sábado, 24 de outubro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – II

Prof Eduardo Simões

A Vertigem Romana

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O conjunto das mudanças ocorridas na totalidade da bacia do Mediterrâneo, e em especial no interior da sociedade romana, provocada pelas vitórias no campo de batalha, e o ingresso de imensas legiões de escravos, tumultuaram seriamente a estabilidade da república romana, desafiando a capacidade adaptativa de sua elite política, que ao final saiu ainda com força, mas bastante enfraquecida e modificada. O que começou a acontecer do século I a.C. é que as mudanças no interior da sociedade romana reclamavam um novo arranjo de forças, a qual os antigos proprietários, os patrícios da elite senatorial resistiram, violentamente, já ao final do século II, com o massacre dos irmãos Graco.
A cisão entre o sistema político e as novas aspirações de vastas camadas da população continuou a crescer, abrindo caminho a generais ambiciosos, que tomando ora o partido do grupo senatorial ora do grupo “popular”, buscavam abrir caminho para viabilizar seus projetos pessoais. Entre os quais se destacaram Lucio Cornélio Sila (pelo partido senatorial), general competente e político brutal; Caio Mario (pelo partido popular), técnico arguto e excelente estrategista militar, mas politicamente deficiente; Cneu Pompeu (pelo lado que mais lhe conviesse à ocasião) gênio militar, mas político ingênuo; Caio Júlio César (pelo partido popular), genial em todos os sentidos, mas absolutamente cínico; Marco Licínio Crasso (pelo partido do seu dinheiro), o vencedor de Espártaco, mas que só tinha interesse por saque.
Esses generais perceberam, antes que a maioria dos senadores e da classe patrícia, que a forma como a república crescera, com expansão territorial e captura de inúmeros escravos, os beneficiava de tal forma que já não precisavam se ater tão estritamente às leis e aos costumes tradicionais de Roma – muitos deles sequer eram romanos de nascença, como Mário – que, no passado, foram a força fundadora, sustentadora e orientadora de tantas vitórias. Mais valia ganhar o coração da maioria dos soldados que todos os votos do Senado, sem falar que era mais barato, afinal as despesas sairiam na conta do Tesouro, e dava bem menos trabalho.
O exército romano, já no final do século II a.C., devido as perdas das Guerras Púnicas e a necessidade de intervir em outros cenários de guerra, por toda a bacia do Mediterrâneo, mudara consideravelmente a sua natureza, principalmente após as reformas de Mário, que, feitas num momento de grande estresse nacional, abriram o exército ao recrutamento de todo e qualquer cidadão, romano ou italiano que dele quisesse fazer parte, extinguindo o seu caráter censitário anterior, quando só aqueles que tivessem algum recurso, que pudessem pagar seu equipamento, e arcar com o afastamento de seu lar e negócios, confiado que após a guerra seria compensado com terras tomadas ao inimigo. Era enfim um exército das classes superior e média rural, com propriedade e família constituída, com um forte sentimento de honra pessoal e dever para com a sua cidade, capaz de saques e crueldades, mas passível de controle.
Com a mudança da política de recrutamento, os deserdados da sorte, desempregados e endividados, passaram a formar o grosso do exército, e mesmos esses provinham em sua maior parte do falido campesinato italiano, pois os proletários (pobres) romanos preferiam viver sem trabalhar, como clientes de um ricaço ou do estado, longe dos azares da guerra. Nessa época, como o exército ainda não tinha desenvolvido uma política de soldos regulares, os soldados viraram-se para seus generais a fim de que eles os recompensassem regiamente por sua lealdade, tornando aqueles muito lenientes com os saques de suas tropas sedentas, inclusive dentro de Roma, quando vinha à tona o desprezo histórico que o povo da cidade tinha pelos habitantes da península, e agora, por seu exército. E vice-versa.
Generais gananciosos, mas muito competentes, atiravam seus exércitos, sedentos de saque, uns contra os outros, para tomar o poder e ter acesso à chave do cofre. Numa sequência de guerras civis de alcance, ferocidade e mortandade poucas vezes vistas na história, a península italiana se viu inundada de violências e mortandades brutais, ao longo de boa parte do século I a.C., quando a República Romana experimentou seus extertores finais. O Senado, um ponto de equilíbrio outrora poderoso e respeitado, quedava impotente ante tantas mudanças, invariavelmente agravando-as contra si mesmo. Conseguirá, decerto, sobreviver á tormenta, mas apenas como uma sombra daquilo que um dia fora.
Nessa época, sem outra lei que a vontade dos generais, era vital, politicamente falando, tomar o lado certo. E só havia um lado certo: o do vencedor, e, infelizmente, os asmoneus não conseguiram escolher esse lado, levando a Palestina a ser assolada por esse exército ainda em transição, seguido por funcionários claudicantes e corruptos, ainda longe do controle que sobre eles o império conseguirá, afinal, impor. Quando esse tempo chegar a incompreensão e o ressentimento terão envenenado de tal forma as relações entre judeus e romanos, que uma convivência será impossível. Mas antes disso recuemos ao fim dos asmoneus.

A Vertigem Asmoneia

Os acontecimentos na Palestina, durante o reinado de Alexandre Janeu, reproduziam, numa escala menor, as guerras fratricidas por que passava a península italiana, embora com efeitos graves, que deviam deixar a elite romana se contorcendo em cólicas, uma vez que da estabilidade da Palestina dependia a estabilidade da principal rota de comércio do mundo, da qual essa elite era a principal beneficiária. À morte de Alexandre Janeu sucedeu uma nova guerra civil, quando a rainha Salomé (74-67) tentou direcionar a sucessão do marido, para o seu filho primogênito Hircano II, escolha essa contestada por seu filho mais moço, Aristóbulo II, que aproveitou a doença terminal da mãe para dar um golpe no irmão, depondo-o, em 67 a.C.
Enquanto os Asmoneus brigavam entre si, famílias poderosas aproveitavam para tirar partido e aumentar a sua riqueza e poder político, entre elas a de um certo Antípatro, de origem idumeia (árabe), que, junto com outros idumeus residentes em território judaico, fora obrigado a se converter ao judaísmo, mas continuavam a sofrer discriminação por parte do povo, que se recusava a reconhecê-los como iguais, permanecendo estrangeiros dentro de seu país e de sua religião. Em 63 a.C., manobrando pelos bastidores, Antípatro consegue que Hircano II se associe a um rei nabateu, outro povo de origem árabe, e partem para o ataque contra Aristóbulo II.
Era demasiado! Outro povo estava sendo atraído para dentro do vórtice asmoneu. O general romano Cneu Pompeu, que, à frente de um poderoso exército, estava em operação na Ásia Menor, tentou pacificar as partes, mas também aproveitou para descer com suas legiões à Palestina. Os adeptos de Aristóbulo II se fecham em Jerusalém, mas os de Hircano II lhes abrem as portas, e, após três meses de luta, os romanos conseguem tomar o recinto do palácio real e a totalidade do Templo, finalizando o conflito, provavelmente no outono de 63 a.C. Pompeu entrou pessoalmente até o Santo dos Santos, que lhe era vedado, e deve ter ficado muito admirado por não ter encontrado nada ali. Ele fez ainda, pessoalmente, um minucioso inventário do tesouro do Templo, mas não tocou em nada, contentando-se em mandar prender Aristóbulo II e leva-lo para Roma, enquanto designava Hircano II para a função de Sumo Sacerdote e Antípatro, que já se colocava ao lado dos romanos, e era mais leal e ativo, como chefe político. A inflexibilidade, a falta de tato político dos asmoneus, sem falar de sua brutal incapacidade de ler a conjuntura, pusera a perder o seu reino, atraindo os romanos para dentro da Palestina, o que causava um grande ressentimento no povo.
Antípatro morreu precocemente, envenenado, mas foi o pai de um governante famoso e estreitamente ligado à história de Jesus: Herodes Magno, o da “matança dos inocentes”, que o sucederá de imediato, exercitando aquilo que sua gente sabia fazer muito bem: a vingança, mandando matar o assassino de seu pai, e a sua lealdade para com os romanos. Longe de ser apenas um matador cruel e psicopata, pois certamente não teria durado tanto tempo no poder, uns 44 anos, Herodes foi um dos reis judeus mais empreendedores e bem sucedidos de todos os tempos, embora também um dos mais execrados e detestado pelo povo, justamente por causa de suas ligações com os romanos.
Embora não tivesse, a princípio, nenhuma razão para temer um Messias, a oposição encarniçada que lhe moviam os asmoneus, as principais famílias judaicas e até o povo, que nunca lhe perdoou a sua origem idumeia, sem falar do clima de intriga dentro da própria família, cresceu nele uma espécie psicose, uma mania de perseguição, que lhe fazia ver traições em toda parte, tomando medidas preventivas violentas, que só aumentavam a sensação de isolamento e insegurança. Mas, fora isso, ele fez o possível para agradar aos judeus e mostrar que era um deles... em vão. É possível que ao final tenha desenvolvido um sentimento “pesado”, um forte ressentimento, contra o povo que tanto o rejeitava, aparentemente sem razão. Durante o seu reinado, graças a sua habilidade política, a Judeia atingiu a sua máxima extensão territorial, desde que o fim do Exílio, enquanto no plano religioso, investiu pesado na reconstrução e embelezamento do Templo, criando um conjunto arquitetônico magnífico.

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         Enquanto Herodes confirmava a cada momento sua lealdade a Roma, os asmoneus só “queimavam o seu filme”, até que um dele, Antígono II Matatias – um macabeu com um nome selêucida! – se aliou aos maiores inimigos dos romanos no Oriente: os partos, para tomar Jerusalém, em 40 a.C., aproveitando-se do caos e da guerra civil que seguiram ao assassinato de Julio César, tornando-se o último asmoneu a ocupar efetivamente o cargo, contando, inclusive com o apoio dos fariseus, inimigos mortais, até ali, da sua família. Em 37 a.C., porém, tropas mistas, romanas e orientais, tomam Jerusalém  de Antígono II, e dessa vez há um saque generalizado, que, segundo relatos da época, Herodes tentou evitar e pediu clemência aos romanos, para não vir a se tornar o “rei de um deserto”. Antígono II, preso, é considerado tão perigoso que os romanos, o fazem executar. É a primeira vez, na história de Roma, que um rei, membro de família real, e não um chefe de tribo rebelde, foi morto após ter sido aprisionado.
Quando Jesus nasceu a situação era a seguinte: o poder de Herodes estava mais firme do que nunca, embora ele continuasse também mais odiado do que nunca, pelos grupos da elite judaica que lhe disputavam o poder e não lhe perdoavam o fim trágico a que submetera os últimos sobreviventes da ilustre família dos macabeus. Já o povo, o repudiava, por não considerá-lo um autêntico judeu, e por estar associado a uma potência estrangeira, que mantinha tropas pagãs em seu território sagrado, e que lhes arrancava impostos para suprir sua máquina de guerra e serviços públicos, inclusive para levantar templos pagãos.
No geral, porém, havia uma grande prosperidade, que transparecia nas inúmeras obras de engenharia de grande porte, que se espalhavam pela Terra Santa, cujos vestígios ainda hoje impressionam. A pax romana trouxera uma dinamização tremenda do comércio oriental e os seus frutos apareciam abundantes, sedutores e ambíguos, contra os quais um misterioso messias galileu fará inúmeros alertas. O enriquecimento financeiro era uma possibilidade real para muitos na Palestina. A diferença entre pobres e ricos, normalmente insignificante em povos que preservam uma cultura tribal, pode se tornar em um abismo, durante um processo acelerado de urbanização e acúmulo de capitais, gerando muito desconforto e tentativas de explicação sobre o que passava. Havia um vazio de sentido em tudo aquilo. Eram tempos de dúvidas, de busca por respostas...

         Um Certo Galileu

         Em algum momento, no governo de Tibério em Roma, sendo Pôncio Pilatos prefeito da Judeia (26-36), começaram a aparecer às elites religiosas, em Jerusalém, notícias de ajuntamentos de consideráveis, em torno de um pregador religioso, carpinteiro por profissão, que empolgava as massas na Galileia, território dominado pela família herodiana, mas sob a jurisdição religiosa do Templo. “Mais um messias, entre tantos”, devem ter pensado as autoridades religiosas judaicas, mas, como era do seu dever, resolveram investigar, assim como o fizeram os representantes das outras facções religiosas e políticas. Afinal era a partir do discurso religioso que tinham início os levantes armados contra a dominação estrangeira, até ali registrados, e, certamente, todas essas facções se aproximaram dele na tentativa de responder à seguinte indagação: do que lado ele está?
         A princípio tentou-se fazer uma ligação entre este pregador galileu, oriundo de uma cidadezinha irrelevante, Nazaré, com outro pregador poderoso, tão respeitado quanto temido pelas elites religiosas acomodadas: João Batista, recentemente executado por Herodes Antipas, filho de Herodes Magno, governador da Galileia (1), mas ao que tudo indicava, o galileu, conhecido pelo nome de Jesus, ia mais além em sua mensagem. Era mais heterodoxo que João e seu raio de ação bem mais abrangente.
         Sua pregação moral era bem mais rigorosa do que a que a tradicionalmente ouvida pelos judeus, mas nada que ferisse a sensibilidade dos mais zelosos guardiões das “verdades” vigentes, mas quando se tratava de observâncias rituais, ele parecia ir justo o contrário do que pregava o grupo mais popular: os fariseus, o que enfraquecia um pouco a sua penetração entre os mais pobres, enquanto gerava divisões em seus observadores, uma vez que se fazia preceder por sinais, curas e outros acontecimentos incomuns, que calavam fundo a quem os presenciava. Fariseus, saduceus, zelotes e gente avulsa tentaram contraditá-lo, mas ele mostrava uma habilidade incomum simplificar as questões mais complexas e de não cair nas armadilhas casuísticas mais sutis, fazendo cair nelas os autores mesmos de tais armadilhas. Ele não era agressivo, mas fazia inimigos apaixonados com uma facilidade impressionante.
         Ambígua era também a reação das pessoas comuns, nas comunidades por ele frequentadas, uns o aceitavam entusiastas, enquanto outros o rejeitavam imediatamente. A sinagoga estava dividida. Mas aos poucos, à medida que a percepção de sua mensagem ia se revelando em toda a sua profundidade e contradição com o senso religioso comum ou politicamente correto da sociedade, o que era entusiasmo tornou-se rapidamente em decepção e franca hostilidade, e as entusiásticas multidões dos primeiros tempos começaram a se afastar dele. Até mesmo a seus mais ardorosos discípulos, posteriormente chamados apóstolos, ele chegou, um dia, a questionar se o queriam abandonar também.
         O grupo de pessoas mais próximas, que sempre estava ao seu lado, também não se qualificava para dar credibilidade, havia pescadores, gente da pequena “classe média”, mas todos galileus e ignorantes das mais elementares questões teológico doutrinárias, um era mais endinheirado e culturalmente bem preparado: João, mas sua pouca idade não o recomendava muito, havia um zelote, de nome Simão, que assim como os outros deve ter procurado, em vão, algum matiz sangrentamente “revolucionário” na mensagem de Jesus, mas, aparentemente, só ele ficou para ver no que “aquilo” ia dar.
Havia também a questão da sua aproximação com os publicanos (2); um deles, Mateus, se tornara seu discípulo, e será inclusive o seu biografo mais próximo à nação judia. Sentido a reação negativa do povo em relação às exigências do seu reino messiânico, Jesus, ferindo fortemente o senso comum, certa vez dirá: “os publicanos e as prostitutas vos precederão”, frase zelosamente conservada pelo publicano Mateus (21,31), mas será também em Mateus, que Jesus mandará o cristão empedernido seja tratado “como o gentio e o publicano” (18,17), que eram isolados, afastados, do convívio com a comunidade judaica, querendo, decerto, ensinar a atitude adequada ao homem comum em relação aos rebeldes, por meio de uma analogia, facilmente compreensível entre os judeus, a quem o evangelho era dedicado, e também para ensinar que ele não tomava partido incondicionalmente por ninguém. Mas essa segunda parte da mensagem não foi entendida por ninguém, porque num ambiente tão faccioso da Palestina do século I ninguém a conseguiria ouvir... O elogio que Jesus fará ao centurião (Mt 8,10) deve ter sido para muitos o “fim da picada”.
Mas se a sua aproximação a pessoas consideradas moralmente suspeitas escandalizava o homem comum, a sua interpretação da Lei obteve para ele inimigos encarniçados da parte dos fariseus, que, também é bom que se diga, ficaram divididos em relação à sua pessoa, e alguns deles se tornarão seus discípulos, embora em segredo, à medida que o isolamento desse estranho rabi aumentar. Favoreceu a esse isolamento a hostilidade do grupo herodiano-saduceu que, numa manobra até ali inimaginável, se aliou aos fariseus para combater o pretenso messias. É impressionante o nível de ameaça que uma mensagem, aparentemente tão singela, flexível e moralmente óbvia, como a de Jesus, provocava no coração daqueles homens.
A elite judia estava muita coesa em sua repulsa a Jesus, mas dividida quanto a forma de combatê-lo ou de silencia-lo, de forma eficaz, assim como perigosamente dividido estava o povo – novamente empolgado, agora com notícia de que ele ressuscitara um morto. Num debate, na casa de Caifás, vivamente descrito por um dos biógrafos de Jesus, João (11,50), acertou-se que o problema de Jesus deveria ser tratado não por via moral ou teológica, mas política, aproveitando-se do acesso e prestígio de vários dos presentes junto às autoridades romanas, para apresentá-lo como um perigoso agitador, justificando legalmente o seu assassinato, dividindo a responsabilidade com o odioso opressor, a quem Jesus, quando convinha, era associado.
A ocasião propícia ocorreu, quando de uma desafiadora visita de Jesus à Jerusalém, durante os festejos preparatórios para a Páscoa, com o claro intuito aí fazer valer a sua lei, começando logo por derrubar as bancas dos comerciantes, a principal fonte de lucro daqueles que viviam a expensas do Templo, após uma entrada triunfal na cidade. Ele fora lançar a pedra inaugural do seu reino bem no centro do poder judeu-romano. Era demasiado, para os seus inimigos.

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Wikipedia

A prisão e o “julgamento” de Jesus foram irregulares em todos os sentidos, mas ninguém queria correr riscos, inclusive o funcionário romano encarregado do governo da Judeia: o prefeito Poncio Pilatos (3), um novo rico ambicioso, medíocre e carreirista, que, mesmo interiormente convencido da inocência do réu, preferiu executá-lo, como pediam as autoridades e uma claque reunida as pressas. Esse controverso juiz era um encrenqueiro, um homem culturalmente muito limitado e simplório, que jamais conseguiu compreender ou aceitar os costumes da terra, e adorava provocar a sua gente – seus quatro antecessores evitaram desfilar ou expor, pelas em Jerusalém, as insígnias das legiões, que tinham a imagem do imperador e de animais, alguns mitológicos. Pois bem, Pilatos fez, propositalmente, levar escudos dourados, com a imagem divinizada do imperador Tibério, seu protetor, para dentro da cidade de Jerusalém, à noite, e o fez pendurar nas paredes internas da Fortaleza Antônia, que ele escolhera para sua residência, bem ao lado do Templo. Quando os judeus souberam daquilo houve uma grande comoção e violências diversas nas ruas da cidade, ao que se seguiu uma ordem do imperador de transferir os escudos para Cesareia.
Pilatos, aparentemente não perdia uma oportunidade para demonstrar o quanto desprezava aos judeus e os seus costumes, como denuncia o episódio do letreiro da cruz, recebendo deles um ódio e um rancor sinceros, e sempre que podiam mandavam delegações a Roma para denunciá-lo. Aquele, sabendo que, na capital, a “sua batata estava assando”, consentiu na condenação de Jesus, cuja inocência e porte o impressionou vivamente, para agradar aos seus apaixonados desafetos, desafetos que ele criara gratuitamente. O seu ato de “lavar as mãos”, muito citado até hoje, “foi um ato de purificação vazio de conteúdo [hipócrita], insuficiente para suprimir a sua responsabilidade de consciência, uma vez que quem condena um homem inocente sob pressão, não está moralmente muito acima daqueles que a exercem” (Wikipedia em espanhol, tradução livre). Jesus foi crucificado fora dos muros da cidade e sepultado num local próximo (4). Dois dias depois, três na contagem dos orientais, aconteceu algo, que mudou a história o mundo e, de uma certa forma, fundou a Igreja.

O Primeiro Ato Fundante

Segundo as quatro narrativas que existem sobre a sua vida de Jesus, ele teria ressuscitado na madrugada do primeiro dia da semana judaica, e aparecido a vários de seus discípulos. De princípio não era um acontecimento tão fabuloso assim, uma vez que era comum, nas mitologias da área, a ressurreição de alguma divindade imortal (!), misteriosamente morta em algum incidente fabuloso, mas desta vez quem ressuscitara fora um homem comum, alguém que partilhara das angústias, canseiras e necessidades de outros homens e, mais ainda, longe de acontecer apenas em páginas de uma literatura imaginativa, mas desigual, ou diante de poucos nobres e ricos privilegiados, esta foi presenciada por homens e mulheres comuns, comuns até demais, que ficam como que em transe, frenéticos, com um sentimento de alegria e esperança que muitos autores nomearam como “indizível”, que fazem questão de se manifestar a respeito, e deixar bem claro que não falam de algo que leram ou ouviram falar, mas antes, que viram com seus próprios olhos! São testemunhas oculares.
Era o fim da mais antiga e profunda aspiração humana, a vida eterna, que os habitantes do Oriente Próximo conheciam muito bem já do antigo romance mitológico sobre a vida do rei Gilgamesh, que vai até os confins do mundo, com seu amigo Enkidu, para buscar a substância que lhe garantirie a vida eterna, e perde tudo, inclusive o amigo. A penúltima perda é a da esperança, quando retorna, acabrunhado e velho, para o seu palácio, e por fim perde a vida quando, reclinado sobre um sofá, adormeceu, descansando daquela vã e incrível aventura, e nesse momento morre, talvez ainda na ilusão de acordar no dia seguinte e continuar com os seus afazeres. Nunca mais o temor de que suas almas fiquem cobertas de penas, como as corujas, empoleirando-se sobre rochas e árvores secas, em um mundo frio e trevoso, comendo poeira e se dessedentando na lama dos caminhos, enquanto eram tratados que nem escravos por deuses cruéis, assombrará os homens...
Mais incrível ainda! Não seria necessário nenhum sacrifício para se ter acesso a essa vida eterna: ela nos seria dada de graça, antes mesmo de termos consciência de nós mesmos, como um dom gratuito de um Deus que “não cabe” em sua generosidade. Quantas vezes os discípulos não haviam escutado aquelas promessas maravilhosas dos lábios de Jesus e não pensaram consigo: “será que é assim mesmo? Estou entendendo direito o que ele está dizendo?” E, de repente estava ali a prova de que tudo o que ele dissera era verdade, e que o melhor ainda estava por vir. À medida que eles repassavam as palavras de Jesus que eles ouviram na intimidade; e quantas não foram que não chegaram até nós? Eles lembravam-se ainda da promessa de que muito mais coisa ainda iria acontecer, ser descoberta ou esclarecida com a descida de um misterioso “Espírito Santo”.
Nossa Igreja nasceu justamente desse momento, da necessidade de transmitir fielmente para todos os que viviam, e os que viriam depois, a certeza desse acontecimento ímpar: a ressurreição de Cristo, e os sentimentos originais que a cercaram: a alegria “indizível”, a esperança eufórica. O cristão não é apenas alegre, mas eufórico pela sua salvação e a dos outros, e é isso que devem transmitir a essa geração e às seguintes, e enquanto não falharem nessa missão haverá esperança para o mundo.

Notas
(1) O historiador judeu Flavio Josefo, em seu livro Antiguidades judaicas faz uma menção a João Batista: “Alguns judeus acreditam que a destruição do exército de Herodes foi obra de Deus [isso teria acontecido em 36], como uma punição pelo que ele fez contra João, chamado o Batista. Herodes o matou, a ele que era um homem bom, que impunha aos judeus a prática das virtudes, tanto como justiça para com os outros como piedade para com Deus, para assim merecerem o batismo... Assim quando (muitos) outros vieram em multidão para ouvi-lo, ansiosos por escutar as suas palavras, Herodes, que temia que a sua grande influência sobre as multidões pudessem ameaçar o seu poder, levando aquela gente à rebelião... achou melhor condená-lo à morte... Assim, devido as suspeitas de Herodes, ele foi levado prisioneiro para a fortaleza de Maqueronte, e lá executado...” (tradução livre da Wikipedia em inglês).

(2) Os publicanos eram ricos comerciantes em Roma, membros da classe equestre, que arrendavam, graças às suas boas relações, o direito de cobrar impostos nas províncias do império. Para operacionalizar a cobrança eles também faziam uso de agentes locais, também chamados publicanos – e são justo estes que mais aparecem nos evangelhos, talvez à exceção de Zaqueu, que deveria estar um grau um pouco acima. Na sua ação de cobrança os publicanos, quase sempre com o apoio de uma guarda armada, romana, colocavam-se em lugares estratégicos: praças, pontes, etc., e lá praticavam a sua odiada função. Era-lhes determinado previamente o quanto o estado esperava que arrecadassem numa região, e o que sobrasse seria o seu lucro, mas também se houvesse algum acidente climático ou conflito, e não fosse possível arrecadar o previsto, o publicano completaria de seu próprio bolso a diferença, donde lhes vinha a “gana”, até certo ponto compreensível de “arrancar o couro” do contribuinte, gerando grandes dissabores, até serem extintos no século II, substituídos por agentes públicos. Na Palestina de Jesus, eles eram particularmente odiados, por representarem os interesses de um povo invasor e pagão, contra o seu próprio povo, uma vez que os impostos que os judeus pagavam eram usados para sustentar o exército romano que, frequentemente, era usada contra os próprios judeus.

(3) A historicidade desse personagem está hoje mais que comprovada, assim como os detalhes do julgamento de Jesus, diz a Wikipedia em francês: “o primeiro autor cristão a falar dos Atos de Pilatos, é São Justino de Naplouse... que, por volta de 150, escreveu ao “imperador, ao senado e à todo o povo”, a primeira de suas apologias do cristianismo... Nessa apologia Justino faz referência  duas vezes aos Atos de Pilatos, que não fazem parte de futuros textos cristãos [evangelhos], mas às minutas do processo, conservadas nos arquivos romanos”... Jean-Pierre Lémonom compartilha, com outros autores, a crença de que “as “Atas de Pilatos”, às quais Justino se refere, dariam suporte a uma suposição de Justino, de que os romanos dispunham de arquivos que lhes permitiriam aferir a exatidão de suas afirmações [nesse caso Justino não estaria se referindo ao texto apócrifo chamado Atos de Pilatos, mas a documentos oficiais] ” ... outros autores observam que Justino supõe que seus interlocutores (gente da mais alta administração...) estejam a par da existência de um processo de Pilatos concernente a um Jesus... Justino não teve, provavelmente, as atas desse processo em mãos, mas ele poderia estar se referindo à versão desses Atos publicados por historiadores como Tácito, cujos livros dos Anais [minuciosa descrição de fatos, ano a ano, da administração romana], que cobrem exatamente esse período, não foram conservados” (tradução livre). O autor da Wikipedia em inglês alega que não era comum a governadores e autoridades provinciais fazer relatórios sobre a execução daqueles que não eram cidadãos romanos, mas pode-se contra argumentar com peculiaridade impar do processo de Jesus, e da própria gestão de Pilatos na Judeia. Ele estava sob pressão dos dois lados. Arqueologicamente, a existência de Pilatos veio a lume quando, em 1961, uma expedição italiana descobriu, nas ruínas de um teatro romano, em Cesareia, primeira sede de prefeitura de Pilatos, uma pedra onde constam os nomes de Pilatos e do imperador Tibério.

(4) Os locais da crucificação e da ressureição de Jesus, sem falar da tumba específica de José de Arimateia, estão, hoje, muito modificados e encobertos por um complexo de capelas, espaços e monumentos diversos, construídos desde o tempo do imperador Constantino, em 335, na chamada Igreja do Santo Sepulcro, com indicações numerosas e antiquíssimas de sua importância geográfica e religiosa. Dentro dela há uma situação complexa, uma vez que várias correntes do cristianismo nela se estabeleceram e lutaram, por vezes sangrentamente, pela posse dos lugares mais sagrados, a saber, o da crucificação e o da ressurreição de Jesus. Os gregos ortodoxos ocupam os principais lugares, enquanto os latinos católicos ocupam capelas secundárias. No final do século XIX, clérigos e estudiosos protestantes, ingleses, americanos e alemães, munidos de muita teoria, de uma arrogância histórica singular – o religioso e cientista inglês Edward Clarke disse, em 1821, que a Igreja do Santo Sepulcro era uma “mera alucinação de monges malabaristas” (traduzido da Wikipedia em inglês) – e, talvez, de muita pena, por verem esses lugares tão significativos para a nossa religião completamente modificados, sentimento que nós, ocidentais, decerto compartilhamos – os orientais têm uma percepção diferente sobre o significado e a preservação de monumentos históricos – e imaginaram ter descoberto o verdadeiro local da crucificação e sepultamento de Jesus, numa área situada fora das muralhas da Jerusalém de então, ao contrário da Igreja do Santo Sepulcro, à qual estavam associadas uma pedreira, um jardim e uma gruta, e começaram uma campanha na tentativa de esvaziar a Igreja do Santo Sepulcro, em favor do seu monumento, chamado de Jardim da Tumba. Hoje os estudos arqueológicos são definitivos, e apontam a completa impossibilidade do monumento protestante ser o verdadeiro, pelas seguintes razões: as muralhas romanas, que havia no tempo de Jesus, foram ampliadas na Idade Média, pelos árabes, de sorte a envolver o Santo Sepulcro, que antes estava fora; foram descobertas, em ruas próximas ao Santo Sepulcro, sinais de uma antiga pedreira, como descrito nos evangelhos; a distância do Jardim da Tumba para as muralhas romanas é muito grande, não faria sentindo crucificar um homem tão perigoso tão longe das portas da cidade; modernas técnicas de datação dão à tumba do Jardim uma fundação que se estende ao século VIII-VII a.C.


Bibliografia

Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966;

McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.

domingo, 11 de outubro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – I

Prof Eduardo Simões

A Providência Divina guia a história

         Os desígnios de Deus são tão misteriosos quanto surpreendentes e magníficos em seus efeitos finais. Quem poderia imaginar que da fusão de duas civilizações tão diferentes e distantes uma da outra, poderia florescer uma instituição religiosa tão abrangente e duradoura como a Igreja Católica, ela própria tão misteriosa e espetacular quanto as circunstâncias que a originaram?
         Para não estender demasiado esse relato, tomemos como ponto de partida o centro do mundo ocidental antigo, ao fim da Segunda Guerra Púnica, em 201 a.C., quando a elite política de um povo agrícola, amante do trabalho, prático, voluntarioso, muito apegado á sua cidade e estranhamente cônscio de uma missão universal (1) decidiu que estava na hora de dar uma lição no Reino da Macedônia, que tivera a infeliz ideia de aderir ao lado cartaginês.
Entretanto é importante considerar outro objetivo em mais uma guerra longínqua, muito mais poderoso, mais motivador, que a cultura belicista onipresente,  que, se não chegava aos extremos dos gregos, nem por isso deixava de embalar os sonhos dos adolescentes romano. Não, isso só não bastava para uma elite tão pragmática como eram os senadores patrícios e seus sequazes, que não perdiam de vista a enorme vantagem econômica advinda da conquista do território grego, cortado por importantes rotas terrestres, enquanto margeava as mais importantes rotas marítimas do Mediterrâneo Oriental, por onde circulava uma imensa riqueza. Se as fontes de matéria-prima do Ocidente já estavam garantidas, com a derrota de Cartago, por que não expandir, agora, para o Oriente, de lendária riqueza?
Após a decisão de uma assembleia dividida, ao convite de intervenção de importantes cidades gregas, um exército romano invade a Grécia, e após muitas vicissitudes, graças bom uso de uma arma tipicamente romana: a ação diplomática astuciosa, que dividia o lado oposto, as legiões conseguem uma vitória esmagadora sobre a falange macedônia, encerrando uma curta guerra (200 a 197 a.C.).
A vitória dos romanos na Macedônia, entretanto, rompera o equilíbrio de forças entre as potências do Mediterrâneo Oriental, rebentos opacos, abortos do império de Alexandre Magno, em especial daquele que se tinha como mais capacitado para encerrar os outros sobre o seu domínio: o Reino Selêucida, na Síria, cujo rei, Antíoco III, não tinha motivos para querer a presença de uma potência estrangeira ascendente, numa área que já considerava como de sua natural influência. Ademais, se a guerra com Roma era inevitável, que acontecesse logo, enquanto esta era novata na região, e vinha de uma guerra longa e custosa contra Cartago.
Antíoco toma a iniciativa, em 192, só para descobrir da inutilidade de confrontar o rolo compressor das legiões, que evoluíam, céleres, ao ápice de sua operacionalidade. Em 189 a.C., um exército romano, acompanhado por soldados de cidades gregas aliadas, desembarca na Ásia e aplica uma formidável derrota no exército selêucida, muito mais numeroso. Esses acontecimentos foram vitais para um pequeno povo, que vivia no centro do Oriente Médio, na Palestina, e que vinha a sofrer grandes dificuldades na sua convivência com os dois colossos, a Síria Selêucida e o Egito Ptolomaico, que lhes marginavam as fronteiras Norte e Sul. Esse povo eram os judeus.
Barrados no Ocidente pelo colosso latino, os selêucidas procuraram uma presa menor ao sul, o Egito Ptolomaico, mas nem por isso desprezível em sua capacidade de produzir riquezas desde tempos imemoriais, retomando o caos bélico engendrado pelos generais de Alexandre, os diádocos, após a morte daquele, que não paravam de buscar pretextos para guerras de anexação, desestabilizando áreas comerciais de primeira grandeza, coisa que os rústicos agricultores do Lácio logo perceberam como muito prejudiciais aos seus interesses. Mas como naquele momento, Roma, apesar de seu formidável poder de recuperação, precisava de tempo para se reorganizar internamente e se recuperar de tantas guerras, por isso fingiu-se desinteressada.
O campo de disputa das duas potências helenísticas acabou sendo justo a Palestina, que ficara sob a zona de influência egípcia, mas que possuía algo de que o Reino Selêucida precisava urgentemente para preservar a sua independência política: dinheiro, para pagar as contas da guerra contra os romanos, em especial a nota promissória assinada em Apameia, em 187 a.C., quando do tratado de paz. No seu desespero os reis selêucidas buscaram o caminho mais fácil: saquear templos, a começar por Antíoco III, que morreu na tentativa de saque ao templo de Baal, na Elimaida, não sem antes assegurar, no campo de batalha, a posse da Palestina, tomada aos egípcios.
Por volta de 180 a.C., finalmente, os selêucidas descobrem o caminho para o tesouro do Templo de Jerusalém, enviando para lá um de seus mais importantes personagens, um ministro do rei Seleuco IV, chamado Heliodoro, que, segundo o relato de 2 Macabeus (3,1-40), um tanto lendário, um tanto instrucional, não terminou bem – é possível que ao invés da intervenção de seres divinos tenha havido uma viva e bem-sucedida reação dos judeus ao saque de seu tesouro sagrado, o que explicaria a extrema má vontade e violência com que, daí por diante, os selêucidas os trataram. Tantas vexações absurdas e sem remédio (2) levaram um grupo de valorosos lutadores, chefiados pelo aguerrido patriarca de uma família também aguerrida, os Macabeus, a iniciar uma sangrenta guerra de guerrilhas, que era tudo que os selêucidas não queriam naquele momento, embora não conhecessem outra forma de debelá-la, que não a força bruta, agravando o conflito, enquanto se depauperavam os cofres públicos.
Judas, filho do patriarca, atento à conjuntura internacional, procurou se aproximar dos romanos, que, em 168 a.C., voltaram a atuar decisivamente na região, obrigando, com um ultimato, Antíoco IV a evacuar suas tropas do Egito. Essa aliança era, por sua vez, do interesse dos romanos uma vez que ajudava a criar problemas àquela que ainda era a única potência em capaz de lhe causar problemas consideráveis, além de tumultuar uma área de imenso valor estratégico: a Palestina – o capítulo 8 de 1 Macabeus traz detalhes desse tratado, retocado em outras circunstâncias (1 Mc 14,16-19.24; 12,1-4; 15,15-21), único em sua benignidade e abrangência, o que demonstra o quanto os romanos estavam atentos à importância da Palestina e à especificidade da nação judaica.


                    https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/ed/Ancient_Levant_routes.png
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O mais importante entroncamento de rotas comerciais terrestres e marítimas da Antiguidade, unindo diretamente grandes centros produtores e consumidores da Ásia Menor ou Anatólia (atual Turquia), Egito, Palestina, Mesopotâmia, unindo-os, indiretamente, a grandes centros produtores e consumidores do oeste da Índia, até a China. No mapa nos vemos, em roxo, o chamado Caminho do Mar ou Caminho dos Filisteus, que saía do Egito, passando pela Península do Sinai, onde ganhava o nome de Caminho de Hórus, pontilhada por uma série de estalagens-fortificações, a um dia de viagem uma da outra, chegando até a cidade de Megido (atual Síria), flexionando-se para leste, até atingir a cidade de Damasco (idem).
O Caminho dos Reis, de vermelho, começava em Heliópolis, no Baixo Egito, e atravessava o deserto do Sinai, também protegida por fortalezas, até chegar em Aqaba ou Eilat, de onde seguia para norte, paralelo ao rio Jordão, até chagar em Damasco, de onde seguia para leste, até Resafa, nas margens do rio Eufrates.
Na parte de baixo, do mapa, vemos uma linha marrom, sobre a Península Arábica: é a Rota do Incenso, por onde seguiam caravanas vindas do sul da Arábia trazendo cobiçadas mercadorias não só produzidas na península, como as que chegavam de barco, nos portos situados ao sul, vindas da Índia e da China. Vemos também um traçado marrom, dentro do Mar Vermelho, embaixo, no mapa, que é a variante marítima da Rota do Incenso. A linha marrom, seguindo o Nilo, é uma rota comercial secundária, assim como outros traçados marrons que aparecem no mapa.
Vemos também, na parte de cima do mapa, traços marrons sobre o Mar Mediterrâneo. Eles representam as principais rotas comerciais da navegação de cabotagem da bacia oriental do Mediterrâneo. A mais próspera. A potência que controlasse essas praias controlaria esse comércio.
Como se vê, da terra palestina podiam não brotar leite e mel, mas quem as possuísse poderia comprar quanto leite e mel precisasse, mas também precisaria estar sempre atento e vigilante, contra a ambição de povos vizinhos e distantes.

À medida que os romanos consolidavam a sua posição de grande mediadores ou governadores da bacia mediterrânea, estabilizando-a, faziam confluir para ela um enorme caudal de produtos vindo de todas as partes do mundo então conhecido, e alhures, auferindo dessa circulação de mercadorias uma enorme riqueza, enquantoo Reino Selêucida se esvaía em inúmeras guerras evitáveis e desastrosas intervenções, frutos de sua política externa personalista e inconsistente. Após mais de 20 anos de batalhas e escaramuças, Simão Macabeu toma a cidadela de Jerusalém, em setembro de 141, e dá fim ao domínio selêucida da Palestina. Os romanos só observavam, satisfeitos. Essa letargia, porém, foi sacudida pelo surgimento de uma nova e agressiva potência na Ásia, também de olho na importância comercial daquela região: a Partia, que, em 139 a.C., derrota e captura o rei selêucida Demétrio II.
Em 133 a.C., os romanos têm uma surpresa inesperada: Átalo III, rei de Pérgamo, um dos reinos mais ricos e estáveis da Ásia Menor, atual Turquia, doa o seu reino em testamento à Roma! Enquanto isso, os selêucidas continuavam, agravando a situação de seu estado com lutas intestinas pelo poder, cada vez mais intensas e destrutivas. Os nabateus e os armênios, que negociavam com os romanos, avançam sobre o território ou a carcaça do Reino Selêucida. No final dos anos 80 foi a vez dos romanos imitarem aos selêucidas, e dar início a uma sangrenta guerra civil, dirigida por seus mais brilhantes generais, Mario e Sila, em benefício deles próprios.
Como a situação na região estava ficando muito confusa e instável, com a expansão de reinos periféricos, como o do Ponto, ameaçando importantes rotas comerciais, inclusive com a presença cada vez mais ousada dos partos, os romanos, pacificados internamente, resolveram que era hora de agir mais diretamente na região, e despacharam para lá o seu mais competente general, Cneu Pompeu, com um fornido exército, que numa rápida campanha submeteu o Reino do Ponto e da Bitínia, descendo em seguida na direção de Jerusalém, nessa ocasião envolvida em sangrentas disputas familiares pelo poder.
A pequena nação judaica, reinstalada na Palestina, no centro do Oriente Médio, em tempo relativamente recente, aferrava-se vigorosamente à sua religião e a costumes tradicionais para preservar o seu legado religioso, tido por eles como uma missão de caráter universal, da mesma forma que os romanos tinham a sua, embora de caráter mais secular.
Nessa fase do desenvolvimento de seu conceito de nação, urgia marcar uma diferenciação bem clara entre o judeu e o não judeu – pelo menos foi isso que eles perceberam da leitura dos profetas, embora haja outras passagens na direção oposta, pregando uma integração com outros povos para criar um reino universal para Yahweh, aumentando o fosso cultural com os povos ao redor, o que não era muito propício a conseguir a boa vontade destes para a missão que àqueles fora confiada. A diplomacia e a política de alianças não eram, e parece que ainda não é, o forte desse povo tão original. Mesmo entre eles as divisões imperavam, e se acirravam, a partir de entendimentos mutuamente excludentes da Palavra de Deus. O seu espírito de partidarismo, talvez derivado de um forte sentimento tribal, que os unia numa “grande tribo”, mas os subdividia em pequenos grupos, “tribos” internas, inconciliáveis, criadas a partir do retorno de suas lideranças do conhecido Cativeiro da Babilônia, lá por volta de 538 a.C. Avancemos paulatinamente.
A religião mosaica sempre teve como centro de dinâmico e estabilizador o Templo de Jerusalém, gerido por uma poderosa classe sacerdotal, escorada pela tribo dos levitas. Ora, com a destruição do Templo e a dispersão e morte de sacerdotes e levitas, por Nabucodonosor, e a sua transferência forçada para uma cidade que não compactuava em absoluto com a sua fé, os deportados judeus tiveram que se adaptar à nova situação.
Em primeiro lugar, desenvolveram uma estrutura leiga, substituta do Templo, não em matéria de rituais solenes, serviços litúrgicos, mas como preservadora da Lei, a única herança de Jerusalém, que eles puderam levar para a Babilônia. Essa estrutura é a sinagoga, que até hoje é o sustentáculo não só da fé como da cultura ancestral judia, enquanto eles se aferram ao que restou do Templo de Herodes, e à esperança de um dia reconstruírem-no no mesmo lugar do original. A sinagoga, portanto, nasce da veneração do homem comum judeu pelas Sagradas Escrituras, a Lei (Torá), enquanto se propõe a ser um depositário e guardião fiel, para não dizer: literal, daquilo que a tradição determinou ser a Palavra de Deus, cujo descumprimento levou a tantas desgraças.
Em segundo lugar, com a dispersão da classe sacerdotal e da forma oficial, estatal, de culto, perdeu-se também a forma tradicional e segura de interpretação dos livros sagrados, antes adstritos aos sacerdotes a aos levitas graduados e reconhecidos, morando entre os fieis. A leitura e a interpretação da Bíblia teve que abrir-se a vários grupos leigos muito piedosos, cuja diversidade de interesses acabou marcando indelevelmente essa interpretação. E assim a Lei acabou se tornando um sério fator de divisão interna, que iria colocar os judeus frente a novos e mortais desafios, nem sempre respondidos adequadamente.
Entre os vários grupos que surgiram em torno da Lei encontram-se os assidins ou assideus [citados em 1Mc 2,42], que se destacavam pela sua piedade e culto à lei extremados. Segundo Karl Baus (em Jedin, 1966, pg 114-115), eles eram “homens sérios que buscavam a última e mais profunda vontade de Deus, expressa na Lei... Esta vontade de Deus lhes parecia tão sublime que os levaram a ‘levantar uma cerca ao redor da Lei’, como que a protegê-la de toda transgressão, inclusive involuntária. Os assideus queriam servir à lei com uma obediência absoluta, ainda que a custa de sua própria vida [como em 1Mc 2,29-38]” (tradução livre). Sobre esse grupo, a versão online da Jewish Encyclopedia narra que alguns deles chegavam a fazer rasgados louvores à santidade do rei Saul, expressa no famoso episódio de 1Sm 24, quando este, precisando ir ao banheiro, entrou numa gruta para se aliviar, para que os céus não vissem a sua nudez, enquanto lançam as maiores críticas contra Davi, que ousou bisbilhotar o rei, em um momento tão íntimo. A mesma interpretação é dada ao episódio em que Micol recrimina a Davi por dançar diante da Arca, trajando uma pequena tanga (2Sm 6,20-23). Era ela, e não o autor bíblico, quem tinha razão; Davi que tomasse ‘vergonha na cara’.
Imagine-se pessoas com esse grau de pudícia, tendo que conviver no meio de representações estatuárias de homens e mulheres inteiramente nus, algumas, inclusive, representando divindades! Um Deus despido! Que falar de ídolos antropomórficos masculinos, apresentados com o órgão genital ereto, associados a cultos de fertilidade? Um horror! Talvez daí tenha nascido a expressão judia ‘goim’, para designar os não judeus, cuja pronúncia imita o grunhido de um porco.
O grupo dos assideus, que se formara ao longo da retomada da Palestina pós-exílio, irá em bloco para a resistência macabeia, embora não adira à dinastia por eles fundada ao fim da expulsão dos selêucidas. Desse grupo, por um processo de evolução natural, surgirão os fariseus e os essênios, segundo o historiador judeu Flávio Josefo.

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Os fariseus constituíam o mais forte grupo religioso judeu, quando do nascimento de Jesus, e destacavam-se não só pelo culto extremado e literal à Lei, assim como à “Tradição dos Antigos”, num grau de minúcia estonteante. O orgulho de pertencer a esse grupo transparece no seu próprio nome “fariseus”, que em hebraico quer dizer “separados”, e foi destacado por Jesus na parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,10-13).
Sobre eles diz Karl Baus: “os fariseus tornaram ainda mais impenetrável a ‘cerca ao redor da Lei’, pois cuidaram de fixar para cada situação da vida a atitude correta exigida por Aquela... O intento de enquadrar todas as situações possíveis da vida diária, num quadro interpretativo da Lei, conduziu a uma exegese em que qualquer partícula verbal tornava-se importante, e das coisas mais secundárias, sacava-se as mais estranhas consequências. Muito mais danosa era a inexorável atitude casuísta, daí derivada, com que se considerava as questões morais, já que impossibilitava ou deformava o livre exercício de decisões morais, por parte do indivíduo. Mas nisso, os fariseus se viam obrigados [pelas circunstâncias mais variadas da existência da vida em sociedade] a fazer, em casos particulares, concessões que contradiziam a seus próprios princípios, pois tinham que impor regras e preceitos que fossem igualmente realizados por todos” (idem, pg  116). Da compulsão para as minúcias, típica desse grupo, produziu-se a proliferação dos mandamentos, que dos nove ou dez originais passaram a 613, todos igualmente obrigatórios.   
Dentro do movimento fariseu surgiram duas escolas ou tendências interpretativas da Lei: a de Shammai, que tinha uma abordagem mais rigorista, e a do rabino Hilel, que propunha uma interpretação mais flexível, e que foi, por um tempo, orientada pelo célebre Gamaliel, citado na Bíblia como juiz de Pedro e João (At 5,34-39) e mestre de São Paulo (At 22,3) – agora imaginem: se Paulo, que era da tendência mais moderada, foi capaz de fazer o que fez com Estevão e de combater os cristãos como o ardor descrito nos Atos dos Apóstolos, com que violência não agiam os outros?
         Politicamente falando eles se comportavam como “neutros” diante do domínio romano, uma vez que só lhes interessava o mundo espiritual, e embora fosse mais lógico que no fundo aspirassem uma teocracia, estavam, entretanto, alijados desse processo pela feroz resistência a eles imposta pela classe sacerdotal, associada à dinastia dos asmoneus, que lhes movia oposição, a maioria das vezes sangrenta.
    Outro grupo muito curioso foi o dos essênios, que, segundo Josefo, procurou viver uma radicalidade espiritual à semelhança das antigas comunidades de profetas. Derivados dos assideus, eles, provavelmente, viviam isolados em pequenas comunidades urbanas e rurais, tão fervorosas quanto escandalizadas com o rumo que tomavam os conflitos políticos e religiosos em Israel, optando, a partir de um momento ainda não completamente elucidado nem explicado em suas razões mais íntimas, romper tanto com o aparato fariseu como com o sacerdotal. O centro desse movimento situava-se vale de Qumran, perto do Mar Morto, e aparentemente tinha uma estrutura semelhante a de um monastério cristão tradicional, que associado às suas crenças e costumes básicos, fez muita gente, no final do século XX, acreditar que eles foram...


         ...Os mestres de Jesus e de João Batista

        
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         Em 1947/48 o mundo dos estudos acadêmicos, arqueológicos, da Bíblia foi abalado com a notícia         de que um pastor beduíno jordaniano havia descoberto manuscritos muito antigos, dentro de grandes ânforas de barro, ocultas em cavernas, cujo conteúdo denunciava serem eles uma parte da biblioteca de uma importante comunidade, senão a mais importante, dos essênios, situada próxima a um lugar, chamado pelos árabes de Khirbet Qumran – um pequeno vale, por onde eventualmente corre um fio de água na estação chuvosa.
Até aquele momento, só se conhecia dos essênios o que fora escrito por Flávio Josefo, fazendo pairar sobre eles a desconfiança de uma lenda ou informação mal recolhida, ainda mais pelas citações surpreendentes, muito elogiosas, feitas por aquele historiador. Isso fez com que alguns avançassem na tese que Jesus, e principalmente João Batista, teriam sido influenciados pelos essênios – uma longa temporada com os essênios, recebendo a sua formação, explicaria o silêncio que paira sobre o Batista, depois de seu nascimento maravilhoso. Durante um tempo, os essênios foram uma sombra se interpondo entre Jesus e a natureza divina de sua pessoa e mensagem.
Agora, porém, que os textos desses manuscritos foram todos traduzidos podemos concluir o seguinte:
            a) Eram zelosos guardiães da letra Lei; tanto ou mais que os fariseus.
         b) Acirrando ainda mais a oposição que os fariseus faziam às grandes famílias sacerdotais, os essênio pregavam o confronto total e aberto com os sacerdotes do Templo, tratando inclusive ao Sumo Sacerdote de “Sacerdote Ímpio”, afirmando serem eles, os essênios, os verdadeiros defensores da autêntica tradição sadoquita – os sadoquitas eram a família oficial de sumo sacerdotes, antes do Cativeiro.
         c) Eram dirigidos por um chefe geral chamado de “Mestre da Justiça”, o seu equivalente ao Sumo Sacerdote, que dirigia um conjunto de outros sacerdotes e oficiais menores, em uma estrutura hierárquica bem definida e centralizada.
           d) Eram fortemente ritualistas, tanto ou mais que os fariseus, e tinham em muito alta conta o conceito de “pureza” e “contaminação”, que devia leva-los à prática de contínuas abluções.
         e) Tinham o hábito de repartir seus bens entre si e de fazer refeições comuns.
      f) Eram muito mais rigorosos em questão de moral que as outras tendências judaicas, mas ao contrário destas valorizavam muito a virgindade; um tabu entre os judeus.
      g) Eram muito apegados a uma abordagem apocalíptica dos eventos futuros, coisa que não interessava muito às outras correntes, e que apresentavam de uma forma vívida e dramática, por meio de grandes catástrofes cósmicas e acontecimentos extraordinários.
         h) Também esperavam a um Messias, mas sua visão a esse respeito era peculiar: haveria dois Messias; um para a Casa de Aarão (um Messias sacerdote), e outro para a Casa de Davi (um Messias político), sendo que aquele se imporia inexoravelmente sobre o último.
         Etc. etc.
         Entretanto há diferenças marcantes como registra McKenzie (2003), como a proeminência política do sacerdócio apontando para uma teocracia, a exacerbação ritualista, a prescrição de odiar os “filhos das trevas”, a mensagem de enfrentamento militarista, o interesse minucioso pelo calendário, o caráter esotérico das reuniões, o isolamento em relação a Jerusalém, a submissão estrita à lei de Moisés, o culto do sábado (ainda mais estrito que o dos fariseus), que são frontalmente distintos dos ensinamentos de Jesus.
         Podemos dizer agora, depois que todos os manuscritos foram traduzidos, que não se encontrou neles nenhuma menção, nem a Jesus Cristo nem a João Batista, ou aos cristãos, que está sepultada definitivamente a tese da procedência qumrânica de nossa Igreja, deixando-a para os teimosos de sempre e àquelas pessoas que gostam de exercitar, seja a sua fantasia seja a sua habilidade de confundir...
  
         Havia também o grupo sacerdotal, formado por 24 grandes famílias que, no tempo de Jesus, monopolizavam o serviço no Templo, intimamente associadas à estrutura de poder vigente, e, por isso mesmo, muito próximo aos invasores e estrangeiros que dominavam sobre a nação. A formação do grupo sacerdotal é obscura e os textos bíblicos não esclarecem muito ou adicionam acréscimos em determinadas situações, que os especialistas crer que os fatos ali narrados possam ter sido, de alguma forma glosados, Esse
Esse grupo era orientado e dirigido por um sumo sacerdote, suposto descendente da família de Sadoc, da casa de Aarão, que monopolizava o sumo sacerdócio, e que foi elevado a essa dignidade pelo rei Salomão, contrariado com o apoio que outra família de sumo-sacerdotes, a de Abiatar, dera às pretensões dinásticas de Adonias (1Rs 2,26-27), e esse cargo esteve nas mãos desse grupo, até que Onias II foi destituído pelo rei selêucida Antíoco Epifanes, em 175 a.C., e substituído por Jasão, o último descendente da linhagem de Sadoc no posto, sendo, a partir daí, ocupado por gente do interesse dos selêucidas, até que o macabeu Jônatas assumiu a função, em 153 a.C., gerando um grande ressentimento nos grupos religiosos mais tradicionais, que não reconheciam essa manobra, uma vez que os macabeus não eram descentes da família de Sadoc – os macabeus, por causa disso, foram fortemente combatidos pelos fariseus e pelos essênios, que se diziam sadoquitas e se recusavam a frequentar o Templo regido por um grupo sacerdotal espúrio.
         Com o passar do tempo, em especial no governo dos Herodes, o posto de sumo-sacerdote se tornou um posto cada vez mais político, autorizando-nos a dizer que esse grupo, que normalmente fazia muita oposição aos fariseus, assumiu, em matéria de religião, um posicionamento cada vez mais distante do povo e pragmático, cuidando apenas de seus interesses políticos e econômicos. Era o grupo mais conceituado do sistema, e o que mais aproveitava das benesses do poder. Em termos religiosos eles se manifestavam por meio da facção dos saduceus, que defendiam a inspiração exclusiva dos cinco livros da Lei, supostamente escritos por Moisés, em contradição com os fariseus, que aceitavam os livros proféticos e sapienciais, além de outras questões teológicas como a negação dos anjos, da ressurreição dos mortos, a crença em um messias sacerdotal, etc. Tendiam a defender o livre arbítrio, enquanto os fariseus defendiam a predestinação, e eram mais rigorosos ainda na interpretação da Lei.
         Por fim havia o grupo dos zelotes, nacionalistas fanáticos, que, aparentemente, receberam apoio sempre crescente do povo mais simples, mais sugestionável à sua propaganda apaixonada. Para eles, a principal questão resumia-se a uma só: expulsar romanos e estrangeiros da Terra Santa, de preferência pela força das armas, afirmando o poderio judaico, afinal se os macabeus, assim como Davi, conseguiram derrotar povos mais poderosos, porque eles não conseguiriam derrotar o gigante romano? O seu messias é exclusivamente político, como exclusivamente judaica deve ser a Palestina. O horror ao estrangeiro, em geral, é a marca da sua proposta política, levada a cabo por meios que hoje nós chamaríamos de “terroristas” – em geral levavam punhais escondidos nas roupas, com o qual assassinavam, em via pública, a vítima escolhida, e por isso os romanos os chamavam de sicários (homens da adaga). Não perdiam a oportunidade de insuflar o povo reunido, por qualquer pretexto que fosse. O importante era criar o máximo de problemas para o invasor.

         A luta heroica dos macabeus redundou tanto na expulsão dos selêucidas como na criação de uma monarquia nacional, encabeçada por eles, é claro, que recebeu o nome de dinastia dos asmoneus, devido a um tal Asmoneu, que, segundo Flávio Josefo, seria pai do velho Matatias, mas, embora tenham conseguido a independência do país, eles não conseguiram pacificá-lo, nem acomodar as facções apaixonadas que se formaram, após vitória. Em primeiro lugar foram reabertas antigas feridas raciais-nacionalistas, com a destruição completa do templo samaritano, no monte Garizim, em 128 a.C., por João Hircano (135-105), como era do gosto dos grupos religiosos internos, em especial o fariseu, mas ele alarmou e afastou o apoio desses grupos ao pretender enfaixar em suas mãos tanto o poder político como o religioso, lançando os alicerces de uma teocracia controlada pelos asmoneus, vista como intolerável por esses grupos, uma vez que os asmoneus não descendiam de nenhuma família sacerdotal, que apoiasse as suas pretensões.
O resultado disso foi o acirramento das tensões internas, e a luta pelo poder divide a família. Aristóbulo I (105-104), filho de João, manda prender a mãe, a quem havia sido atribuído o poder, e manda matar o irmão, mas seu reinado foi breve, e sua morte foi vista por muitos como um presente de Deus. A dissenção entre os macabeus e a oposição farisaica atinge o seu auge no reinado de Alexandre Janeu (104-76), quando este mandou executar centenas de fariseus e outros, que haviam se rebelado contra ele, numa guerra civil particularmente sangrenta, que contou uns 50 mil mortos – diz Flavio Josefo, que ele teve a pachorra de levar 800 prisioneiros para Jerusalém, onde os fez crucificar, ao mesmo tempo em que mandava, sob suas vistas, degolar suas esposas e filhos, enquanto ele se banqueteava com suas concubinas, apreciando o “espetáculo”.
Nesse universo de guerras, crises e mudanças bruscas, internas e externas, os judeus faziam e refaziam, de acordo com a expectativa do grupo ao qual se filiavam, um conceito fundamental, muito discutido após o Exílio: o de Messias.
Esse termo misterioso, que ao mesmo tempo evocava uma realidade tão abrangente quanto espetacular, o reino universal de Jahweh, a partir de Israel, fez sua aparição desde os primeiros relatos da Bíblia – a quem o ligue a Gn 3,15 – ganhando cada vez mais consistência política, como o advento do Reino de Israel, sob a dinastia davídica, que fez ver em diversas passagens do Primeiro Testamento, que esse obscuro, mas importantíssimo personagem seria um descendente e continuador da dinastia de Davi, no sentido mais humano e político do termo, conforme aparece em várias passagens (Gn 49,8-12; 2 Sm 7,5-16; 1Cr17,4-14; Sl 2; 20; 21; 45;72; 89; 101; 110; 132,17-18; Is 6-9; etc.), embora se possa ver nelas, também, certas variações que dão a entender que se estava diante de um conceito, de um acontecimento, tão grandioso, que a mente humana não pode discernir em toda a sua complexidade e maravilha, pelo menos naquele momento histórico.
As profecias sobre o Messias ganham muita força nos profetas do exílio e pós-exílio, como Jeremias, Ezequiel, etc., além do misterioso personagem visto por Daniel em 7,13, e que Jesus dá a entender se referir a ele, em Mt 8,20, justo no momento em que os judeus não teriam muitas razões para acreditar de literalidade do conceito de messias, como um poderoso rei conquistador, e num Israel transformado em cabeça de um império mundial. Talvez fosse esse o propósito da tão dura provação que eles experimentavam, o exílio na Babilônia: prepará-los para um tipo de messias como Jesus, pacífico e espiritual. Mas os judeus dessa época, lendo-a de uma perspectiva nacionalista e excludente, a partir de uma mágoa irrefreável, aferraram-se ainda mais à ideia do messianismo político, sem falar de outros agravantes.
Israel perdera o seu centro religioso, e não tanto pelo templo, transformado em ruínas pelos babilônios, mas pelo fim da dinastia davidíca e na dispersão e corrupção da classe sacerdotal, sem falar do fim do carisma profético que, no passado, fazia alguns homens escolhidos de intérpretes e porta-vozes abalizados da Palavra de Deus, guias de Israel. A partir daí se multiplicam as interpretações e os grupos religiosos, cada um com ênfase naquilo que lhe interessava ver nas Sagradas Escrituras, e no que, ou em quem, seria o Messias de Israel. De certa forma, para muitos judeus, em especial os mais humildes, a imponência majestosa do Segundo Templo, obra mestra da “raposa” herodiana, a que até os apóstolos se mostram sensíveis (Mc 13,1), devia representar por si só uma segurança e um substituto à altura de uma classe sacerdotal distante, palaciana, ou de um provável messias terreno.

McKenzie (2003) assim coloca a situação desse conceito no tempo de Jesus: “não há uma concepção coerente: às vezes a restauração de Israel é imediatamente seguida pelo fim do mundo; outras vezes, não há em absoluto um reino terreno de Israel, com toda conclusão messiânica do mundo sendo extraterrena... afirma-se que o reino terreno durará mil anos... As nações são condenadas ou destruídas e a Palestina é renovada, tornando-se um paraíso terrestre. O próprio Messias... amiúde ele é um ser humano preexistente que vem do céu. Ele é o conquistador dos povos e o rei do reino terrestre. A importância do sacerdócio no judaísmo tardio... faz surgir a concepção de dois messias, um Messias rei davídico e um Messias sacerdote...”(pg 608-609).

Notas
(1) O poeta Virgílio, da época de Jesus, escreverá em seu poema Eneida, que trata da chegada à Itália do herói troiano Eneias, lendário ancestral dos fundadores de Roma, os seguintes versos, que mais parecem uma profecia distante: “Lembra-te, romano, que é a ti que cabe governar as nações, e esta será a tua missão: impor os caminhos da paz, perdoar os vencidos e submeter os soberbos”.
(2) Em 169 a.C., quando voltava de uma campanha no Egito, Antíoco IV saqueia o Templo de Jerusalém, segundo o historiador grego Políbio.

Bibliografia
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966;
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.