundo incólume, não distinguindo muito bem entre o que pode ser mudado e o que deve ser preservado, como uma base mais segura para o novo que se quer construir.

A gestação do problema

            Aparentemente, tudo começou com Luciano de Antioquia, morto como mártir cristão em 312, que tinha uma famosa escola de teologia nessa cidade onde, alguns afirmam, ensinava lições sobre a Santíssima Trindade cristã, eivadas de subordinacionismo (1), que ele assimilara de um famoso, embora controvertido, bispo e teólogo Paulo de Samosata (200-275), retratado pelas fontes da época como um homem muito dissoluto, embora inteligente e dotado de esplêndidos dotes de oratória, logo bom em persuadir, ou manipular o debate, e igualmente dissonante da ortodoxia, defendendo uma forma de subordinacionismo.

            Influenciado por esses dois personagens, que, embora intelectualmente brilhantes, eram muito pelo bispos locais, Ario cresceu nas suas elucubrações teológicas, avançando mais do que os mestres, tanto na profundidade do desvio teológico como na ousadia e abrangência de sua ambição: ele não se contentaria apenas com o reconhecimento ou as benesses de um único bispado, antes sua meta era modificar a doutrina de toda a igreja nascente, tornando a sua teoria a expressão oficial do cristianismo. A nova ortodoxia. Já o martírio, como o de Luciano, é de se supor que nunca passou pela sua brilhante, mas confusa cabeça, pois ele nunca deixou de acercar-se dos que detinham poder.

            Sua ambição, seu preparo intelectual e brilhantismo no palco da catequese e dos debates, levaram-no ao mais importante centro urbano do rico oriente romano: a cidade de Alexandria, no Egito, cuja Igreja, nessa época, era regida pelo Patriarca Pedro (310-311) que o fez diácono, e também sentiu, em primeira mão, os efeitos de sua mente inquieta, excomungando-o logo depois, devido a sua adesão aos melecianos – do bispo Melécio de Licópolis, que pregava punição severa aos cristãos perseguido que apostatavam, e um rebatismo para aceita-los de novo, caso o requeressem, um pouco antes de ser martirizado na perseguição de Diocleciano. Vemos logo que Ario tinha uma certa propensão ao rigorismo ritualista, que não combinava muito com a rapidez com que fazia concessões ao meio e à cultura dominante: a percepção da Trindade como uma comunidade hierarquizada, em graus de importância, coincidia com a mentalidade imperial da época.

            Com a morte de Pedro, Aquila, o Grande, assume o patriarcado, em dezembro de 312, e não só reintegra Ario, mas o ordena sacerdote. Porém logo deve ter se arrependido, pois começou outra disputa com o irrequieto neossacerdote, por conta de seus desvios, quando a morte o alcança em junho de 313, assumindo o seu lugar um dos prelados mas respeitados da Igreja Oriental, Alexandre, mais tarde canonizado como São Alexandre de Alexandria – algumas fontes, como a Wikipedia em italiano e em inglês, afirmam que Ario tentou disputou com Alexandre a nomeação para o bispado, mas o povo escolheu Alexandre. Ario não perdoaria a desfeita.

            Ario começou então, por meio de sua atuação como padre e uma intensa troca de correspondência com importantes prelados de outras dioceses próximas, que ele sabia afeitos à sua teoria, a criar uma base de apoio para algo mais que a “mera” função de bispo de uma das maiores cidades, do maior império do mundo, e nesse sentido os autores são unânimes em falar da prodigiosa sedução que brotava do contato com a sua pessoa e as suas palavras, a sua desenvoltura cênica, o seu conhecimento sólido e argumentação clara, lógica, concatenada, escorada numa vida ascética e rígida disciplina, imune a denúncias morais, mas eivada de afirmações que contradiziam frontalmente o que se concebia como ser correto na Revelação Cristã, segundo a Tradição dos Apóstolos e o Magistério dos Bispos, em sua grande maioria. E de repente muita gente, inclusive de outros lugares, como que seduzida pelo canto de uma sereia, começa a afluir para a sua paroquia, curiosa por ver e ouvir o famoso presbítero. Ario tinha de fato muito carisma (2).

            O bispo Alexandre, um velho e rijo patriarca, fortemente escorado na ortodoxia e numa longa experiência de vida, a princípio ficou dividido entre o que ele ouvia falar sobre o que Ario dizia e a grande afluência de gente, que à primeira vista podia ser sinal de uma virtude, assim percebida pelos mais simples. Seria aquilo um sinal da benção divina? Seria precipitado já chegar firme, logo ele que vivenciou as últimas grandes perseguições do império, e em meio a todas essas dificuldades os cristãos começarem a disputar entre si, quando ainda nem garantiram a liberdade para viver em paz a sua fé. Sem falar que Ario era um homem já de certa idade, entrado ou próximo aos 60 anos. Era preciso ser prudente; e o bispo o foi.

            Segundo o relato de Daniel Rops (A Igreja dos apóstolos e dos mártires; trad Emérico da Gama; ed Quadrante; São Paulo; 1988; p 449-450) Em 318, Alexandre, chamou Ario e seus adeptos para um debate teológico, junto a outros bispos e presbíteros de dioceses próximas, na forma de um sínodo local. Ario era um gigante intelectual, uma inteligência brilhante, mas não tinha discernimento, não conseguia ler o contexto, o ambiente à sua volta, e embora o sínodo fosse dominado amplamente pelos ortodoxos, ele avançou na sua argumentação com uma audácia incomum e desastrada, como quem acreditava poder facilmente convencer a maioria com o brilhantismo de sua argumentação, mas quando em determinado momento, “o heresiarca , arrastado pela sua lógica, afirmou que Cristo era uma criatura e, portanto, teria podido errar e pecar. A assembleia soltou um grito de horror”. Resultado óbvio: “Ário foi condenado e com ele alguns clérigos de Alexandria, de Mareótis e da Cirenaica, que tinham aderido às suas teses. Recebeu ordem formal de submeter-se ou demitir-se”.

            A se retratar, Ario preferiu acusar seus opositores de sabelianismo (3) – ele pode até ter agido com sinceridade nessa etiquetagem, mas todos sabemos que um dos recursos muito usados em debates, por quem já chega com uma opinião fechada e não encontra mais argumentos para defende-la, é acusar o contraditório do extremo oposto, ignorando os matizes. A argumentação fica bloqueada pela falsa polarização, produzida e sustentada por apenas um dos lados, e daí só resta alternativa aos recursos não-verbais, como a imposição de pena, a violência e a dissimulação.

            Ario então, inconformado, migrou para Cesareia, na Palestina, onde o bispo Eusébio, um dos mais importantes nomes da Igreja à época, e autor de uma História da igreja, uma obra fundamental para conhecer os percalços do cristianismo romano, que era um de seus simpatizantes, acolheu-o de braços abertos.

O que estava em discussão

Segundo Rops, Ario “partia de uma ideia justa: a da grandeza sublime e inefável de Deus Único, não gerado... Mas Ario acrescentava: "Deus é incomunicável, porque, se pudesse se comunicar, teríamos de considerá-lo um ser composto, suscetível de divisões e mudanças'' dedução que só a imprecisão dos termos tornava aceitável. Ora, continuava Ario, se Ele fosse composto, mutável e divisível, seria mais ou menos corporal; mas isso não pode ser, donde se conclui que é sem dúvida incomunicável e que, fora dele, tudo é criatura, incluído Cristo, o Verbo de Deus. Aqui está... o erro: Jesus, o Cristo, o Filho, não é Deus como o Pai; não é seu igual nem é da mesma natureza que Ele. Entre Deus e Cristo abre-se um abismo, o abismo que separa o finito do infinito.

Como se vê, Ario ataca a própria divindade de Jesus Cristo. Não é que não lhe reconheça certos atributos divinos; vê nele o Verbo, o Logos, agente da Criação, e afirma que Ele foi tirado do nada por Deus antes de todos os séculos, antes de que o tempo existisse. Mas, ainda que fosse uma criatura excepcional, nem por isso deixou de ser criatura, sujeita a cair no erro e a mudar. No entanto, Ario venera Jesus; vê nesta criatura única a encarnação da própria Sabedoria incriada, o exemplo admirável de um homem que se elevou ao cume da perfeição pelo livre esforço da sua vontade e que mereceu ser, verdadeiramente, o que cada homem poderia ser – o Filho de Deus. Jesus, o Cristo, não é Deus em si, por essência; tornou-se Deus pelo seu heroísmo, pela sua santidade, pelos seus méritos, sendo tudo isso a prova de uma escolha única, de uma predileção de Deus.

Nunca, em dois mil anos de história, se há de conhecer heresia tão fundamental. Se Cristo não é Deus, todo o cristianismo desaba... Já não há Encarnação nem Redenção. Mas era precisamente isso que tornava temível o poder da doutrina herética. Anulando o mistério da Encarnação, essa heresia tornava o cristianismo mais acessível aos pagãos...que, pensando nos heróis divinizados da tradição antiga, podiam compreender perfeitamente que um homem se tornasse Deus pelos seus méritos” (idem; p 448) (4).

Mas isso também tocava aos judeus que se horrorizavam da ideia de um Deus que se deixa humilhar, torturar e matar, de uma forma tão ignominiosa, por suas próprias criaturas, criaturas essas essencialmente más (Gn 6,5; 8,20; Sl 13,3; Rm 3,10-12). É possível que, para além dos interesses pessoais, Ario achasse que encontrara a formulação mais adequada para romper a resistência das sociedades judaica e greco-romana ao cristianismo, e assim facilitar e acelerar o crescimento da igreja. Dito de outra forma, a sua doutrina adaptava a doutrina da igreja à mentalidade dos grupos sociais dominantes na bacia do Mediterrâneo, embora o preço fosse a destruição estrutural do próprio cristianismo, que ele não percebeu, e reagiu como se tudo não passasse de exagero, de outras pessoas, provavelmente mais interessadas em autopromoção do que ele.

A presença de Ario, então exilado e bem tratado em Cesareia, chegou aos ouvidos de outro Eusébio: o bispo de Nicomédia, que além de bispo e teólogo versado no jogo da teologia,  apreciava o jogo da grande política, e viu nisso uma oportunidade de aumentar sua influência junto à estrela política ascendente: o imperador Constantino I ou Constantino o Grande (272-337), sem falar que seu nível de discernimento levava-o a acatar mais a doutrina de Ario, e para unir o útil ao agradável convidou Ario a se transferir para a sua diocese: Nicomedia, o que seria também vantajoso para Ario, pois enquanto Cesareia ficava a 1.798 km de Constantinopla, Nicomédia era praticamente vizinha à corte. Eusébio começou ostensivamente a propagar, na corte, a grande “injustiça” de que seu protegido fora vítima.

Ao ter notícia do estranho procedimento de seu colega junto à corte, Alexandre, em Alexandria, começa a se mexer, explicando a todos os bispos e autoridades eclesiásticas conhecidas, os resultados do pequeno sínodo de 318, mobilizando rapidamente uma razoável corrente de apoio. A igreja cristã oriental estava fortemente cindida.

A questão se torna política, e o estado intervém

 Uma questão que sempre preocupou os governantes romanos nos dois séculos que antecederam, em vistas ao crescimento da religião cristã, foi uma crença criada no seio da máquina estatal romana, que o cristianismo, com o seu exclusivismo monoteísta, eram uma ameaça à unidade político-ideológica do império – era verdade que o monoteísmo judaico não era menos radical que o cristão, mas os judeus eram em número bem menor e não tinham uma atuação proselitista digna de nota, antes buscavam invariavelmente o isolamento, sem falar que já se encontravam fortemente incrustrados no aparelho estatal romano, quando o cristianismo despontou, após a morte de Cristo, seja por conta de seus contatos no mundo dos negócios seja por outras questões: Popeia Sabina, amante do imperador Nero, e imperatriz de 62 a 65, era uma convertida ao judaísmo.

Assim os cristãos sempre foram apresentados às massas pagãs greco-romanas, como uma ameaça política à integridade e inteireza do Império Romano, e a muito custo teve que lutar e dar seu sangue para provar às autoridades que poderiam ser uma força construtiva dentro do império, e que, como os cidadãos comuns, politeístas, também podiam contribuir positivamente para a manutenção e o crescimento do império, mas a descrença dos romanos nessa possibilidade custou-lhes sangrentas perseguições. Não foi sem grande alegria que os cristãos receberam a notícia da vitória de um general, justamente Constantino, notório simpatizante dos cristãos, sobre o seu rival Maxêncio, defensor da causa pagã, em 28 de outubro de 312, na batalha da Ponte Milvius, concentrando em suas mãos boa parte do poder imperial – que ainda era dividido parcialmente com Valerio Liciano Licínio, seu cunhado – e mais ainda quando ele assinou, em fevereiro de 313, o Edito de Milão, que tornava o cristianismo uma religião legal, reconhecida pelo estado, não mais obrigada à clandestinidade.

Ora, entre 314 e 324, Constantino e Licínio viram-se envolvido em uma série de conflitos e pelo menos três guerras civis, que os opuseram no campo de batalha, saindo o teimoso cunhado como o grande vencido, mas nem assim conformado, e continuou intrigando, até Constantino se convencer que já havia gasto muita energia com ele, e assim, no início de 325, sua querida meia-irmã Flavia Julia Constança ficou viúva. No ano seguinte ela também perdeu o enteado ou o filho, Licinio César, as fontes divergem neste ponto, por quem nutria certa afeição, de apenas 11 anos, por razões análogas àquelas do pai – segundo a Catholic Encyclopedia, ele foi chicoteado até a morte, o que apontaria para a possibilidade de ele ser filho de Licinio com uma escrava...

Foi no meio de todas essas crises, que já estressavam em demasia a Constantino, que este ficou sabendo que na parte mais próspera do império, o Oriente, reinava uma divisão perigosa, envolvendo justo as autoridades mais iminentes da religião pela qual ele arriscara tudo. Já devia ter amigos pagãos repetindo no seu ouvido: “os cristãos só nos trazem problemas”.

Ele também era um homem prático, militar de carreira, acostumado a lidar com a resolução de problemas concretos, haja vista a desenvoltura com que se livrou do cunhado e do sobrinho, ao mesmo tempo que defendia o cristianismo sem romper com o paganismo – sua cultura teológica devia ser pouco mais do que nada – sem falar que ele também era um romano típico, não esquentava a cabeça com o que não tivesse causa e consequências concretas, e as questões do outro mundo se resolvem com orações, magia ou amuletos. Mas agora ele era o imperador e cabia ele julgar o que era relevante ou não para a paz do Império, e isso o deixou ainda mais inseguro sobre o que fazer – Daniel Rops diz que ele ficou “apavorado, cheio de desespero, perdeu o sono e meditou sobre o assunto durante longas noites passadas em claro” (idem p 451). Deve ter pensado: “será que eu fiz bem em tomar o partido dos cristãos?”

Por fim ele escreveu uma carta longa, patética e confusa, e a mandou aos principais bispos da região, todos enfim que ele sabia interessados no assunto, cujos trechos revelam tanto a sua boa vontade como a sua completa ignorância a respeito do que se passava (5). Para entregar a carta ele enviou um dos mais respeitados bispos no cristianismo ocidental: Ósio de Córdoba – poucas vezes um emissário foi tão superior à encomenda, como nesse episódio.

            Apesar de seus setenta anos, Ósio começou, com grande energia, a sondar os grupos em Alexandria – nesse meio tempo Ario, sob a proteção de Eusébio de Nicomédia, escreveu um livro onde esmiúça as suas ideias, inclusive com trechos em formas de poesia para serem melhor apreendidos pelo homem comum, o seu nome é Thalia ou O banquete, do qual só sobraram pequenos textos, além de um ‘credo’ próprio, que teve grande circulação. Se fosse nos dias de hoje ele decerto seria um blogueiro, um influencer famoso; capacidade para isso ele tinha – e diante do exposto ele logo tomou partido de Alexandre contra Ário, o que deu azo a reações violentas por parte dos partidários de Ario, agravadas pelo resultado de um sínodo promovido por Eusébio em Antioquia, que tomou partido de Ário e desencadeou ondas ainda maiores de violências. As forças militares tiveram que intervir. Como não houve acordo, Ósio voltou a Constantinopla onde relatou ao imperador o seu fracasso e aconselhou-o a convocar um encontro mais geral de bispos para resolver definitivamente a questão.

            Esse encontro passará para a história com o nome de Concílio de Niceia.

Concilio de Niceia (maio a agosto de 325)

            Embora a princípio, como vimos, Constantino achasse que poderia à força da sua autoridade pessoal e o prestígio de seu cargo resolver essa questão, muito mais complexa do que ele supunha, ou pelo menos apaziguar os contendores, ele também ficou satisfeito com a fórmula de um concílio “universal”, reunindo padres e bispos tanto do ocidente quanto do oriente, seria uma forma de em grande estilo terminar a questão, reforçando ainda mais a lealdade dos cristãos à unidade do império. E ele o fez sem contatar inclusive com o Bispo de Roma na ocasião, o Papa Silvestre I (314-335), que aceitou a situação e mandou representantes para o encontro, a ser realizado na pequena cidade de Niceia, no palácio de verão do imperador, na parte Oriental do império.

            Embora estivesse aberto à toda igreja, e os convites foram entregues, com garantias de apoio para a viagem e confortável hospedagem oficial, ele foi esmagadoramente um concílio oriental, pois todas as vantagens oferecidas não bastavam para eliminar os riscos inerentes a um longo trajeto, em certas partes do império, e por isso dos duzentos e poucos bispos presentes, embora tenha aparecido – uma lenda posterior afirma que foram 318, o mesmo número dos aliados de Abraão que salvaram Lot (Gn 14,14) – do Ocidente compareceram apenas 5 representantes: o bispo Ósio e os presbíteros Vito e Vicente, representando o Papa, e outros, que, à exceção do bispo de Cartago, tiveram um papel apagado.

            Os trabalhos de preparação do concílio começaram em 20 de maio de 325, Constantino, que não estava presente, só chegou em 14 junho, entrando em grande etilo na sala de reuniões, desfilando entre os bispos coberto de joias e esplendor. Fez o discurso de abertura, mas teve o bom censo de sentar-se atrás dos bispos, e não participou em absoluto das discussões teológicas, ao contrário do que afirma o ‘esperto’ Dan Brown, no seu livro anticatólico, Código da Vinci. Durante as discussões um novo personagem começa a aparecer: o jovem diácono, secretário do bispo Alexandre de Alexandria, Atanásio.

Atanásio, como quase todos os outros personagens envolvidos nessa história, não nos legou informações seguras sobre a sua infância e juventude, mas há a piedosa história de que foi surpreendido pelo bispo Alexandre, com um grupo de amigos adolescentes, a brincar de batizarem uns aos outros. Imediatamente o bispo interviu para pararem com aquela “brincadeira”, na verdade um jogo de imitação, e os convidou para aulas de catequese mais aprofundadas, como num seminário, que nessa época ainda não os havia, ministradas pelo bispo e seus auxiliares na própria cúria. Os poucos indícios nos fazem crer que ele devia ser filho de uma família grega abastada de cidade – classe média urbana, ligada ao comércio ou à burocracia, como era comum aos gregos estabelecidos em Alexandria, não lhe faltando recursos para estudar em boas escolas e frequentar os melhores professores, o que ele fez com grande proveito.

A descrição feitas pelos contemporâneos de sua pessoa nos conduz, a aspectos exteriores quase para opostos de Ario: “Ele estava um pouco abaixo da altura média, magro, mas bem constituído e intensamente enérgico. Ele tinha uma cabeça de formato delicado, realçada por uma fina camada de cabelo ruivo, uma boca pequena... um nariz aquilino e olhos de brilho intenso, mas gentil. Tinha um raciocínio ágil, era rápido na intuição, de maneiras fáceis e afáveis, agradável na conversa, perspicaz e, talvez, um tanto implacável no debate [devia ser aquele tipo de debatedor incansável, que segue sem amortecer nem ceder, até o último ponto em questão, que tem sempre uma resposta pronta, afiada como uma navalha, na ponta da língua]... Juliano, o Apóstata... zomba da pequenez de sua pessoa ... Além dessas qualidades... Ele era dotado de um senso de humor que poderia ser tão mordaz – quase dizemos sarcástico [talvez até cruel] – quanto parece ter sido espontâneo e infalível; e sua coragem era do tipo que nunca vacila, mesmo na hora mais desanimadora... Ele não era, por instinto, nem liberal nem conservador em teologia”. Uma personalidade multifacetada, mas com um objetivo inamovível: defender o que ele considerava essencial à doutrina de sua igreja. Mal comparando, embora não tão mal assim, diríamos que a luta entre ortodoxos e arianos foi também uma luta entre um pequeno Davi cheio de energia, franqueza e humor, mas teimoso e incansável, contra um Golias tenso, pesadamente ascético, mais ou menos como o jejuador de Mt 6,16, que avança contra o opositor de cabeça baixa, implacável como um bate-estacas, como se estivesse só e decidido pelo combate direto e franco, mas na verdade repleto de subterfúgios, golpes e outros recursos que só aparecerão no correr da batalha (6).    

No primeiro concilio, em Alexandria no ano 318, com pouco mais de 20 anos, pode se destacar mais pela disponibilidade de ajudar seu bispo na causa ali iniciada, mas não se fez notar muito. Em Niceia, já maduro, com sólida formação, entrou em campo para lutar de igual pra igual com o douto Ario, e os bispos que lhe apoiavam. Decerto marcou sua presença como um homem totalmente comprometido com a ortodoxia, embora não tenha sido em torno de uma iniciativa sua que se centraram os debates que envolviam a questão central, para a qual o concílio foi convocado: esclarecer definitivamente a natureza da relação de Jesus Cristo, dentro da Santíssima Trindade, que comprometia tanto na divindade de Jesus como a própria crença na Trindade, além de umas questões “menores” ligadas à liturgia e disciplina pastoral.

A discussão sobre esse tema já se arrastara anteriormente, na forma do sabelianismo, a heresia do padre Sabélio, ensinada por volta do ano 220, em Roma, onde duas correntes teológicas se digladiavam: aqueles que afirmavam “distinções permanentes (pessoas) dentro da trindade” (Britannica; vol. 19; Sabellianism) e a facção oposta, “os monárquicos ou modalistas, que em sua preocupação [de marcar bem o monoteísmo cristão]... “negou que tais distinções [as pessoas divinas] fossem definitivas ou permanentes” (idem). Sabélio se alinhou com esse grupo e desenvolveu uma nova fórmula dizendo que: “A divindade é uma mônada [um ser simples e indivisível], expressando-se em três operações: como Pai, na criação; como Filho, na Redenção; como Espírito Santo na santificação. É possível que ele também sustentasse... que a mônada divina passou por um processo de “expansão” ou “crescimento”, projetando-se primeiro como Filho e depois como Espírito Santo” (idem) (7).

Ora, a moderna doutrina da Santíssima Trindade, que católicos e cristãos em geral hoje professam, e que surgiu no concílio de Niceia, não tem nada que se pareça com isso, e no entanto, Ario e seus seguidores, que também se levantaram contra essa definição de Sabélio, sempre que lhes faltavam argumentos acusavam aos ortodoxos de sua época, e aos cristãos de hoje, de sabelianismo, como se de repente Ario perdesse toda a sua douta erudição, que o fez famoso naquela época, assim como alguns de seus seguidores mais capazes, quando na verdade o que vemos é uma estratégia de confundir os termos da discussão para dar sobrevida ou uma via de fuga a uma tese já completamente derrotada.

Em Niceia, toda a questão da relação entre Jesus-Filho e o Pai foi resolvida pelo uso do termo grego “Homoousion”, onde “homo” quer dizer “mesma”, e “ousia”, quer dizer “substância”, “essência”. Logo Jesus Cristo era integralmente Deus, e é por isso que seu sacrifício é eternamente redentor e feito de uma vez por todas. E a partir daí se criou o chamado Credo ou Símbolo Niceno-constantinopolitano, em 19 de junho, que afirma o seguinte, a respeito de Cristo, segundo a versão da Conferência Episcopal Portuguesa, e como consta no Catecismo da Igreja: “Creio em um só Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, luz da luz,  Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial [homoousion] ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas. E por nós homens, para a nossa salvação, desceu do céu, e se encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria. E se fez homem”. Ou seja, ele é também, além de Deus, de uma forma absolutamente perfeita, um homem integral, semelhante a nós, embora São Paulo acrescente: “exceto no pecado”. Ao final dessa definição foi explicitada uma maldição espiritual àqueles que a contrariavam: “Aqueles que dizem: Houve um tempo em que Ele não existia, e Ele não existia antes de ser gerado; e que Ele foi feito do nada... ; ou que sustentam que Ele é de outra hipóstase ou de outra substância [que não a do Pai], ou que o Filho de Deus é criado, ou mutável, ou sujeito a mudança, [a eles] a Igreja Católica anatematiza” (Catholic Encyclopedia; 1913; Council of Nicaea; Homoousion).

O texto da Catholic Encyclopedia nos diz que “a adesão [à formula do Credo] foi geral e entusiástica. Todos os bispos, exceto cinco, declararam-se pronto para subscrever esta fórmula, convencidos de que ela continha a antiga fé da Igreja Apostólica. Os oponentes, rápido, foram reduzidos a dois: Teonas de Marmárica e Secundus de Ptolemaida, que foram exilados e anatematizados. Ario [que permaneceu inamovível] e seus escritos foram marcados com anátema... e ele próprio exilado na Ilíria” (idem). Em 25 de agosto de 325, encerrou-se o concílio.

A mudança dos ventos    

 Qualquer um, que não seja um adolescente fanatizado, desses que vivem se reunindo em assembleia estudantil, para desfazer à tarde o que fora decidido com grande solenidade e promessas pela manhã, diria: “o assunto está encerrado”, mas a ação de vários bispos, em especial Eusébio de Nicomédia, junto à corte, apesar do concílio, em especial com a irmã de Constantino, Constância, que à essa altura estava sendo tratada com luvas de pelica, pelo poderoso irmão, que já lhe arrebatara o marido e um filho, e, aparentemente gostava muito dela, tanto que cunhou até moedas em sua homenagem, e devia, portanto, ser movido também por um forte sentimento de culpa, em relação ao passado. O certo é que Constantino lhe fazia as vontades, enquanto a personalidade voluntariosa e fútil dela empurrava-a obstinadamente ao partido ariano.

Enquanto isso problemas internos na família do Imperador destroçava-a de dentro para fora. Sua esposa atual, Flavia Máxima Fausta, que se indispusera com seu enteado, o filho mais velho de Constantino, Caio Flavio Júlio Crispo, acusa-o, perante o pai, de tentar seduzi-la. Indignado, ele condena seu filho primogênito a morrer por ebulição – ou seja, ser cozido vivo – para pesar geral uma vez que Crispo, aparentemente, era o neto preferido de Helena, mãe de Constantino. E para a coisa ficar ainda pior, ele descobre que tudo não passara de um ardil tramado pela ardilosa Fausta, que aparentemente usou da calúnia para se livrar do filho de Constantino, em benefício dos seus próprios, e imediatamente determina que a sua querida, até a véspera, esposa tivesse o mesmo fim de sua vítima. Isso tudo aconteceu em 326, no ano seguinte a Niceia.

Justo quando ele juntava os cacos de sua vida familiar, imaginando que a questão religiosa, acontecida só por causa de umas “palavrinhas” de nada, estava resolvida, sua irmã e bispos mais próximos, começam a falar de reabilitar Ario. “Que venha Ario, já tenho muito com que me preocupar”. E não só, a teimosia do herege, que em outras ocasiões passaria fácil por uma rebelião, passível de penas severas, agora é tratada como firmeza de caráter, e Constantino passa a tratar Ario com o termo dúbio de “homem de ferro”, e também adere, só Deus sabe se com sinceridade, ao arianismo, e deixa bem claro que, em que pese toda essa conversa de ‘concílio’, ‘conclave de bispos’, ‘inspiração infalível do Espírito Santo’, etc, a Igreja deve favores ao Império, e o chefe do império era ele. Noutras palavras: “Já estou com muita coisa na cabeça, e quem manda nessa ‘espelunca’ sou eu!” Ou uma coisa assim....

 A situação vai se agravando aos poucos. O Imperador, por uns anos, segue reafirmando Niceia, baixando fortes decretos antiarianos, mas depois, em nome da “caridade”, levanta o desterro dos condenado por Niceia. Ario refaz, sub-repticiamente, a sua doutrina, tirando os termos mais explícitos, substituindo por outros mais ambíguos que permitem uma dupla interpretação, a qual é aprovada por Constantino, vai morar perto da corte e os bispos depostos voltam às suas dioceses. Bispos mais comprometidos com a ortodoxia, como “Eustáquio de Antioquia, Asclépio de Gaza, Eutrópio de Adrianópolis e Marcelo de Ancira” perdem suas sedes para simpatizantes do arianismo, num nebuloso concílio em Antioquia, por volta de 331. Mas em 328 Ario recebeu um golpe tremendo: a diocese de Alexandria, que ele sempre desejara para si e para os seus, após dois anos de vacância, pela morte do titular Alexandre, é ocupada nesse mesmo ano pelo seu arqui-inimigo, Atanásio, o que deixou os arianos extremamente alvoroçados, e imediatamente começaram a mover seus simpatizantes, junto à corte, no sentido de derrubar Atanásio do seu posto.

Agindo com astúcia, eles conseguiram montar um sínodo viciado em Tiro, no Líbano, em 335, convocado pelo próprio Constantino, onde apresentaram acusações contra Atanásio por infidelidade à doutrina e, pasme-se, por questões administrativas, inclusive uma suposta ameaça de cortar o suprimento de trigo do Egito para Constantinopla, que, se fosse realizado, causaria um episódio de fome gravíssimo na capital do Império. Atanásio sabia do embuste que era esse sínodo, por isso fez um movimento no sentido de não ir, mas quando Constantino ameaçou leva-lo à força ao encontro desse arremedo assembleia, ele apresentou-se acompanhado de 48 bispos, dispostos a atestar o seu comportamento exemplar. Mas, como como se podia imaginar, era um jogo de cartas marcadas, e percebendo o seu desfecho, Atanásio, inventou uma burla e simplesmente fugiu. E quando enfim deram por ele, já estava junto ao Imperador, em Constantinopla, apresentando as suas queixas.

Percebendo a situação, os arianos mandam o sínodo às favas e partem acelerados para lá também, antes que a notável retórica e o vasto conhecimento de Atanásio sobre a questão ganhasse seu ilustre hospedeiro para sua causa. “Corre antes que o imperador mude de ideia!” De fato, Constantino, sinceramente ou só simulando, já estava mudando de malas e bagagem para a causa de Atanásio, quando os arianos, em especial Eusébio de Nicomedia, chegaram à corte e começaram um laborioso trabalho de ‘descontaminação’ e da ‘venda’ de sua causa à mente imperial, e mais uma vez o Imperador muda a direção “dos ventos”, a volta a apoiar aos arianos, e, embora não acate as acusações de heresia contra o jovem bispo, acata a acusação completamente absurda, de que Atanásio “ameaçou” cortar o suprimento de trigo de Constantinopla, e o demite de sua sede episcopal, mandando-o para o exílio em Tréveris, atual Trier, na Alemanha.

O primeiro exílio de Atanásio

            Atanásio parte para a Alemanha em fevereiro de 336, sendo muito bem recebido pelo bispo Maximino de Trier, um prelado completamente fechado com a ortodoxia e posteriormente canonizado, sem falar que aquela área do Império Romano era administrada por Constantino II (337-340), filho de Constantino, simpatizante da ortodoxia. Lá, num ambiente de paz e segurança, Atanásio pode trabalhar em textos onde discorre sobre teologia e comenta os eventos da querela ariana, mantando-se a par, no que era possível, do que se passava em Alexandria, onde os seus diocesanos também não o esqueciam, e o queriam de volta.

            Nesse episódio Algo muito estranho aconteceu, embora Constantino tenha aparentemente dado fé à denúncia contra Atanásio, tanto que o desterrou, ele recusou-se a nomear um sucessor para a sede de Alexandria, fosse por manha política, uma vez que ele devia estar bem informado da popularidade do bispo punido entre os fiéis de sua diocese, fosse porque no fundo soubesse muito bem que tudo aquilo não passava de uma artimanha e de um recurso vil, inadmissível numa religião que ascendia cercada de apelo ético, um grande contraponto ao paganismo anterior, ou fosse pelo fato de nada ser muito claro em Constantino, quando se tratava de religião.

            No partido ariano tudo era alegria e contentamento, o seu grande inimigo fora afastado para longe, e quiçá tão cedo não voltaria, ou se voltasse seria para ver o sucesso dos arianos. Com grande solenidade foi feito o levantamento das punições previstas pelo Concílio de Niceia contra Ario. Ato contínuo Constantino ordenou que o bispo patriarca Alexandre de Constantinopla o readmitisse oficialmente no seio da Igreja, sob pena de punição e banimento, pois Alexandre, um ortodoxo, não acreditava na sinceridade da “conversão” de Ario – diz um escritor da época: Sócrates, que Alexandre até se fechou na sua igreja, orando, para que Deus o livra-se daquela obrigação, tão ingrata quanto sacrílega, e Constantino o sabia, mas justo no dia aprazado, quando Ario se dirigia à igreja de Hagia Irene (Santa Paz), para ser oficialmente reintegrado, com uma alegria incontida pela vitória alcançada e o esplendoroso futuro que o aguardava, quando começou a sentir-se estranhamente mal, um suor frio, o estômago embrulhado, uma vontade incontida de vomitar, acompanhada de uma forte dor de barriga, dirigiu-se então a um banheiro público próximo, mas não o alcançou, e desmaiou na calçada mesmo, botando as vísceras para fora, em meio a uma diarreia incontrolável, Que o levou ao colapso e à morte.

            Castigo de Deus, gritaram os ortodoxos em meio à tristeza e raiva dos arianos. Envenenamento muito conveniente, dizem outros. E se foi envenenamento, dá para excluir a mão de Constantino nesse evento? As suas últimas ações, superficialmente apontam na direção contrária, e ele, até por força do cargo, e talvez principalmente por isso, tinha toda a simpatia dos arianos, mas se pensarmos bem, veremos que o centro da controvérsia estava muito focado nas personalidades poderosas de Atanásio e Ario, que pareciam capazes fazer sombra à do próprio imperador. Ora, Atanásio, de um lado, já fora despachado para os confins do Ocidente, na Alemanha, e agora Ario, do outro lado, era despachado para o além. Quem mais ganhou com esse duplo desaparecimento? Constantino pode até ter pensado: “de um golpe me livrei de dois encrenqueiros, agora vou legar um Império sossegado para meu filho”. E morreu!

Sentindo a proximidade da morte Constantino deu a última grande ‘virada’ na sua vida: deu uma pausa na guerra que ia começar contra a Pérsia, concluiu o catecumenato, o curso de conhecimento básico da fé cristã, e recebeu o batismo e a eucaristia, em 22 de maio de 337, das mãos do bispo herético impenitente: Eusébio de Nicomedia e foi acertar suas contas com o Criador.

Melhor teria sido para Ario se ele tivesse permanecido no exílio ou em algum lugar afastado, junto a fiéis aliados , aprofundando a sua doutrina, ao invés de se deixar empolgar pelo luxo e o poderio deslumbrante da corte de Constantinopla, cheio de áulicos invejosos, adversários sorrateiros, falsas amizades e inimigos tão sinceros quanto invisíveis, para não falar de um imperador que tinha poucos recursos intelectuais e paciência pra lidar com minúcias teológicas, em especial aquelas que ousavam perturbar a paz de seu convulsionado império...

Ele voltou... mas nem esquentou a cadeira

            Em meio à grande alegria de seus diletos diocesanos, Atanásio, aproveitando a morte de Constantino I, assume por sua conta a sé de Alexandria. Mas nuvens escuras se descortinam no horizonte do combativo bispo de Alexandria. Com a morte de Constantino, o império, por decisão deste foi dividido entre seus três filhos: Constantino II, Constâncio II e Constante. Coube a Constâncio o governo da parte oriental, e Alexandria ficava justamente aí, sem falar que, dos filhos de Constantino, Constâncio era o mais encarniçadamente ariano... Em 9 de setembro de 337, já oficializado, Constâncio II mostra logo as suas credenciais: manda massacrar seus sogros, um tio, vários primos e outros membros masculinos mais próximos de sua família, que pudessem ameaçar o seu monopólio do poder, sobreviveram dois sobrinhos: Galo, de 11 anos, e Juliano, de 6. No ano seguinte, 338, Atanásio recebe nova ordem de banimento, dessa vez ele vai para Roma, buscar ajuda e aliança junto ao Papa Júlio I, o papa criou a mais fantástica coleção de documentos do mundo: os arquivos do Papado atuais Arquivo Apostólico do Vaticano.

            Enquanto isso no Ocidente, o gosto da família de Constantino por sangue produzia outras tragédias: Constantino II, entra em choque com seu irmão Flavio Júlio Constante, ou Constante I (337-350) por questões territoriais, e começam pequenas escaramuças, querendo evoluir para um grande conflito, até que em Cervenianum, na Itália, a vanguarda de Constantino II é cercada pelas tropas de Constante, e massacrada, morrendo Constantino II na refrega, com apenas 23 anos. Seu irmão, Constante, não o poupou em nada, e mandou atirar seu corpo a um rio e declarou sua memória maldita – a danatio memoriae (condenação da memória): quando toda referência escrita ou iconográfica sobre alguém era apagada dos anais escritos e iconográficos (imagens), em virtude da gravidade de seu crime. Um exagero!

            O Papa Júlio (337-352), após se inteirar das teorias de um lado e de outro, pois já Eusébio de Nicomédia e seu grupo apressaram-se a mandar representantes a Roma para confrontar Atanásio, concordou com o posicionamento de Atanásio e reconheceu-o com bispo, mas para evitar uma medida precipitada, que feriria a susceptibilidade do outro lado, bem como podia criar-lhe problemas políticos com o Imperador do Oriente, Júlio, com o apoio de vários bispos ocidentais, propõe um sínodo, em Sárdica, para resolver colegiadamente a questão disciplinar e o fundo teológico de toda questão, numa das primeiras reivindicações de Roma à sua primazia sobre todos os bispados ou igrejas particulares. 

            O Concilio de Sardica, atual Sofia, na Bulgária, aconteceu no outono de 343, e foi um desastre... A princípio porque foi convocado por bispos ocidentais, com o apoio do imperador do Ocidente, Constante, para resolver uma questão surgida na jurisdição do Imperador do Oriente: Constâncio II, naquele momento ás turras com inimigos na fronteira oriental, e que não deve ter gostado nada daquilo. No Palácio que hospedou o encontro, as duas partes: 90 bispos ocidentais e 80 orientais, estes todos arianos, ficaram em alas separadas. Os bispos do Oriente fizeram uma exigência: só participariam das reuniões se Atanásio e outros bispos que haviam sido expulsos de suas sedes no Oriente não participassem. Os ocidentais responderam que só participariam se aqueles participassem também. Alegando que precisavam dar uma “lambidas” no ego de seu imperador, que acabara de obter uma grande vitória contra os persas, tudo teatro, os bispos orientais abandonaram Sárdica, no mesmo dia, e começaram a preparar um concilio exclusivamente ariano em outro lugar. A cidade escolhida foi Filipópolis, atual Plovidiv, na Bulgária.

            Assim o encontro de Sardica, convocado para resolver o impasse, ‘entornou o caldo’ mais ainda, aprofundando a divisão, e deixou uma certeza: o arianismo veio para ficar. Enquanto o grupo de Sardiica reafirmava a consubstancialidade do Filho em relação ao Pai, além de tecer algumas regras mais detalhadas sobre como deveriam ser, daí por diante, a intervenção em bispados, inclusive da obrigatoriedade de a sentença final ser exarada pelo bispo de Roma, além de reconhecer a legitimidade do governo de Atanásio à sé de Alexandria, anatemizando a crença ariana, o grupo de Filipópolis, anatemizou a consubstancialidade, sustentou a expulsão de Atanásio e dos outros, e exigiu a deposição e prisão do Papa Júlio I. O que não aconteceu. Os cristãos do Ocidente e do Oriente do Império Romano não conseguiam se entender, e toda a briga que se seguiu em grande parte prenunciava o cisma definitivo que se daria em 1054.

            A proximidade dos arianos a Constâncio II (337-361) deu certo, pois este tomou decididamente o seu lado, inclusive mandando guardas vigiarem passagens e portos para impedir o retorno em segredo dos bispos expulsos, mas foi nesse momento que se fez sentir, surpreendentemente, ao lado dos bispos ortodoxos, a força diplomática do jovem imperador do ocidente, Constante, que passou a pressionar Constâncio em favor dos direitos de Atanásio, e essa pressão foi tão eficaz, que após a morte, em junho de 345, do bispo ariano de Alexandria, Gregorio, eleito pelos arianos quando da expulsão de Atanásio, Constâncio II resolve chamar Atanásio de volta à sé de Alexandria

            ‘Osso duro de roer’ era Atanásio. Ele se fez de difícil, ou andava tomando ‘canja de galinha’, e só voltou após vários pedidos do imperador, e ao chegar em Alexandria já foi pedindo uma acareação com os bispos arianos, uma espécie de ‘tira-teima’ público e oficial, que o imperador rejeitou, talvez já se arrependendo de tê-lo chamado de volta, mas era tarde, e o bispo exilado entrou em sua cidade natal diante de uma multidão exultante, aclamando-o vigorosamente. Naquele momento ele contava com o apoio de uns 400 bispos tanto do Ocidente como do Oriente, e enquanto importantes bispos arianos pediam ao Papa Júlio reingresso ao seio da Igreja, após abjurarem do arianismo. Chegara a hora dele ter um pouco de descanso? Vai sonhando!

Mudança de maré

            É verdade que Constante estivera do lado certo na questão religiosa, mas também é certo que ele também não era, como outros de sua família, ‘flor que se cheirasse’. Além do assassinato do irmão, era dado a excessos sexuais, e entregou a administração do seu lado do império a amigos corruptos e devassos, e, o que é pior, não quis cultivar as boas graças do exército. Ele estava caçando, em algum lugar do interior do sul da Gália, quando soube que havia um movimento militar em curso para depô-lo: as tropas de um general de origem celta (antigo povo da França) chamado Magnêncio, estavam vindo para prendê-lo, pois aquele acabara de se declarar imperador, com o apoio de suas tropas. Constante tentou fugir para a Espanha, mas é alcançado por uma patrulha de cavalaria dos amotinados, do lado dos Pirineus franceses, em um lugar chamado Oppidum Helena, hoje Elne, nome aliás dado em homenagem à sua avó Helena. Ele entra numa igreja para pedir asilo e misericórdia, mas o soldados a invadem e o agarram, arrancando-o de junto ao altar, apesar os protestos do padre e da gritaria de alguns fieis, e o arrastam para fora, onde é executado – provavelmente posto de joelhos e depois atingido por um possante golpe de espada, dado de cima para baixo, na altura da cervical, na nuca – isso foi em 18 de janeiro de 350, ficando lá estendido sobre o pó das ruas. E assim se cumpriu a profecia semilendária, feita quando do seu nascimento, de que ele morreria nos braços de sua avó...

            Magnêncio mal tinha acabado de ouvir os comprimentos “ave imperator”, de seus soldados, assim como o lembrete da parte destes, sobre vantagens prometidas antes de iniciarem essa aventura – em geral, saque dos bens das pessoas ricas do lado oposto – teve que por suas tropas em marcha, pois Constâncio II, informado da morte do irmão, imediatamente se pôs em marcha para punir o usurpador e colher a fruta madura, que se apresentava ao seu alcance: se tornar o único governante de todo Império. Em 28 de setembro de 351, os dois lados se encontraram nas cercanias de Mursa Maggiore, e aí travaram uma das mais sangrentas batalhas da história de Roma com 54 mil mortos, mas ainda assim, por dois anos os dois lados percorreram a França em busca de um lugar propício para uma batalha decisiva, num local que lhe fosse mais vantajoso, o que acabou ocorrendo em Mons Seleuco, em agosto de 353, na França, após a qual Magnencio quedou completamente derrotado.

            Percebendo-se isolado e traído, seus soldados já discutiam até a melhor forma de entregá-lo ao seu rival, na esperança de obter o perdão por seu amotinamento, ao mesmo tempo que os grupos gauleses, que o incentivaram a começar a rebelião, agora lhe davam as costas, reuniu, com a ajuda de conspiradores próximos, numa casa afastada seus amigos e parentes, e a um sinal combinado começaram a matar todos os presentes. Magnencio matou sua própria mãe. Ao final todos os sobreviventes tiraram a própria vida, atirando-se sobre suas espadas, como era o antigo costume romano. Um aliado de Magnencio: o seu irmão Decêncio, que já havia sido declarado “césar”, uma espécie de “vice-imperador”, e que vinha trazendo-lhe tropas de apoio, ao saber da derrota e morte do irmão, apressou-se para fazer o mesmo, enforcando-se.

            É curioso notar o quanto se misturam na sociedade romana dessa época, hábitos e curtumes militares próprios do período anterior, pagão-politeísta, muitas vezes ordenados por oficiais cristãos, pois aos soldados não restava outra escolha. Era obedecer ou ser executado. Eram penas cruéis, executadas com notável frieza e desrespeito a tudo que fora antes pactuado como digno, honesto e civilizado, numa justiça muito pessoal de caráter eminentemente tribal, talvez influenciada da presença da cultura germânica belicista e tribal nas forças imperiais, sem menosprezar o costume gerado pelos antigos códigos de conduta do exército romano. Isso é mais retrato de uma época do que deformação de caráter evitável ou educável à revelia da sociedade.

Constâncio chega à casa de Magnencio e seus infelizes companheiro e familiares. É uma cena horrorosa. Cadáveres amontoados de homens, mulheres, crianças e anciãos, nas mais grotescas posições, mostrando os esgares de uma morte inesperada e violenta, em meio a um rio de sangue que se espalhava indiferente por vários compartimentos da casa, grudando nas sandálias dos legionários, e o forte cheiro metálico, infestando todo o ambiente.  Constâncio II, o imperador cristão, devoto do arianismo vê tudo aquilo com aparente indiferença e imagina a ironia daquilo tudo: estava afinal livre do irmão que lhe causara tantos embaraços e do seu assassino, que lhe desafiara o poder, e que lhe dava a oportunidade agora de apresentar-se como irmão extremado, defensor da família constantiniana e de todo império, todo sob o seu comando. A vida é boa e Deus generoso; mas antes precisava acertar as contas com os soldados que haviam se sublevado. A cena e o odor eram-lhe uma inspiração.

Na clandestinidade

            A situação de Atanásio, entretanto, voltara a ficar periclitante. Os arianos na corte, estimulados pelo apoio do imperador, voltam à carga, denunciando, falsamente a Atanásio de haver negociado com Magnêncio, uma vez que durante o levante, este enviara ao bispo, conhecido opositor de Constâncio II, uma delegação, a qual ele recebera, como bispo, e os despedira sem em nenhum momento apoiar a causa dos sublevados. Constâncio II, que não tinha nenhum motivo para dispender tempo com essa querela, começou a importunar Atanásio e os ortodoxos, e o cargo principal da sé de Alexandria ficou novamente na berlinda. Para completar, no dia 12 de abril de 352, Atanásio perde o seu mais valioso aliado: o Papa Júlio I. O seu sucessor foi Libério (352-366), um homem correto e de boa vontade, mas que não tinha a força nem a estatura moral de seu antecessor.

            O imperador começou imediatamente a mover a sua peças. Faz uma convocação para uma reunião de bispos galos (ocidentais) sob o controle dos arianos em Arles, em 353, com uma proposta era simples: assinar um documento condenando a Atanásio. Os dois representantes do Papa tentaram levantar a necessidade de um debate para esclarecer as posições teológicas do suposto ‘condenado’, pois a questão não era muito debatida no ocidente, em vão; a posição do imperador e de seus bispos aos seus colegas era categórica: ou assinava-se o documento ou podia dizer adeus à sua diocese, e partir para o exílio. Até os legados papais assinaram, e o único que não assinou, Paulino de Trier, foi despachado para o exílio, na Frígia (Turquia), em 353, e lá morreu, 5 anos depois. Hoje ele é considerado santo e mártir da Igreja.

            O auge desse triste espetáculo porém, foi alcançado em Milão, num sínodo, nesse mesmo ano, convocado a pedido do Papa Libério, que aparentemente não entendia que essa questão havia se tornado, por conta da natureza impulsiva e violenta de Constâncio II, um assunto de interesse do estado, este já fechado com o arianismo – tudo aquilo, portanto, não passava de um teatro, um simulacro, para dar a ideia ao público de que nada estava sendo imposto. Os três delegados do Papa foram Lúcifer, bispo de Cagliari, o padre Pancrácio e o diácono Hilário, estando ausente o grande campeão da causa nicena: Eusébio de Vercelli. O diácono Hilario toma a palavra para defender a postura do Papa em favor Atanásio, mas o faz de forma tão desabrida e ousada, dizem alguns cronistas, que o resultado foi apenas aumentar os ressentimentos e acirrar a polarização.

            Um pouco depois desse incidente, porém, chega Eusébio de Vercelli, um homem inteligente e prático, que vendo que as conversas se desviavam para batalhas mais ou menos inconscientes de egos, além de interesses políticos inconfessáveis, chamou para o centro das discussões o principal motivo de tudo aquilo, o Credo de Niceia, da seguinte maneira: fez redigir numa folha de papel rubricada, oficial, o texto do credo, que era aquilo pelo que Atanásio lutava, e que havia sido elaborado num concílio sob a tutela do pai de Constâncio, o grande Constantino I, e que nesse momento era tratado como renegado da fé.

            O arianos se viram numa grande enrascada. Todos os seus movimentos contra Atanásio e Niceia, eram dirigidos por um espírito de intriga pessoal, ao arrepio da lei do estado, dos fatos e da lógica formal básica, sem aprimoramento teológico ou alguma novidade, que justificasse o seu combate até aquele momento ao que já fora oficialmente aceito no Concílio de Niceia. Se não assinassem, tornariam evidente a todos a sua condição de rebeldes, que se recusavam a seguir uma norma reconhecida oficialmente pela Igreja e pelo estado, e se assinassem estariam rejeitando oficialmente as suas crenças atuais, e confessando a Deus, ao imperador e à Igreja, que a sua perseguição a Atanásio não se justificava, que era, portanto, uma ação profundamente mesquinha e anticristã.

            O delegado Pancrácio assina o documento, seguido pelo bispo de Milão, Dionísio. Porém, sem que ninguém se apercebesse, o bispo de Múrcia (Espanha), Valente, ariano convicto, se aproxima da mesa do documento, e de repente agarra-o e o rasga com suas mãos, dando início a um grande tumulto, na sala de reuniões. Aproveitando-se do incidente, não para fazer justiça a quem propositalmente iniciou a baderna, mas antes para impor sua fé deformada e o seu autoritarismo doentio, que o transformava em mero joguete de seus “mestres espirituais”, Constâncio II obrigou a assembleia a se deslocar imediatamente do palácio do Bispo para seu, e aí deu larga saída a ultrajes contra os ortodoxos, tão abomináveis quanto a sua fé distorcida.

            Constâncio II desanca os representantes do papa, mandando prender e surrar o diácono Hilário, expulsando-o para o exílio junto com os bispos Lúcifer, Dionísio e Eusébio. Que se recusaram a condenar Atanásio – para substituir a Dionísio, em Milão, foi nomeado o bispo Auxêncio da Capadócia, que nem sabia falar a língua local. Enquanto isso a perseguição contra Atanásio, no Ocidente, avançou com um sínodo de bispos em Beziers (França), em 356, com os mesmos métodos: violência física e psicológica, com resultados análogos: só dois bispos se recusaram a assinar o documento condenatório ariano: o insigne Hilário de Poitiers e Rodânio de Toulouse, imediatamente despachados para o exílio.

Contra tudo e contra todos

            Mas Constâncio encontrou uma resistência inesperada no Papa Libério, que imediatamente escreveu cartas se solidarizando com os bispos exilados, e que calaram fundo na comunidade cristã. O imperador imediatamente enviou a Roma um emissário com ricos presentes para Libério, que este rejeitou e ordenou que fossem de pronto retirados de seu palácio. Constâncio, fora de si, mandou que o prefeito da cidade de Roma, Leôncio, mandasse soldados à noite, para evitar confrontos com a população, a fim de levar o papa, à força, à sua presença. Lá chegando Liberio resistiu a todas as invectivas, apelos e ameaças do imperador, inclusive de exílio, se continuasse resistindo a condenar Atanásio – segundo o historiador eclesiástico Hubert Jedin, o imperador lhe deu três dias para pensar bem na resposta, mas já no segundo dia, diante da resposta negativa, enviou-o para o exílio em Berea, na Grécia, hoje Veria, onde ficou sob a vigilância e a pressão de um bispo ariano, especialmente nomeado para isso. E para fechar o pacote, sob a orientações de bispos arianos, o imperador mandou à Córdoba, na Espanha, agentes para obterem a aprovação de seus atos do quase centenário bispo Ósio, que já atuara com seu pai, e deste recebeu um também sonoro NÃO, sendo igualmente mandado para o exílio.

            Para a cobrir a vacância do Bispo de Roma, Constâncio II, determinou a nomeação do arquidiácono Felix, que assumiu sob o nome de Felix II, após sua sagração por três bispos arianos arrumados para a ocasião – hoje ele é considerado um antipapa – porém, houve mais um contratempo inesperado: a população cristã da cidade, inconformada com a perda inesperada e injustificada de seu bispo, rebelou-se contra a gambiarra proposta pelo imperador, e deu início a distúrbios só acalmados pela presença de tropas, enquanto se intensificava a pressão sobre Libério.

            Ninguém sabe exatamente quando nasceu o Papa Libério, mas é comum entre as fontes a informação de que já era um home de idade avançada quando assumiu a diocese de Roma, em 352, e que, durante o seu exílio, sofreu pressões tanto psicológicas quanto físicas intensas para ceder à vontade do imperador, e tudo indica, pelo relato inclusive do próprio Atanásio, que ele fraquejou, e que concordou em assinar documentos que não só condenavam a posição de Atanásio, como aprovavam a heresia ariana, isso feito pode voltar em paz para a sua diocese, em 358, após propor, inclusive, compartilhar o seu pontificado com Felix II – todas essas medidas equivaliam à excomunhão de Atanásio, por não querer fazer concessões intoleráveis na defesa da verdade.

            A atuação de Libério fez baixar uma sombra enorme sobre a Igreja, mas principalmente sobre a sua própria biografia, pois em que pese a justificativa de sua idade, é preciso considerar que um bispo bem mais velho, Osio de Córdoba, também estava preso, exilado e sob pressão, mas nem assim cedeu, como vários outros ao longo da história da Igreja, que, em situação análoga, não cederam a até preferiram enfrentar o martírio sangrento a recuar de suas convicções, enquanto o antipapa mergulha no esquecimento, digno dos covardes, dos oportunistas e medíocres, que assumem uma causa muito acima de suas forças e talentos. Os romanos acolheram Libério compassivamente, mas ele já estava completamente desmoralizado e nada mais acrescentou, nem podia, ao prosseguimento da controvérsia.

            Enquanto isso, em Alexandria, Atanásio, continuava resistindo decididamente às tentativa diárias de intimidação das autoridades locais, a mando do imperador, sempre cuidando para não ficar sozinho ou distante de comunidades que pudessem lhe prestar ajuda. Em fevereiro de 356, durante uma celebração litúrgica na igreja de São Teonas, um destacamento de soldados irrompe no recinto clamando pelo nome de Atanásio: “considere-se detido em nome do Imperador!” O centurião nem pode terminar sua segunda frase, “fique onde...”, e uma pesada cadeira voou na sua direção, enquanto outras, e toda sorte de objetos, eram atirados na direção dos soldados, e imediatamente irrompe uma tumultuosa luta corporal entre os soldados e os fiéis seguidores do bispo

            Os soldados reagiram com violência, usando de seus escudos e espadas, contra todos os que tentavam barrar-lhes o caminho. Vários começam a cair, até mulheres, aos golpes, manchando de sangue o assoalho da igreja. Naquele dia vários pagaram com a sua vida a dedicação ao seu bispo. Agarrado por alguns, Atanásio é levado à força para a sacristia e de lá para as ruas, até um lugar desconhecido. Enquanto isso gritos e choros, saídos do recinto da igreja, enchiam a noite do subúrbio de Alexandria. “ASSASSINOS, ASSASSINOS!”

            - Um pastor não pode fugir, e deixar suas ovelhas entregues ao massacre! Diz Atanásio.

            - O senhor é o único que pode dar continuidade a essa luta em favor da Verdade, e é o único, agora, que pode liderá-la, diz alguém. Se senhor for preso, terá tornado vão o sacrifício das pessoas que morreram essa noite. Apenas não renegue a causa nem se entregue. Conformado por essas palavras, ele desaparece na noite.

            Dessa vez, porém, ao invés de fugir para o exílio no estrangeiro, Atanásio procurou abrigo entre as comunidades monásticas do deserto, gente superdiscreta, de muita oração e pouca conversa, que o acolheu bem, e até com entusiasmo, pois a corrente ariana nunca teve muita simpatia entre eles, enquanto o Imperador, se julgando o “máximo”, resolveu enviar um novo bispo, chamado Jorge, ariano até a raiz, para Alexandria, em 357, após esmagar toda a oposição do clero e entre os fiéis. Jorge, querendo fazer-se agradável a Constâncio, impôs um reinado de opressão e autoritarismo, em favor dos elementos arianos, o que atraiu o descontentamento de todos da corrente contrária, tanto que, após um ano e meio de administração confusa, foi literalmente posto para correr por uma turba que já invadia o palácio episcopal, para fazer justiça com as próprias mãos. A Sede Episcopal de Alexandria, a segunda ou terceira maior cidade do Império, teoricamente cristão, ficara novamente vacante.

            Enquanto isso Atanásio era eventualmente visto circulando entre as pessoas nas feiras das cidade, quando não estava articulando com outros bispos, monges, presbíteros, comunidades de mulheres piedosas e leigos fieis a Niceia, a resistência às manobras palacianas. Conta-se que até nas casas onde havia comunidades de mulheres piedosas, em geral dirigidas por uma matrona ou uma senhorita muito rica, que as sustentavam com seu próprio dinheiro – equivalente na época aos nossos conventos de freiras – ele se escondeu. Os soldados não se atreveriam, por conta própria a forçar a entrada num lugar desses, mas podemos imaginar um decurião, à frente de uma pequena tropa, tentando forçar a entrada.

            - Fomos informados de que o bispo foi visto entrando nessa residência.

            - Garanto-lhe que aqui só vivem mulheres. Mulheres piedosas e honestas.

            - Não nego, mas preciso averiguar se o procurado realmente não está aí.

            - Não ouse! Eu sou fulana de tal, filha de fulano, que frequenta a casa do Governador – senão a corte do próprio Constâncio II. Se você puser os pés aqui dentro o Governador, e até o Imperador, vai ficar sabendo, e ele vai acabar com você, se esses homens, que já estão cercando sua tropa, não o fizerem, porque eu vou gritar.

            - Dane-se, não vale a pena! Diz o decurião, para si e para os seus, após considerar o “tamanho” da mulher e da aglomeração que se formara.

            E a tropa se retira, abrindo caminho, em meio a vaia da multidão que se acumulara, atraída pela presença dos soldados.

            Atanásio escapara mais uma vez.

            Nesse momento a questão teológica sobre a natureza de Cristo, que originalmente provocara aquele confronto, perde primazia, e a disputa personalista ganha o primeiro plano: a questão agora era saber do lado de quem as pessoas se encontravam: se apoiava ao imperador, era automaticamente apodado como “ariano”, mas também podia se considerar “moderno” ou “progressista”, de acordo com a “última tendência”, se a Atanásio, então era um “ortodoxo”, ou como se diria hoje: “tradicionalista”, “conservador”, “ideológico”.

Uma reviravolta... 

            Já vimos que nos primeiros anos da controvérsia houve pessoas que tentaram acomodar as duas correntes. Os ortodoxos, como já imos, diziam que Pai e Filho eram consubstanciais, ou seja, tinham natureza “idêntica” (homoousios). Os arianos, para acalmarem o imperador e facilitar a cooptação de ortodoxos, imaginaram um termo ambíguo, que significava mais ou menos o que termo “semelhante” (homousios) significa em português, e a este se apegaram. Mas aí surgiu uma segunda corrente, dentro do arianismo, conduzida por um teólogo chamado Aécio, que pregava simplesmente a total diferença de natureza entre o Filho e o Pai (anomoios), com a negação radical da divindade daquele. 

            Aécio, dotado de uma grande perspicácia mental, veio de uma condição social muito pobre, e teve que trabalhar duro para sustentar a si e à sua pobre mãe, e após exercer o ofício de médico ambulante resolveu dedicar-se ao estudo de filosofia e teologia sob o patrocínio dos ariano, em especial Leôncio de Antioquia, que o sagrou diácono. Associou-se ainda a outros como Eunômio de Cízico e Eudóxio de Antioquia, e mais alguns, que acabaram ascendendo dentro da hierarquia eclesiástica. O argumento de Aécio era uma radicalização natural e inevitável da conclusão básica dos arianos, pois para ele Cristo não era nem idêntico nem semelhante ao pai, era completamente diferente, uma criatura como outra qualquer, que compartilhava com o Pai apenas a similitude moral. Esse grupo, chamado anomoeanos, chegou a tal ponto que não batizava mais em nome da Trindade, mas de Cristo somente – por isso, aqueles que eram batizados pelos anomoeanos eram obrigados a se rebatizarem quando pediam ingresso na Igreja.

            A chegada de Aécio e seu grupo, foi vantajosa para os ortodoxos, uma vez que, o edifício ariano monolítico criado por Constâncio II, associado aos mais poderosos bispos da Igreja, o de Constantinopla, Macedônio (351-360), por livre e espontânea vontade, e o de Roma, Liberio, por nada espontânea pressão, começou a fazer trincas com as recentes provocações, afinal as conclusões de Aécio e dos seus eram tão profundas e graves, que foram claramente percebidas por quem quer que tivesse uma cultura mediana, e assustou muita gente, que até ali participara da facção moderada do movimento, e então começaram a voltar-se para os ortodoxos, ainda mais porque o imperador começa a envolver-se com o aecianos.

            Os bispos arianos então propõem um duplo concilio: um em Seleucia Isaura, na Turquia, para os bispos do Oriente, e outro no Ocidente, em Rimini, na Itália, para os bispos do Ocidente, para discutir uma versão atenuada do credo ariano que poderia bem se acomodar tanto à visão ortodoxa como à heterodoxia ariana. O concílio teve início no verão de 359. Os bispos do Oriente, dominados pelo arianismo, rapidamente aprovaram a nova fórmula, que acirrava a fé ariana, enquanto os do ocidente, esmagadoramente ortodoxos, optaram por preservar e confirmar o credo de Niceia. Só que os bispos do Oriente, foram imediatamente recebidos e despachados para suas sedes por Constâncio II, enquanto os do Ocidente ficaram isolados numa área do Palácio. La o imperador e sua gangue fechou questão quanto à decisão dos concílios e declarou que o que fora decidido em Seleucia, e só nela, era aceitável e definitivo para a Igreja, ordenando aos bispos do ocidente que se submetessem a ela, e inclusive que recebessem nas suas sedes e assembleias bispos que porventura tenha sido excomungado por causa de sua fé ariana no passado. Ao conjunto dos bispos ocidentais foi passada uma ordem: só voltará para casa, aquele que assinar a fórmula (semiariana) proposta pelos bispos do Oriente. Um a um os bispos foram cansando ou se acovardando e assinado a fórmula espúria, um ou outro que resistiu, foi mandado para o exílio – isso aconteceu em outubro de 359; e um detalhe mostra a que ponto o Papa Libério estava desmoralizado: Constâncio II não lhe avisou que haveria esse concílio.

            Em 1º de janeiro de 360, o imperador Constâncio II fez uma solene declaração de unidade e paz religiosa no Império a partir do credo ariano, sepultando definitivamente, era o que parecia, o credo de Niceia. As principais cidades do Império tinham à sua frente bispos declaradamente arianos ou em conchavo com eles, ainda que se pudesse desconfiar da sinceridade de um ou de outro. Os mais notórios defensores da ortodoxia de Niceia estavam no exílio, sob estrita vigilância, silenciados. Exceto um. Exatamente o combativo Atanásio. Que saltando de um mosteiro a outro de uma comunidade a outra, continuava no seu trabalho clandestino, animando aqueles que ainda nutriam fidelidade à verdadeira doutrina, decidida livremente num concílio, e não fabricada e imposta por uma corte política. No seu exílio instável Atanásio encontrou tempo para, além de tudo, escrever livros sobre a história do monarquismo, da heresia ariana, e inúmeros folhetos distribuídos pela população, de tal sorte que, mesmo no auge da perseguição, o Egito manteve-se ortodoxo.

            Mas a situação nunca esteve tão perigosa para a ortodoxia como nesse momento. Seria a doutrina ariana, daí para frente a única forma de cristianismo aceita e transmitida às futuras gerações? Escrevendo sobre esse momento, algumas décadas mais tarde, São Jerônimo dirá: “mundo gemeu de surpresa ao se descobrir, de repente, ariano”. Mas o edifício ariano era instável, pois dependia exclusivamente da personalidade do imperador de    plantão.

            Para ser perfeito só faltava uma coisa: pôr as mãos em Atanásio. Do aposento mais interno do palácio do imperador e dos seus aliados arianos levantava-se uma questão premente e cheia de preocupação: “AFINAL, ONDE ESTÁ ATANÁSIO?”

Uma nova reviravolta

            Como bem o sabemos, uma pessoa vital para o avanço do arianismo na Igreja foi famoso bispo Eusébio de Nicomedia, o protetor e articulador dessa corrente desde o seu início, conselheiro íntimo de Constantino, sendo inclusive o prelado que assistiu ao grande imperador nos momentos finais e o batizou, in extremis, próximo à morte, como era então o hábito – de acordo com a teologia de então, como só havia remissão completa dos pecados durante o batismo, e a teologia do sacramento da confissão ou reconciliação ainda não estava desenvolvida, quem se batizasse e depois cometesse um pecado grave, morria com ele inapelavelmente, ficando exclusivamente na dependência da Misericórdia Divina. Constantino esperou tanto para se batizar e no final entrou na Igreja por uma porta lateral, batizado por um bispo herético, algo indigno de sua posição social e de seu impacto religioso, mas digno de sua violência.

            Eusébio era um cortesão consumado, muito hábil em perceber e tirar proveito das intrigas ou qualquer passo em falso dado na corte. Segundo o escritor Amiano Marcelino ele seria até aparentado remotamente aos constantinianos, e seja por uma dessas razões, ou pelas duas ao mesmo tempo, ao longo de todo reinado de Constantino e Constâncio II ele ocupou cargos relevantes, que foram usados descaradamente para beneficiar seus irmãos de crença, enquanto constrangia ou prejudicava gravemente seus adversários. Nessa função não seria de admirar eu se tornasse uma espécie de tutor intelectual dos filhos e aparentados mais próximos do rei, entre os quais os dois sobreviventes do massacre absurdo, justificado pelo caráter sanguinário da família, uma tara digna dos filmes do hollywoodiano Charles Bronson, perpetrado por Constâncio II contra seus familiares, em 337 –tios, sobrinhos, e primos, que haviam nascido de outra união de seu avô, Constâncio Cloro, pai de Constantino I. O pequeno Flavio Claudio Juliano, de apenas 6 anos, e o seu meio irmão Galo de 11.

            Eusébio de Nicomédia, aparentemente, encarou com naturalidade aquela ‘solução dinástica’, apenas procurando ter Constâncio II ainda mais perto de si, enquanto estimulava o seu temperamento monomaníaco, irascível e sanguinário contra os seus inimigos dentro da própria Igreja – bem diferente de Ambrósio de Milão, que por um ato semelhante da parte do imperador Teodósio, proibiu-o e entrar na Catedral de Milão, para lá fingir-se de cristão diante do povo, como se nada tivesse acontecido. Eusébio logo entregou o menino aos cuidados de um filósofo professor, de origem goda e pagão, chamado Mardônio, que apesar dos avisos disciplicentes de que não desencaminhasse o menino do cristianismo, foi exatamente isso o que ele fez, e o jovem seu pupilo, que muito o admirava e o admirou ao longo de sua curta vida, foi paulatinamente se afastando da religião cristã, enquanto os tutores, mais preocupados em fazer política, nem se perceberam ou não tiveram o cuidado de o perceber.

            Em 355, já completamente ganho pelo politeísmo, Juliano recebe o título de Cesar, ou subimperador, e parte, de uma forma um tanto improviada, para uma campanha na Galia, contra tribos sublevadas – alguns autores sugerem que o objetivo dessa missão, dada por Constâncio II, era antes de tudo para fazê-lo perecer lá, onde tantos militares romanos já o tinham antecedido – mas que o promoveu, ao vencer uma poderosa coligação de tribos germânicas na batalha de Estrasburgo ou Argentoratum, em agosto de 357, contra forças muito superiores, onde ele mesmo salvou o dia, impedindo a sua cavalaria pesada de debandar, batendo posteriormente os francos, pacificando aquele setor da fronteira, próximo a atual cidade de Paris, onde reergueu vários fortes abandonados. Juliano também fez fama como bom administrador, reduzindo impostos, e como um juiz razoavelmente imparcial.

            Ele estava nesses afazeres, quando chegou uma delegação enviada por Constâncio II, que decidira, no início de 360, combater os persas, que estavam novamente criando problemas na fronteira Oriental (a Mesopotâmia). Essa delegação ordenava que Juliano enviasse algumas de suas melhores tropas para auxiliar o Imperador. Juliano, a princípio concorda, mas suas tropas se revoltam, e lhe propõem, antes, que ele próprio assuma a coroa de Imperador, destronando Constâncio II, abrindo a possibilidade de ricos despojos no Oriente, que animam a soldadesca já cansada da teimosia belicosa, mas pobre, das tribos germânicas de sempre. Juliano, no primeiro momento, recusa-se ou finge recusar-se, mas depois cede ao apelo dos “companheiros de armas”.  Nesse meio tempo Constâncio II engrossa o caldo, fazendo acordos com um chefe germânico, para que este ataque e crie problemas para Juliano, mas o pau mandado é derrotado e preso e a trama é descoberta. A guerra era inevitável.

            Finalmente haveria o acerto de contas dentro da família, entre o sobrinho e o tio, que agora iria pagar pelo fato de ter poupado aquele. Era o passado, que vinha de armas na mão, confrontar o que restara da consciência esmagada pelas conveniências de Constâncio II. Embora a princípio, Constâncio tivesse as tropas mais treinadas, a marcha de Juliano para o Oriente foi cercada de sucesso e muitas unidades aderiram ao seu exército. A batalha seria colossal, quando subitamente Constâncio adoece e logo vai a óbito em 3 de novembro de 361, não sem antes reconhecer o direito de Juliano ao título de Augusto, ou Imperador, pois, afinal, não havia mais nenhum homem da família vivo para reivindicá-lo.

Revira a reviravolta

            Todos respiraram aliviados. A guerra civil fora evitada. O látego que há décadas caia sobre a Igreja, desaparecera, e até seus oficiais mais próximos, como o infame Eusébio, o camareiro de Constâncio, ladrão pertinaz, intrigante compulsivo e partidário dos arianos, também encontrou a morte nas mãos do carrasco, mas uma questão levantara-se para os cristãos: o que acontece agora que um imperador pagão voltou a sentar no trono do Império? Voltará as antigas perseguições? Justo quando os cristãos ainda brigavam entre si...

            No que diz respeito à religião Juliano retomou a antiga prática romana, pelo menos da antiga República Romana, de tolerância frente às religiões estrangeiras, e junto a isso fez editar um texto que apregoava não só essa tolerância religiosa, como mandava retornar do exílio todos aqueles bispos ortodoxos perseguidos por Constâncio II. O exército estava fechado com ele uma vez que usou de muita moderação e tolerância para com os soldados que houvessem participado de antigas rebeliões, bem diferente do antecessor, cristão, que os tratara com mão de ferro. O estilo do novo imperador, a princípio adepto do diálogo e tolerante, animou muito aos pagãos e confundiu aos cristãos, cujos ideólogos, não podendo acusa-lo de nada grave, começaram a trabalhar intensamente no sentido de ridiculariza-lo, apresentando-o como a um traidor que, atormentado pela sua consciência, dava continuamente tapas da testa para certificar-se de que ela, a sua consciência, tinha ido embora, para não molestá-lo mais. Esses ideólogos ainda lhe acrescentaram o apelido de APÓSTATA. Propagandisticamente eficaz, mas historicamente incorreto. Não houve durante o seu curtíssimo reinado qualquer iniciativa imperial de perseguição específica contra os cristãos, exceto no que tange à ocupação dos principais cargos públicos, a quem ele deu nítida preferência pelos pagãos (9).

            O édito de Juliano possibilitou a Atanásio voltar para Alexandria, e retomar a sua sé episcopal vazia – alguns autores até questionam se esse edito de tolerância foi feito justo para acender a disputa entre os cristãos, já divididos, enfraquecendo-os, enquanto facilitava o avanço dos paganismo. As atitudes do Imperador, porém, ao tentar restituir bens dos antigos templos pagãos, destruídos desde Constantino, para reconstruí-los, acendeu a pira do orgulho daqueles, que passaram a atacar os cristãos em alguns lugares, causando inclusive conflitos de rua sérios, com mortes, inclusive em Alexandria, distúrbios e agressores que foram condenados publicamente pelo imperador, embora sem punição para os autores. A medida mais agressiva contra os cristãos deu-se na área da educação, quando se proibiu a professores que não eram politeístas, ensinar os clássicos da literatura greco-romana. O cristianismo foi expulso das escolas. Afora isso um edito ridículo proibiu enterros a luz do dia para não ofender ou entristecer o deus da luz com espetáculos tão ‘deprimentes’. Essa prática era mais comuns entre os cristãos.

            Atanásio, porém, percebendo a totalidade da situação, reverteu as expectativas de Juliano, para grande ira deste, assumindo uma posição mais conciliadora com os arianos, tendo em vista o enfrentamento ao imperador e aos politeístas. Juliano, percebendo a artimanha, decreta em outubro de 362, um novo exilio de Atanásio, que vai mais uma vez se ocultar entre os padres do deserto, monges insignes como o grande São Antônio do Egito, também conhecido Santo Antão, o primeiro eremita, que já conhecera no exilio anterior e sobre quem escreveu uma biografia. E, como sempre, defendendo o credo de Niceia e a união dos cristãos.

A virada de uma reviravolta

            As atitudes de Juliano em relação ao cristianismo estavam se tornando cada vez mais diretas e hostis, prenunciando o fim da período de tolerância, ou talvez Juliano não fosse tão tradicionalmente romano quando pretendia, esquecendo o edito de tolerância, ou assuntos pessoais pendentes, dentro do cristianismo, como o massacre de seu pai, que o afetavam muito mais que o arrazoado fantasioso, de cunho literário da mitologia greco-romana. Seus escritos foram se tornando cada vez mais frequentes e hostis ao cristianismo, tanto que até pensou em reconstruir o 3º templo em Jerusalém, para ver se revivia a disputa entre judeus e cristãos, e assim os expunha ao resto aos outros habitantes, enquanto anulava a profecia de Jesus que dizia que do templo não ficaria “pedra sobre pedra”. A tentativa porém fracassou, seja por conta de fogos misteriosos que, dizem, saia do interior das escavações dos alicerces, seja por causa de um terremoto relatado nessa época, seja por causa de sabotagem...

Em meio a esses preparativos, porém, estoura mais uma guerra contra os persas na fronteira oriental. Ele parte, contra o conselho de seus assessores mais prudentes, em 5 de março de 363, à frente de um grande exército, uns 90 mil soldados, e se dirige ao coração do Império Persa ou Sassânida, alcançando a sua capital Ctesifonte. Entretanto os persas tinham lhe preparado uma armadilha e ele viu-se em grande aperto, tendo por isso que ordenar a retirada, durante a qual, ao se expor em demasia na batalha em Samarra, foi ferido no ventre por uma lança inimiga, vindo a falecer desse ferimento, em 26 de junho de 363. Nem completara 2 anos de reinado. Em seu lugar, foi aclamado pelas tropas jovem o jovem oficial da Guarda Imperial, Joviano, com 32 anos, que além de tudo era cristão e defensor aberto do credo de Nicei, e uma de suas primeiras iniciativas foi justamente marcar um encontro com Atanásio, novamente reempossado no episcopado de Alexandria. Os bons tempos estavam de volta!!

Para melhorar ainda mais a situação dos ortodoxos, os arianos, que haviam se especializado na intriga palaciana, sofriam percalços enormes toda vez que mudava um imperador, e, principalmente, perdiam alguém tão fechado com a sua doutrina como Constâncio II, por isso começaram a experimentar um rápido declínio entre a população e no colégio de bispos. Já os bispos pró-Niceia trataram de se reagrupar e organizar-se para retomar a correta interpretação da fé. No Ocidente destacou-se entre eles a notável figura do bispo Hilário de Poitiers, que o próprio Constâncio havia mandado regressar ao Ocidente, de seu exílio no Oriente, porque ele fazia um proselitismo tão eficiente entre os orientais que começou a preocupar aos próprios arianos – Hilário tinha por assim dizer a inteligência e a garra de Atanásio, mas a manha de Ario ou Eusébio de Nicomédia,  e assim que voltou mandou convocar um sínodo em Paris, em 360, para reafirmar fortemente o credo de Niceia e criticar asperamente os bispos que se afastaram da ortodoxia. A maré ariana estava agora em rápido e profundo descenso.

Se Hilário era o principal coluna da resistência ortodoxa no Ocidente, no Oriente agigantava-se cada vez mais a figura de Atanásio, e de Alexandria, como centro de combate à inovação ariana, fazendo, no sínodo de 362, uma espécie de pente fino entre os bispos egípcios, de sorte que aqueles que, no passado, se submeteram voluntariamente ao arianismo foram reduzidos ao estado laico, e aqueles que assim procederam por ameaça ou temor de represálias, puderam manter seus cargos depois de uma devida penitência e afirmação pública, por escrito, do Credo Niceno.

A situação de algumas igrejas no Oriente era simplesmente caótica: em Antioquia a comunidade se dividiu em três grupos, a) os adeptos do bispo original, pró-Niceia, Estaquio, porém já defunto, reuniam-se em torno de um presbítero próximo a ele; b) outro grupo se reuniam em torno da figura de Melecio, bispo eleito regularmente, mas que estava no exílio; c) outro grupo se reuniam em torno de Euzoio, um ariano indicado por Constâncio. Para piorar, o esquentado Lúcifer de Cagliari, que estava por lá, sagrou bispo a outro: um certo Paulino, de tal sorte que havia três bispos e um presbítero disputando a sé da cidade, que no final ficou com Paulino, após extensas e complicadas negociações em que agiram juntos o novo imperador e o velho guardião de Niceia, apesar do intenso jogo de bastidores e intrigas levadas a cabo pelos arianos. Atanásio e o novo imperador estava “assim”, um com o outro.

Mas como nada é exatamente fácil, quando Atanásio está envolvido, o Imperador Flavio Joviano morre em circunstâncias misteriosas, em 17 de fevereiro de 364.

Para quem já virou tanto.... Mais uma reviravolta.

            Com a morte repentina de Joviano, alguns generais e tropas do exército apressaram-se por nomear outro Imperador, e a escolha recaiu sobre um oficial de carreira e conhecido por sua dedicação ao exército: Valentiniano, e para contrabalançar o poder deste, foi nomeado também um vice-imperador (Cesar) especificamente para o Oriente: o seu irmão Valente, em 28 de março de 364. Ambos eram cristãos, mas adivinhem qual era a preferência de Valente, no tocante à religião? ... Quem disse arianismo, acertou. Como as malas da última fuga ainda nem tinham sido desfeitas, Atanásio, pressionado por Valente, aproveitou-as e partiu de novo para o exílio.

Mas enquanto o combativo bispo de Alexandria sofria mais esse revés, no lado ariano terríveis tragédias estavam acontecendo: Joviano, tivera um filho em 363 com sua esposa Charito, e ao completar um ano apenas, o pai o fizera cônsul de Roma, colocando-o perigosamente próximo da linha de sucessão. Essa foi a sua desgraça. A do menino. Quando Valentiniano e Valente subiram ao trono viram na pequena criança, quase bebê, uma ameaça em potencial, alguém que poderia, mais tarde, reivindicar o trono em nome de algum grupo dissidente, por isso resolveram o problema de uma vez: cegaram a criança, provavelmente sacando fora um de seus globos oculares, uma vez que a lei romana proibia que pessoas desprovida de algum órgão ou membro se tornasse governante. O quadro se fechou com o semidesaparecimento de Charito, que para a obscuridade para que os holofotes não atraíssem a ira sobre sua pessoa, e não acontecesse coisa pior ainda a ela e ao seu filho. E desapareceram da história. Na véspera imperatriz de Roma, no dia seguinte uma fugitiva, com a ameaça de uma espada permanentemente sob a cabeça.

            Como disse acima, Valente, cercado de arianos, começou a fazer mudanças na sedes episcopais, em favor destes, inclusive em Alexandria, onde Atanásio mais uma vez partiu para o exílio junto aos seus amigos monges, mas a reação do povo cristão da cidade foi tão violenta que Valente teve que voltar atrás, e Atanásio voltou, pela última vez à sua diocese, literalmente nos braços do povo. Enquanto isso no Ocidente a reação nicena continuava, inclusive com o apoio do Papa Libério, que renegara a fórmula ariana proposta pelo duplo concílio Seleucia-Rimini, que por sua vez o levara a renegar o credo niceno original, voltando afinal para o seio da ortodoxia, mas já sem nenhuma moral para dirigir a reação, ele é o único Papa desse período heroico da Igreja que não foi canonizado.

            Nesse mesmo período começaram sérias discussões sobre a natureza do Espírito Santo, com alguns questionando a sua divindade, e nela Atanásio já tomou parte, apesar de sua idade avançada, e de todas as marcas das perseguições passadas, em defesa da divindade plena da Terceira Pessoa da Trindade. Não faltaram debates acalorados e novas dissenções a respeito. Mas a questão ariana ainda não estava encerrada.

            Em 370, depois da morte do patriarca Euzoio, ariano convicto e batizador de Valente, recomeçaram as disputas, com os católicos elegendo a Evagrio, que imediatamente se fez consagrar, mas sua consagração foi invalidada por Valente que o mandou para o exílio. Continua a esse respeito Hubert Jedin: “Como os católicos rechaçaram com resolução ao candidato de dos arianos Demófilo, o imperador procedeu contra eles com a maior dureza e estendeu imediatamente a perseguição às províncias... Todos os bispos deveriam subscrever a fórmula de fé de Rímini-Seleucia; os recalcitrantes perderiam suas sedes. Os funcionários controlaram em todas partes, com o apoio das tropas, a execução das ordens imperiais, contra o baixo clero e os monges, cuja oposição foi castigada com prisão e deportação. A onda de perseguição atingiu com especial dureza a Síria... O bispo Melecio teve que partir para o exílio pela terceira vez... os bispos de Laodiceia, Edessa, Batna, e Samosata foram desterrados...” (idem, idem, p 107-108)

            No Egito, porém, ele já havia aprendido a lição, com o famoso e irredutível Atanásio à frente da principal diocese, e com um ardorosos fã-clubes espalhado por todo Império, ele preferiu não mexer, deixando a província livre de sua interferência, de tal sorte que ele pode terminar em paz o seu ministério, até a sua morte, em 2 de maio de 373. Morte ditosa, na presença de amigos e discípulos, um dos quais, Pedro II, tornou-se seu sucessor, designado por ele, e, assim como seu mentor, foi um ardoroso antiariano. Valente, percebendo o momento, resolveu intervir, ordenando a expulsão de Pedro e a nomeação, em seu lugar, de um preposto ariano de nome Lucio, que já havia experimentado ocupar a sé de Alexandria por um curto período em 363, quando foi posto a correr pelo povo.

            Pedro foi se abrigar junto ao Papa Dâmaso, que o acolheu e o apoiou decididamente na sua luta, e lá ele ficou, esperando a oportunidade de voltar, o que só aconteceu após um sínodo em Roma, em 377, onde foi reafirmado solenemente, mais uma vez, o símbolo de Niceia, e o governo de Valente já estava desgastado e abalado pela morte de seu irmão Valentiniano, num ataque de raiva contra as ameaças de uns embaixadores germânicos na fronteira da Germania, em 17 de novembro de 375, enquanto isso. A volta de Pedro a Alexandria não deixou de ter seu lado cômico, pois Lucio, o substituto, para não perder o costume, foi posto novamente em fuga pela ira do povo, permitindo bispo legítimo reassumir a sua sede naquele mesmo ano, dirigindo-a até a sua morte em 381

            E que fim levou Valente? Acontecimentos internacionais, ocorrendo muito além do seu campo de visão e de qualquer morador do Império Romano, acabaram levando à sua perda. À medida que povos pastores de origem turca, como os hunos, se deslocavam pelas planícies da Rússia e da Ucrânia, vindos da Ásia Central, avançando na direção do Ocidente, foram, com esse movimento, empurrando os povos à frente, que em desabalada fuga iam se jogando sobre aqueles mais a ocidente, até formar um tsunami irresistível de povos em fuga, que, acabaram por se chocar com as guarnições das fronteiras orientais do Império Romano, na Europa Balcânica, na área de jurisdição do Império romano do Oriente. Um desses povos, na verdade uma confederação de povos culturalmente aparentados, os godos, composto pelos visigodos, nossos ancestrais europeus, e os ostrogodos, pediram ajuda aos romanos para enfrentar os hunos, enquanto invadiam territórios do Império.

Valente, percebendo o tamanho da encrenca que seria enfrentar aquela massa de gente, concordou com a proposta, mas não soube conduzir adequadamente os acordos, sem falar que a corrupção generalizada dos funcionários imperiais ajudou a criar um clima de desconfiança e insatisfação dos godos contra os romanos, até que em 376 começou uma guerra aberta entre os dois povos, com uma vitória goda em Marcianópolis, na Bulgária atual, diante de uma tropa comandada por um prefeito corrupto. A guerra se generaliza e novos grupos, inclusive de hunos, começaram a entrar pelas fronteiras do Império, inclusive a pedido dos líderes godos, com quem faziam aliança. Valente, animado com alguns sucessos parciais de suas forças, resolveu sair ao encontro dos godos, apesar dos apelos de prudência de seus generais e de se sobrinho, Graciano, que estava vindo do Ocidente com importantes tropas para reforçar o exército do tio, mas Valente, que era de uma família onde se morria de raiva, literalmente, não podia esperar, e pôs os seus homens em marcha forçada para ir ao encontro do inimigo. Os soldados chegaram cansados, encalorados e sedentos, e ainda assim foram lançados à batalha, de forma desordenada, depois de negociações muito mal encaminhadas. Dos 30 mil romanos, que se bateram contra apenas 20 mil godos em Adrianópolis, na Turquia Europeia, no dia 9 de agosto de 378, e só uns 10 a 15 mil voltaram para casa. Foi uma derrota esmagadora, para um exército inferior, e, como disse um comentarista posteriormente, a maior derrota evitável da história de Roma, e para ampliar a extensão de desastre, o Imperador Valente perece na batalha e o seu corpo nunca foi encontrado – a versão mais provável é a de que, ferido no campo de batalha, Valente retirou-se com uma guarda fiel, para um casebre campônio, onde foi descoberto pelos godos, que os cercaram e puseram fogo na casa, sem saber quem estava lá dentro, pois seria muito mais vantajoso pega-lo vivo e troca-lo por um rico resgate.

Finalmente a Igreja Católica podia respirar em paz, e aperfeiçoar a sua estrutura, a sua teologia e a sua moral, depois de várias perseguições pagãs e de imperadores cristãos, ansiosos por obrigar a padres e bispos, a se submeterem ao cristianismo que aqueles achavam melhor.

Conclusão

            A distorção ariana foi profunda, abrangente e duradoura. Nunca uma corrente de pensamento heterodoxa, até hoje, ameaçou tanto a integridade doutrinal e estruural da Igreja Católica, deixando marcas e lições que até hoje a Igreja luta por aprender e aplicar. A mais notável, sem dúvida foi a necessidade de autonomia frente ao estado ou organizações estatais, o que compensa sobejamente a manutenção de um miniestado dentro da cidade de Roma: o Vaticano.

            De fato o zelo da Igreja Católica no Ocidente em preservar sua autonomia deu azo inclusive ao seu oposto: o impulso de controlar o estado, e criar uma teocracia no Ocidente, ainda mais porque ela era a única estrutura complexa de governo que ainda funcionava adequadamente, após o colapso do Império Romano, após as ações desastradas de imperadores, como Valente, que interferiam abusivamente nos assuntos da Igreja, enquanto perdiam de vista o foco na preservação das estruturas políticas, econômicas e sociais do império, e se fechavam para as novas possibilidades que se abriam com as mudanças sociais que estavam acontecendo no período e que apontavam para a falência da estrutura milenar da Velha Roma, e a urgência de novas estruturas mais descentralizadas,  compatíveis com o incrível aumento de diversidade cultural trazido pelas migrações do século IV e V, talvez até no modelo das bispados católicos – não é mais correto falar desse período em termo de “invasões”, como se os deslocamentos dos povos germânicos fosse proposital, e m conscientemente interessados só em roubar a riqueza amealhada por Roma, embora isso também existisse.

            Enquanto a Igreja Católica do Ocidente, mantendo-se independente dos poderes políticos, pode crescer sem muitos contratempos, a partir da ampliação e diversificação de sua teologia, sua mística, ação pastoral e abordagem filosófica das sociedades humanas, a Igreja Católica Oriental, ou Ortodoxa mantendo-se conscientemente sob o guarda-chuva do estado, tanto no Império Bizantino como na Rússia, na Grécia, etc. via-se engolfada pelos fracassos políticos desses estados, que acabaram tombando aos golpes da potência turca que se impôs à região, e acabou perdendo o controle sobre suas mais importantes sedes episcopais, aquelas herdadas da ação direta dos apóstolos, de forma definitiva ou provisória, tendo que se submeter parcialmente aos ditames e regras de outra religião, o Islã, sem falar que se viram obrigadas a cada tentativa de reforma em dar satisfações às autoridades civis constituídas, pouco propensas a tolerar mudanças religiosas, ainda que necessárias e corretas, com o fito de evitar transtornos políticos em virtude da ligação umbilical da Igreja com o estado, que transformavam as disputas religiosas em penosas certames políticos, contaminados por todo tipo de interesses mundanos – como vimos no episódio recente da guerra entre Rússia e Ucrânia, quando ortodoxos russos, em Kiev, começaram a hostilizar abertamente o governo e até a gente do país, para defender a sua lealdade política a Moscou.

            A história vitoriosa de Atanásio, hoje santo da Igreja que o perseguiu, nos mostra que, a partir de nossa compreensão das coisas, agindo sempre em absoluta boa-fé, cada um é sacerdote, bispo e papa de suas próprias decisões, e deve corajosamente se ater a elas, seja em que circunstâncias forem, até sermos honestamente convencidos do contrário, pois com certeza, pelo que depreendemos das citações de Ap 3,15-16; Mt 23,23-36; etc. Deus abomina acima de tudo a hipocrisia, a traição e o oportunismo, e se por acaso errarmos, lembremo-nos das palavras do Discípulo Amado: “se o nosso coração [a consciência] nos condena, Deus é maior que o nosso coração” 1Jo 3,20.

            Só ele sabe tudo e lembra de tudo que nos levou àquele caminho, e com que intensão e carga de coragem e coerência tomamos cada decisão em nossa vida.

Que o Espírito Santo nos oriente nesse momento tão difícil!  

   Catholic Encyclopedia; Special edition under the auspice of the knigths Columbus Catholic Truth Committe; The Encyclopedia Press; New York;  1913

             Vol 7 homoousion; e vol 11 councills of Nicea

Negri, Gaetano; Julian the Apostate; trasl. Duchese Lytta-Visconti-Arese; T Fisher Unwin; London, 1905 (vol 1 e 2) parcialmente

Notas:

1 – Um concepção teológica, bastante influenciada pela sociedade imperial romana, fortemente hierarquizada, tendia a ver o Filho e o Espírito Santo como de alguma forma subordinados ou inferiores ao Pai, na Santíssima Trindade.

2 – Um autor, o bispo e intelectual anglicano Rowan William afirmou sobre Ario: “Ele era de estatura muito alta, com semblante abatido... sempre vestido com uma capa curta e túnica sem mangas; ele falava gentilmente e as pessoas o achavam persuasivo e lisonjeiro." (Arius: heresy and tradition; 2002, edition revised).

3 – O sabeianismo, de Sabelio, prega que Deus “é uma mônada [uma unidade irredutível], expressando-se em três operações: como Pai, na criação: como Filho, na redenção: como Espírito Santo, na santificação. É possível (a evidência é incerta) que ele também sustentasse que a mônada divina passou por uma processo de "expansão" ou "extensão", projetando-se primeiro como Filho e depois como Espírito”.

4 – Segundo também Jesús Álvarez Gómez, religioso e historiador espanhol “Ário mantém os termos tradicionais, de que Cristo é “Filho de Deus”, Cristo “é Deus”, mas os interpreta em sentido restritivo; Cristo é Deus, mas apenas até certo ponto, porque para ele [Ario] só o Pai é “verdadeiro Deus”. Ário entende a natureza do Logos como mediador da criação segundo o modelo conceitual do Demiurgo Platônico, o intermediário entre Deus e o mundo material [um anjo]. O Logos é o protótipo da criação, uma criatura plena, à imagem e semelhança do Deus invisível, mas não pode pertencer plenamente ao reino do divino, mas sim ao reino da própria criação; e, consequentemente, houve um tempo em que o Logos não existia. Ele é a primeira criatura, o instrumento pelo qual tudo foi criado. O Logos é o resultado da decisão livre e não necessária da vontade do Pai, não da necessidade de sua essência.

Com estas teorias, parecia que Ário nada mais fazia do que radicalizar o subordinacionismo, predominante nos Padres da Igreja dos três primeiros séculos que de alguma forma "subordinaram” o Filho ao Pai; e deste modo a doutrina ariana não constituía, à primeira vista, uma novidade, mas uma continuação da teologia tradicional...[ou de pelo menos uma certa ‘corrente’ da teologia]

No fundo, Ário também não reconheceu a humanidade de Cristo em sentido pleno, pois o Logos para ele não é Deus, mas a “alma do mundo”, que está unida a um corpo, na medida em que assume carne, mas não se torna homem, mas ocupa o lugar da alma humana em Jesus de Nazaré; Ou seja, Cristo não é Deus e homem, mas um ser intermediário” (Historia de la Iglesia – Edad Antigua; Biblioteca de Autores Cristianos; 2001; Madrid; p 239-240).  Creio que com isso o leitor pode ter uma ideia razoavelmente clara de para onde se encaminhava o pensamento de Ario,

5 – Eis um pequeno trecho da carta reproduzida por Rops (idem; idem). “Refletindo sobre a origem da vossa divisão, vejo que a causa é insignificante e não é suficiente para pôr as almas em tanto alvoroço... Quantas pessoas há que compreendam uma matéria tão difícil? ... No fundo, pensais o mesmo e podeis facilmente chegar à mesma comunhão de ideias. - Permanecei unidos! ... Porque, decididamente, não se trata de um ponto essencial da fé: no culto de Deus, ninguém pensa em introduzir um novo dogma”. Um romano prático decerto diria: “tanto faz acreditar na divindade de Cristo como não, o importante é realizar o culto direito”. Ele chega ao cúmulo de comparar essas questões com aquelas levantadas pelas várias escolas filosóficas que existiam, que estavam sempre às turras, mas que ao final se entendiam...

6 – “O prestígio do Arianismo nunca residiu nas suas ideias. Qualquer que seja a escola de tenha se derivado logicamente, a seita, como seita , foi embalada e nutrida pela intriga. Salvo em alguns poucos casos, que podem ser explicados por outros motivos, seus profetas confiaram mais na influência da Cúria do que na piedade, ou no conhecimento das Escrituras, ou na dialética. Isto deve estar constantemente em nossa mente,      

7 – Essa posição, por exemplo, era defendida por Paulo de Samosata.

8- Hubert Jedin, reconhecido historiador da Igreja, disse sobre ele: “Juliano era de um temperamento complicado... Sua atitude ascética fundamental o levava a despreciar no só a pompa externa... como também o conforto pessoal, até o descuido quase repulsivo de cuidado com o corpo, o que por outro lado o preservou de todo excesso sexual [muito comum aos pagãos da época]. Teve para seus poucos amigos uma fidelidade inquebrantável, embora no geral tendesse a ter pouco contato com as pessoas, sobretudo com os súbitos. Em público se mostrava-se nervoso e contido; sem embargo, sua valentia e seu comportamento simples, sem exigências, na guerra, lhe granjeava o respeito de sus soldados. Mantinha inexoravelmente as decisões já tomadas e era intransigente com os pontos de vista divergentes dos seus. Tinha um exagerado pudor em ser ovacionado pelas multidões mas alardeava abertamente as suas próprias virtudes. Quando os de Antioquia o importunavam com as suas brincadeiras, por causa do seu antiquado desprezo pelo teatro, pelos espetáculos, por seu jeito descuidado e sua religiosidade exagerada, reagiu asperamente... e admitia com franqueza que não tinha senso de humor... durante quase uma década, mantivera oculta a sua mudança de religião e continuava participando do culto cristão...[quiçá por medo de Constâncio]” (Manual de história de la Iglesia; Herder; Barcelona; 1980; vol II; p 93-94; tradução livre)