OS
DEMÔNIOS OU A PERFEITA OPRESSÃO
Prof
Eduardo Simões
O rosto do mal
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Reparem
no olhar apertado, como se quisesse ver as entranhas de seu interlocutor, como
a dizer: “eu conheço ou vou conhecer os teus ‘podres’, e eu vou usá-los contra
ti”, assim era Sergey Guenadievitch Nechayev, nascido em 1847, no seio de uma
família pobre – seu pai era um pintor de parede e a mãe uma costureira, filha
de servos alforriados – numa pequena cidadezinha da Rússia. Autodidata,
trabalhou em muitos ofícios, mas nunca se formou ou se especializou em nada, a
não ser em “revolução”: era “revolucionário” 24 horas por dia, na falta de mais
tempo, um compulsivo. Nechayev cedo se enveredou por uma corrente russa
terrorista de “extrema-esquerda”, o niilismo, e o seu ódio à sociedade
civilizada “burguesa”, levou-o ao encontro de um dos titãs da esquerda: Mikhail
Bakunin (1814-1876), um líder anarquista, que, como muitos outros, ficou
arrebatado, pelo estranha energia que emanava de Nechayev, a tal ponto que
mesmo depois de Nechayev ser expulso da Internacional Anarquista, por roubos,
chantagens e patifarias diversas, Bakunin, resistia a cortar relações com ele.
O lance mais extravagante dessa biografia tenebrosa foi quando, preso numa
penitenciária de segurança máxima, por ordem direta do tzar, ele cooptou
dezenas de carcereiros e guardas, fazendo-os levar e trazer mensagens de grupos
terroristas fora da prisão – parece que algo assim acontece no Brasil – envolvendo-os
em um plano para viabilizar a sua fuga, só descoberto pela da traição de um
preso. Durante o inquérito os guardas detidos, 69 ao todo, dos quais 34 seriam
condenados, disseram que emanava dele uma força estranha, tipo hipnótica, que
os deixava exangues diante de suas ordens. Nechayev morrerá, em 1882, das
terríveis condições que experimentará na prisão.
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“Não
passa de um simples rapaz russo, de aspecto semelhante a um operário, ainda não
de todo adaptado à vida urbana [um pobre rapaz do campo], que não é metido a
saber tudo [humilde], que gostava de brincar e rir com prazer”. Assim Alexandra
Ivanovna Zasulich descreve Nechayev, a quem conheceu pessoalmente (Franco
Venturi, historiador italiano, em seu livro Populismo
russo, citado na Wikipedia em italiano). Mais uma conquista. Fora isso
Nechayev responde, junto com Bakuni, pela formação do estranho Catecismo revolucionário – para que
ninguém duvide que se trata de uma seita religiosa – cujos trechos se reproduz
abaixo.
“Negação
de um Deus real, extramundial [fora deste mundo], pessoal, e por consequência
também, de toda revelação... A liberdade é o direito absoluto de todos homem e
mulher maiores, de não buscar, absolutamente, outra sanção para os seus atos
senão sua própria consciência e sua própria razão... Só existe um único dogma,
uma única lei, uma única base moral para os homens: a liberdade...”. Bem, essa
é a parte boa, porque se formos à outra, que fala de como deve ser um
revolucionário, colheremos essas pérolas: “O revolucionário é um homem que
sacrificou sua vida. Não tem negócios nem assuntos pessoais, nem sentimentos
nem laços, nem propriedade, sequer nome... é inimigo implacável dessa sociedade
[a nossa], e se ainda vive nela é exclusivamente para destruí-la... Um
revolucionário despreza qualquer teoria (...) Só conhece uma ciência: a da
destruição; com esse fim exclusivo estuda química, física, mecânica [para
preparar atentados] e ocasionalmente medicina [quando algo der errado]... Deve
ter dia e noite um só pensamento, uma única meta: a destruição inexorável.
Perseguindo com sangue frio e sem descanso o comprimento desse destino...”
(Chega!) (Bakunin; Catecismo
Revolucionário – programa da sociedade da revolução internacional; trad.
Plinio Augsuto Coêlho; Imaginário; São Paulo; 2009, e Bakunin-Netchaiev; Catecismo Revolucionario; resenha de
Juan C. Alcalde, em espanhol, com um resumo biográfico dos autores). Mas as
maquinações do mau, não foram suficientes para enganar a sabedoria do gênio; em
uma carta ao editor do livro Os demônios,
Fiodor Dostoievski reconhece que, em que pese as semelhanças entre o personagem
principal de seu livro e Nechayev, eles não são exatamente a mesma pessoa,
porque, segundo ele “esses abortos não são dignos de entrar para a literatura”
(Gianlorenzo Pacini F. M. Dostoievski,
Bruno Mondadori, Milão, 2002, citado na Wikipedia em italiano)
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Entretanto, algo deu errado no sumiço do corpo de Ivanov, e aconteceu que,
quatro dias depois, em 25 de novembro (8 de dezembro), o corpo de Ivanov, com
os braços abertos, ascendeu à superfície, ficando visível através da camada de
gelo, que se adelgaçara. A polícia se mobiliza, e em pouco tempo todos os
membros da célula estavam presos e respondendo a processo.
__
No inquérito, e durante o julgamento, que empolgou a sociedade russa, levando
Dostoievski a escrever seu livro mais denso e sombrio, na opinião de mestres da
literatura, ficou-se sabendo que Ivanov nunca fizera nada que merecesse morte
tão trágica e traiçoeira; segundo eles tudo apontava para uma questão pessoal,
uma vez que Ivanov resistia em seguir sem pestanejar as ordens do chefe. Certa
ocasião, por conta de uma discussão sobre como proceder com os recursos
levantados pela célula, Nechayev afirmou já agastado: “O comitê central já
decidiu”, e Ivanov ripostou: “Não seria Sergey Guenadievitch, esse comitê
central?” Mas parece que a gota d’água foi a recusa de Ivanov em espalhar
panfletos revolucionários no refeitório e na biblioteca da Academia de Agricultura.
“A polícia vai intervir, e estudantes inocentes terão graves problemas”, e
ficou irredutível.
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Depois dessa discussão, Nechayev desapareceu durante duas semanas e voltou
dizendo para os que obtivera, junto ao “comitê central”, provas de que Ivanov era
informante da polícia, e que, segundo a recomendaçãp do “comitê”, fazia-se
mister matá-lo. Embora surpresos, ninguém contestou, e deram cabo de sua
miserável tarefa.
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O inquérito que se seguiu arrastou a julgamento, cerca de 87 pessoas, ligadas
ao assassinato e à célula terrorista de Nechayev, menos ele próprio, que,
conseguiu fugir para a Suíça, onde se reencontraria com Bakunin. Todos foram
condenados ao exílio na Sibéria ou em regiões distantes, ficando para aqueles
que participaram diretamente do assassínio, a pena mais pesada de 7 a 15 anos
de trabalhos forçados no exílio. Deve-se notar ainda que, segundo Juan Alcalde,
os antigos companheiros tudo fizeram para justificar, isentar ou reduzir a
participação de Nachayev no evento.
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Os
odientos, o pragmático e o sanguinário. A mensagem e os métodos de niilistas e
anarquistas eram muito diretos, muito sinceros, para não provocar repulsa e
resistência imediatas; por isso, como que para “dourar” a pílula, surgiu a
doutrina marxista, fruto de hábeis contorcionistas mentais, capazes de dizer ou
prometer a mesma coisa que Nechayev e seu grupo, só que de uma maneira mais
palatável ao público , ao dar-lhes ares de estudo “científico”. “Na sociedade
comunista, o trabalho acumulado é sempre um meio de ampliar, enriquecer e
melhorar cada vez mais a existência dos trabalhadores... O comunismo não retira
a ninguém o poder de apropriar-se de sua parte dos produtos sociais, apenas
suprime o direito de escravizar o trabalho de outrem... Quando os antagonismos
de classe, no interior das nações, tiverem desaparecido [o que acontecerá no
comunismo, segundo Marx], desaparecerá a hostilidade entre as próprias
nações... Em lugar da antiga sociedade burguesa... surge uma associação onde o
livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de
todos... Os comunistas não se rebaixam a dissimular... proclamam abertamente
que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda
ordem existente” (Marx-Engels; Manifesto
comunista; Ridendo Castigat Mores; 1999; eBooksBrasil.com). Por mais que os
dois primeiros, Marx e Engels tenham sido “moderados”, no sentido que não
mandaram executar ninguém, Lenin, já avançou com truculência contra os contra
os inimigos externos e internos do estado soviético, eliminando-os sem
hesitação; mas que dizer de Stalin, que instalou um verdadeiro regime de terror,
que não raro se voltava contra os próprios cidadãos soviéticos? A esquerda não
admite, sob pena de forte contradição, uma vez que o socialismo avança para acabar
com as “maldades” do capitalismo, mas a existência e a doutrina de Marx e
Engels foi necessária e fundamental para a existência do Terror Stalinista
indiscriminado, que é o terror para a qual a esquerda sempre tenderá, sob pena
de perder a razão de sua existência.
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A
volta completa! Acima vemos o ditador comunista Josef Stalin esbanjando incontida
felicidade, entre o ministro nazista das relações exteriores, Joachim von
Ribbentrop, à esquerda, e o seu ministro do exterior, Vyacheslav Molotov, de
bigode, à direita, após a assinatura do pacto Germano-Soviético, assinado em 23
de agosto de 1939, que tornou os dois países aliados de fato. Na foto abaixo
vemos o resultado do “pacto”: três oficiais e um suboficial nazistas conversam
alegremente com um oficial e um tanquista soviéticos, após o massacre da
Polônia. Se Hitler era um demônio ou a essência do mal, o que será aquele se
aliou oficialmente a ele? Tanta fé tinha Stalin nesse acordo que resistiu até o
último instante a reagir à invasão alemã do território de seu país, sendo por
isso, com razão, também responsável pela hecatombe humana da Rússia durante a
Segunda Guerra. A última tentativa da esquerda de se descolar desse monstro foi
inventar que ele, Stalin, era, na verdade, um agente da polícia tzarista
disfarçado, que enganou a todos.
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By Pudelek
(Marcin Szala) - Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=16974379
No
final dos anos 70, houve uma discussão em nossa célula do PCB sobre o livro de
Alexander Soljenitsin, Arquipélago gulag,
muito comentado pelo público. O nosso orientador, um ex-ferroviário, homem de
boa índole, mas muito simplório e inculto a tudo que não fosse a versão oficial
do partido asseverou-nos: “Ele é um saudosista [de fato, Soljenitsin o era]! O
que ele descreveu no livro é o que acontecia na Russia tzarista, isso jamais
aconteceu na União Soviética!” Naquela época a explicação nos pareceu
satisfatória, mas o problema é que a União Soviética acabou, e a verdade
apareceu na forma de gulags, campos
de concentração políticos dos comunistas, que não só existiam, mas também eram
tão brutais quanto os campos de concentração dos nazistas na 2ª Guerra. Nesse
período surgiu um livro arrasador, composto por uma série de mais de cem pranchas
iconográficas, onde era mostrado, por meio de desenhos realistas e minuciosos,
todos os horrores do cotidiano dos gulags soviéticos. Seu autor era um ex-guarda
desses campos, Danzig Baldaev, e aquilo horrorizou o mundo. Na ilustração mais
acima, vemos um guarda recebendo, com uma mangueira de incêndio aberta, os
prisioneiros políticos, oposicionistas, recém-chegados ao seu campo, após horas
tiritando em temperaturas abaixo de zero, o diretor ordenava que entrassem; Os
prisioneiros políticos eram maldosamente misturados aos piores bandidos e
psicopatas russos, que cumpriam pena pelos mais horrendos crimes comuns, e que
tinham rédea soltas para ficar a vontade com os “inimigos do povo”. Eram comuns
jogos de cartas, forçados, onde se apostava a vida, com o derrotado pagando o
preço combinado, ante a indiferença completa dos circundantes, gente da pior espécie
e guardas do campo; Não raro os criminosos assassinavam os “inimigos do povo”, “da
civilização”, “da verdadeira democracia”, soterrando-os sob milhões de metros
cúbicos de concentro armado, durante a construção de alguma barragem, transformada
em um cemitério vertical; Mas também havia piedosos fuzilamentos em massa, principalmente
de prioneiros que já estivessem muito fracos e incapazes de trabalhar (Baldaev
também relata execução a bala de crianças pequenas, nascidas dos prisioneiros);
Foto do prédio principal do Perm 36,
o último gulag na Rússia, onde ainda funcionava um museu, fechado em 2015 por
pressão e má vontade das autoridades russas. E assim o atual governo russo,
liderado por um ex-agente da polícia secreta soviética, Putin, se protege, e a
seus antigos camaradas, de lembranças embaraçosas, e apaga algo que pode constrangê-los;
Ainda existem alguns restos de gulags em países dominados pelos russos, como os
bálticos, que tentam preservar o que sobrou dessas estruturas, destruídas pelos
soviéticos em sua saída, e que comprovam a fidelidade das ilustrações de
Baldaev.
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Entretanto, ainda sobra uma questão: como a polícia descobriu a relação entre o
cadáver no lago e o grupo de Nechayev? Você, leitor, lembra-se que Nechayev
encarregou-se de esvaziar os bolsos de Ivanov, após o assassínio. Pois bem, a
polícia encontrou nas vestes de Ivanov o cartão da biblioteca da Academia
Petrovski, pertencente a Kuznetsov, com quem Ivanov dividia um aposento, e
assim chegou a ele e ao resto do grupo.
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Ai aparece outra questão: como Nechayev deixou passar isso? Esse erro foi fruto
do nervosismo ou foi proposital: Nechayev estaria um tanto aborrecido com as démarches
de sua célula, e resolveu livrar-se dela? Um dos indícios nessa direção é que
ele foi o único que conseguiu escapar da polícia. Mas ele faria isso, mesmo
sabendo que no grupo estaria, muito comprometido, Nikolay Nikolayev, que lhe
era cem por cento leal e seu amigo de infância? Uma frase do catecismo do
revolucionário, reproduzido pela Wikipedia em francês, nos ajuda a elucidar
isso;
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“NÃO É REVOLUCIONÁRIO QUEM TEM COMPAIXÃO POR ALGUMA COISA NESSE MUNDO” (traduzido)
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O mal não venceu de todo. Alexei
Kirillovich Kuznetsov, cujo cartão foi a causa da prisão de todos – menos Nechayev
– foi enviado para o exílio perpétuo na Sibéria, próximo à fronteira
russo-chinesa, agravado por dez anos de trabalhos forçados, em 1873. Lá se
dedicou a atividades culturais, tendo, inclusive se interessado muito por
fotografia. Inaugurador de museus, mas trapalhão incorrigível, se envolveu de
novo, em 1905, com movimentos de revoltas e viu seu exílio agravado, indo para
o extremo norte, até que, em 1908, foi parcialmente perdoado, devido ao seu
estado de saúde, e voltou para junto da fronteira chinesa, até que, provavelmente
perdoado pelos comunistas, voltou para casa, e morreu em Moscou em 1928, aos 83
anos. Enquanto esteve em Ust-Kara, Kuznetsov formou uma coleção de 74 chapas
fotográficas nas quais ele eternizou o ambiente e o aspecto de guardas,
prisioneiros e pobres camponeses que circundavam os campos de trabalho da
Rússia tzarista, das quais vemos dois exemplares acima. Na primeira vemos
prisioneiros de trabalhos forçados descarregando mantimentos das barcaças, em
Nerschinsk. Na segunda vemos um guarda dos presidiários, com uma cruel “disciplina”
na mão, e um olhar que demonstra toda a sua feroz vontade de usá-la. Ao invés
de acabar com isso os comunistas agravaram-na. As fotos de Kuznetsov, em
especial as que retratam os presos, são maravilhosas!