sábado, 24 de outubro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – II

Prof Eduardo Simões

A Vertigem Romana

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O conjunto das mudanças ocorridas na totalidade da bacia do Mediterrâneo, e em especial no interior da sociedade romana, provocada pelas vitórias no campo de batalha, e o ingresso de imensas legiões de escravos, tumultuaram seriamente a estabilidade da república romana, desafiando a capacidade adaptativa de sua elite política, que ao final saiu ainda com força, mas bastante enfraquecida e modificada. O que começou a acontecer do século I a.C. é que as mudanças no interior da sociedade romana reclamavam um novo arranjo de forças, a qual os antigos proprietários, os patrícios da elite senatorial resistiram, violentamente, já ao final do século II, com o massacre dos irmãos Graco.
A cisão entre o sistema político e as novas aspirações de vastas camadas da população continuou a crescer, abrindo caminho a generais ambiciosos, que tomando ora o partido do grupo senatorial ora do grupo “popular”, buscavam abrir caminho para viabilizar seus projetos pessoais. Entre os quais se destacaram Lucio Cornélio Sila (pelo partido senatorial), general competente e político brutal; Caio Mario (pelo partido popular), técnico arguto e excelente estrategista militar, mas politicamente deficiente; Cneu Pompeu (pelo lado que mais lhe conviesse à ocasião) gênio militar, mas político ingênuo; Caio Júlio César (pelo partido popular), genial em todos os sentidos, mas absolutamente cínico; Marco Licínio Crasso (pelo partido do seu dinheiro), o vencedor de Espártaco, mas que só tinha interesse por saque.
Esses generais perceberam, antes que a maioria dos senadores e da classe patrícia, que a forma como a república crescera, com expansão territorial e captura de inúmeros escravos, os beneficiava de tal forma que já não precisavam se ater tão estritamente às leis e aos costumes tradicionais de Roma – muitos deles sequer eram romanos de nascença, como Mário – que, no passado, foram a força fundadora, sustentadora e orientadora de tantas vitórias. Mais valia ganhar o coração da maioria dos soldados que todos os votos do Senado, sem falar que era mais barato, afinal as despesas sairiam na conta do Tesouro, e dava bem menos trabalho.
O exército romano, já no final do século II a.C., devido as perdas das Guerras Púnicas e a necessidade de intervir em outros cenários de guerra, por toda a bacia do Mediterrâneo, mudara consideravelmente a sua natureza, principalmente após as reformas de Mário, que, feitas num momento de grande estresse nacional, abriram o exército ao recrutamento de todo e qualquer cidadão, romano ou italiano que dele quisesse fazer parte, extinguindo o seu caráter censitário anterior, quando só aqueles que tivessem algum recurso, que pudessem pagar seu equipamento, e arcar com o afastamento de seu lar e negócios, confiado que após a guerra seria compensado com terras tomadas ao inimigo. Era enfim um exército das classes superior e média rural, com propriedade e família constituída, com um forte sentimento de honra pessoal e dever para com a sua cidade, capaz de saques e crueldades, mas passível de controle.
Com a mudança da política de recrutamento, os deserdados da sorte, desempregados e endividados, passaram a formar o grosso do exército, e mesmos esses provinham em sua maior parte do falido campesinato italiano, pois os proletários (pobres) romanos preferiam viver sem trabalhar, como clientes de um ricaço ou do estado, longe dos azares da guerra. Nessa época, como o exército ainda não tinha desenvolvido uma política de soldos regulares, os soldados viraram-se para seus generais a fim de que eles os recompensassem regiamente por sua lealdade, tornando aqueles muito lenientes com os saques de suas tropas sedentas, inclusive dentro de Roma, quando vinha à tona o desprezo histórico que o povo da cidade tinha pelos habitantes da península, e agora, por seu exército. E vice-versa.
Generais gananciosos, mas muito competentes, atiravam seus exércitos, sedentos de saque, uns contra os outros, para tomar o poder e ter acesso à chave do cofre. Numa sequência de guerras civis de alcance, ferocidade e mortandade poucas vezes vistas na história, a península italiana se viu inundada de violências e mortandades brutais, ao longo de boa parte do século I a.C., quando a República Romana experimentou seus extertores finais. O Senado, um ponto de equilíbrio outrora poderoso e respeitado, quedava impotente ante tantas mudanças, invariavelmente agravando-as contra si mesmo. Conseguirá, decerto, sobreviver á tormenta, mas apenas como uma sombra daquilo que um dia fora.
Nessa época, sem outra lei que a vontade dos generais, era vital, politicamente falando, tomar o lado certo. E só havia um lado certo: o do vencedor, e, infelizmente, os asmoneus não conseguiram escolher esse lado, levando a Palestina a ser assolada por esse exército ainda em transição, seguido por funcionários claudicantes e corruptos, ainda longe do controle que sobre eles o império conseguirá, afinal, impor. Quando esse tempo chegar a incompreensão e o ressentimento terão envenenado de tal forma as relações entre judeus e romanos, que uma convivência será impossível. Mas antes disso recuemos ao fim dos asmoneus.

A Vertigem Asmoneia

Os acontecimentos na Palestina, durante o reinado de Alexandre Janeu, reproduziam, numa escala menor, as guerras fratricidas por que passava a península italiana, embora com efeitos graves, que deviam deixar a elite romana se contorcendo em cólicas, uma vez que da estabilidade da Palestina dependia a estabilidade da principal rota de comércio do mundo, da qual essa elite era a principal beneficiária. À morte de Alexandre Janeu sucedeu uma nova guerra civil, quando a rainha Salomé (74-67) tentou direcionar a sucessão do marido, para o seu filho primogênito Hircano II, escolha essa contestada por seu filho mais moço, Aristóbulo II, que aproveitou a doença terminal da mãe para dar um golpe no irmão, depondo-o, em 67 a.C.
Enquanto os Asmoneus brigavam entre si, famílias poderosas aproveitavam para tirar partido e aumentar a sua riqueza e poder político, entre elas a de um certo Antípatro, de origem idumeia (árabe), que, junto com outros idumeus residentes em território judaico, fora obrigado a se converter ao judaísmo, mas continuavam a sofrer discriminação por parte do povo, que se recusava a reconhecê-los como iguais, permanecendo estrangeiros dentro de seu país e de sua religião. Em 63 a.C., manobrando pelos bastidores, Antípatro consegue que Hircano II se associe a um rei nabateu, outro povo de origem árabe, e partem para o ataque contra Aristóbulo II.
Era demasiado! Outro povo estava sendo atraído para dentro do vórtice asmoneu. O general romano Cneu Pompeu, que, à frente de um poderoso exército, estava em operação na Ásia Menor, tentou pacificar as partes, mas também aproveitou para descer com suas legiões à Palestina. Os adeptos de Aristóbulo II se fecham em Jerusalém, mas os de Hircano II lhes abrem as portas, e, após três meses de luta, os romanos conseguem tomar o recinto do palácio real e a totalidade do Templo, finalizando o conflito, provavelmente no outono de 63 a.C. Pompeu entrou pessoalmente até o Santo dos Santos, que lhe era vedado, e deve ter ficado muito admirado por não ter encontrado nada ali. Ele fez ainda, pessoalmente, um minucioso inventário do tesouro do Templo, mas não tocou em nada, contentando-se em mandar prender Aristóbulo II e leva-lo para Roma, enquanto designava Hircano II para a função de Sumo Sacerdote e Antípatro, que já se colocava ao lado dos romanos, e era mais leal e ativo, como chefe político. A inflexibilidade, a falta de tato político dos asmoneus, sem falar de sua brutal incapacidade de ler a conjuntura, pusera a perder o seu reino, atraindo os romanos para dentro da Palestina, o que causava um grande ressentimento no povo.
Antípatro morreu precocemente, envenenado, mas foi o pai de um governante famoso e estreitamente ligado à história de Jesus: Herodes Magno, o da “matança dos inocentes”, que o sucederá de imediato, exercitando aquilo que sua gente sabia fazer muito bem: a vingança, mandando matar o assassino de seu pai, e a sua lealdade para com os romanos. Longe de ser apenas um matador cruel e psicopata, pois certamente não teria durado tanto tempo no poder, uns 44 anos, Herodes foi um dos reis judeus mais empreendedores e bem sucedidos de todos os tempos, embora também um dos mais execrados e detestado pelo povo, justamente por causa de suas ligações com os romanos.
Embora não tivesse, a princípio, nenhuma razão para temer um Messias, a oposição encarniçada que lhe moviam os asmoneus, as principais famílias judaicas e até o povo, que nunca lhe perdoou a sua origem idumeia, sem falar do clima de intriga dentro da própria família, cresceu nele uma espécie psicose, uma mania de perseguição, que lhe fazia ver traições em toda parte, tomando medidas preventivas violentas, que só aumentavam a sensação de isolamento e insegurança. Mas, fora isso, ele fez o possível para agradar aos judeus e mostrar que era um deles... em vão. É possível que ao final tenha desenvolvido um sentimento “pesado”, um forte ressentimento, contra o povo que tanto o rejeitava, aparentemente sem razão. Durante o seu reinado, graças a sua habilidade política, a Judeia atingiu a sua máxima extensão territorial, desde que o fim do Exílio, enquanto no plano religioso, investiu pesado na reconstrução e embelezamento do Templo, criando um conjunto arquitetônico magnífico.

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         Enquanto Herodes confirmava a cada momento sua lealdade a Roma, os asmoneus só “queimavam o seu filme”, até que um dele, Antígono II Matatias – um macabeu com um nome selêucida! – se aliou aos maiores inimigos dos romanos no Oriente: os partos, para tomar Jerusalém, em 40 a.C., aproveitando-se do caos e da guerra civil que seguiram ao assassinato de Julio César, tornando-se o último asmoneu a ocupar efetivamente o cargo, contando, inclusive com o apoio dos fariseus, inimigos mortais, até ali, da sua família. Em 37 a.C., porém, tropas mistas, romanas e orientais, tomam Jerusalém  de Antígono II, e dessa vez há um saque generalizado, que, segundo relatos da época, Herodes tentou evitar e pediu clemência aos romanos, para não vir a se tornar o “rei de um deserto”. Antígono II, preso, é considerado tão perigoso que os romanos, o fazem executar. É a primeira vez, na história de Roma, que um rei, membro de família real, e não um chefe de tribo rebelde, foi morto após ter sido aprisionado.
Quando Jesus nasceu a situação era a seguinte: o poder de Herodes estava mais firme do que nunca, embora ele continuasse também mais odiado do que nunca, pelos grupos da elite judaica que lhe disputavam o poder e não lhe perdoavam o fim trágico a que submetera os últimos sobreviventes da ilustre família dos macabeus. Já o povo, o repudiava, por não considerá-lo um autêntico judeu, e por estar associado a uma potência estrangeira, que mantinha tropas pagãs em seu território sagrado, e que lhes arrancava impostos para suprir sua máquina de guerra e serviços públicos, inclusive para levantar templos pagãos.
No geral, porém, havia uma grande prosperidade, que transparecia nas inúmeras obras de engenharia de grande porte, que se espalhavam pela Terra Santa, cujos vestígios ainda hoje impressionam. A pax romana trouxera uma dinamização tremenda do comércio oriental e os seus frutos apareciam abundantes, sedutores e ambíguos, contra os quais um misterioso messias galileu fará inúmeros alertas. O enriquecimento financeiro era uma possibilidade real para muitos na Palestina. A diferença entre pobres e ricos, normalmente insignificante em povos que preservam uma cultura tribal, pode se tornar em um abismo, durante um processo acelerado de urbanização e acúmulo de capitais, gerando muito desconforto e tentativas de explicação sobre o que passava. Havia um vazio de sentido em tudo aquilo. Eram tempos de dúvidas, de busca por respostas...

         Um Certo Galileu

         Em algum momento, no governo de Tibério em Roma, sendo Pôncio Pilatos prefeito da Judeia (26-36), começaram a aparecer às elites religiosas, em Jerusalém, notícias de ajuntamentos de consideráveis, em torno de um pregador religioso, carpinteiro por profissão, que empolgava as massas na Galileia, território dominado pela família herodiana, mas sob a jurisdição religiosa do Templo. “Mais um messias, entre tantos”, devem ter pensado as autoridades religiosas judaicas, mas, como era do seu dever, resolveram investigar, assim como o fizeram os representantes das outras facções religiosas e políticas. Afinal era a partir do discurso religioso que tinham início os levantes armados contra a dominação estrangeira, até ali registrados, e, certamente, todas essas facções se aproximaram dele na tentativa de responder à seguinte indagação: do que lado ele está?
         A princípio tentou-se fazer uma ligação entre este pregador galileu, oriundo de uma cidadezinha irrelevante, Nazaré, com outro pregador poderoso, tão respeitado quanto temido pelas elites religiosas acomodadas: João Batista, recentemente executado por Herodes Antipas, filho de Herodes Magno, governador da Galileia (1), mas ao que tudo indicava, o galileu, conhecido pelo nome de Jesus, ia mais além em sua mensagem. Era mais heterodoxo que João e seu raio de ação bem mais abrangente.
         Sua pregação moral era bem mais rigorosa do que a que a tradicionalmente ouvida pelos judeus, mas nada que ferisse a sensibilidade dos mais zelosos guardiões das “verdades” vigentes, mas quando se tratava de observâncias rituais, ele parecia ir justo o contrário do que pregava o grupo mais popular: os fariseus, o que enfraquecia um pouco a sua penetração entre os mais pobres, enquanto gerava divisões em seus observadores, uma vez que se fazia preceder por sinais, curas e outros acontecimentos incomuns, que calavam fundo a quem os presenciava. Fariseus, saduceus, zelotes e gente avulsa tentaram contraditá-lo, mas ele mostrava uma habilidade incomum simplificar as questões mais complexas e de não cair nas armadilhas casuísticas mais sutis, fazendo cair nelas os autores mesmos de tais armadilhas. Ele não era agressivo, mas fazia inimigos apaixonados com uma facilidade impressionante.
         Ambígua era também a reação das pessoas comuns, nas comunidades por ele frequentadas, uns o aceitavam entusiastas, enquanto outros o rejeitavam imediatamente. A sinagoga estava dividida. Mas aos poucos, à medida que a percepção de sua mensagem ia se revelando em toda a sua profundidade e contradição com o senso religioso comum ou politicamente correto da sociedade, o que era entusiasmo tornou-se rapidamente em decepção e franca hostilidade, e as entusiásticas multidões dos primeiros tempos começaram a se afastar dele. Até mesmo a seus mais ardorosos discípulos, posteriormente chamados apóstolos, ele chegou, um dia, a questionar se o queriam abandonar também.
         O grupo de pessoas mais próximas, que sempre estava ao seu lado, também não se qualificava para dar credibilidade, havia pescadores, gente da pequena “classe média”, mas todos galileus e ignorantes das mais elementares questões teológico doutrinárias, um era mais endinheirado e culturalmente bem preparado: João, mas sua pouca idade não o recomendava muito, havia um zelote, de nome Simão, que assim como os outros deve ter procurado, em vão, algum matiz sangrentamente “revolucionário” na mensagem de Jesus, mas, aparentemente, só ele ficou para ver no que “aquilo” ia dar.
Havia também a questão da sua aproximação com os publicanos (2); um deles, Mateus, se tornara seu discípulo, e será inclusive o seu biografo mais próximo à nação judia. Sentido a reação negativa do povo em relação às exigências do seu reino messiânico, Jesus, ferindo fortemente o senso comum, certa vez dirá: “os publicanos e as prostitutas vos precederão”, frase zelosamente conservada pelo publicano Mateus (21,31), mas será também em Mateus, que Jesus mandará o cristão empedernido seja tratado “como o gentio e o publicano” (18,17), que eram isolados, afastados, do convívio com a comunidade judaica, querendo, decerto, ensinar a atitude adequada ao homem comum em relação aos rebeldes, por meio de uma analogia, facilmente compreensível entre os judeus, a quem o evangelho era dedicado, e também para ensinar que ele não tomava partido incondicionalmente por ninguém. Mas essa segunda parte da mensagem não foi entendida por ninguém, porque num ambiente tão faccioso da Palestina do século I ninguém a conseguiria ouvir... O elogio que Jesus fará ao centurião (Mt 8,10) deve ter sido para muitos o “fim da picada”.
Mas se a sua aproximação a pessoas consideradas moralmente suspeitas escandalizava o homem comum, a sua interpretação da Lei obteve para ele inimigos encarniçados da parte dos fariseus, que, também é bom que se diga, ficaram divididos em relação à sua pessoa, e alguns deles se tornarão seus discípulos, embora em segredo, à medida que o isolamento desse estranho rabi aumentar. Favoreceu a esse isolamento a hostilidade do grupo herodiano-saduceu que, numa manobra até ali inimaginável, se aliou aos fariseus para combater o pretenso messias. É impressionante o nível de ameaça que uma mensagem, aparentemente tão singela, flexível e moralmente óbvia, como a de Jesus, provocava no coração daqueles homens.
A elite judia estava muita coesa em sua repulsa a Jesus, mas dividida quanto a forma de combatê-lo ou de silencia-lo, de forma eficaz, assim como perigosamente dividido estava o povo – novamente empolgado, agora com notícia de que ele ressuscitara um morto. Num debate, na casa de Caifás, vivamente descrito por um dos biógrafos de Jesus, João (11,50), acertou-se que o problema de Jesus deveria ser tratado não por via moral ou teológica, mas política, aproveitando-se do acesso e prestígio de vários dos presentes junto às autoridades romanas, para apresentá-lo como um perigoso agitador, justificando legalmente o seu assassinato, dividindo a responsabilidade com o odioso opressor, a quem Jesus, quando convinha, era associado.
A ocasião propícia ocorreu, quando de uma desafiadora visita de Jesus à Jerusalém, durante os festejos preparatórios para a Páscoa, com o claro intuito aí fazer valer a sua lei, começando logo por derrubar as bancas dos comerciantes, a principal fonte de lucro daqueles que viviam a expensas do Templo, após uma entrada triunfal na cidade. Ele fora lançar a pedra inaugural do seu reino bem no centro do poder judeu-romano. Era demasiado, para os seus inimigos.

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Wikipedia

A prisão e o “julgamento” de Jesus foram irregulares em todos os sentidos, mas ninguém queria correr riscos, inclusive o funcionário romano encarregado do governo da Judeia: o prefeito Poncio Pilatos (3), um novo rico ambicioso, medíocre e carreirista, que, mesmo interiormente convencido da inocência do réu, preferiu executá-lo, como pediam as autoridades e uma claque reunida as pressas. Esse controverso juiz era um encrenqueiro, um homem culturalmente muito limitado e simplório, que jamais conseguiu compreender ou aceitar os costumes da terra, e adorava provocar a sua gente – seus quatro antecessores evitaram desfilar ou expor, pelas em Jerusalém, as insígnias das legiões, que tinham a imagem do imperador e de animais, alguns mitológicos. Pois bem, Pilatos fez, propositalmente, levar escudos dourados, com a imagem divinizada do imperador Tibério, seu protetor, para dentro da cidade de Jerusalém, à noite, e o fez pendurar nas paredes internas da Fortaleza Antônia, que ele escolhera para sua residência, bem ao lado do Templo. Quando os judeus souberam daquilo houve uma grande comoção e violências diversas nas ruas da cidade, ao que se seguiu uma ordem do imperador de transferir os escudos para Cesareia.
Pilatos, aparentemente não perdia uma oportunidade para demonstrar o quanto desprezava aos judeus e os seus costumes, como denuncia o episódio do letreiro da cruz, recebendo deles um ódio e um rancor sinceros, e sempre que podiam mandavam delegações a Roma para denunciá-lo. Aquele, sabendo que, na capital, a “sua batata estava assando”, consentiu na condenação de Jesus, cuja inocência e porte o impressionou vivamente, para agradar aos seus apaixonados desafetos, desafetos que ele criara gratuitamente. O seu ato de “lavar as mãos”, muito citado até hoje, “foi um ato de purificação vazio de conteúdo [hipócrita], insuficiente para suprimir a sua responsabilidade de consciência, uma vez que quem condena um homem inocente sob pressão, não está moralmente muito acima daqueles que a exercem” (Wikipedia em espanhol, tradução livre). Jesus foi crucificado fora dos muros da cidade e sepultado num local próximo (4). Dois dias depois, três na contagem dos orientais, aconteceu algo, que mudou a história o mundo e, de uma certa forma, fundou a Igreja.

O Primeiro Ato Fundante

Segundo as quatro narrativas que existem sobre a sua vida de Jesus, ele teria ressuscitado na madrugada do primeiro dia da semana judaica, e aparecido a vários de seus discípulos. De princípio não era um acontecimento tão fabuloso assim, uma vez que era comum, nas mitologias da área, a ressurreição de alguma divindade imortal (!), misteriosamente morta em algum incidente fabuloso, mas desta vez quem ressuscitara fora um homem comum, alguém que partilhara das angústias, canseiras e necessidades de outros homens e, mais ainda, longe de acontecer apenas em páginas de uma literatura imaginativa, mas desigual, ou diante de poucos nobres e ricos privilegiados, esta foi presenciada por homens e mulheres comuns, comuns até demais, que ficam como que em transe, frenéticos, com um sentimento de alegria e esperança que muitos autores nomearam como “indizível”, que fazem questão de se manifestar a respeito, e deixar bem claro que não falam de algo que leram ou ouviram falar, mas antes, que viram com seus próprios olhos! São testemunhas oculares.
Era o fim da mais antiga e profunda aspiração humana, a vida eterna, que os habitantes do Oriente Próximo conheciam muito bem já do antigo romance mitológico sobre a vida do rei Gilgamesh, que vai até os confins do mundo, com seu amigo Enkidu, para buscar a substância que lhe garantirie a vida eterna, e perde tudo, inclusive o amigo. A penúltima perda é a da esperança, quando retorna, acabrunhado e velho, para o seu palácio, e por fim perde a vida quando, reclinado sobre um sofá, adormeceu, descansando daquela vã e incrível aventura, e nesse momento morre, talvez ainda na ilusão de acordar no dia seguinte e continuar com os seus afazeres. Nunca mais o temor de que suas almas fiquem cobertas de penas, como as corujas, empoleirando-se sobre rochas e árvores secas, em um mundo frio e trevoso, comendo poeira e se dessedentando na lama dos caminhos, enquanto eram tratados que nem escravos por deuses cruéis, assombrará os homens...
Mais incrível ainda! Não seria necessário nenhum sacrifício para se ter acesso a essa vida eterna: ela nos seria dada de graça, antes mesmo de termos consciência de nós mesmos, como um dom gratuito de um Deus que “não cabe” em sua generosidade. Quantas vezes os discípulos não haviam escutado aquelas promessas maravilhosas dos lábios de Jesus e não pensaram consigo: “será que é assim mesmo? Estou entendendo direito o que ele está dizendo?” E, de repente estava ali a prova de que tudo o que ele dissera era verdade, e que o melhor ainda estava por vir. À medida que eles repassavam as palavras de Jesus que eles ouviram na intimidade; e quantas não foram que não chegaram até nós? Eles lembravam-se ainda da promessa de que muito mais coisa ainda iria acontecer, ser descoberta ou esclarecida com a descida de um misterioso “Espírito Santo”.
Nossa Igreja nasceu justamente desse momento, da necessidade de transmitir fielmente para todos os que viviam, e os que viriam depois, a certeza desse acontecimento ímpar: a ressurreição de Cristo, e os sentimentos originais que a cercaram: a alegria “indizível”, a esperança eufórica. O cristão não é apenas alegre, mas eufórico pela sua salvação e a dos outros, e é isso que devem transmitir a essa geração e às seguintes, e enquanto não falharem nessa missão haverá esperança para o mundo.

Notas
(1) O historiador judeu Flavio Josefo, em seu livro Antiguidades judaicas faz uma menção a João Batista: “Alguns judeus acreditam que a destruição do exército de Herodes foi obra de Deus [isso teria acontecido em 36], como uma punição pelo que ele fez contra João, chamado o Batista. Herodes o matou, a ele que era um homem bom, que impunha aos judeus a prática das virtudes, tanto como justiça para com os outros como piedade para com Deus, para assim merecerem o batismo... Assim quando (muitos) outros vieram em multidão para ouvi-lo, ansiosos por escutar as suas palavras, Herodes, que temia que a sua grande influência sobre as multidões pudessem ameaçar o seu poder, levando aquela gente à rebelião... achou melhor condená-lo à morte... Assim, devido as suspeitas de Herodes, ele foi levado prisioneiro para a fortaleza de Maqueronte, e lá executado...” (tradução livre da Wikipedia em inglês).

(2) Os publicanos eram ricos comerciantes em Roma, membros da classe equestre, que arrendavam, graças às suas boas relações, o direito de cobrar impostos nas províncias do império. Para operacionalizar a cobrança eles também faziam uso de agentes locais, também chamados publicanos – e são justo estes que mais aparecem nos evangelhos, talvez à exceção de Zaqueu, que deveria estar um grau um pouco acima. Na sua ação de cobrança os publicanos, quase sempre com o apoio de uma guarda armada, romana, colocavam-se em lugares estratégicos: praças, pontes, etc., e lá praticavam a sua odiada função. Era-lhes determinado previamente o quanto o estado esperava que arrecadassem numa região, e o que sobrasse seria o seu lucro, mas também se houvesse algum acidente climático ou conflito, e não fosse possível arrecadar o previsto, o publicano completaria de seu próprio bolso a diferença, donde lhes vinha a “gana”, até certo ponto compreensível de “arrancar o couro” do contribuinte, gerando grandes dissabores, até serem extintos no século II, substituídos por agentes públicos. Na Palestina de Jesus, eles eram particularmente odiados, por representarem os interesses de um povo invasor e pagão, contra o seu próprio povo, uma vez que os impostos que os judeus pagavam eram usados para sustentar o exército romano que, frequentemente, era usada contra os próprios judeus.

(3) A historicidade desse personagem está hoje mais que comprovada, assim como os detalhes do julgamento de Jesus, diz a Wikipedia em francês: “o primeiro autor cristão a falar dos Atos de Pilatos, é São Justino de Naplouse... que, por volta de 150, escreveu ao “imperador, ao senado e à todo o povo”, a primeira de suas apologias do cristianismo... Nessa apologia Justino faz referência  duas vezes aos Atos de Pilatos, que não fazem parte de futuros textos cristãos [evangelhos], mas às minutas do processo, conservadas nos arquivos romanos”... Jean-Pierre Lémonom compartilha, com outros autores, a crença de que “as “Atas de Pilatos”, às quais Justino se refere, dariam suporte a uma suposição de Justino, de que os romanos dispunham de arquivos que lhes permitiriam aferir a exatidão de suas afirmações [nesse caso Justino não estaria se referindo ao texto apócrifo chamado Atos de Pilatos, mas a documentos oficiais] ” ... outros autores observam que Justino supõe que seus interlocutores (gente da mais alta administração...) estejam a par da existência de um processo de Pilatos concernente a um Jesus... Justino não teve, provavelmente, as atas desse processo em mãos, mas ele poderia estar se referindo à versão desses Atos publicados por historiadores como Tácito, cujos livros dos Anais [minuciosa descrição de fatos, ano a ano, da administração romana], que cobrem exatamente esse período, não foram conservados” (tradução livre). O autor da Wikipedia em inglês alega que não era comum a governadores e autoridades provinciais fazer relatórios sobre a execução daqueles que não eram cidadãos romanos, mas pode-se contra argumentar com peculiaridade impar do processo de Jesus, e da própria gestão de Pilatos na Judeia. Ele estava sob pressão dos dois lados. Arqueologicamente, a existência de Pilatos veio a lume quando, em 1961, uma expedição italiana descobriu, nas ruínas de um teatro romano, em Cesareia, primeira sede de prefeitura de Pilatos, uma pedra onde constam os nomes de Pilatos e do imperador Tibério.

(4) Os locais da crucificação e da ressureição de Jesus, sem falar da tumba específica de José de Arimateia, estão, hoje, muito modificados e encobertos por um complexo de capelas, espaços e monumentos diversos, construídos desde o tempo do imperador Constantino, em 335, na chamada Igreja do Santo Sepulcro, com indicações numerosas e antiquíssimas de sua importância geográfica e religiosa. Dentro dela há uma situação complexa, uma vez que várias correntes do cristianismo nela se estabeleceram e lutaram, por vezes sangrentamente, pela posse dos lugares mais sagrados, a saber, o da crucificação e o da ressurreição de Jesus. Os gregos ortodoxos ocupam os principais lugares, enquanto os latinos católicos ocupam capelas secundárias. No final do século XIX, clérigos e estudiosos protestantes, ingleses, americanos e alemães, munidos de muita teoria, de uma arrogância histórica singular – o religioso e cientista inglês Edward Clarke disse, em 1821, que a Igreja do Santo Sepulcro era uma “mera alucinação de monges malabaristas” (traduzido da Wikipedia em inglês) – e, talvez, de muita pena, por verem esses lugares tão significativos para a nossa religião completamente modificados, sentimento que nós, ocidentais, decerto compartilhamos – os orientais têm uma percepção diferente sobre o significado e a preservação de monumentos históricos – e imaginaram ter descoberto o verdadeiro local da crucificação e sepultamento de Jesus, numa área situada fora das muralhas da Jerusalém de então, ao contrário da Igreja do Santo Sepulcro, à qual estavam associadas uma pedreira, um jardim e uma gruta, e começaram uma campanha na tentativa de esvaziar a Igreja do Santo Sepulcro, em favor do seu monumento, chamado de Jardim da Tumba. Hoje os estudos arqueológicos são definitivos, e apontam a completa impossibilidade do monumento protestante ser o verdadeiro, pelas seguintes razões: as muralhas romanas, que havia no tempo de Jesus, foram ampliadas na Idade Média, pelos árabes, de sorte a envolver o Santo Sepulcro, que antes estava fora; foram descobertas, em ruas próximas ao Santo Sepulcro, sinais de uma antiga pedreira, como descrito nos evangelhos; a distância do Jardim da Tumba para as muralhas romanas é muito grande, não faria sentindo crucificar um homem tão perigoso tão longe das portas da cidade; modernas técnicas de datação dão à tumba do Jardim uma fundação que se estende ao século VIII-VII a.C.


Bibliografia

Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966;

McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.

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