BUMERANGUE
Prof
Eduardo Simões
As mentes periféricas da grande
intelligentsia que se abriga em São Paulo devem estar em pânico ante o quadro
climático atual, se é que a suas condições intelectivas atuais lhes permite a
tanto, sem falar dos estragos que comumente faz, às suas vítimas, a imaturidade
psicoemocional.
Poucos dias após esse estranho Exército
de Brancaleone tomar as ruas da capital do estado, bramindo fúria contra a
candidata vencedora e os seus asseclas, os miserandos nordestinos, substitutos
dos escravos na construção da grandeza de São Paulo, fazendo aquilo que
ninguém, dos brancos, queria fazer, mas que se não fosse feito não haveria aqui
sequer civilização, quanto mais grandeza.
É que esses pobres coitados, revestidos
do verde de sua imaturidade e do amarelo de sua anemia mental, não sabem o que
é viver permanentemente sob os efeitos da falta de água, pois a única coisa
perene no nordeste é, justamente, a falta de água... e a vontade de fazer futuros
trabalhadores para a grandeza de São Paulo. Mas eu sei. Eu vivi o sertão do
Ceará na grande seca de 1978-83, uma seca que só acontece a cada cem anos,
parelha com a dos “três oitos” (1888), quando pessoas riquíssimas morreram de
sede, à mingua, crianças se prostituíram para sobreviver, e outros horrores
variados, sem falar das bazófias do Augusto Imperador.
O nordestino do semiárido é, deveras,
um ser desprezível, acomodado. Pequeno atarracado, musculoso, mas leve, pois
sua constituição física são só ossos, pele e músculos, parcialmente carcomidos
pela ausência de reservas de gordura, como se as partes de seus corpo brigassem
uma contra as outras para sobreviver, entredevorando-se. Diante de uma crise
destas, tão perto e tão sem jeito, o melhor é ficar quieto e não pensar muito.
Como poderia ser diferente, sem água?
Nordestino é pobre, mas como poderia
ser diferente se as benções das últimas revoluções industriais teimam em se
consolidar apenas no litoral, próximas aos grandes centros consumidores e às
maiores fontes de água do país, pois nada consome mais água que grandes
unidades fabris, tanto para o fabrico de suas mercadorias como para o consumo
de seus empregados, além do tratamento de seus rejeitos.
Sua cara indefinida, meio índia, meio
branca, meio negra, está longe de fazer boa figura, principalmente quando ele
ri, é que, para ele, mesmo a mais irrisória delícia, a mais banal coisa doce,
como aquele torrão de açúcar chamado rapadura, entra no seu estômago à custa
dos dentes. Ele come pouco e mal. Como poderia ser diferente, sem água?
Ele cheira mal. Trabalha relativamente
muito sob um sol escaldante, sua e transpira como qualquer paulista, mas que
fazer se lhe falta água para o asseio básico, e a água que escorreria pelo seu
sovaco e partes íntimas, perdendo na sofreguidão do barro sedento do sertão,
torna-se premente para matar a sede, causada pela atividade que lhe traz o mau
cheiro?
O homem do semiárido não precisa de
guarda roupa, sequer de baú, basta tirar suas calças e deixar lá, sozinha, em
pé, pois só Deus sabe quando aquela peça de pano viu uma boa lavagem. Como
poderia ser diferente, sem água? As pessoas falam da elegante e bem cuidada
“roupa da missa”, mas quem diz isso não sabe que na maioria das comunidades das
regiões mais secas padre é artigo de luxo, só não é mais raro que agrônomo e
comunista. Como poderia ser diferente, se não há água?
Nordestino vive doente. Quando não
morre de doença curável, fruto da doença incurável da falta de vergonha de
nossos políticos de todas as regiões. Não tem noção de higiene, lava sua louça
com uma toalha quando muito úmida, usada em “n” ocasiões, para dar um “rolé” na
vista, da mesma forma que tenta dar um “rolé” na fome, espalhando a pouca
comida pelo prato. Como poderia ser diferente, se não há água?
Nordestino é subserviente. Deixa-se
arrastar por políticos que compram o seu voto com bolsa família e outras
benesses, que, antes, deveriam eles receber como direito do que como favor. É
que para muitos esses benefícios podem fazer a diferença entre a vida e a
morte. Ele não pensa, como os fartos, onde pode ganhar mais ou perder menos,
mas como não perder tudo. E ao retribuir a “ajuda” com um voto, ainda que
possamos etiquetar essa atitude como pouco esclarecida, ele não estaria
demonstrando gratidão? Não é a gratidão uma virtude, ou a virtude perde o seu
valor se for dirigida em favor de alguém não merecedor? Uma sociedade que
assiste à multiplicação de parricidas e matricidas, Rugai, Richtofen, etc.,
está ficando estruturalmente incapacitada de entender o significado dessa
virtude, e das outras.
Mas isso está mudando, e hoje, 07/11,
eu vi, pela TV, um pequeno grupo de pessoas de joelhos, em volta de uma cruz a
rezar contritas, sob um sol inclemente, pela vinda de chuvas, enquanto um
cidadão, já de cabelos branco, testemunhava, choroso, os seus apertos pela
falta de água, em alguma cidade do oeste paulista. Afinal começam a ter alguma
coisa em comum com os nordestinos, além de políticos que enganam, garantindo
que tudo está sob controle, e que não vai haver seca, etc. A próxima etapa é a
aparição de penitentes, se flagelando pelas ruas, adicionando o seu sangue purificado
pela fé ao sangue das vítimas inocentes, com ou sem fé, da guerra entre
policiais e traficantes. O pecado que no fez merecedores dessa ira climática?
Só faltará, então, alguém, com os
miolos e o coração cozidos pelo sol, pela miséria e pela falta d’água, conclamar
uma guerra santa contra alguma coisa ou coisa nenhuma, atraindo após si uma
grande multidão de paulistas convictos, vendo na fuga da realidade uma ocasião
para se sentir mais vivos, ou pelo menos não tão mortos, obtendo da federação, como
resposta a essa “esquisitice”, a mobilização de uma grande força militar para
destruir tal chusma de miseráveis, confundidos com fanáticos, inimigos do
regime – que sabe alguém não ressuscite a Lei de Segurança Nacional? – e
vejamos no centro do estado, Piracicaba, Sorocaba, etc., um massacre; um grande
massacre de multidões de pobres famélicos, lutando com armas brancas
individuais, como quando os homens acreditavam na bravura e na honra, contra as
armas de destruição em massa da modernidade, disparadas à distância, matando
indiscriminadamente a homens, mulheres, crianças, anciãos...
Talvez depois de tudo isso, quem sabe, um desses
paulistas, que eu ainda acho são a minoria, andando pela rodoviária, ao se
defrontar com uma nova leva de nordestinos chegando, se veja tão perfeitamente identificado
neles, que talvez até os convide para um cafezinho, ou talvez para uma refeição
mais abundante, como acontece, hoje, quando o oposto acontece, lá no semiárido
mais profundo, onde o governo sempre ganha, e o povo sempre perde.
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