terça-feira, 25 de novembro de 2014

LUCIANO HUCK OU A VERGONHA DE SER BRASILEIRO

Prof Eduardo Simões


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            Faço a chamada no 1º Ano do Ensino Médio. “Caroline!”. Uma aluna, uma graciosa mulata, vem até mim e pergunta: “como está escrito?” Estranhei, mas soletrei para ela. “Está errado, é com dois ípsilones”. Conferi de novo o nome é lá estava: Caroline. Fui à secretaria da escola e pesquisei na sua ficha de matrícula e nas fotocópias de documentos. “Nos seus documentos está escrito com ‘i’ e ‘e’!” Ela insiste: “mas eu quero que seja escrito com dois ípsilones”. Escaldado pela enorme quantidade de alunos com nomes estropiados, na tentativa de pais semianalfabetos em reproduzir termos da cultura inglesa – já tive até uma “Kerollen” – tentei lhe convencer já estava perfeitamente adequado à grafia inglesa original, até lhe ensinei a pronúncia: “kerolain”, mas não adiantou; a cultura inglesa era muito pouco “inglesa”, para ela. Logo ela, que só pelas características raciais, poderia sofrer preconceito se fosse morar no principal atrativo da cultura inglesa: os EUA. Pelo menos, ela não mais correria o risco de ser esterilizada, sem o saber ou sofrer linchamento público, como amargaram as pessoas de pele escura algumas décadas antes. Coisa que ela, e os outros, nem imaginam.
            Isso me preocupa, pois historicamente era apenas a elite econômica que costumava mostrar ojeriza pelo povo e a cultura da terra, tendo sido necessário um monumento literário do porte de um “Sertões”, de Euclides da Cunha, de 1902, para mostrar às nossas elites da época, que havia um Brasil para além de seus muros e das vitrines de Paris, uma elite deveras ingrata, pois devia os imensos privilégios e prestígio ao povo e ao país que tanto desprezava, e que não os experimentaria em nenhum outro local do mundo “civilizado”, tanto a seu gosto.
            Bem, já que não dá para se transferir para Europa ou Estados Unidos, carregando os privilégios junto, porque não tentar trazer o mundo “civilizado” para cá, assegurando, a manutenção do privilégio e da fama. Semana passada, um quadro do progrma de Luciano Huck, chamado “Um por todos. Todos por um”, frase retirada do romance “Os três mosqueteiros”, do francês Alexandre Dumas, penso, chamou-me a atenção.
            Tudo começou com a descoberta de um projeto extremamente meritório, de um agente penitenciário de Aquidauana, MS, uma cidade cujo nome está ligado a um dos mais imponentes e esquecidos feitos militares da história de nosso país: a Retirada da Laguna, em 1867, quando quase dois mil homens e mulheres deram a sua vida ou o seu sangue, para que aí se continuasse falando português e valendo as nossas leis. Que prevalecesse a nossa cultura.
            Descoberto por Huck, o emotivo e bem brasileiro agente, instrutor de basquete nas horas vagas, foi envolvido, junto conosco, em uma aventura de mágica, que contou com a presença de astros genuinamente nacionais como Oscar Schmidt e Hortência Marcari, sendo o tal agente, inclusive, levado pela produção do programa para assistir um jogo do Cleveland Cavaliers, onde conheceu Anderson Varejão, e a frase slogan do time: “All for one. One for all!”. O título, em inglês, do quadro de Luciano Huck!
            Tudo bem, nada de mais, como nada de constrangedor havia no presente que a produção deu ao agente ao turbinar, com uma bela reforma, o espaço a ser usado pelos alunos do agente, em geral filhos de presidiários e gente pobre, não fosse o nome escolhido, pela produção, para o time recém-criado: “AQUIDAUNA ALLIGATORS”, exatamente como é o costume nos Estados Unidos e Canadá, inclusive com a inversão, na frase, entre possuidor e a coisa possuída, como ocorre na língua inglesa.
            Aligátor, amigo, é um animal que só existe nos Estados Unidos, no Brasil, se é que é para por um nome de animal, conforme o costume americano, o que existe são jacarés. Qual a razão dessa cópia tão grosseira de um costume americano no interior do Brasil, no centro da América do Sul, tão abandonada e esquecida pelos “brothers”? Por que razão impor, de foram tão agressiva, ao povo pobre de Aquidauana, vergonha por sua própria cultura, ou será que todos vão conseguir olhar para aquele escudo do time, onde está escrito “alligators”, e ler sem dificuldade “aligueirô”, como Luciano Huck fez questão de ressaltar e até gritar, no final do programa, como que para ninguém esquecer a pronúncia correta do inglês dos EUA? Por que razão é importante que as pessoas se sintam analfabetas, ou inferiores, toda vez que olharem para o escudo do seu time de coração e não entenderem nada, até ficarem com vergonha por viverem em um lar ou em uma cidade onde só se fala português? O Departamento de Estado dos EUA, alguma empresa de lá, pelo menos, financiou alguma coisa? Eles vieram de lá trabalhar no projeto? Se isso aconteceu, por que foi omitido?
             Isso não é brincadeira, estamos ignorando coisa séria e está na hora de termos mais cuidado e zelo nossa cultura. Certa vez eu estava dando aula e pronunciei displicentemente “eipou”, a propósito de “apple”, afinal eu não faço nenhum esforço em ser castiço na pronuncia do meu inglês no meu país – eu sou brasileiro e não americano ou inglês – quando um aluno, semianalfabeto em português e analfabeto em história do Brasil, por resistir à aprendizagem, me interrompeu para corrigir: “é épou”. Ou seja, enquanto nas universidades doutores e mestres recomendam não corrigir os erros de português dos alunos, a pretexto de preservar a autoestima, constrangimento de classe ou sei lá que outra mitologia, os brasileiros, alguns semianalfabetos, estão se cobrando nas ruas a pronuncia correta do inglês, e o programa de Luciano Huck, infelizmente, deu mais força a esse desatino.
            E quem fica na corda bamba numa realidade como esta? A principal fonte de cultura luso-brasileira: a escola com os seus professores, vistos cada vez mais como antifuncionais, porque tentam passar conhecimento e valores que programas como os de Luciano Hulk afirmam gratuitamente ser inadequados ou ultrapassados, na melhor das hipóteses, ou talvez ele, como a maioria, nem saiba o que está fazendo, afinal tem um quadro felicíssimo chamado “soletrando”, ainda que baseado em antiquíssimas competições americanas de soletração. Mas vale, é uma boa iniciativa.

            Como a escola e professores podem resistir a pressões dessa envergadura e garantir uma boa qualidade e quantidade de aprendizagem? Enquanto isso, “especialistas”, mobilizados pelas principais revistas do país, clamam ter encontrado a solução à descaracterização e desvalorização da cultura e o seu prolongamento necessário, a desvalorização do conhecimento adquirido nessa cultura: a culpa é dos professores e a solução é acabar com a estabilidade no emprego e quaisquer outras vantagens para a carreira, afinal ele é um profissional como outro qualquer, da mesma forma que as crianças, os seres humanos, são um bem como outro qualquer? Afinal não é nisso que se acredita nos Estados Unidos?

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