Uma das questões
mais angustiantes da atualidade católica é a declaração Fiducia Supplicans, um
documento elaborado pela autoridade máxima em matéria de doutrina da Igreja, o
prefeito do Dicastério Para a Doutrina e a Fé, antiga Congregação Para a Doutrina
e a Fé, antigo Santo Ofício, o cardeal Victor Fernandez, autorizando padres e
bispos a darem a sua benção a casais em condições irregulares – em situação de
homossexualismo ou adultério – se desviando profundamente dos ensinamentos
ministrados até aqui pela Igreja, ainda mais grave porque a dita declaração
traz a assinatura do Papa.
Essa situação é tanto mais ambígua e
perigosa, e constitui uma novidade na história da Igreja, porque fez nascer no
interior do centro de comando da Igreja, no Vaticano, uma doutrina, a princípio
mascarada apenas como uma orientação pastoral, em clara contradição com a
doutrina oficial e os textos revelados, que condenam explicitamente as duas
situações, numa condição de clara e iminente heresia, dentro de uma comunidade
que aprendeu, desde 1870, a considerar a pessoa dos papas como assistidas de um
modo muito especial pelo Espírito Santo, por meio do dom da infalibilidade,
que, mesmo previsto para situações muito específicas, é facilmente generalizado
e suposto (Catecismo da Igreja §891), inclusive por meio de termos técnicos e
ambiguidade, cujo verdadeiro alcance e significado escapa ao alcance das
pessoas comuns (idem, §892).
Que fazer se, supostamente, o Santo
Padre se desvia ou concorda com um desvio? É sabido que ao longo da história da
Igreja, alguns poucos homens, aos quais não seria incorreto apoda-los, embora
seja constrangedor faze-lo, de... canalhas..., que apropriaram-se, inclusive
por meios condenáveis do trono de São Pedro, e nele assentados cometeram os
mais graves crimes contra os costumes e as leis dos homens e da Igreja, mas
nunca, ao que se sabe, ousaram tocar na doutrina, dando início a correntes ou
movimentos que implicassem em dividir doutrinariamente aos católicos, até o
atual papa inaugurar esse caminho que, queira Deus, será curto.
Creio, portanto, que esse seja o
momento para os católicos conhecerem, um pouco que seja, e meditarem muito, sobre
a vida extraordinária de um homem nada comum: Atanásio, bispo de Alexandria, quando
esta era maior e mais importante cidade da província do Egito, do Império
Romano, 5 vezes expulso de sua sé episcopal, por causa da defesa apaixonada,
movida por uma fé sincera, honesta e inquebrantável, naquilo que é até hoje o
símbolo básico de nossa fé cristã-católica: o Símbolo ou Credo de Niceia,
porque foi estabelecido solenemente em um grande concílio, regularmente
convocado e aprovado pela forma correta, e até hoje proclamado em nossas
missas, de tal sorte que podemos afirmar que Cristo fundou a Igreja, Paulo
consolidou o cristianismo, mas foi Athanásio quem consolidou a Igreja Catolica.
É inacreditável o que esse homem
sofreu e os riscos porque passou, para preservar a inteireza da fé católica que
hoje professamos, e é por ter existido homens como ele, e foram muitos ao longo
da história, com esse grau de disponibilidade e iniciativa, que não podemos
abrir mão do direito de resistir a qualquer iniciativa que vise enfraquecer,
deformar, distorcer, adulterar, perverter, etc., aquilo que nos foi legado pela
Revelação, pelo Magistério e pela Tradição, venha de onde vier...
Um contexto de crise
Uma das
questões que mais empolgou os teólogos e sacerdotes dos primeiros séculos do
cristianismo foi a compreensão e a correta explanação do que acontecia no
interior de um Deus que era ao mesmo tempo uno e trino, tendo uma só natureza,
mas se manifestando em três pessoas, com uma delas, a mais importante para nós,
se encarnando na forma de um homem, logo como uma criatura sua, para redimi-la,
e diviniza-la em seguida. Essa pelo menos é a crença cristã predominante.
Como compreender e transmitir algo
tão complexo em uma base social tão heterogênea, abrangida por um império tão
vasto como o romano, que por sua vez tinha os seus interesses específicos,
enquanto unidade política e convergência de interesses religiosos e profanos, e
que a essa época cambaleava ao peso de suas contradições, uma das quais era
estava na questão religiosa precariamente resolvida, quando não
encarniçadamente polarizada, exacerbadas pelos desafios externos provindos da
migração de povos vizinhos e disputas contras outros impérios, além de suas
fronteiras, que exigiam um novo rearranjo das forças sociais internas.
Culturalmente o império se diversificava cada vez mais, em virtude de mudanças
naturais ou politicamente provocadas no seio de seu do seu vasto espaço
geográfico: a bacia do Mediterrâneo. Aparentemente, os desafios da preservação
do império estavam muito além da compreensão e possibilidades tecnológicas da
época. O seu esfacelamento era inevitável e as pessoas que viviam dentro dele
sentiam o efeitos de sua lenta agonia.
O Império Romano, como toda unidade
político-estatal vitoriosa, foi construída em cima de valores políticos e
sociais específicos, claros e majoritários, no caso os da cultura ocidental greco-romana,
e a valorização de sua história, mas à medida que o império crescia, ainda sob
o regime de República, e ia absorvendo culturas com valores e uma história diferentes,
e ia se modificando por causa disso, em especial aquelas situadas na Ásia e na
África do Norte, o sólido e profundo alicerce da cultura ocidental começou a se
liquefazer, exigindo uma nova superestrutura política, sem deixarmos de citar
aqui o efeito profundamente deletério, pelo menos no nível das elites, da
expansão do escravismo, outro resultado inesperado das conquistas militares.
Ora, as conquistas militares, por
sua vez trouxeram um outro problema grave para um estado criado sobre os
pilares do poder civil e da representação mais ou menos popular, que foi a
hipertrofia da classe militar, em especial depois das reformas de Mário, séc.
II A.C, que profissionalizaram as
legiões de Roma, tornando-as ainda mais poderosas, mas também desarticuladas
dos valores fundamentais que guiaram e fizeram a glória das antigas legiões
durante o período republicano. Um desses valores era aquele que servir a legião
era um dever de gratidão do cidadão, por tudo que a cidade-império fizera por
ele, e uma honra, um penhor de reconhecimento público da sua comunidade. Com a
profissionalização, qualquer um, inclusive aqueles que por algum motivo odiavam
o sentido da civilização romana – deserdados da sorte, estrangeiros, etc. –
podia agora fazer parte da legião, e por meio delas, em especial do seu
comandante, exigir reparações e vantagens fora do alcance do cidadão comum, não
legionário. O centro da fidelidade do soldado será o seu comandante, que, com a
sua competência o guiará a ricos botins entre os povos limítrofes, e não mais o
direito de defesa e a missão civilizatória que supostamente Roma teria entre os
outros povos, e que a elite intelectual e a antiga história romana cultivava.
O descompasso era tamanho que quando
os generais começaram a lutar entre si para se apropriar do que restava da
antiga República, o primeiro deles: Otavio Augusto, governou como um rei, o
tempo de seu mandato era vitalício, mas preservando todas as instituições da
República, criando um regime que não era uma coisa nem outra. Ele se
autointitulava princeps, que
significaria o “primeiro” o “principal”, entre os cidadãos de Roma, tanto que
nem ele, nem os que se seguiram a ele, nem o Senado, que foi paulatinamente
esvaziado, se preocuparam em fazer qualquer regra de sucessão para o cargo mais
importante do Império, deixando tudo ao “Deus dará” ou ao “discernimento”, nem
sempre ajuizado, do governante de plantão: o caos era inevitável, assim como a
eleição de um bode expiatório sobre o qual jogar a culpa de todas essas
tremendas contradições e desordens geradas pelo oportunismo da época, no caso
os cristãos. Que amargaram sangrentas perseguições motivadas tanto por razões
políticas, não queriam se submeter irrestritamente ao imperador, e nesse
sentido eles agiram, por incrível que pareça, como guardiões da tradição
ocidental, embora fosse uma corrente religiosa oriental, como por razões
econômicas, membros das mais abastadas famílias faziam parte desse grêmio, o
que acendia a inveja e a ganância de muita gente da elite, e social, uma vez
que propunha certas mudanças que mexeriam profundamente na ordem social romana,
tornando-a mais horizontal, como era na Antiga República, mas também lentava
questões religiosas graves: pregava fortemente um monoteísmo revelado, em meio
a um mar de politeísmo fabricado ou mitológico. Assim os cristão ganharam fama
de ser um elemento politicamente desestabilizador do Império e causa de tudo de
ruim, que a ordem caótica das coisas, provocasse.
Era um mundo em transição, mais ou
menos como agora, onde o choque das mudanças estremece os alicerces das
muralhas do entendimento até aqui construídas, e que mantinham esse mundo
incólume, não distinguindo muito bem entre o que pode ser mudado e o que deve
ser preservado, como uma base mais segura para o novo que se quer construir.
A gestação do problema
Aparentemente, tudo começou com
Luciano de Antioquia, morto como mártir cristão em 312, que tinha uma famosa
escola de teologia nessa cidade onde, alguns afirmam, ensinava lições sobre a
Santíssima Trindade cristã, eivadas de subordinacionismo (1), que ele assimilara de um famoso,
embora controvertido, bispo e teólogo Paulo de Samosata (200-275), retratado
pelas fontes da época como um homem muito dissoluto, embora inteligente e
dotado de esplêndidos dotes de oratória, logo bom em persuadir, ou manipular o
debate, e igualmente dissonante da ortodoxia, defendendo uma forma de
subordinacionismo.
Influenciado por esses dois
personagens, que, embora intelectualmente brilhantes, eram muito pelo bispos
locais, Ario cresceu nas suas elucubrações teológicas, avançando mais do que os
mestres, tanto na profundidade do desvio teológico como na ousadia e
abrangência de sua ambição: ele não se contentaria apenas com o reconhecimento ou
as benesses de um único bispado, antes sua meta era modificar a doutrina de
toda a igreja nascente, tornando a sua teoria a expressão oficial do
cristianismo. A nova ortodoxia. Já o martírio, como o de Luciano, é de se supor
que nunca passou pela sua brilhante, mas confusa cabeça, pois ele nunca deixou
de acercar-se dos que detinham poder.
Sua ambição, seu preparo intelectual
e brilhantismo no palco da catequese e dos debates, levaram-no ao mais
importante centro urbano do rico oriente romano: a cidade de Alexandria, no
Egito, cuja Igreja, nessa época, era regida pelo Patriarca Pedro (310-311) que
o fez diácono, e também sentiu, em primeira mão, os efeitos de sua mente
inquieta, excomungando-o logo depois, devido a sua adesão aos melecianos – do
bispo Melécio de Licópolis, que pregava punição severa aos cristãos perseguido
que apostatavam, e um rebatismo para aceita-los de novo, caso o requeressem, um
pouco antes de ser martirizado na perseguição de Diocleciano. Vemos logo que
Ario tinha uma certa propensão ao rigorismo ritualista, que não combinava muito
com a rapidez com que fazia concessões ao meio e à cultura dominante: a
percepção da Trindade como uma comunidade hierarquizada, em graus de
importância, coincidia com a mentalidade imperial da época.
Com a morte de Pedro, Aquila, o
Grande, assume o patriarcado, em dezembro de 312, e não só reintegra Ario, mas
o ordena sacerdote. Porém logo deve ter se arrependido, pois começou outra
disputa com o irrequieto neossacerdote, por conta de seus desvios, quando a
morte o alcança em junho de 313, assumindo o seu lugar um dos prelados mas
respeitados da Igreja Oriental, Alexandre, mais tarde canonizado como São
Alexandre de Alexandria – algumas fontes, como a Wikipedia em italiano e em
inglês, afirmam que Ario tentou disputou com Alexandre a nomeação para o
bispado, mas o povo escolheu Alexandre. Ario não perdoaria a desfeita.
Ario começou então, por meio de sua
atuação como padre e uma intensa troca de correspondência com importantes
prelados de outras dioceses próximas, que ele sabia afeitos à sua teoria, a
criar uma base de apoio para algo mais que a “mera” função de bispo de uma das
maiores cidades, do maior império do mundo, e nesse sentido os autores são
unânimes em falar da prodigiosa sedução que brotava do contato com a sua pessoa
e as suas palavras, a sua desenvoltura cênica, o seu conhecimento sólido e argumentação
clara, lógica, concatenada, escorada numa vida ascética e rígida disciplina,
imune a denúncias morais, mas eivada de afirmações que contradiziam
frontalmente o que se concebia como ser correto na Revelação Cristã, segundo a
Tradição dos Apóstolos e o Magistério dos Bispos, em sua grande maioria. E de
repente muita gente, inclusive de outros lugares, como que seduzida pelo canto
de uma sereia, começa a afluir para a sua paroquia, curiosa por ver e ouvir o
famoso presbítero. Ario tinha de fato muito carisma (2).
O bispo Alexandre, um velho e rijo
patriarca, fortemente escorado na ortodoxia e numa longa experiência de vida, a
princípio ficou dividido entre o que ele ouvia falar sobre o que Ario dizia e a
grande afluência de gente, que à primeira vista podia ser sinal de uma virtude,
assim percebida pelos mais simples. Seria aquilo um sinal da benção divina?
Seria precipitado já chegar firme, logo ele que vivenciou as últimas grandes
perseguições do império, e em meio a todas essas dificuldades os cristãos
começarem a disputar entre si, quando ainda nem garantiram a liberdade para
viver em paz a sua fé. Sem falar que Ario era um homem já de certa idade,
entrado ou próximo aos 60 anos. Era preciso ser prudente; e o bispo o foi.
Segundo o relato de Daniel Rops (A Igreja dos apóstolos e dos mártires;
trad Emérico da Gama; ed Quadrante; São Paulo; 1988; p 449-450) Em 318, Alexandre,
chamou Ario e seus adeptos para um debate teológico, junto a outros bispos e
presbíteros de dioceses próximas, na forma de um sínodo local. Ario era um
gigante intelectual, uma inteligência brilhante, mas não tinha discernimento,
não conseguia ler o contexto, o ambiente à sua volta, e embora o sínodo fosse
dominado amplamente pelos ortodoxos, ele avançou na sua argumentação com uma
audácia incomum e desastrada, como quem acreditava poder facilmente convencer a
maioria com o brilhantismo de sua argumentação, mas quando em determinado
momento, “o heresiarca , arrastado pela sua lógica, afirmou que Cristo era uma
criatura e, portanto, teria podido errar e pecar. A assembleia soltou um grito de
horror”. Resultado óbvio: “Ário foi condenado e com ele alguns clérigos de
Alexandria, de Mareótis e da Cirenaica, que tinham aderido às suas teses.
Recebeu ordem formal de submeter-se ou demitir-se”.
A se retratar, Ario preferiu acusar
seus opositores de sabelianismo (3) – ele pode até ter agido com sinceridade nessa
etiquetagem, mas todos sabemos que um dos recursos muito usados em debates, por
quem já chega com uma opinião fechada e não encontra mais argumentos para
defende-la, é acusar o contraditório do extremo oposto, ignorando os matizes. A
argumentação fica bloqueada pela falsa polarização, produzida e sustentada por
apenas um dos lados, e daí só resta alternativa aos recursos não-verbais, como
a imposição de pena, a violência e a dissimulação.
Ario então, inconformado, migrou
para Cesareia, na Palestina, onde o bispo Eusébio, um dos mais importantes
nomes da Igreja à época, e autor de uma História
da igreja, uma obra fundamental para conhecer os percalços do cristianismo
romano, que era um de seus simpatizantes, acolheu-o de braços abertos.
O que estava em discussão
Segundo
Rops, Ario “partia de uma ideia justa: a da grandeza sublime e inefável de Deus
Único, não gerado... Mas Ario acrescentava: "Deus é incomunicável, porque,
se pudesse se comunicar, teríamos de considerá-lo um ser composto, suscetível
de divisões e mudanças'' dedução que só a imprecisão dos termos tornava aceitável.
Ora, continuava Ario, se Ele fosse composto, mutável e divisível, seria mais ou
menos corporal; mas isso não pode ser, donde se conclui que é sem dúvida
incomunicável e que, fora dele, tudo é criatura, incluído Cristo, o Verbo de Deus.
Aqui está... o erro: Jesus, o Cristo, o Filho, não é Deus como o Pai; não é seu
igual nem é da mesma natureza que Ele. Entre Deus e Cristo abre-se um abismo, o
abismo que separa o finito do infinito.
Como se vê,
Ario ataca a própria divindade de Jesus Cristo. Não é que não lhe reconheça
certos atributos divinos; vê nele o Verbo, o Logos, agente da Criação, e afirma
que Ele foi tirado do nada por Deus antes de todos os séculos, antes de que o
tempo existisse. Mas, ainda que fosse uma criatura excepcional, nem por isso
deixou de ser criatura, sujeita a cair no erro e a mudar. No entanto, Ario
venera Jesus; vê nesta criatura única a encarnação da própria Sabedoria
incriada, o exemplo admirável de um homem que se elevou ao cume da perfeição
pelo livre esforço da sua vontade e que mereceu ser, verdadeiramente, o que
cada homem poderia ser – o Filho de Deus. Jesus, o Cristo, não é Deus em si,
por essência; tornou-se Deus pelo seu heroísmo, pela sua santidade, pelos seus méritos,
sendo tudo isso a prova de uma escolha única, de uma predileção de Deus.
Nunca, em
dois mil anos de história, se há de conhecer heresia tão fundamental. Se Cristo
não é Deus, todo o cristianismo desaba... Já não há Encarnação nem Redenção.
Mas era precisamente isso que tornava temível o poder da doutrina herética.
Anulando o mistério da Encarnação, essa heresia tornava o cristianismo mais
acessível aos pagãos...que, pensando nos heróis divinizados da tradição antiga,
podiam compreender perfeitamente que um homem se tornasse Deus pelos seus
méritos” (idem; p 448) (4).
Mas isso
também tocava aos judeus que se horrorizavam da ideia de um Deus que se deixa
humilhar, torturar e matar, de uma forma tão ignominiosa, por suas próprias
criaturas, criaturas essas essencialmente más (Gn 6,5; 8,20; Sl 13,3; Rm
3,10-12). É possível que, para além dos interesses pessoais, Ario achasse que
encontrara a formulação mais adequada para romper a resistência das sociedades
judaica e greco-romana ao cristianismo, e assim facilitar e acelerar o
crescimento da igreja. Dito de outra forma, a sua doutrina adaptava a doutrina
da igreja à mentalidade dos grupos sociais dominantes na bacia do Mediterrâneo,
embora o preço fosse a destruição estrutural do próprio cristianismo, que ele
não percebeu, e reagiu como se tudo não passasse de exagero, de outras pessoas,
provavelmente mais interessadas em autopromoção do que ele.
A presença
de Ario, então exilado e bem tratado em Cesareia, chegou aos ouvidos de outro
Eusébio: o bispo de Nicomédia, que além de bispo e teólogo versado no jogo da
teologia, apreciava o jogo da
grande política, e viu nisso uma oportunidade de aumentar sua influência junto
à estrela política ascendente: o imperador Constantino I ou Constantino o
Grande (272-337), sem falar que seu nível de discernimento levava-o a acatar
mais a doutrina de Ario, e para unir o útil ao agradável convidou Ario a se
transferir para a sua diocese: Nicomedia, o que seria também vantajoso para
Ario, pois enquanto Cesareia ficava a 1.798 km de Constantinopla, Nicomédia era
praticamente vizinha à corte. Eusébio começou ostensivamente a propagar, na
corte, a grande “injustiça” de que seu protegido fora vítima.
Ao ter
notícia do estranho procedimento de seu colega junto à corte, Alexandre, em
Alexandria, começa a se mexer, explicando a todos os bispos e autoridades
eclesiásticas conhecidas, os resultados do pequeno sínodo de 318, mobilizando
rapidamente uma razoável corrente de apoio. A igreja cristã oriental estava fortemente
cindida.
A questão se torna política, e o estado intervém
Uma questão que sempre preocupou os
governantes romanos nos dois séculos que antecederam, em vistas ao crescimento
da religião cristã, foi uma crença criada no seio da máquina estatal romana,
que o cristianismo, com o seu exclusivismo monoteísta, eram uma ameaça à
unidade político-ideológica do império – era verdade que o monoteísmo judaico
não era menos radical que o cristão, mas os judeus eram em número bem menor e
não tinham uma atuação proselitista digna de nota, antes buscavam
invariavelmente o isolamento, sem falar que já se encontravam fortemente
incrustrados no aparelho estatal romano, quando o cristianismo despontou, após
a morte de Cristo, seja por conta de seus contatos no mundo dos negócios seja
por outras questões: Popeia Sabina, amante do imperador Nero, e imperatriz de
62 a 65, era uma convertida ao judaísmo.
Assim os
cristãos sempre foram apresentados às massas pagãs greco-romanas, como uma
ameaça política à integridade e inteireza do Império Romano, e a muito custo
teve que lutar e dar seu sangue para provar às autoridades que poderiam ser uma
força construtiva dentro do império, e que, como os cidadãos comuns, politeístas,
também podiam contribuir positivamente para a manutenção e o crescimento do
império, mas a descrença dos romanos nessa possibilidade custou-lhes sangrentas
perseguições. Não foi sem grande alegria que os cristãos receberam a notícia da
vitória de um general, justamente Constantino, notório simpatizante dos
cristãos, sobre o seu rival Maxêncio, defensor da causa pagã, em 28 de outubro
de 312, na batalha da Ponte Milvius, concentrando em suas mãos boa parte do
poder imperial – que ainda era dividido parcialmente com Valerio Liciano Licínio,
seu cunhado – e mais ainda quando ele assinou, em fevereiro de 313, o Edito de
Milão, que tornava o cristianismo uma religião legal, reconhecida pelo estado,
não mais obrigada à clandestinidade.
Ora, entre
314 e 324, Constantino e Licínio viram-se envolvido em uma série de conflitos e
pelo menos três guerras civis, que os opuseram no campo de batalha, saindo o
teimoso cunhado como o grande vencido, mas nem assim conformado, e continuou
intrigando, até Constantino se convencer que já havia gasto muita energia com
ele, e assim, no início de 325, sua querida meia-irmã Flavia Julia Constança
ficou viúva. No ano seguinte ela também perdeu o enteado ou o filho, Licinio
César, as fontes divergem neste ponto, por quem nutria certa afeição, de apenas
11 anos, por razões análogas àquelas do pai – segundo a Catholic Encyclopedia,
ele foi chicoteado até a morte, o que apontaria para a possibilidade de ele ser
filho de Licinio com uma escrava...
Foi no meio
de todas essas crises, que já estressavam em demasia a Constantino, que este
ficou sabendo que na parte mais próspera do império, o Oriente, reinava uma divisão
perigosa, envolvendo justo as autoridades mais iminentes da religião pela qual
ele arriscara tudo. Já devia ter amigos pagãos repetindo no seu ouvido: “os cristãos
só nos trazem problemas”.
Ele também
era um homem prático, militar de carreira, acostumado a lidar com a resolução
de problemas concretos, haja vista a desenvoltura com que se livrou do cunhado
e do sobrinho, ao mesmo tempo que defendia o cristianismo sem romper com o
paganismo – sua cultura teológica devia ser pouco mais do que nada – sem falar
que ele também era um romano típico, não esquentava a cabeça com o que não
tivesse causa e consequências concretas, e as questões do outro mundo se
resolvem com orações, magia ou amuletos. Mas agora ele era o imperador e cabia
ele julgar o que era relevante ou não para a paz do Império, e isso o deixou
ainda mais inseguro sobre o que fazer – Daniel Rops diz que ele ficou “apavorado,
cheio de desespero, perdeu o sono e meditou sobre o assunto durante longas noites
passadas em claro” (idem p 451). Deve ter pensado: “será que eu fiz bem em
tomar o partido dos cristãos?”
Por fim ele
escreveu uma carta longa, patética e confusa, e a mandou aos principais bispos
da região, todos enfim que ele sabia interessados no assunto, cujos trechos
revelam tanto a sua boa vontade como a sua completa ignorância a respeito do
que se passava (5).
Para entregar a carta ele enviou um dos mais respeitados bispos no cristianismo
ocidental: Ósio de Córdoba – poucas vezes um emissário foi tão superior à
encomenda, como nesse episódio.
Apesar de seus setenta anos, Ósio
começou, com grande energia, a sondar os grupos em Alexandria – nesse meio
tempo Ario, sob a proteção de Eusébio de Nicomédia, escreveu um livro onde esmiúça
as suas ideias, inclusive com trechos em formas de poesia para serem melhor
apreendidos pelo homem comum, o seu nome é Thalia
ou O banquete, do qual só sobraram pequenos
textos, além de um ‘credo’ próprio, que teve grande circulação. Se fosse nos
dias de hoje ele decerto seria um blogueiro, um influencer famoso; capacidade
para isso ele tinha – e diante do exposto ele logo tomou partido de Alexandre
contra Ário, o que deu azo a reações violentas por parte dos partidários de
Ario, agravadas pelo resultado de um sínodo promovido por Eusébio em Antioquia,
que tomou partido de Ário e desencadeou ondas ainda maiores de violências. As
forças militares tiveram que intervir. Como não houve acordo, Ósio voltou a
Constantinopla onde relatou ao imperador o seu fracasso e aconselhou-o a
convocar um encontro mais geral de bispos para resolver definitivamente a
questão.
Esse encontro passará para a história
com o nome de Concílio de Niceia.
Concilio de Niceia (maio a agosto de 325)
Embora a princípio, como vimos,
Constantino achasse que poderia à força da sua autoridade pessoal e o prestígio
de seu cargo resolver essa questão, muito mais complexa do que ele supunha, ou
pelo menos apaziguar os contendores, ele também ficou satisfeito com a fórmula
de um concílio “universal”, reunindo padres e bispos tanto do ocidente quanto
do oriente, seria uma forma de em grande estilo terminar a questão, reforçando
ainda mais a lealdade dos cristãos à unidade do império. E ele o fez sem
contatar inclusive com o Bispo de Roma na ocasião, o Papa Silvestre I (314-335),
que aceitou a situação e mandou representantes para o encontro, a ser realizado
na pequena cidade de Niceia, no palácio de verão do imperador, na parte
Oriental do império.
Embora estivesse aberto à toda
igreja, e os convites foram entregues, com garantias de apoio para a viagem e confortável
hospedagem oficial, ele foi esmagadoramente um concílio oriental, pois todas as
vantagens oferecidas não bastavam para eliminar os riscos inerentes a um longo
trajeto, em certas partes do império, e por isso dos duzentos e poucos bispos
presentes, embora tenha aparecido – uma lenda posterior afirma que foram 318, o
mesmo número dos aliados de Abraão que salvaram Lot (Gn 14,14) – do Ocidente
compareceram apenas 5 representantes: o bispo Ósio e os presbíteros Vito e
Vicente, representando o Papa, e outros, que, à exceção do bispo de Cartago,
tiveram um papel apagado.
Os trabalhos de preparação do
concílio começaram em 20 de maio de 325, Constantino, que não estava presente,
só chegou em 14 junho, entrando em grande etilo na sala de reuniões, desfilando
entre os bispos coberto de joias e esplendor. Fez o discurso de abertura, mas
teve o bom censo de sentar-se atrás dos bispos, e não participou em absoluto
das discussões teológicas, ao contrário do que afirma o ‘esperto’ Dan Brown, no
seu livro anticatólico, Código da Vinci.
Durante as discussões um novo personagem começa a aparecer: o jovem diácono, secretário
do bispo Alexandre de Alexandria, Atanásio.
Atanásio,
como quase todos os outros personagens envolvidos nessa história, não nos legou
informações seguras sobre a sua infância e juventude, mas há a piedosa história
de que foi surpreendido pelo bispo Alexandre, com um grupo de amigos
adolescentes, a brincar de batizarem uns aos outros. Imediatamente o bispo interviu
para pararem com aquela “brincadeira”, na verdade um jogo de imitação, e os
convidou para aulas de catequese mais aprofundadas, como num seminário, que
nessa época ainda não os havia, ministradas pelo bispo e seus auxiliares na
própria cúria. Os poucos indícios nos fazem crer que ele devia ser filho de uma
família grega abastada de cidade – classe média urbana, ligada ao comércio ou à
burocracia, como era comum aos gregos estabelecidos em Alexandria, não lhe faltando
recursos para estudar em boas escolas e frequentar os melhores professores, o
que ele fez com grande proveito.
A descrição
feitas pelos contemporâneos de sua pessoa nos conduz, a aspectos exteriores
quase para opostos de Ario: “Ele estava um pouco abaixo da altura média, magro,
mas bem constituído e intensamente enérgico. Ele tinha uma cabeça de formato
delicado, realçada por uma fina camada de cabelo ruivo, uma boca pequena... um
nariz aquilino e olhos de brilho intenso, mas gentil. Tinha um raciocínio ágil,
era rápido na intuição, de maneiras fáceis e afáveis, agradável na conversa,
perspicaz e, talvez, um tanto implacável no debate [devia ser aquele tipo de
debatedor incansável, que segue sem amortecer nem ceder, até o último ponto em
questão, que tem sempre uma resposta pronta, afiada como uma navalha, na ponta
da língua]... Juliano, o Apóstata... zomba da pequenez de sua pessoa ... Além
dessas qualidades... Ele era dotado de um senso de humor que poderia ser tão
mordaz – quase dizemos sarcástico [talvez até cruel] – quanto parece ter sido
espontâneo e infalível; e sua coragem era do tipo que nunca vacila, mesmo na
hora mais desanimadora... Ele não era, por instinto, nem liberal nem
conservador em teologia”. Uma personalidade multifacetada, mas com um objetivo
inamovível: defender o que ele considerava essencial à doutrina de sua igreja.
Mal comparando, embora não tão mal assim, diríamos que a luta entre ortodoxos e
arianos foi também uma luta entre um pequeno Davi cheio de energia, franqueza e
humor, mas teimoso e incansável, contra um Golias tenso, pesadamente ascético,
mais ou menos como o jejuador de Mt 6,16, que avança contra o opositor de
cabeça baixa, implacável como um bate-estacas, como se estivesse só e decidido
pelo combate direto e franco, mas na verdade repleto de subterfúgios, golpes e
outros recursos que só aparecerão no correr da batalha (6).
No primeiro
concilio, em Alexandria no ano 318, com pouco mais de 20 anos, pode se destacar
mais pela disponibilidade de ajudar seu bispo na causa ali iniciada, mas não se
fez notar muito. Em Niceia, já maduro, com sólida formação, entrou em campo
para lutar de igual pra igual com o douto Ario, e os bispos que lhe apoiavam. Decerto
marcou sua presença como um homem totalmente comprometido com a ortodoxia,
embora não tenha sido em torno de uma iniciativa sua que se centraram os
debates que envolviam a questão central, para a qual o concílio foi convocado:
esclarecer definitivamente a natureza da relação de Jesus Cristo, dentro da
Santíssima Trindade, que comprometia tanto na divindade de Jesus como a própria
crença na Trindade, além de umas questões “menores” ligadas à liturgia e
disciplina pastoral.
A discussão
sobre esse tema já se arrastara anteriormente, na forma do sabelianismo, a
heresia do padre Sabélio, ensinada por volta do ano 220, em Roma, onde duas
correntes teológicas se digladiavam: aqueles que afirmavam “distinções
permanentes (pessoas) dentro da trindade” (Britannica; vol. 19; Sabellianism) e
a facção oposta, “os monárquicos ou modalistas, que em sua preocupação [de
marcar bem o monoteísmo cristão]... “negou que tais distinções [as pessoas
divinas] fossem definitivas ou permanentes” (idem). Sabélio se alinhou com esse
grupo e desenvolveu uma nova fórmula dizendo que: “A divindade é uma mônada [um
ser simples e indivisível], expressando-se em três operações: como Pai, na
criação; como Filho, na Redenção; como Espírito Santo na santificação. É
possível que ele também sustentasse... que a mônada divina passou por um
processo de “expansão” ou “crescimento”, projetando-se primeiro como Filho e
depois como Espírito Santo” (idem) (7).
Ora, a
moderna doutrina da Santíssima Trindade, que católicos e cristãos em geral hoje
professam, e que surgiu no concílio de Niceia, não tem nada que se pareça com
isso, e no entanto, Ario e seus seguidores, que também se levantaram contra
essa definição de Sabélio, sempre que lhes faltavam argumentos acusavam aos
ortodoxos de sua época, e aos cristãos de hoje, de sabelianismo, como se de
repente Ario perdesse toda a sua douta erudição, que o fez famoso naquela
época, assim como alguns de seus seguidores mais capazes, quando na verdade o
que vemos é uma estratégia de confundir os termos da discussão para dar
sobrevida ou uma via de fuga a uma tese já completamente derrotada.
Em Niceia,
toda a questão da relação entre Jesus-Filho e o Pai foi resolvida pelo uso do
termo grego “Homoousion”, onde “homo” quer dizer “mesma”, e “ousia”, quer dizer
“substância”, “essência”. Logo Jesus Cristo era integralmente Deus, e é por
isso que seu sacrifício é eternamente redentor e feito de uma vez por todas. E
a partir daí se criou o chamado Credo ou Símbolo Niceno-constantinopolitano, em
19 de junho, que afirma o seguinte, a respeito de Cristo, segundo a versão da
Conferência Episcopal Portuguesa, e como consta no Catecismo da Igreja: “Creio
em um só Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de
todos os séculos, Deus de Deus, luz da luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial
[homoousion] ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas. E por nós homens,
para a nossa salvação, desceu do céu, e se encarnou pelo Espírito Santo no seio
da Virgem Maria. E se fez homem”. Ou seja, ele é também, além de Deus, de
uma forma absolutamente perfeita, um homem integral, semelhante a nós, embora
São Paulo acrescente: “exceto no pecado”. Ao final dessa definição foi
explicitada uma maldição espiritual àqueles que a contrariavam: “Aqueles que
dizem: Houve um tempo em que Ele não existia, e Ele não existia antes de ser
gerado; e que Ele foi feito do nada... ; ou que sustentam que Ele é de outra
hipóstase ou de outra substância [que não a do Pai], ou que o Filho de Deus é
criado, ou mutável, ou sujeito a mudança, [a eles] a Igreja Católica
anatematiza” (Catholic Encyclopedia; 1913; Council
of Nicaea; Homoousion).
O texto da
Catholic Encyclopedia nos diz que “a adesão [à formula do Credo] foi geral e
entusiástica. Todos os bispos, exceto cinco, declararam-se pronto para
subscrever esta fórmula, convencidos de que ela continha a antiga fé da Igreja
Apostólica. Os oponentes, rápido, foram reduzidos a dois: Teonas de Marmárica e
Secundus de Ptolemaida, que foram exilados e anatematizados. Ario [que
permaneceu inamovível] e seus escritos foram marcados com anátema... e ele
próprio exilado na Ilíria” (idem). Em 25 de agosto de 325, encerrou-se o
concílio.
A mudança dos ventos
Qualquer um, que não seja um adolescente fanatizado,
desses que vivem se reunindo em assembleia estudantil, para desfazer à tarde o
que fora decidido com grande solenidade e promessas pela manhã, diria: “o
assunto está encerrado”, mas a ação de vários bispos, em especial Eusébio de
Nicomédia, junto à corte, apesar do concílio, em especial com a irmã de
Constantino, Constância, que à essa altura estava sendo tratada com luvas de
pelica, pelo poderoso irmão, que já lhe arrebatara o marido e um filho, e,
aparentemente gostava muito dela, tanto que cunhou até moedas em sua homenagem,
e devia, portanto, ser movido também por um forte sentimento de culpa, em
relação ao passado. O certo é que Constantino lhe fazia as vontades, enquanto a
personalidade voluntariosa e fútil dela empurrava-a obstinadamente ao partido
ariano.
Enquanto
isso problemas internos na família do Imperador destroçava-a de dentro para
fora. Sua esposa atual, Flavia Máxima Fausta, que se indispusera com seu
enteado, o filho mais velho de Constantino, Caio Flavio Júlio Crispo, acusa-o,
perante o pai, de tentar seduzi-la. Indignado, ele condena seu filho
primogênito a morrer por ebulição – ou seja, ser cozido vivo – para pesar geral
uma vez que Crispo, aparentemente, era o neto preferido de Helena, mãe de
Constantino. E para a coisa ficar ainda pior, ele descobre que tudo não passara
de um ardil tramado pela ardilosa Fausta, que aparentemente usou da calúnia
para se livrar do filho de Constantino, em benefício dos seus próprios, e
imediatamente determina que a sua querida, até a véspera, esposa tivesse o
mesmo fim de sua vítima. Isso tudo aconteceu em 326, no ano seguinte a Niceia.
Justo
quando ele juntava os cacos de sua vida familiar, imaginando que a questão
religiosa, acontecida só por causa de umas “palavrinhas” de nada, estava
resolvida, sua irmã e bispos mais próximos, começam a falar de reabilitar Ario.
“Que venha Ario, já tenho muito com que me preocupar”. E não só, a teimosia do
herege, que em outras ocasiões passaria fácil por uma rebelião, passível de
penas severas, agora é tratada como firmeza de caráter, e Constantino passa a
tratar Ario com o termo dúbio de “homem de ferro”, e também adere, só Deus sabe
se com sinceridade, ao arianismo, e deixa bem claro que, em que pese toda essa
conversa de ‘concílio’, ‘conclave de bispos’, ‘inspiração infalível do Espírito
Santo’, etc, a Igreja deve favores ao Império, e o chefe do império era ele.
Noutras palavras: “Já estou com muita coisa na cabeça, e quem manda nessa ‘espelunca’
sou eu!” Ou uma coisa assim....
A situação vai se agravando aos poucos. O
Imperador, por uns anos, segue reafirmando Niceia, baixando fortes decretos
antiarianos, mas depois, em nome da “caridade”, levanta o desterro dos
condenado por Niceia. Ario refaz, sub-repticiamente, a sua doutrina, tirando os
termos mais explícitos, substituindo por outros mais ambíguos que permitem uma
dupla interpretação, a qual é aprovada por Constantino, vai morar perto da
corte e os bispos depostos voltam às suas dioceses. Bispos mais comprometidos
com a ortodoxia, como “Eustáquio de Antioquia, Asclépio de Gaza, Eutrópio de
Adrianópolis e Marcelo de Ancira” perdem suas sedes para simpatizantes do
arianismo, num nebuloso concílio em Antioquia, por volta de 331. Mas em 328
Ario recebeu um golpe tremendo: a diocese de Alexandria, que ele sempre desejara
para si e para os seus, após dois anos de vacância, pela morte do titular Alexandre,
é ocupada nesse mesmo ano pelo seu arqui-inimigo, Atanásio, o que deixou os
arianos extremamente alvoroçados, e imediatamente começaram a mover seus
simpatizantes, junto à corte, no sentido de derrubar Atanásio do seu posto.
Agindo com astúcia,
eles conseguiram montar um sínodo viciado em Tiro, no Líbano, em 335, convocado
pelo próprio Constantino, onde apresentaram acusações contra Atanásio por
infidelidade à doutrina e, pasme-se, por questões administrativas, inclusive
uma suposta ameaça de cortar o suprimento de trigo do Egito para Constantinopla,
que, se fosse realizado, causaria um episódio de fome gravíssimo na capital do
Império. Atanásio sabia do embuste que era esse sínodo, por isso fez um
movimento no sentido de não ir, mas quando Constantino ameaçou leva-lo à força
ao encontro desse arremedo assembleia, ele apresentou-se acompanhado de 48
bispos, dispostos a atestar o seu comportamento exemplar. Mas, como como se
podia imaginar, era um jogo de cartas marcadas, e percebendo o seu desfecho,
Atanásio, inventou uma burla e simplesmente fugiu. E quando enfim deram por
ele, já estava junto ao Imperador, em Constantinopla, apresentando as suas
queixas.
Percebendo
a situação, os arianos mandam o sínodo às favas e partem acelerados para lá
também, antes que a notável retórica e o vasto conhecimento de Atanásio sobre a
questão ganhasse seu ilustre hospedeiro para sua causa. “Corre antes que o
imperador mude de ideia!” De fato, Constantino, sinceramente ou só simulando,
já estava mudando de malas e bagagem para a causa de Atanásio, quando os
arianos, em especial Eusébio de Nicomedia, chegaram à corte e começaram um
laborioso trabalho de ‘descontaminação’ e da ‘venda’ de sua causa à mente
imperial, e mais uma vez o Imperador muda a direção “dos ventos”, a volta a
apoiar aos arianos, e, embora não acate as acusações de heresia contra o jovem
bispo, acata a acusação completamente absurda, de que Atanásio “ameaçou” cortar
o suprimento de trigo de Constantinopla, e o demite de sua sede episcopal,
mandando-o para o exílio em Tréveris, atual Trier, na Alemanha.
O primeiro exílio de Atanásio
Atanásio parte para a Alemanha em
fevereiro de 336, sendo muito bem recebido pelo bispo Maximino de Trier, um
prelado completamente fechado com a ortodoxia e posteriormente canonizado, sem
falar que aquela área do Império Romano era administrada por Constantino II
(337-340), filho de Constantino, simpatizante da ortodoxia. Lá, num ambiente de
paz e segurança, Atanásio pode trabalhar em textos onde discorre sobre teologia
e comenta os eventos da querela ariana, mantando-se a par, no que era possível,
do que se passava em Alexandria, onde os seus diocesanos também não o esqueciam,
e o queriam de volta.
Nesse episódio Algo muito estranho
aconteceu, embora Constantino tenha aparentemente dado fé à denúncia contra
Atanásio, tanto que o desterrou, ele recusou-se a nomear um sucessor para a
sede de Alexandria, fosse por manha política, uma vez que ele devia estar bem
informado da popularidade do bispo punido entre os fiéis de sua diocese, fosse
porque no fundo soubesse muito bem que tudo aquilo não passava de uma artimanha
e de um recurso vil, inadmissível numa religião que ascendia cercada de apelo
ético, um grande contraponto ao paganismo anterior, ou fosse pelo fato de nada
ser muito claro em Constantino, quando se tratava de religião.
No partido ariano tudo era alegria e
contentamento, o seu grande inimigo fora afastado para longe, e quiçá tão cedo
não voltaria, ou se voltasse seria para ver o sucesso dos arianos. Com grande
solenidade foi feito o levantamento das punições previstas pelo Concílio de
Niceia contra Ario. Ato contínuo Constantino ordenou que o bispo patriarca
Alexandre de Constantinopla o readmitisse oficialmente no seio da Igreja, sob
pena de punição e banimento, pois Alexandre, um ortodoxo, não acreditava na
sinceridade da “conversão” de Ario – diz um escritor da época: Sócrates, que
Alexandre até se fechou na sua igreja, orando, para que Deus o livra-se daquela
obrigação, tão ingrata quanto sacrílega, e Constantino o sabia, mas justo no
dia aprazado, quando Ario se dirigia à igreja de Hagia Irene (Santa Paz), para
ser oficialmente reintegrado, com uma alegria incontida pela vitória alcançada
e o esplendoroso futuro que o aguardava, quando começou a sentir-se
estranhamente mal, um suor frio, o estômago embrulhado, uma vontade incontida
de vomitar, acompanhada de uma forte dor de barriga, dirigiu-se então a um
banheiro público próximo, mas não o alcançou, e desmaiou na calçada mesmo,
botando as vísceras para fora, em meio a uma diarreia incontrolável, Que o
levou ao colapso e à morte.
Castigo de Deus, gritaram os
ortodoxos em meio à tristeza e raiva dos arianos. Envenenamento muito conveniente,
dizem outros. E se foi envenenamento, dá para excluir a mão de Constantino nesse
evento? As suas últimas ações, superficialmente apontam na direção contrária, e
ele, até por força do cargo, e talvez principalmente por isso, tinha toda a
simpatia dos arianos, mas se pensarmos bem, veremos que o centro da
controvérsia estava muito focado nas personalidades poderosas de Atanásio e
Ario, que pareciam capazes fazer sombra à do próprio imperador. Ora, Atanásio,
de um lado, já fora despachado para os confins do Ocidente, na Alemanha, e
agora Ario, do outro lado, era despachado para o além. Quem mais ganhou com
esse duplo desaparecimento? Constantino pode até ter pensado: “de um golpe me
livrei de dois encrenqueiros, agora vou legar um Império sossegado para meu
filho”. E morreu!
Sentindo a
proximidade da morte Constantino deu a última grande ‘virada’ na sua vida: deu
uma pausa na guerra que ia começar contra a Pérsia, concluiu o catecumenato, o
curso de conhecimento básico da fé cristã, e recebeu o batismo e a eucaristia,
em 22 de maio de 337, das mãos do bispo herético impenitente: Eusébio de
Nicomedia e foi acertar suas contas com o Criador.
Melhor
teria sido para Ario se ele tivesse permanecido no exílio ou em algum lugar
afastado, junto a fiéis aliados , aprofundando a sua doutrina, ao invés de se
deixar empolgar pelo luxo e o poderio deslumbrante da corte de Constantinopla,
cheio de áulicos invejosos, adversários sorrateiros, falsas amizades e inimigos
tão sinceros quanto invisíveis, para não falar de um imperador que tinha poucos
recursos intelectuais e paciência pra lidar com minúcias teológicas, em
especial aquelas que ousavam perturbar a paz de seu convulsionado império...
Ele voltou... mas nem esquentou a cadeira
Em meio à grande alegria de seus
diletos diocesanos, Atanásio, aproveitando a morte de Constantino I, assume por
sua conta a sé de Alexandria. Mas nuvens escuras se descortinam no horizonte do
combativo bispo de Alexandria. Com a morte de Constantino, o império, por
decisão deste foi dividido entre seus três filhos: Constantino II, Constâncio
II e Constante. Coube a Constâncio o governo da parte oriental, e Alexandria
ficava justamente aí, sem falar que, dos filhos de Constantino, Constâncio era
o mais encarniçadamente ariano... Em 9 de setembro de 337, já oficializado,
Constâncio II mostra logo as suas credenciais: manda massacrar seus sogros, um
tio, vários primos e outros membros masculinos mais próximos de sua família,
que pudessem ameaçar o seu monopólio do poder, sobreviveram dois sobrinhos:
Galo, de 11 anos, e Juliano, de 6. No ano seguinte,
338, Atanásio recebe nova ordem de banimento, dessa vez ele vai para Roma,
buscar ajuda e aliança junto ao Papa Júlio I, o papa criou a mais fantástica
coleção de documentos do mundo: os arquivos do Papado atuais Arquivo Apostólico
do Vaticano.
Enquanto isso no Ocidente, o gosto
da família de Constantino por sangue produzia outras tragédias: Constantino II,
entra em choque com seu irmão Flavio Júlio Constante, ou Constante I (337-350)
por questões territoriais, e começam pequenas escaramuças, querendo evoluir
para um grande conflito, até que em Cervenianum, na Itália, a vanguarda de
Constantino II é cercada pelas tropas de Constante, e massacrada, morrendo
Constantino II na refrega, com apenas 23 anos. Seu irmão, Constante, não o
poupou em nada, e mandou atirar seu corpo a um rio e declarou sua memória
maldita – a danatio memoriae (condenação
da memória): quando toda referência escrita ou iconográfica sobre alguém era
apagada dos anais escritos e iconográficos (imagens), em virtude da gravidade
de seu crime. Um exagero!
O Papa Júlio (337-352), após se
inteirar das teorias de um lado e de outro, pois já Eusébio de Nicomédia e seu
grupo apressaram-se a mandar representantes a Roma para confrontar Atanásio,
concordou com o posicionamento de Atanásio e reconheceu-o com bispo, mas para
evitar uma medida precipitada, que feriria a susceptibilidade do outro lado,
bem como podia criar-lhe problemas políticos com o Imperador do Oriente, Júlio,
com o apoio de vários bispos ocidentais, propõe um sínodo, em Sárdica, para
resolver colegiadamente a questão disciplinar e o fundo teológico de toda
questão, numa das primeiras reivindicações de Roma à sua primazia sobre todos
os bispados ou igrejas particulares.
O Concilio de Sardica, atual Sofia,
na Bulgária, aconteceu no outono de 343, e foi um desastre... A princípio
porque foi convocado por bispos ocidentais, com o apoio do imperador do
Ocidente, Constante, para resolver uma questão surgida na jurisdição do Imperador
do Oriente: Constâncio II, naquele momento ás turras com inimigos na fronteira
oriental, e que não deve ter gostado nada daquilo. No Palácio que hospedou o
encontro, as duas partes: 90 bispos ocidentais e 80 orientais, estes todos
arianos, ficaram em alas separadas. Os bispos do Oriente fizeram uma exigência:
só participariam das reuniões se Atanásio e outros bispos que haviam sido
expulsos de suas sedes no Oriente não participassem. Os ocidentais responderam
que só participariam se aqueles participassem também. Alegando que precisavam
dar uma “lambidas” no ego de seu imperador, que acabara de obter uma grande
vitória contra os persas, tudo teatro, os bispos orientais abandonaram Sárdica,
no mesmo dia, e começaram a preparar um concilio exclusivamente ariano em outro
lugar. A cidade escolhida foi Filipópolis, atual Plovidiv, na Bulgária.
Assim o encontro de Sardica,
convocado para resolver o impasse, ‘entornou o caldo’ mais ainda, aprofundando
a divisão, e deixou uma certeza: o arianismo veio para ficar. Enquanto o grupo
de Sardiica reafirmava a consubstancialidade do Filho em relação ao Pai, além
de tecer algumas regras mais detalhadas sobre como deveriam ser, daí por
diante, a intervenção em bispados, inclusive da obrigatoriedade de a sentença
final ser exarada pelo bispo de Roma, além de reconhecer a legitimidade do
governo de Atanásio à sé de Alexandria, anatemizando a crença ariana, o grupo
de Filipópolis, anatemizou a consubstancialidade, sustentou a expulsão de
Atanásio e dos outros, e exigiu a deposição e prisão do Papa Júlio I. O que não
aconteceu. Os cristãos do Ocidente e do Oriente do Império Romano não
conseguiam se entender, e toda a briga que se seguiu em grande parte
prenunciava o cisma definitivo que se daria em 1054.
A proximidade dos arianos a
Constâncio II (337-361) deu certo, pois este tomou decididamente o seu lado,
inclusive mandando guardas vigiarem passagens e portos para impedir o retorno
em segredo dos bispos expulsos, mas foi nesse momento que se fez sentir,
surpreendentemente, ao lado dos bispos ortodoxos, a força diplomática do jovem
imperador do ocidente, Constante, que passou a pressionar Constâncio em favor
dos direitos de Atanásio, e essa pressão foi tão eficaz, que após a morte, em
junho de 345, do bispo ariano de Alexandria, Gregorio, eleito pelos arianos
quando da expulsão de Atanásio, Constâncio II resolve chamar Atanásio de volta
à sé de Alexandria
‘Osso duro de roer’ era Atanásio.
Ele se fez de difícil, ou andava tomando ‘canja de galinha’, e só voltou após
vários pedidos do imperador, e ao chegar em Alexandria já foi pedindo uma
acareação com os bispos arianos, uma espécie de ‘tira-teima’ público e oficial,
que o imperador rejeitou, talvez já se arrependendo de tê-lo chamado de volta,
mas era tarde, e o bispo exilado entrou em sua cidade natal diante de uma
multidão exultante, aclamando-o vigorosamente. Naquele momento ele contava com
o apoio de uns 400 bispos tanto do Ocidente como do Oriente, e enquanto
importantes bispos arianos pediam ao Papa Júlio reingresso ao seio da Igreja,
após abjurarem do arianismo. Chegara a hora dele ter um pouco de descanso? Vai
sonhando!
Mudança de maré
É verdade que Constante estivera do
lado certo na questão religiosa, mas também é certo que ele também não era, como
outros de sua família, ‘flor que se cheirasse’. Além do assassinato do irmão, era
dado a excessos sexuais, e entregou a administração do seu lado do império a
amigos corruptos e devassos, e, o que é pior, não quis cultivar as boas graças
do exército. Ele estava caçando, em algum lugar do interior do sul da Gália,
quando soube que havia um movimento militar em curso para depô-lo: as tropas de
um general de origem celta (antigo povo da França) chamado Magnêncio, estavam
vindo para prendê-lo, pois aquele acabara de se declarar imperador, com o apoio
de suas tropas. Constante tentou fugir para a Espanha, mas é alcançado por uma
patrulha de cavalaria dos amotinados, do lado dos Pirineus franceses, em um
lugar chamado Oppidum Helena, hoje
Elne, nome aliás dado em homenagem à sua avó Helena. Ele entra numa igreja para
pedir asilo e misericórdia, mas o soldados a invadem e o agarram, arrancando-o
de junto ao altar, apesar os protestos do padre e da gritaria de alguns fieis, e
o arrastam para fora, onde é executado – provavelmente posto de joelhos e
depois atingido por um possante golpe de espada, dado de cima para baixo, na
altura da cervical, na nuca – isso foi em 18 de janeiro de 350, ficando lá
estendido sobre o pó das ruas. E assim se cumpriu a profecia semilendária,
feita quando do seu nascimento, de que ele morreria nos braços de sua avó...
Magnêncio mal tinha acabado de ouvir
os comprimentos “ave imperator”, de seus soldados, assim como o lembrete da
parte destes, sobre vantagens prometidas antes de iniciarem essa aventura – em
geral, saque dos bens das pessoas ricas do lado oposto – teve que por suas
tropas em marcha, pois Constâncio II, informado da morte do irmão,
imediatamente se pôs em marcha para punir o usurpador e colher a fruta madura,
que se apresentava ao seu alcance: se tornar o único governante de todo
Império. Em 28 de setembro de 351, os dois lados se encontraram nas cercanias
de Mursa Maggiore, e aí travaram uma das mais sangrentas batalhas da história
de Roma com 54 mil mortos, mas ainda assim, por dois anos os dois lados
percorreram a França em busca de um lugar propício para uma batalha decisiva,
num local que lhe fosse mais vantajoso, o que acabou ocorrendo em Mons Seleuco,
em agosto de 353, na França, após a qual Magnencio quedou completamente
derrotado.
Percebendo-se isolado e traído, seus
soldados já discutiam até a melhor forma de entregá-lo ao seu rival, na
esperança de obter o perdão por seu amotinamento, ao mesmo tempo que os grupos
gauleses, que o incentivaram a começar a rebelião, agora lhe davam as costas,
reuniu, com a ajuda de conspiradores próximos, numa casa afastada seus amigos e
parentes, e a um sinal combinado começaram a matar todos os presentes. Magnencio
matou sua própria mãe. Ao final todos os sobreviventes tiraram a própria vida,
atirando-se sobre suas espadas, como era o antigo costume romano. Um aliado de
Magnencio: o seu irmão Decêncio, que já havia sido declarado “césar”, uma
espécie de “vice-imperador”, e que vinha trazendo-lhe tropas de apoio, ao saber
da derrota e morte do irmão, apressou-se para fazer o mesmo, enforcando-se.
É curioso notar o quanto se misturam
na sociedade romana dessa época, hábitos e curtumes militares próprios do
período anterior, pagão-politeísta, muitas vezes ordenados por oficiais
cristãos, pois aos soldados não restava outra escolha. Era obedecer ou ser
executado. Eram penas cruéis, executadas com notável frieza e desrespeito a
tudo que fora antes pactuado como digno, honesto e civilizado, numa justiça
muito pessoal de caráter eminentemente tribal, talvez influenciada da presença da
cultura germânica belicista e tribal nas forças imperiais, sem menosprezar o
costume gerado pelos antigos códigos de conduta do exército romano. Isso é mais
retrato de uma época do que deformação de caráter evitável ou educável à
revelia da sociedade.
Constâncio chega
à casa de Magnencio e seus infelizes companheiro e familiares. É uma cena horrorosa.
Cadáveres amontoados de homens, mulheres, crianças e anciãos, nas mais
grotescas posições, mostrando os esgares de uma morte inesperada e violenta, em
meio a um rio de sangue que se espalhava indiferente por vários compartimentos
da casa, grudando nas sandálias dos legionários, e o forte cheiro metálico,
infestando todo o ambiente. Constâncio
II, o imperador cristão, devoto do arianismo vê tudo aquilo com aparente
indiferença e imagina a ironia daquilo tudo: estava afinal livre do irmão que
lhe causara tantos embaraços e do seu assassino, que lhe desafiara o poder, e
que lhe dava a oportunidade agora de apresentar-se como irmão extremado,
defensor da família constantiniana e de todo império, todo sob o seu comando. A
vida é boa e Deus generoso; mas antes precisava acertar as contas com os soldados
que haviam se sublevado. A cena e o odor eram-lhe uma inspiração.
Na clandestinidade
A situação de Atanásio, entretanto,
voltara a ficar periclitante. Os arianos na corte, estimulados pelo apoio do
imperador, voltam à carga, denunciando, falsamente a Atanásio de haver
negociado com Magnêncio, uma vez que durante o levante, este enviara ao bispo,
conhecido opositor de Constâncio II, uma delegação, a qual ele recebera, como
bispo, e os despedira sem em nenhum momento apoiar a causa dos sublevados.
Constâncio II, que não tinha nenhum motivo para dispender tempo com essa
querela, começou a importunar Atanásio e os ortodoxos, e o cargo principal da
sé de Alexandria ficou novamente na berlinda. Para completar, no dia 12 de
abril de 352, Atanásio perde o seu mais valioso aliado: o Papa Júlio I. O seu
sucessor foi Libério (352-366), um homem correto e de boa vontade, mas que não
tinha a força nem a estatura moral de seu antecessor.
O imperador começou imediatamente a
mover a sua peças. Faz uma convocação para uma reunião de bispos galos
(ocidentais) sob o controle dos arianos em Arles, em 353, com uma proposta era
simples: assinar um documento condenando a Atanásio. Os dois representantes do
Papa tentaram levantar a necessidade de um debate para esclarecer as posições
teológicas do suposto ‘condenado’, pois a questão não era muito debatida no
ocidente, em vão; a posição do imperador e de seus bispos aos seus colegas era
categórica: ou assinava-se o documento ou podia dizer adeus à sua diocese, e
partir para o exílio. Até os legados papais assinaram, e o único que não
assinou, Paulino de Trier, foi despachado para o exílio, na Frígia (Turquia),
em 353, e lá morreu, 5 anos depois. Hoje ele é considerado santo e mártir da
Igreja.
O auge desse triste espetáculo
porém, foi alcançado em Milão, num sínodo, nesse mesmo ano, convocado a pedido
do Papa Libério, que aparentemente não entendia que essa questão havia se
tornado, por conta da natureza impulsiva e violenta de Constâncio II, um assunto
de interesse do estado, este já fechado com o arianismo – tudo aquilo,
portanto, não passava de um teatro, um simulacro, para dar a ideia ao público
de que nada estava sendo imposto. Os três delegados do Papa foram Lúcifer,
bispo de Cagliari, o padre Pancrácio e o diácono Hilário, estando ausente o
grande campeão da causa nicena: Eusébio de Vercelli. O diácono Hilario toma a
palavra para defender a postura do Papa em favor Atanásio, mas o faz de forma
tão desabrida e ousada, dizem alguns cronistas, que o resultado foi apenas
aumentar os ressentimentos e acirrar a polarização.
Um pouco depois desse incidente,
porém, chega Eusébio de Vercelli, um homem inteligente e prático, que vendo que
as conversas se desviavam para batalhas mais ou menos inconscientes de egos, além
de interesses políticos inconfessáveis, chamou para o centro das discussões o
principal motivo de tudo aquilo, o Credo de Niceia, da seguinte maneira: fez
redigir numa folha de papel rubricada, oficial, o texto do credo, que era
aquilo pelo que Atanásio lutava, e que havia sido elaborado num concílio sob a
tutela do pai de Constâncio, o grande Constantino I, e que nesse momento era
tratado como renegado da fé.
O arianos se viram numa grande
enrascada. Todos os seus movimentos contra Atanásio e Niceia, eram dirigidos
por um espírito de intriga pessoal, ao arrepio da lei do estado, dos fatos e da
lógica formal básica, sem aprimoramento teológico ou alguma novidade, que
justificasse o seu combate até aquele momento ao que já fora oficialmente
aceito no Concílio de Niceia. Se não assinassem, tornariam evidente a todos a
sua condição de rebeldes, que se recusavam a seguir uma norma reconhecida
oficialmente pela Igreja e pelo estado, e se assinassem estariam rejeitando
oficialmente as suas crenças atuais, e confessando a Deus, ao imperador e à
Igreja, que a sua perseguição a Atanásio não se justificava, que era, portanto,
uma ação profundamente mesquinha e anticristã.
O delegado Pancrácio assina o
documento, seguido pelo bispo de Milão, Dionísio. Porém, sem que ninguém se
apercebesse, o bispo de Múrcia (Espanha), Valente, ariano convicto, se aproxima
da mesa do documento, e de repente agarra-o e o rasga com suas mãos, dando
início a um grande tumulto, na sala de reuniões. Aproveitando-se do incidente,
não para fazer justiça a quem propositalmente iniciou a baderna, mas antes para
impor sua fé deformada e o seu autoritarismo doentio, que o transformava em
mero joguete de seus “mestres espirituais”, Constâncio II obrigou a assembleia
a se deslocar imediatamente do palácio do Bispo para seu, e aí deu larga saída
a ultrajes contra os ortodoxos, tão abomináveis quanto a sua fé distorcida.
Constâncio II desanca os
representantes do papa, mandando prender e surrar o diácono Hilário,
expulsando-o para o exílio junto com os bispos Lúcifer, Dionísio e Eusébio. Que
se recusaram a condenar Atanásio – para substituir a Dionísio, em Milão, foi
nomeado o bispo Auxêncio da Capadócia, que nem sabia falar a língua local.
Enquanto isso a perseguição contra Atanásio, no Ocidente, avançou com um sínodo
de bispos em Beziers (França), em 356, com os mesmos métodos: violência física
e psicológica, com resultados análogos: só dois bispos se recusaram a assinar o
documento condenatório ariano: o insigne Hilário de Poitiers e Rodânio de
Toulouse, imediatamente despachados para o exílio.
Contra tudo e
contra todos
Mas Constâncio encontrou uma resistência
inesperada no Papa Libério, que imediatamente escreveu cartas se solidarizando
com os bispos exilados, e que calaram fundo na comunidade cristã. O imperador
imediatamente enviou a Roma um emissário com ricos presentes para Libério, que
este rejeitou e ordenou que fossem de pronto retirados de seu palácio.
Constâncio, fora de si, mandou que o prefeito da cidade de Roma, Leôncio,
mandasse soldados à noite, para evitar confrontos com a população, a fim de
levar o papa, à força, à sua presença. Lá chegando Liberio resistiu a todas as
invectivas, apelos e ameaças do imperador, inclusive de exílio, se continuasse
resistindo a condenar Atanásio – segundo o historiador eclesiástico Hubert
Jedin, o imperador lhe deu três dias para pensar bem na resposta, mas já no
segundo dia, diante da resposta negativa, enviou-o para o exílio em Berea, na Grécia, hoje Veria, onde ficou
sob a vigilância e a pressão de um bispo ariano, especialmente nomeado para
isso. E para fechar o pacote, sob a orientações de bispos arianos, o imperador
mandou à Córdoba, na Espanha, agentes para obterem a aprovação de seus atos do
quase centenário bispo Ósio, que já atuara com seu pai, e deste recebeu um
também sonoro NÃO, sendo igualmente mandado para o exílio.
Para a cobrir a vacância do Bispo de
Roma, Constâncio II, determinou a nomeação do arquidiácono Felix, que assumiu
sob o nome de Felix II, após sua sagração por três bispos arianos arrumados
para a ocasião – hoje ele é considerado um antipapa – porém, houve mais um
contratempo inesperado: a população cristã da cidade, inconformada com a perda
inesperada e injustificada de seu bispo, rebelou-se contra a gambiarra proposta
pelo imperador, e deu início a distúrbios só acalmados pela presença de tropas,
enquanto se intensificava a pressão sobre Libério.
Ninguém sabe exatamente quando
nasceu o Papa Libério, mas é comum entre as fontes a informação de que já era
um home de idade avançada quando assumiu a diocese de Roma, em 352, e que,
durante o seu exílio, sofreu pressões tanto psicológicas quanto físicas
intensas para ceder à vontade do imperador, e tudo indica, pelo relato
inclusive do próprio Atanásio, que ele fraquejou, e que concordou em assinar
documentos que não só condenavam a posição de Atanásio, como aprovavam a
heresia ariana, isso feito pode voltar em paz para a sua diocese, em 358, após
propor, inclusive, compartilhar o seu pontificado com Felix II – todas essas
medidas equivaliam à excomunhão de Atanásio, por não querer fazer concessões intoleráveis
na defesa da verdade.
A atuação de Libério fez baixar uma
sombra enorme sobre a Igreja, mas principalmente sobre a sua própria biografia,
pois em que pese a justificativa de sua idade, é preciso considerar que um
bispo bem mais velho, Osio de Córdoba, também estava preso, exilado e sob
pressão, mas nem assim cedeu, como vários outros ao longo da história da
Igreja, que, em situação análoga, não cederam a até preferiram enfrentar o
martírio sangrento a recuar de suas convicções, enquanto o antipapa mergulha no
esquecimento, digno dos covardes, dos oportunistas e medíocres, que assumem uma
causa muito acima de suas forças e talentos. Os romanos acolheram Libério
compassivamente, mas ele já estava completamente desmoralizado e nada mais
acrescentou, nem podia, ao prosseguimento da controvérsia.
Enquanto isso, em Alexandria, Atanásio,
continuava resistindo decididamente às tentativa diárias de intimidação das
autoridades locais, a mando do imperador, sempre cuidando para não ficar
sozinho ou distante de comunidades que pudessem lhe prestar ajuda. Em fevereiro
de 356, durante uma celebração litúrgica na igreja de São Teonas, um
destacamento de soldados irrompe no recinto clamando pelo nome de Atanásio:
“considere-se detido em nome do Imperador!” O centurião nem
pode terminar sua segunda frase, “fique onde...”, e uma pesada cadeira voou na
sua direção, enquanto outras, e toda sorte de objetos, eram atirados na direção
dos soldados, e imediatamente irrompe uma tumultuosa luta corporal entre os
soldados e os fiéis seguidores do bispo
Os soldados reagiram com violência,
usando de seus escudos e espadas, contra todos os que tentavam barrar-lhes o
caminho. Vários começam a cair, até mulheres, aos golpes, manchando de sangue o
assoalho da igreja. Naquele dia vários pagaram com a sua vida a dedicação ao
seu bispo. Agarrado por alguns, Atanásio é levado à força para a sacristia e de
lá para as ruas, até um lugar desconhecido. Enquanto isso gritos e choros,
saídos do recinto da igreja, enchiam a noite do subúrbio de Alexandria.
“ASSASSINOS, ASSASSINOS!”
- Um pastor não pode fugir, e deixar
suas ovelhas entregues ao massacre! Diz Atanásio.
- O senhor é o único que pode dar
continuidade a essa luta em favor da Verdade, e é o único, agora, que pode
liderá-la, diz alguém. Se senhor for preso, terá tornado vão o sacrifício das
pessoas que morreram essa noite. Apenas não renegue a causa nem se entregue.
Conformado por essas palavras, ele desaparece na noite.
Dessa vez, porém, ao invés de fugir
para o exílio no estrangeiro, Atanásio procurou abrigo entre as comunidades
monásticas do deserto, gente superdiscreta, de muita oração e pouca conversa,
que o acolheu bem, e até com entusiasmo, pois a corrente ariana nunca teve
muita simpatia entre eles, enquanto o Imperador, se julgando o “máximo”,
resolveu enviar um novo bispo, chamado Jorge, ariano até a raiz, para
Alexandria, em 357, após esmagar toda a oposição do clero e entre os fiéis.
Jorge, querendo fazer-se agradável a Constâncio, impôs um reinado de opressão e
autoritarismo, em favor dos elementos arianos, o que atraiu o descontentamento
de todos da corrente contrária, tanto que, após um ano e meio de administração
confusa, foi literalmente posto para correr por uma turba que já invadia o
palácio episcopal, para fazer justiça com as próprias mãos. A Sede Episcopal de
Alexandria, a segunda ou terceira maior cidade do Império, teoricamente
cristão, ficara novamente vacante.
Enquanto isso Atanásio era
eventualmente visto circulando entre as pessoas nas feiras das cidade, quando
não estava articulando com outros bispos, monges, presbíteros, comunidades de
mulheres piedosas e leigos fieis a Niceia, a resistência às manobras palacianas.
Conta-se que até nas casas onde havia comunidades de mulheres piedosas, em
geral dirigidas por uma matrona ou uma senhorita muito rica, que as sustentavam
com seu próprio dinheiro – equivalente na época aos nossos conventos de freiras
– ele se escondeu. Os soldados não se atreveriam, por conta própria a forçar a
entrada num lugar desses, mas podemos imaginar um decurião, à frente de uma
pequena tropa, tentando forçar a entrada.
- Fomos informados de que o bispo
foi visto entrando nessa residência.
- Garanto-lhe que aqui só vivem
mulheres. Mulheres piedosas e honestas.
- Não nego, mas preciso averiguar se
o procurado realmente não está aí.
- Não ouse! Eu sou fulana de tal, filha
de fulano, que frequenta a casa do Governador – senão a corte do próprio
Constâncio II. Se você puser os pés aqui dentro o Governador, e até o
Imperador, vai ficar sabendo, e ele vai acabar com você, se esses homens, que
já estão cercando sua tropa, não o fizerem, porque eu vou gritar.
- Dane-se, não vale a pena! Diz o
decurião, para si e para os seus, após considerar o “tamanho” da mulher e da
aglomeração que se formara.
E a tropa se retira, abrindo caminho,
em meio a vaia da multidão que se acumulara, atraída pela presença dos soldados.
Atanásio escapara mais uma vez.
Nesse momento a questão teológica
sobre a natureza de Cristo, que originalmente provocara aquele confronto, perde
primazia, e a disputa personalista ganha o primeiro plano: a questão agora era
saber do lado de quem as pessoas se encontravam: se apoiava ao imperador, era
automaticamente apodado como “ariano”, mas também podia se considerar “moderno”
ou “progressista”, de acordo com a “última tendência”, se a Atanásio, então era
um “ortodoxo”, ou como se diria hoje: “tradicionalista”, “conservador”,
“ideológico”.
Uma reviravolta...
Já vimos que nos primeiros anos da
controvérsia houve pessoas que tentaram acomodar as duas correntes. Os
ortodoxos, como já imos, diziam que Pai e Filho eram consubstanciais, ou seja,
tinham natureza “idêntica” (homoousios). Os arianos, para acalmarem o imperador
e facilitar a cooptação de ortodoxos, imaginaram um termo ambíguo, que
significava mais ou menos o que termo “semelhante” (homousios) significa em
português, e a este se apegaram. Mas aí surgiu uma segunda corrente, dentro do
arianismo, conduzida por um teólogo chamado Aécio, que pregava simplesmente a
total diferença de natureza entre o Filho e o Pai (anomoios), com a negação
radical da divindade daquele.
Aécio, dotado de uma grande
perspicácia mental, veio de uma condição social muito pobre, e teve que
trabalhar duro para sustentar a si e à sua pobre mãe, e após exercer o ofício
de médico ambulante resolveu dedicar-se ao estudo de filosofia e teologia sob o
patrocínio dos ariano, em especial Leôncio de Antioquia, que o sagrou diácono.
Associou-se ainda a outros como Eunômio de Cízico e Eudóxio de Antioquia, e
mais alguns, que acabaram ascendendo dentro da hierarquia eclesiástica. O
argumento de Aécio era uma radicalização natural e inevitável da conclusão
básica dos arianos, pois para ele Cristo não era nem idêntico nem semelhante ao
pai, era completamente diferente, uma criatura como outra qualquer, que
compartilhava com o Pai apenas a similitude moral. Esse grupo, chamado
anomoeanos, chegou a tal ponto que não batizava mais em nome da Trindade, mas
de Cristo somente – por isso, aqueles que eram batizados pelos anomoeanos eram
obrigados a se rebatizarem quando pediam ingresso na Igreja.
A chegada de Aécio e seu grupo, foi vantajosa
para os ortodoxos, uma vez que, o edifício ariano monolítico criado por Constâncio
II, associado aos mais poderosos bispos da Igreja, o de Constantinopla, Macedônio
(351-360), por livre e espontânea vontade, e o de Roma, Liberio, por nada
espontânea pressão, começou a fazer trincas com as recentes provocações, afinal
as conclusões de Aécio e dos seus eram tão profundas e graves, que foram
claramente percebidas por quem quer que tivesse uma cultura mediana, e assustou
muita gente, que até ali participara da facção moderada do movimento, e então
começaram a voltar-se para os ortodoxos, ainda mais porque o imperador começa a
envolver-se com o aecianos.
Os bispos arianos então propõem um
duplo concilio: um em Seleucia Isaura, na Turquia, para os bispos do Oriente, e
outro no Ocidente, em Rimini, na Itália, para os bispos do Ocidente, para
discutir uma versão atenuada do credo ariano que poderia bem se acomodar tanto
à visão ortodoxa como à heterodoxia ariana. O concílio teve início no verão de
359. Os bispos do Oriente, dominados pelo arianismo, rapidamente aprovaram a
nova fórmula, que acirrava a fé ariana, enquanto os do ocidente,
esmagadoramente ortodoxos, optaram por preservar e confirmar o credo de Niceia.
Só que os bispos do Oriente, foram imediatamente recebidos e despachados para
suas sedes por Constâncio II, enquanto os do Ocidente ficaram isolados numa
área do Palácio. La o imperador e sua gangue fechou questão quanto à decisão
dos concílios e declarou que o que fora decidido em Seleucia, e só nela, era
aceitável e definitivo para a Igreja, ordenando aos bispos do ocidente que se
submetessem a ela, e inclusive que recebessem nas suas sedes e assembleias
bispos que porventura tenha sido excomungado por causa de sua fé ariana no
passado. Ao conjunto dos bispos ocidentais foi passada uma ordem: só voltará
para casa, aquele que assinar a fórmula (semiariana) proposta pelos bispos do
Oriente. Um a um os bispos foram cansando ou se acovardando e assinado a fórmula
espúria, um ou outro que resistiu, foi mandado para o exílio – isso aconteceu
em outubro de 359; e um detalhe mostra a que ponto o Papa Libério estava
desmoralizado: Constâncio II não lhe avisou que haveria esse concílio.
Em 1º de janeiro de 360, o imperador
Constâncio II fez uma solene declaração de unidade e paz religiosa no Império a
partir do credo ariano, sepultando definitivamente, era o que parecia, o credo
de Niceia. As principais cidades do Império tinham à sua frente bispos
declaradamente arianos ou em conchavo com eles, ainda que se pudesse desconfiar
da sinceridade de um ou de outro. Os mais notórios defensores da ortodoxia de
Niceia estavam no exílio, sob estrita vigilância, silenciados. Exceto um.
Exatamente o combativo Atanásio. Que saltando de um mosteiro a outro de uma
comunidade a outra, continuava no seu trabalho clandestino, animando aqueles
que ainda nutriam fidelidade à verdadeira doutrina, decidida livremente num
concílio, e não fabricada e imposta por uma corte política. No seu exílio
instável Atanásio encontrou tempo para, além de tudo, escrever livros sobre a
história do monarquismo, da heresia ariana, e inúmeros folhetos distribuídos
pela população, de tal sorte que, mesmo no auge da perseguição, o Egito
manteve-se ortodoxo.
Mas a situação nunca esteve tão
perigosa para a ortodoxia como nesse momento. Seria a doutrina ariana, daí para
frente a única forma de cristianismo aceita e transmitida às futuras gerações?
Escrevendo sobre esse momento, algumas décadas mais tarde, São Jerônimo dirá: “mundo
gemeu de surpresa ao se descobrir, de repente, ariano”. Mas o edifício ariano
era instável, pois dependia exclusivamente da personalidade do imperador
de plantão.
Para ser perfeito só faltava uma coisa:
pôr as mãos em Atanásio. Do aposento mais interno do palácio do imperador e dos
seus aliados arianos levantava-se uma questão premente e cheia de preocupação:
“AFINAL, ONDE ESTÁ ATANÁSIO?”
Uma nova reviravolta
Como bem o sabemos, uma pessoa vital
para o avanço do arianismo na Igreja foi famoso bispo Eusébio de Nicomedia, o
protetor e articulador dessa corrente desde o seu início, conselheiro íntimo de
Constantino, sendo inclusive o prelado que assistiu ao grande imperador nos
momentos finais e o batizou, in extremis, próximo à morte, como era então o
hábito – de acordo com a teologia de então, como só havia remissão completa dos
pecados durante o batismo, e a teologia do sacramento da confissão ou
reconciliação ainda não estava desenvolvida, quem se batizasse e depois
cometesse um pecado grave, morria com ele inapelavelmente, ficando
exclusivamente na dependência da Misericórdia Divina. Constantino esperou tanto
para se batizar e no final entrou na Igreja por uma porta lateral, batizado por
um bispo herético, algo indigno de sua posição social e de seu impacto
religioso, mas digno de sua violência.
Eusébio era um cortesão consumado,
muito hábil em perceber e tirar proveito das intrigas ou qualquer passo em
falso dado na corte. Segundo o escritor Amiano Marcelino ele seria até
aparentado remotamente aos constantinianos, e seja por uma dessas razões, ou
pelas duas ao mesmo tempo, ao longo de todo reinado de Constantino e Constâncio
II ele ocupou cargos relevantes, que foram usados descaradamente para beneficiar
seus irmãos de crença, enquanto constrangia ou prejudicava gravemente seus
adversários. Nessa função não seria de admirar eu se tornasse uma espécie de
tutor intelectual dos filhos e aparentados mais próximos do rei, entre os quais
os dois sobreviventes do massacre absurdo, justificado pelo caráter sanguinário
da família, uma tara digna dos filmes do hollywoodiano Charles Bronson,
perpetrado por Constâncio II contra seus familiares, em 337 –tios, sobrinhos, e
primos, que haviam nascido de outra união de seu avô, Constâncio Cloro, pai de
Constantino I. O pequeno Flavio Claudio Juliano, de apenas 6 anos, e o seu meio
irmão Galo de 11.
Eusébio de Nicomédia, aparentemente,
encarou com naturalidade aquela ‘solução dinástica’, apenas procurando ter
Constâncio II ainda mais perto de si, enquanto estimulava o seu temperamento
monomaníaco, irascível e sanguinário contra os seus inimigos dentro da própria
Igreja – bem diferente de Ambrósio de Milão, que por um ato semelhante da parte
do imperador Teodósio, proibiu-o e entrar na Catedral de Milão, para lá
fingir-se de cristão diante do povo, como se nada tivesse acontecido. Eusébio
logo entregou o menino aos cuidados de um filósofo professor, de origem goda e
pagão, chamado Mardônio, que apesar dos avisos disciplicentes de que não
desencaminhasse o menino do cristianismo, foi exatamente isso o que ele fez, e
o jovem seu pupilo, que muito o admirava e o admirou ao longo de sua curta
vida, foi paulatinamente se afastando da religião cristã, enquanto os tutores,
mais preocupados em fazer política, nem se perceberam ou não tiveram o cuidado
de o perceber.
Em 355, já completamente ganho pelo
politeísmo, Juliano recebe o título de Cesar, ou subimperador, e parte, de uma
forma um tanto improviada, para uma campanha na Galia, contra tribos sublevadas
– alguns autores sugerem que o objetivo dessa missão, dada por Constâncio II,
era antes de tudo para fazê-lo perecer lá, onde tantos militares romanos já o
tinham antecedido – mas que o promoveu, ao vencer uma poderosa coligação de
tribos germânicas na batalha de Estrasburgo ou Argentoratum, em agosto de 357, contra
forças muito superiores, onde ele mesmo salvou o dia, impedindo a sua cavalaria
pesada de debandar, batendo posteriormente os francos, pacificando aquele setor
da fronteira, próximo a atual cidade de Paris, onde reergueu vários fortes
abandonados. Juliano também fez fama como bom administrador, reduzindo
impostos, e como um juiz razoavelmente imparcial.
Ele estava nesses afazeres, quando
chegou uma delegação enviada por Constâncio II, que decidira, no início de 360,
combater os persas, que estavam novamente criando problemas na fronteira Oriental
(a Mesopotâmia). Essa delegação ordenava que Juliano enviasse algumas de suas
melhores tropas para auxiliar o Imperador. Juliano, a princípio concorda, mas
suas tropas se revoltam, e lhe propõem, antes, que ele próprio assuma a coroa
de Imperador, destronando Constâncio II, abrindo a possibilidade de ricos
despojos no Oriente, que animam a soldadesca já cansada da teimosia belicosa,
mas pobre, das tribos germânicas de sempre. Juliano, no primeiro momento, recusa-se
ou finge recusar-se, mas depois cede ao apelo dos “companheiros de armas”. Nesse meio tempo Constâncio II engrossa o
caldo, fazendo acordos com um chefe germânico, para que este ataque e crie
problemas para Juliano, mas o pau mandado é derrotado e preso e a trama é
descoberta. A guerra era inevitável.
Finalmente haveria o acerto de
contas dentro da família, entre o sobrinho e o tio, que agora iria pagar pelo
fato de ter poupado aquele. Era o passado, que vinha de armas na mão, confrontar
o que restara da consciência esmagada pelas conveniências de Constâncio II.
Embora a princípio, Constâncio tivesse as tropas mais treinadas, a marcha de
Juliano para o Oriente foi cercada de sucesso e muitas unidades aderiram ao seu
exército. A batalha seria colossal, quando subitamente Constâncio adoece e logo
vai a óbito em 3 de novembro de 361, não sem antes reconhecer o direito de
Juliano ao título de Augusto, ou Imperador, pois, afinal, não havia mais nenhum
homem da família vivo para reivindicá-lo.
Revira a reviravolta
Todos respiraram aliviados. A guerra
civil fora evitada. O látego que há décadas caia sobre a Igreja, desaparecera,
e até seus oficiais mais próximos, como o infame Eusébio, o camareiro de
Constâncio, ladrão pertinaz, intrigante compulsivo e partidário dos arianos,
também encontrou a morte nas mãos do carrasco, mas uma questão levantara-se
para os cristãos: o que acontece agora que um imperador pagão voltou a sentar
no trono do Império? Voltará as antigas perseguições? Justo quando os cristãos
ainda brigavam entre si...
No que diz respeito à religião
Juliano retomou a antiga prática romana, pelo menos da antiga República Romana,
de tolerância frente às religiões estrangeiras, e junto a isso fez editar um
texto que apregoava não só essa tolerância religiosa, como mandava retornar do
exílio todos aqueles bispos ortodoxos perseguidos por Constâncio II. O exército
estava fechado com ele uma vez que usou de muita moderação e tolerância para
com os soldados que houvessem participado de antigas rebeliões, bem diferente
do antecessor, cristão, que os tratara com mão de ferro. O estilo do novo
imperador, a princípio adepto do diálogo e tolerante, animou muito aos pagãos e
confundiu aos cristãos, cujos ideólogos, não podendo acusa-lo de nada grave,
começaram a trabalhar intensamente no sentido de ridiculariza-lo,
apresentando-o como a um traidor que, atormentado pela sua consciência, dava
continuamente tapas da testa para certificar-se de que ela, a sua consciência,
tinha ido embora, para não molestá-lo mais. Esses ideólogos ainda lhe
acrescentaram o apelido de APÓSTATA. Propagandisticamente eficaz, mas
historicamente incorreto. Não houve durante o seu curtíssimo reinado qualquer
iniciativa imperial de perseguição específica contra os cristãos, exceto no que
tange à ocupação dos principais cargos públicos, a quem ele deu nítida
preferência pelos pagãos (9).
O édito de Juliano possibilitou a
Atanásio voltar para Alexandria, e retomar a sua sé episcopal vazia – alguns
autores até questionam se esse edito de tolerância foi feito justo para acender
a disputa entre os cristãos, já divididos, enfraquecendo-os, enquanto
facilitava o avanço dos paganismo. As atitudes do Imperador, porém, ao tentar
restituir bens dos antigos templos pagãos, destruídos desde Constantino, para
reconstruí-los, acendeu a pira do orgulho daqueles, que passaram a atacar os
cristãos em alguns lugares, causando inclusive conflitos de rua sérios, com
mortes, inclusive em Alexandria, distúrbios e agressores que foram condenados
publicamente pelo imperador, embora sem punição para os autores. A medida mais
agressiva contra os cristãos deu-se na área da educação, quando se proibiu a
professores que não eram politeístas, ensinar os clássicos da literatura
greco-romana. O cristianismo foi expulso das escolas. Afora isso um edito
ridículo proibiu enterros a luz do dia para não ofender ou entristecer o deus
da luz com espetáculos tão ‘deprimentes’. Essa prática era mais comuns entre os
cristãos.
Atanásio, porém, percebendo a
totalidade da situação, reverteu as expectativas de Juliano, para grande ira
deste, assumindo uma posição mais conciliadora com os arianos, tendo em vista o
enfrentamento ao imperador e aos politeístas. Juliano, percebendo a artimanha,
decreta em outubro de 362, um novo exilio de Atanásio, que vai mais uma vez se
ocultar entre os padres do deserto, monges insignes como o grande São Antônio
do Egito, também conhecido Santo Antão, o primeiro eremita, que já conhecera no
exilio anterior e sobre quem escreveu uma biografia. E, como sempre, defendendo
o credo de Niceia e a união dos cristãos.
A virada de uma reviravolta
As atitudes de Juliano em relação ao
cristianismo estavam se tornando cada vez mais diretas e hostis, prenunciando o
fim da período de tolerância, ou talvez Juliano não fosse tão tradicionalmente
romano quando pretendia, esquecendo o edito de tolerância, ou assuntos pessoais
pendentes, dentro do cristianismo, como o massacre de seu pai, que o afetavam
muito mais que o arrazoado fantasioso, de cunho literário da mitologia
greco-romana. Seus escritos foram se tornando cada vez mais frequentes e hostis
ao cristianismo, tanto que até pensou em reconstruir o 3º templo em Jerusalém,
para ver se revivia a disputa entre judeus e cristãos, e assim os expunha ao
resto aos outros habitantes, enquanto anulava a profecia de Jesus que dizia que
do templo não ficaria “pedra sobre pedra”. A tentativa porém fracassou, seja
por conta de fogos misteriosos que, dizem, saia do interior das escavações dos
alicerces, seja por causa de um terremoto relatado nessa época, seja por causa
de sabotagem...
Em meio a
esses preparativos, porém, estoura mais uma guerra contra os persas na
fronteira oriental. Ele parte, contra o conselho de seus assessores mais
prudentes, em 5 de março de 363, à frente de um grande exército, uns 90 mil
soldados, e se dirige ao coração do Império Persa ou Sassânida, alcançando a
sua capital Ctesifonte. Entretanto os persas tinham lhe preparado uma armadilha
e ele viu-se em grande aperto, tendo por isso que ordenar a retirada, durante a
qual, ao se expor em demasia na batalha em Samarra, foi ferido no ventre por
uma lança inimiga, vindo a falecer desse ferimento, em 26 de junho de 363. Nem
completara 2 anos de reinado. Em seu lugar, foi aclamado pelas tropas jovem o
jovem oficial da Guarda Imperial, Joviano, com 32 anos, que além de tudo era
cristão e defensor aberto do credo de Nicei, e uma de suas primeiras
iniciativas foi justamente marcar um encontro com Atanásio, novamente
reempossado no episcopado de Alexandria. Os bons tempos estavam de volta!!
Para
melhorar ainda mais a situação dos ortodoxos, os arianos, que haviam se
especializado na intriga palaciana, sofriam percalços enormes toda vez que
mudava um imperador, e, principalmente, perdiam alguém tão fechado com a sua
doutrina como Constâncio II, por isso começaram a experimentar um rápido declínio
entre a população e no colégio de bispos. Já os bispos pró-Niceia trataram de
se reagrupar e organizar-se para retomar a correta interpretação da fé. No
Ocidente destacou-se entre eles a notável figura do bispo Hilário de Poitiers,
que o próprio Constâncio havia mandado regressar ao Ocidente, de seu exílio no
Oriente, porque ele fazia um proselitismo tão eficiente entre os orientais que
começou a preocupar aos próprios arianos – Hilário tinha por assim dizer a
inteligência e a garra de Atanásio, mas a manha de Ario ou Eusébio de
Nicomédia, e assim que voltou mandou convocar
um sínodo em Paris, em 360, para reafirmar fortemente o credo de Niceia e criticar
asperamente os bispos que se afastaram da ortodoxia. A maré ariana estava agora
em rápido e profundo descenso.
Se Hilário
era o principal coluna da resistência ortodoxa no Ocidente, no Oriente agigantava-se
cada vez mais a figura de Atanásio, e de Alexandria, como centro de combate à
inovação ariana, fazendo, no sínodo de 362, uma espécie de pente fino entre os
bispos egípcios, de sorte que aqueles que, no passado, se submeteram
voluntariamente ao arianismo foram reduzidos ao estado laico, e aqueles que
assim procederam por ameaça ou temor de represálias, puderam manter seus cargos
depois de uma devida penitência e afirmação pública, por escrito, do Credo
Niceno.
A situação
de algumas igrejas no Oriente era simplesmente caótica: em Antioquia a
comunidade se dividiu em três grupos, a) os adeptos do bispo original,
pró-Niceia, Estaquio, porém já defunto, reuniam-se em torno de um presbítero
próximo a ele; b) outro grupo se reuniam em torno da figura de Melecio, bispo
eleito regularmente, mas que estava no exílio; c) outro grupo se reuniam em
torno de Euzoio, um ariano indicado por Constâncio. Para piorar, o esquentado
Lúcifer de Cagliari, que estava por lá, sagrou bispo a outro: um certo Paulino,
de tal sorte que havia três bispos e um presbítero disputando a sé da cidade,
que no final ficou com Paulino, após extensas e complicadas negociações em que
agiram juntos o novo imperador e o velho guardião de Niceia, apesar do intenso
jogo de bastidores e intrigas levadas a cabo pelos arianos. Atanásio e o novo
imperador estava “assim”, um com o outro.
Mas como
nada é exatamente fácil, quando Atanásio está envolvido, o Imperador Flavio
Joviano morre em circunstâncias misteriosas, em 17 de fevereiro de 364.
Para quem já virou tanto.... Mais uma reviravolta.
Com a morte repentina de Joviano, alguns
generais e tropas do exército apressaram-se por nomear outro Imperador, e a
escolha recaiu sobre um oficial de carreira e conhecido por sua dedicação ao
exército: Valentiniano, e para contrabalançar o poder deste, foi nomeado também
um vice-imperador (Cesar) especificamente para o Oriente: o seu irmão Valente,
em 28 de março de 364. Ambos eram cristãos, mas adivinhem qual era a
preferência de Valente, no tocante à religião? ... Quem disse arianismo, acertou.
Como as malas da última fuga ainda nem tinham sido desfeitas, Atanásio,
pressionado por Valente, aproveitou-as e partiu de novo para o exílio.
Mas
enquanto o combativo bispo de Alexandria sofria mais esse revés, no lado ariano
terríveis tragédias estavam acontecendo: Joviano, tivera um filho em 363 com
sua esposa Charito, e ao completar um ano apenas, o pai o fizera cônsul de
Roma, colocando-o perigosamente próximo da linha de sucessão. Essa foi a sua
desgraça. A do menino. Quando Valentiniano e Valente subiram ao trono viram na
pequena criança, quase bebê, uma ameaça em potencial, alguém que poderia, mais
tarde, reivindicar o trono em nome de algum grupo dissidente, por isso
resolveram o problema de uma vez: cegaram a criança, provavelmente sacando fora
um de seus globos oculares, uma vez que a lei romana proibia que pessoas
desprovida de algum órgão ou membro se tornasse governante. O quadro se fechou
com o semidesaparecimento de Charito, que para a obscuridade para que os
holofotes não atraíssem a ira sobre sua pessoa, e não acontecesse coisa pior
ainda a ela e ao seu filho. E desapareceram da história. Na véspera imperatriz
de Roma, no dia seguinte uma fugitiva, com a ameaça de uma espada
permanentemente sob a cabeça.
Como disse acima, Valente, cercado
de arianos, começou a fazer mudanças na sedes episcopais, em favor destes,
inclusive em Alexandria, onde Atanásio mais uma vez partiu para o exílio junto
aos seus amigos monges, mas a reação do povo cristão da cidade foi tão violenta
que Valente teve que voltar atrás, e Atanásio voltou, pela última vez à sua diocese,
literalmente nos braços do povo. Enquanto isso no Ocidente a reação nicena
continuava, inclusive com o apoio do Papa Libério, que renegara a fórmula ariana
proposta pelo duplo concílio Seleucia-Rimini, que por sua vez o levara a
renegar o credo niceno original, voltando afinal para o seio da ortodoxia, mas
já sem nenhuma moral para dirigir a reação, ele é o único Papa desse período
heroico da Igreja que não foi canonizado.
Nesse mesmo período começaram sérias
discussões sobre a natureza do Espírito Santo, com alguns questionando a sua
divindade, e nela Atanásio já tomou parte, apesar de sua idade avançada, e de
todas as marcas das perseguições passadas, em defesa da divindade plena da
Terceira Pessoa da Trindade. Não faltaram debates acalorados e novas dissenções
a respeito. Mas a questão ariana ainda não estava encerrada.
Em 370, depois da morte do patriarca
Euzoio, ariano convicto e batizador de Valente, recomeçaram as disputas, com os
católicos elegendo a Evagrio, que imediatamente se fez consagrar, mas sua
consagração foi invalidada por Valente que o mandou para o exílio. Continua a
esse respeito Hubert Jedin: “Como os católicos rechaçaram com resolução ao
candidato de dos arianos Demófilo, o imperador procedeu contra eles com a maior
dureza e estendeu imediatamente a perseguição às províncias... Todos os bispos
deveriam subscrever a fórmula de fé de Rímini-Seleucia; os recalcitrantes
perderiam suas sedes. Os funcionários controlaram em todas partes, com o apoio das
tropas, a execução das ordens imperiais, contra o baixo clero e os monges, cuja
oposição foi castigada com prisão e deportação. A onda de perseguição atingiu
com especial dureza a Síria... O bispo Melecio teve que partir para o exílio
pela terceira vez... os bispos de Laodiceia, Edessa, Batna, e Samosata foram
desterrados...” (idem, idem, p 107-108)
No Egito, porém, ele já havia
aprendido a lição, com o famoso e irredutível Atanásio à frente da principal
diocese, e com um ardorosos fã-clubes espalhado por todo Império, ele preferiu
não mexer, deixando a província livre de sua interferência, de tal sorte que
ele pode terminar em paz o seu ministério, até a sua morte, em 2 de maio de
373. Morte ditosa, na presença de amigos e discípulos, um dos quais, Pedro II,
tornou-se seu sucessor, designado por ele, e, assim como seu mentor, foi um
ardoroso antiariano. Valente, percebendo o momento, resolveu intervir, ordenando
a expulsão de Pedro e a nomeação, em seu lugar, de um preposto ariano de nome
Lucio, que já havia experimentado ocupar a sé de Alexandria por um curto
período em 363, quando foi posto a correr pelo povo.
Pedro foi se abrigar junto ao Papa
Dâmaso, que o acolheu e o apoiou decididamente na sua luta, e lá ele ficou,
esperando a oportunidade de voltar, o que só aconteceu após um sínodo em Roma,
em 377, onde foi reafirmado solenemente, mais uma vez, o símbolo de Niceia, e o
governo de Valente já estava desgastado e abalado pela morte de seu irmão
Valentiniano, num ataque de raiva contra as ameaças de uns embaixadores
germânicos na fronteira da Germania, em 17 de novembro de 375, enquanto isso. A
volta de Pedro a Alexandria não deixou de ter seu lado cômico, pois Lucio, o
substituto, para não perder o costume, foi posto novamente em fuga pela ira do
povo, permitindo bispo legítimo reassumir a sua sede naquele mesmo ano,
dirigindo-a até a sua morte em 381
E que fim levou Valente? Acontecimentos
internacionais, ocorrendo muito além do seu campo de visão e de qualquer
morador do Império Romano, acabaram levando à sua perda. À medida que povos
pastores de origem turca, como os hunos, se deslocavam pelas planícies da Rússia
e da Ucrânia, vindos da Ásia Central, avançando na direção do Ocidente, foram, com
esse movimento, empurrando os povos à frente, que em desabalada fuga iam se
jogando sobre aqueles mais a ocidente, até formar um tsunami irresistível de
povos em fuga, que, acabaram por se chocar com as guarnições das fronteiras
orientais do Império Romano, na Europa Balcânica, na área de jurisdição do
Império romano do Oriente. Um desses povos, na verdade uma confederação de
povos culturalmente aparentados, os godos, composto pelos visigodos, nossos
ancestrais europeus, e os ostrogodos, pediram ajuda aos romanos para enfrentar
os hunos, enquanto invadiam territórios do Império.
Valente,
percebendo o tamanho da encrenca que seria enfrentar aquela massa de gente,
concordou com a proposta, mas não soube conduzir adequadamente os acordos, sem falar
que a corrupção generalizada dos funcionários imperiais ajudou a criar um clima
de desconfiança e insatisfação dos godos contra os romanos, até que em 376 começou
uma guerra aberta entre os dois povos, com uma vitória goda em Marcianópolis,
na Bulgária atual, diante de uma tropa comandada por um prefeito corrupto. A
guerra se generaliza e novos grupos, inclusive de hunos, começaram a entrar
pelas fronteiras do Império, inclusive a pedido dos líderes godos, com quem
faziam aliança. Valente, animado com alguns sucessos parciais de suas forças,
resolveu sair ao encontro dos godos, apesar dos apelos de prudência de seus
generais e de se sobrinho, Graciano, que estava vindo do Ocidente com
importantes tropas para reforçar o exército do tio, mas Valente, que era de uma
família onde se morria de raiva, literalmente, não podia esperar, e pôs os seus
homens em marcha forçada para ir ao encontro do inimigo. Os soldados chegaram
cansados, encalorados e sedentos, e ainda assim foram lançados à batalha, de
forma desordenada, depois de negociações muito mal encaminhadas. Dos 30 mil
romanos, que se bateram contra apenas 20 mil godos em Adrianópolis, na Turquia
Europeia, no dia 9 de agosto de 378, e só uns 10 a 15 mil voltaram para casa.
Foi uma derrota esmagadora, para um exército inferior, e, como disse um
comentarista posteriormente, a maior derrota evitável da história de Roma, e
para ampliar a extensão de desastre, o Imperador Valente perece na batalha e o seu
corpo nunca foi encontrado – a versão mais provável é a de que, ferido no campo
de batalha, Valente retirou-se com uma guarda fiel, para um casebre campônio,
onde foi descoberto pelos godos, que os cercaram e puseram fogo na casa, sem
saber quem estava lá dentro, pois seria muito mais vantajoso pega-lo vivo e
troca-lo por um rico resgate.
Finalmente
a Igreja Católica podia respirar em paz, e aperfeiçoar a sua estrutura, a sua
teologia e a sua moral, depois de várias perseguições pagãs e de imperadores
cristãos, ansiosos por obrigar a padres e bispos, a se submeterem ao cristianismo
que aqueles achavam melhor.
Conclusão
A distorção ariana foi profunda,
abrangente e duradoura. Nunca uma corrente de pensamento heterodoxa, até hoje,
ameaçou tanto a integridade doutrinal e estruural da Igreja Católica, deixando
marcas e lições que até hoje a Igreja luta por aprender e aplicar. A mais
notável, sem dúvida foi a necessidade de autonomia frente ao estado ou
organizações estatais, o que compensa sobejamente a manutenção de um miniestado
dentro da cidade de Roma: o Vaticano.
De fato o zelo da Igreja Católica no
Ocidente em preservar sua autonomia deu azo inclusive ao seu oposto: o impulso
de controlar o estado, e criar uma teocracia no Ocidente, ainda mais porque ela
era a única estrutura complexa de governo que ainda funcionava adequadamente,
após o colapso do Império Romano, após as ações desastradas de imperadores,
como Valente, que interferiam abusivamente nos assuntos da Igreja, enquanto
perdiam de vista o foco na preservação das estruturas políticas, econômicas e
sociais do império, e se fechavam para as novas possibilidades que se abriam
com as mudanças sociais que estavam acontecendo no período e que apontavam para
a falência da estrutura milenar da Velha Roma, e a urgência de novas estruturas
mais descentralizadas, compatíveis com o
incrível aumento de diversidade cultural trazido pelas migrações do século IV e
V, talvez até no modelo das bispados católicos – não é mais correto falar desse
período em termo de “invasões”, como se os deslocamentos dos povos germânicos
fosse proposital, e m conscientemente interessados só em roubar a riqueza
amealhada por Roma, embora isso também existisse.
Enquanto a Igreja Católica do
Ocidente, mantendo-se independente dos poderes políticos, pode crescer sem
muitos contratempos, a partir da ampliação e diversificação de sua teologia,
sua mística, ação pastoral e abordagem filosófica das sociedades humanas, a
Igreja Católica Oriental, ou Ortodoxa mantendo-se conscientemente sob o
guarda-chuva do estado, tanto no Império Bizantino como na Rússia, na Grécia,
etc. via-se engolfada pelos fracassos políticos desses estados, que acabaram
tombando aos golpes da potência turca que se impôs à região, e acabou perdendo
o controle sobre suas mais importantes sedes episcopais, aquelas herdadas da
ação direta dos apóstolos, de forma definitiva ou provisória, tendo que se
submeter parcialmente aos ditames e regras de outra religião, o Islã, sem falar
que se viram obrigadas a cada tentativa de reforma em dar satisfações às
autoridades civis constituídas, pouco propensas a tolerar mudanças religiosas,
ainda que necessárias e corretas, com o fito de evitar transtornos políticos em
virtude da ligação umbilical da Igreja com o estado, que transformavam as
disputas religiosas em penosas certames políticos, contaminados por todo tipo
de interesses mundanos – como vimos no episódio recente da guerra entre Rússia
e Ucrânia, quando ortodoxos russos, em Kiev, começaram a hostilizar abertamente
o governo e até a gente do país, para defender a sua lealdade política a
Moscou.
A história vitoriosa de Atanásio,
hoje santo da Igreja que o perseguiu, nos mostra que, a partir de nossa
compreensão das coisas, agindo sempre em absoluta boa-fé, cada um é sacerdote,
bispo e papa de suas próprias decisões, e deve corajosamente se ater a elas,
seja em que circunstâncias forem, até sermos honestamente convencidos do
contrário, pois com certeza, pelo que depreendemos das citações de Ap 3,15-16;
Mt 23,23-36; etc. Deus abomina acima de tudo a hipocrisia, a traição e o
oportunismo, e se por acaso errarmos, lembremo-nos das palavras do Discípulo
Amado: “se o nosso coração [a consciência] nos condena, Deus é maior que o
nosso coração” 1Jo 3,20.
Só ele sabe tudo e lembra de tudo
que nos levou àquele caminho, e com que intensão e carga de coragem e coerência
tomamos cada decisão em nossa vida.
Que o Espírito Santo nos oriente nesse momento tão difícil!
Vol 7 homoousion; e vol 11 councills of Nicea
Negri, Gaetano;
Julian the Apostate; trasl. Duchese Lytta-Visconti-Arese; T Fisher Unwin;
London, 1905 (vol 1 e 2) parcialmente
Notas:
1 – Um concepção
teológica, bastante influenciada pela sociedade imperial romana, fortemente
hierarquizada, tendia a ver o Filho e o Espírito Santo como de alguma forma
subordinados ou inferiores ao Pai, na Santíssima Trindade.
2 – Um autor, o
bispo e intelectual anglicano Rowan William afirmou sobre Ario: “Ele era de
estatura muito alta, com semblante abatido... sempre vestido com uma capa curta
e túnica sem mangas; ele falava gentilmente e as pessoas o achavam persuasivo e
lisonjeiro." (Arius: heresy and
tradition; 2002, edition revised).
3 – O sabeianismo,
de Sabelio, prega que Deus “é uma mônada [uma unidade irredutível],
expressando-se em três operações: como Pai, na criação: como Filho, na
redenção: como Espírito Santo, na santificação. É possível (a evidência é
incerta) que ele também sustentasse que a mônada divina passou por uma processo
de "expansão" ou "extensão", projetando-se primeiro como
Filho e depois como Espírito”.
4 – Segundo também
Jesús Álvarez Gómez, religioso e historiador espanhol “Ário mantém os termos
tradicionais, de que Cristo é “Filho de Deus”, Cristo “é Deus”, mas os
interpreta em sentido restritivo; Cristo é Deus, mas apenas até certo ponto,
porque para ele [Ario] só o Pai é “verdadeiro Deus”. Ário entende a natureza do
Logos como mediador da criação segundo o modelo conceitual do Demiurgo
Platônico, o intermediário entre Deus e o mundo material [um anjo]. O Logos é o
protótipo da criação, uma criatura plena, à imagem e semelhança do Deus
invisível, mas não pode pertencer plenamente ao reino do divino, mas sim ao reino
da própria criação; e, consequentemente, houve um tempo em que o Logos não
existia. Ele é a primeira criatura, o instrumento pelo qual tudo foi criado. O
Logos é o resultado da decisão livre e não necessária da vontade do Pai, não da
necessidade de sua essência.
Com estas teorias,
parecia que Ário nada mais fazia do que radicalizar o subordinacionismo,
predominante nos Padres da Igreja dos três primeiros séculos que de alguma
forma "subordinaram” o Filho ao Pai; e deste modo a doutrina ariana não
constituía, à primeira vista, uma novidade, mas uma continuação da teologia
tradicional...[ou de pelo menos uma certa ‘corrente’ da teologia]
No fundo, Ário
também não reconheceu a humanidade de Cristo em sentido pleno, pois o Logos
para ele não é Deus, mas a “alma do mundo”, que está unida a um corpo, na
medida em que assume carne, mas não se torna homem, mas ocupa o lugar da alma
humana em Jesus de Nazaré; Ou seja, Cristo não é Deus e homem, mas um ser
intermediário” (Historia de la Iglesia –
Edad Antigua; Biblioteca de Autores Cristianos; 2001; Madrid; p 239-240). Creio que com isso o leitor pode ter uma
ideia razoavelmente clara de para onde se encaminhava o pensamento de Ario,
5 – Eis um pequeno
trecho da carta reproduzida por Rops (idem; idem). “Refletindo sobre a origem
da vossa divisão, vejo que a causa é insignificante e não é suficiente para pôr
as almas em tanto alvoroço... Quantas pessoas há que compreendam uma matéria
tão difícil? ... No fundo, pensais o mesmo e podeis facilmente chegar à mesma
comunhão de ideias. - Permanecei unidos! ... Porque, decididamente, não se
trata de um ponto essencial da fé: no culto de Deus, ninguém pensa em
introduzir um novo dogma”. Um romano prático decerto diria: “tanto faz
acreditar na divindade de Cristo como não, o importante é realizar o culto
direito”. Ele chega ao cúmulo de comparar essas questões com aquelas levantadas
pelas várias escolas filosóficas que existiam, que estavam sempre às turras,
mas que ao final se entendiam...
6 – “O prestígio do
Arianismo nunca residiu nas suas ideias. Qualquer que seja a escola de tenha se
derivado logicamente, a seita, como seita , foi embalada e nutrida pela
intriga. Salvo em alguns poucos casos, que podem ser explicados por outros
motivos, seus profetas confiaram mais na influência da Cúria do que na piedade,
ou no conhecimento das Escrituras, ou na dialética. Isto deve estar
constantemente em nossa mente,
7 – Essa posição,
por exemplo, era defendida por Paulo de Samosata.
8- Hubert Jedin,
reconhecido historiador da Igreja, disse sobre ele: “Juliano era de um
temperamento complicado... Sua atitude ascética fundamental o levava a
despreciar no só a pompa externa... como também o conforto pessoal, até o
descuido quase repulsivo de cuidado com o corpo, o que por outro lado o preservou
de todo excesso sexual [muito comum aos pagãos da época]. Teve para seus poucos
amigos uma fidelidade inquebrantável, embora no geral tendesse a ter pouco contato
com as pessoas, sobretudo com os súbitos. Em público se mostrava-se nervoso e
contido; sem embargo, sua valentia e seu comportamento simples, sem exigências,
na guerra, lhe granjeava o respeito de sus soldados. Mantinha inexoravelmente as
decisões já tomadas e era intransigente com os pontos de vista divergentes dos
seus. Tinha um exagerado pudor em ser ovacionado pelas multidões mas alardeava
abertamente as suas próprias virtudes. Quando os de Antioquia o importunavam
com as suas brincadeiras, por causa do seu antiquado desprezo pelo teatro,
pelos espetáculos, por seu jeito descuidado e sua religiosidade exagerada, reagiu
asperamente... e admitia com franqueza que não tinha senso de humor... durante quase
uma década, mantivera oculta a sua mudança de religião e continuava participando
do culto cristão...[quiçá por medo de Constâncio]” (Manual de história de la Iglesia; Herder; Barcelona; 1980; vol II;
p 93-94; tradução livre)
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