quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A SABEDORIA DOS MINEIROS

Prof Eduardo Simões



http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/cd/Caipira_picando_fumo.jpg/640px-Caipira_picando_fumo.jpg]
Fonte Wikipedia, pt
Caipira picando fumo de Almeida Junior. Muito incrível! A essência de um Brasil que não desapareceu.

            Não existe nada mais adequado, saneador e aprimorador do regime democrático e dos partidos, para o bem das gentes, que a alternância no poder. Vivi isso no meu estado, presa corriqueira de poderosos e antiquados coronéis, que, confiados em seus currais eleitorais e na violência dos militares, locupletavam-se do poder, dando pouco ou quase nada em troca, quando não tiravam muito para si. Com o fim da Oligarquia Militar, o povo teve a sabedoria de buscar algo diferente, e os políticos idem, o que permitiu o arejamento do poder e a dinamização da sociedade de uma forma impressionante. Coube a um político novo, sintomaticamente ligado ao PSDB, o empresário Tasso Jereissati, puxar uma avalanche de mudanças que contaminou os outros partidos, em especial o acomodado PMDB, fazendo com que o IDH do estado se tornasse o segundo do Nordeste.
            O mesmo descortino mostrou o povo mineiro, nas últimas eleições, ao perceber que a proposta do PSDB começava a se esgotar, vide o colapso no sistema de saúde de Minas, devido a acomodação ao poder de um grupo que já se sentia dono do estado. A longa permanência do PSDB no poder estadual, obrigou o PT mineiro a aprimorar o seu discurso e seu método, da mesma forma que obrigará o PSDB a aperfeiçoar-se, inclusive na virtude da humildade, para chegar na disputa ao  poder com mais chances, daqui a quatro anos. É preciso rever prioridades, mudar quadros, etc.
            Tal sabedoria não teve o povo paulista, mesmo com os índices gravíssimos e muito preocupantes do aumento da violência, queda no padrão das escolas públicas, vide IDEB, para não falar de algo apavorante, e que já dava amplos sinais que estava para ocorrer, sem que os donos do poder tomassem qualquer medida, antes a negassem peremptoriamente, que é a crise hídrica, que ainda pode assumir proporções bíblicas, se a natureza não vier em socorro do grupo no poder.
            A grande maioria dos paulistas, infelizmente, optou por aferrar-se às conquistas do passado e garantir o que tinha à mão, ainda que fosse como areia escorrendo entre os dedos, garantindo uma vantagem eleitoral tão grande a um grupo, há vinte anos no poder, que este nem se deu ao trabalho de formular um programa de governo! Ou seja, em São Paulo nada se muda, nada se areja, nada se aprimora, apenas se aprofunda, ou afunda-se, um modelo que há tempos mostra sinais de esgotamento. A situação se acomoda, a oposição se exaspera, a paixão política sai do controle.
            Vamos torcer para que não seja apenas a crise que vai nos fazer mexer em nosso estado, antes mexamo-nos para aprender com a sabedoria de compatriotas, e torçamos para chegar incólumes às próximas eleições.

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terça-feira, 25 de novembro de 2014

LUCIANO HUCK OU A VERGONHA DE SER BRASILEIRO

Prof Eduardo Simões


http://nark.files.wordpress.com/2009/10/super_sam2.jpg
http://www.taringa.net/
            Faço a chamada no 1º Ano do Ensino Médio. “Caroline!”. Uma aluna, uma graciosa mulata, vem até mim e pergunta: “como está escrito?” Estranhei, mas soletrei para ela. “Está errado, é com dois ípsilones”. Conferi de novo o nome é lá estava: Caroline. Fui à secretaria da escola e pesquisei na sua ficha de matrícula e nas fotocópias de documentos. “Nos seus documentos está escrito com ‘i’ e ‘e’!” Ela insiste: “mas eu quero que seja escrito com dois ípsilones”. Escaldado pela enorme quantidade de alunos com nomes estropiados, na tentativa de pais semianalfabetos em reproduzir termos da cultura inglesa – já tive até uma “Kerollen” – tentei lhe convencer já estava perfeitamente adequado à grafia inglesa original, até lhe ensinei a pronúncia: “kerolain”, mas não adiantou; a cultura inglesa era muito pouco “inglesa”, para ela. Logo ela, que só pelas características raciais, poderia sofrer preconceito se fosse morar no principal atrativo da cultura inglesa: os EUA. Pelo menos, ela não mais correria o risco de ser esterilizada, sem o saber ou sofrer linchamento público, como amargaram as pessoas de pele escura algumas décadas antes. Coisa que ela, e os outros, nem imaginam.
            Isso me preocupa, pois historicamente era apenas a elite econômica que costumava mostrar ojeriza pelo povo e a cultura da terra, tendo sido necessário um monumento literário do porte de um “Sertões”, de Euclides da Cunha, de 1902, para mostrar às nossas elites da época, que havia um Brasil para além de seus muros e das vitrines de Paris, uma elite deveras ingrata, pois devia os imensos privilégios e prestígio ao povo e ao país que tanto desprezava, e que não os experimentaria em nenhum outro local do mundo “civilizado”, tanto a seu gosto.
            Bem, já que não dá para se transferir para Europa ou Estados Unidos, carregando os privilégios junto, porque não tentar trazer o mundo “civilizado” para cá, assegurando, a manutenção do privilégio e da fama. Semana passada, um quadro do progrma de Luciano Huck, chamado “Um por todos. Todos por um”, frase retirada do romance “Os três mosqueteiros”, do francês Alexandre Dumas, penso, chamou-me a atenção.
            Tudo começou com a descoberta de um projeto extremamente meritório, de um agente penitenciário de Aquidauana, MS, uma cidade cujo nome está ligado a um dos mais imponentes e esquecidos feitos militares da história de nosso país: a Retirada da Laguna, em 1867, quando quase dois mil homens e mulheres deram a sua vida ou o seu sangue, para que aí se continuasse falando português e valendo as nossas leis. Que prevalecesse a nossa cultura.
            Descoberto por Huck, o emotivo e bem brasileiro agente, instrutor de basquete nas horas vagas, foi envolvido, junto conosco, em uma aventura de mágica, que contou com a presença de astros genuinamente nacionais como Oscar Schmidt e Hortência Marcari, sendo o tal agente, inclusive, levado pela produção do programa para assistir um jogo do Cleveland Cavaliers, onde conheceu Anderson Varejão, e a frase slogan do time: “All for one. One for all!”. O título, em inglês, do quadro de Luciano Huck!
            Tudo bem, nada de mais, como nada de constrangedor havia no presente que a produção deu ao agente ao turbinar, com uma bela reforma, o espaço a ser usado pelos alunos do agente, em geral filhos de presidiários e gente pobre, não fosse o nome escolhido, pela produção, para o time recém-criado: “AQUIDAUNA ALLIGATORS”, exatamente como é o costume nos Estados Unidos e Canadá, inclusive com a inversão, na frase, entre possuidor e a coisa possuída, como ocorre na língua inglesa.
            Aligátor, amigo, é um animal que só existe nos Estados Unidos, no Brasil, se é que é para por um nome de animal, conforme o costume americano, o que existe são jacarés. Qual a razão dessa cópia tão grosseira de um costume americano no interior do Brasil, no centro da América do Sul, tão abandonada e esquecida pelos “brothers”? Por que razão impor, de foram tão agressiva, ao povo pobre de Aquidauana, vergonha por sua própria cultura, ou será que todos vão conseguir olhar para aquele escudo do time, onde está escrito “alligators”, e ler sem dificuldade “aligueirô”, como Luciano Huck fez questão de ressaltar e até gritar, no final do programa, como que para ninguém esquecer a pronúncia correta do inglês dos EUA? Por que razão é importante que as pessoas se sintam analfabetas, ou inferiores, toda vez que olharem para o escudo do seu time de coração e não entenderem nada, até ficarem com vergonha por viverem em um lar ou em uma cidade onde só se fala português? O Departamento de Estado dos EUA, alguma empresa de lá, pelo menos, financiou alguma coisa? Eles vieram de lá trabalhar no projeto? Se isso aconteceu, por que foi omitido?
             Isso não é brincadeira, estamos ignorando coisa séria e está na hora de termos mais cuidado e zelo nossa cultura. Certa vez eu estava dando aula e pronunciei displicentemente “eipou”, a propósito de “apple”, afinal eu não faço nenhum esforço em ser castiço na pronuncia do meu inglês no meu país – eu sou brasileiro e não americano ou inglês – quando um aluno, semianalfabeto em português e analfabeto em história do Brasil, por resistir à aprendizagem, me interrompeu para corrigir: “é épou”. Ou seja, enquanto nas universidades doutores e mestres recomendam não corrigir os erros de português dos alunos, a pretexto de preservar a autoestima, constrangimento de classe ou sei lá que outra mitologia, os brasileiros, alguns semianalfabetos, estão se cobrando nas ruas a pronuncia correta do inglês, e o programa de Luciano Huck, infelizmente, deu mais força a esse desatino.
            E quem fica na corda bamba numa realidade como esta? A principal fonte de cultura luso-brasileira: a escola com os seus professores, vistos cada vez mais como antifuncionais, porque tentam passar conhecimento e valores que programas como os de Luciano Hulk afirmam gratuitamente ser inadequados ou ultrapassados, na melhor das hipóteses, ou talvez ele, como a maioria, nem saiba o que está fazendo, afinal tem um quadro felicíssimo chamado “soletrando”, ainda que baseado em antiquíssimas competições americanas de soletração. Mas vale, é uma boa iniciativa.

            Como a escola e professores podem resistir a pressões dessa envergadura e garantir uma boa qualidade e quantidade de aprendizagem? Enquanto isso, “especialistas”, mobilizados pelas principais revistas do país, clamam ter encontrado a solução à descaracterização e desvalorização da cultura e o seu prolongamento necessário, a desvalorização do conhecimento adquirido nessa cultura: a culpa é dos professores e a solução é acabar com a estabilidade no emprego e quaisquer outras vantagens para a carreira, afinal ele é um profissional como outro qualquer, da mesma forma que as crianças, os seres humanos, são um bem como outro qualquer? Afinal não é nisso que se acredita nos Estados Unidos?

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A VOLTA DO PARAFUSO

Prof Eduardo Simões

            O parafuso da sociedade brasileira completou mais um ciclo, e lá está de novo a classe média brasileira, ensaiando tomar as ruas, para exigir a invalidação de uma eleição, bem típico, ou o apressamento do resultado de investigações ainda em curso, ou seja, acelerar a condenação, porque as pessoas dessa classe social, assim como crianças mimadas, não gostam de esperar por nada, querem tudo logo. E o querem de forma agressiva, atacando fisicamente as pessoas que discordam de sua imaturidade e facilidade de ser manipulada, como aconteceu numa manifestação em São Paulo, noticiada pelos órgãos de imprensa sérios.
            Convenhamos que a atual presidenta e o seu incrível exército de Brancaleone do PT colaboraram muito para que as coisas chegassem a esse ponto, mas querer torná-los os únicos e piores bandidos dessa história é absolutamente inconcebível, pois todos os órgãos de imprensa sérios, inclusive aquela revista que não é tanto, mostram que a grande massa dos que sangraram a Petrobrás está ligada a outros partidos, principalmente o PMDB, de Calheiros, Sarney, Temer, etc., ídolos da classe média nordestina, assim como o PP, de Paulo Maluf, eterno “perseguido” da justiça, que recebeu da classe média paulista uma votação consagradora, assim como o palhaço Tiririca.
            Por que então só se fala em “PT”, “petralha”, e se minimiza a ação desses outros partidos, frequentadores muito mais assíduos na folha policial que aquele? Será que se está buscando, com essas mobilizações, criar uma cortina de fumaça de sorte a deixar incólumes os maiores ladrões nessa história toda, e nesse caso a “birra” da classe média estaria sendo habilmente manipulada contra seus próprios interesses de classe? Afinal, qual é o interesse ou o valor determinante de nossa classe média?
            Historicamente vamos encontrar essa classe média, pequena é verdade, mas já ativa, em 1822, clamando pela independência do Brasil, no momento em que a prosperidade do reino português se transformara em cinzas e em lembranças de um passado glorioso. A riqueza fazia-se ao mar.
            Durante o Império vemos a classe média conviver tranquilamente com o espancamento de homens nus em praças públicas, pelourinhos, e que ela fingia não ver, para não ter que se comprometer mais com sua consciência cristã católica, capaz de assistir compungida a uma missa, voltar para casa, e em seguida mutilar um escravo que lhe causara um pequeno aborrecimento. A classe média não suportava contrariedade, espera, etc. Mas quando todos perceberam que a escravidão não era economicamente tão vantajosa assim, e a fuga dramática de escravos, associada à crise econômica gerada pela Guerra do Paraguai, agravava a crise econômica do país, essa classe média descobriu-se, “bestificada”, que a escravidão era um horror, a Princesa Imperial um anjo, mas ela, classe média, que sempre fora republicana. O Império cai sem resistência.
            E assim, de crise em crise econômica caem os grandes mitos de nossa história: a Primeira República, com a crise de 1929 – a queda de Getúlio, em 1945, seria uma exceção, mas o seu suicídio em 1954 tinha como ingredientes a fragilidade da sua política econômica e o desejo de seu ministro em melhorar, paternalisticamente, a vida dos trabalhadores, já massacrados em greves desde 1917, ante a indiferença e o temor da classe média, sossegada pela Lei Adolfo Gordo, que mandou de volta à Europa aqueles que não se adaptavam ao escravismo endêmico de nossas relações de trabalho. A prosperidade econômica cria uma aura mística em torno de Juscelino Kubitschek.
            Uma crise econômica derruba o governo de João Goulart, não antes de a classe média descobrir as ruas, em espalhafatosas marchas da Família com Deus Pela Liberdade, em 1964. Pois bem, a liberdade foi para a cova, mas os militares pagavam bem, e diante do milagre manipulado e construído à custa da pobreza da classe trabalhadora, do surgimento da miséria absoluta em nossas cidades, das crianças sem teto e da destruição dos valores familiares tradicionais, que ainda davam algum sentido à nossa sociedade, a classe média se calou e, da mesma forma que fazia para não ouvir os gritos dos negros espancados no século anterior, se afastou de viagem para a Disneylândia.
            A Oligarquia Militar tentou se eternizar no poder, e teria conseguido, se não fosse a crise econômica dos anos 1980, quando essa classe média se descobriu, de novo, muito “democrática”, e foi para as ruas apoiar a emenda Dante de Oliveira e comemorar a eleição de Tancredo Neves, este que, até bem pouco tempo atrás, era visto como “comunista”, ou no mínimo simpatizante. O dinheiro está curto no bolso, então os militares são uns... O início de problemas econômicos traz Lula ao Poder Federal e o início de outra ameaça a eternização do PT aí, enquanto os indicadores econômicos, à revelia do desmanche das relações sociais e da educação, mantém o PSDB eterno no governo de São Paulo.
            Acho que descobrimos, afinal, qual é o valor que move a nossa classe média e porque razão o parafuso seria a melhor imagem para descrevê-la, e porque cada ciclo voltarmos exatamente para onde estávamos antes: o dinheiro, e só ele.

            Mergulhando cada vez mais fundo nas contradições, por essa classe mesma, criadas, nossa sociedade, já sem valores intangíveis, se vê, senão veja, às voltas com uma crise de proporções bíblicas, gestadas pincipalmente no estado onde essa classe média se sente mais segura, enquanto o céu azul e abrasador do eterno verão dos trópicos, o símbolo da nossa nacionalidade alegre e irresponsável, prenuncia, para o início do ano que vem, a tempestade perfeita.

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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

BUMERANGUE

Prof Eduardo Simões

         As mentes periféricas da grande intelligentsia que se abriga em São Paulo devem estar em pânico ante o quadro climático atual, se é que a suas condições intelectivas atuais lhes permite a tanto, sem falar dos estragos que comumente faz, às suas vítimas, a imaturidade psicoemocional.
         Poucos dias após esse estranho Exército de Brancaleone tomar as ruas da capital do estado, bramindo fúria contra a candidata vencedora e os seus asseclas, os miserandos nordestinos, substitutos dos escravos na construção da grandeza de São Paulo, fazendo aquilo que ninguém, dos brancos, queria fazer, mas que se não fosse feito não haveria aqui sequer civilização, quanto mais grandeza.
         É que esses pobres coitados, revestidos do verde de sua imaturidade e do amarelo de sua anemia mental, não sabem o que é viver permanentemente sob os efeitos da falta de água, pois a única coisa perene no nordeste é, justamente, a falta de água... e a vontade de fazer futuros trabalhadores para a grandeza de São Paulo. Mas eu sei. Eu vivi o sertão do Ceará na grande seca de 1978-83, uma seca que só acontece a cada cem anos, parelha com a dos “três oitos” (1888), quando pessoas riquíssimas morreram de sede, à mingua, crianças se prostituíram para sobreviver, e outros horrores variados, sem falar das bazófias do Augusto Imperador.
         O nordestino do semiárido é, deveras, um ser desprezível, acomodado. Pequeno atarracado, musculoso, mas leve, pois sua constituição física são só ossos, pele e músculos, parcialmente carcomidos pela ausência de reservas de gordura, como se as partes de seus corpo brigassem uma contra as outras para sobreviver, entredevorando-se. Diante de uma crise destas, tão perto e tão sem jeito, o melhor é ficar quieto e não pensar muito. Como poderia ser diferente, sem água?
         Nordestino é pobre, mas como poderia ser diferente se as benções das últimas revoluções industriais teimam em se consolidar apenas no litoral, próximas aos grandes centros consumidores e às maiores fontes de água do país, pois nada consome mais água que grandes unidades fabris, tanto para o fabrico de suas mercadorias como para o consumo de seus empregados, além do tratamento de seus rejeitos.
         Sua cara indefinida, meio índia, meio branca, meio negra, está longe de fazer boa figura, principalmente quando ele ri, é que, para ele, mesmo a mais irrisória delícia, a mais banal coisa doce, como aquele torrão de açúcar chamado rapadura, entra no seu estômago à custa dos dentes. Ele come pouco e mal. Como poderia ser diferente, sem água?
         Ele cheira mal. Trabalha relativamente muito sob um sol escaldante, sua e transpira como qualquer paulista, mas que fazer se lhe falta água para o asseio básico, e a água que escorreria pelo seu sovaco e partes íntimas, perdendo na sofreguidão do barro sedento do sertão, torna-se premente para matar a sede, causada pela atividade que lhe traz o mau cheiro?
         O homem do semiárido não precisa de guarda roupa, sequer de baú, basta tirar suas calças e deixar lá, sozinha, em pé, pois só Deus sabe quando aquela peça de pano viu uma boa lavagem. Como poderia ser diferente, sem água? As pessoas falam da elegante e bem cuidada “roupa da missa”, mas quem diz isso não sabe que na maioria das comunidades das regiões mais secas padre é artigo de luxo, só não é mais raro que agrônomo e comunista. Como poderia ser diferente, se não há água?
         Nordestino vive doente. Quando não morre de doença curável, fruto da doença incurável da falta de vergonha de nossos políticos de todas as regiões. Não tem noção de higiene, lava sua louça com uma toalha quando muito úmida, usada em “n” ocasiões, para dar um “rolé” na vista, da mesma forma que tenta dar um “rolé” na fome, espalhando a pouca comida pelo prato. Como poderia ser diferente, se não há água?
         Nordestino é subserviente. Deixa-se arrastar por políticos que compram o seu voto com bolsa família e outras benesses, que, antes, deveriam eles receber como direito do que como favor. É que para muitos esses benefícios podem fazer a diferença entre a vida e a morte. Ele não pensa, como os fartos, onde pode ganhar mais ou perder menos, mas como não perder tudo. E ao retribuir a “ajuda” com um voto, ainda que possamos etiquetar essa atitude como pouco esclarecida, ele não estaria demonstrando gratidão? Não é a gratidão uma virtude, ou a virtude perde o seu valor se for dirigida em favor de alguém não merecedor? Uma sociedade que assiste à multiplicação de parricidas e matricidas, Rugai, Richtofen, etc., está ficando estruturalmente incapacitada de entender o significado dessa virtude, e das outras.
         Mas isso está mudando, e hoje, 07/11, eu vi, pela TV, um pequeno grupo de pessoas de joelhos, em volta de uma cruz a rezar contritas, sob um sol inclemente, pela vinda de chuvas, enquanto um cidadão, já de cabelos branco, testemunhava, choroso, os seus apertos pela falta de água, em alguma cidade do oeste paulista. Afinal começam a ter alguma coisa em comum com os nordestinos, além de políticos que enganam, garantindo que tudo está sob controle, e que não vai haver seca, etc. A próxima etapa é a aparição de penitentes, se flagelando pelas ruas, adicionando o seu sangue purificado pela fé ao sangue das vítimas inocentes, com ou sem fé, da guerra entre policiais e traficantes. O pecado que no fez merecedores dessa ira climática?
         Só faltará, então, alguém, com os miolos e o coração cozidos pelo sol, pela miséria e pela falta d’água, conclamar uma guerra santa contra alguma coisa ou coisa nenhuma, atraindo após si uma grande multidão de paulistas convictos, vendo na fuga da realidade uma ocasião para se sentir mais vivos, ou pelo menos não tão mortos, obtendo da federação, como resposta a essa “esquisitice”, a mobilização de uma grande força militar para destruir tal chusma de miseráveis, confundidos com fanáticos, inimigos do regime – que sabe alguém não ressuscite a Lei de Segurança Nacional? – e vejamos no centro do estado, Piracicaba, Sorocaba, etc., um massacre; um grande massacre de multidões de pobres famélicos, lutando com armas brancas individuais, como quando os homens acreditavam na bravura e na honra, contra as armas de destruição em massa da modernidade, disparadas à distância, matando indiscriminadamente a homens, mulheres, crianças, anciãos...

          Talvez depois de tudo isso, quem sabe, um desses paulistas, que eu ainda acho são a minoria, andando pela rodoviária, ao se defrontar com uma nova leva de nordestinos chegando, se veja tão perfeitamente identificado neles, que talvez até os convide para um cafezinho, ou talvez para uma refeição mais abundante, como acontece, hoje, quando o oposto acontece, lá no semiárido mais profundo, onde o governo sempre ganha, e o povo sempre perde.
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