DIÁLOGOS COM SCHUMPETER – 3
(Baseado na História da análise econômica de Joseph A. Schumpeter)
Eduardo Simões
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O problema da ideologia
__ A discussão sobre esse tema, ideologia, nos remete necessariamente a um outro mais geral: é possível algum “conhecimento científico”, com um mínimo de “objetividade”, que nos permita conceder-lhe tal qualificação? Faz sentido, por exemplo, proclamar a economia uma ciência, com um mínimo de consistência e validade em suas afirmações, se, ao “frigir dos ovos”, ela apenas expressa os interesses difusos e o desejo de mando de uma classe social? Schumpeter acredita que sim, embora reconheça também a presença de imposições ideologias na produção do conhecimento, seja em que esfera for, mas principalmente na economia e nas ciências afins, como as “humanas”. Esse tema é muito cativante e fundamental para aquilo que se propõe esse nosso projeto, explorar, aprendendo, a essência do pensamento de Schumpeter, nessa que é a ciência de minha predileção, a história, na abordagem que mais me interessa: a economia.
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Nem tão claro nem tão “científico”
__ Schumpeter começa esse capítulo fazendo breve menção sobre a origem do conceito de ideologia e o seu desapreço logo a seguir por um general magoado e opinioso (1). Quem deu início ao significado moderno desse conceito foi justamente o exuberante filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), invertendo a direção do movimento hegeliano, pois enquanto para Hegel a mente criava o mundo, para o seu revolucionário descendente era o mundo que fabricava a mente.
__ Segundo Bottomore (2013) o conceito de “ideologia” ganhou proeminência a partir dos embates de Marx contra a religião e a sobrevalorização da consciência individual, então em curso na Alemanha, sob influencia de filósofos idealistas do século XIX, e teve pelo menos quatro versões ao longo da evolução do pensamento do filósofo, a saber:
Primeira, seguindo o corolário de seu mentor na ocasião, Ludwig Feuerbach (1804-1872), a ideologia seria uma inversão pura e simples da realidade, como quando se atribui à religião e a Deus atributos e poderes que os homens gostariam de ter, e que muitas vezes os têm, mas cuja consciência desse(s) atributo(s) lhes é negada pelas precárias condições materiais impostas pela sociedade. A solução dos problemas deste mundo seria transferida para o mundo do além “a inversão religiosa compensa, no espírito, uma realidade deficiente, reconstitui na imaginação uma solução coerente que está além do mundo real, para compensar as contradições desse mundo real” (Bottomore; 2013).
Segunda, após rompimento com Feuerbach, de 1845 até 1857, quando Marx tende mais a esvaziar o poder transformador das palavras e do espírito, conforme a tradição hegeliana, e reforçar a necessidade de focar mais na transformação da realidade: “Marx afirma, pelo contrário, que os verdadeiros problemas da humanidade não são as ideias errôneas mas as contradições sociais reais... [das quais essas ideias errôneas, as ideologias, seriam o fruto e] de seu limitado modo material de atividade, que os tornam incapazes de resolver suas contradições sociais e tendem a projetá-las nas formas ideológicas da consciência... que ocultam ou disfarçam a existência e o caráter dessas contradições. Ao ocultá-las [as contradições sociais], a distorção ideológica contribui para a sua reprodução” (idem). Marx nesse sentido é categórico: “as distorções ideológicas não podem ser combatidas pela crítica, antes só desaparecerão quando as contradições que lhes deram origem forem resolvidas na prática” (idem).
Terceira, ela aparece como um mascaramento de uma realidade injusta, ela seria uma inversão da realidade, exatamente porque esta está invertida, reforçando de que esse mascaramento da realidade é mais presente dentro de uma ordem capitalista: “essa esfera de “formas fenomenais [ou seja, aquilo que aparece aos sentidos] é constituída pelo funcionamento do mercado e da concorrência nas sociedades capitalistas, e é uma manifestação invertida da esfera de produção [que por origem e natureza deveria ser “cooperativa”]... a ideologia oculta o caráter contraditório do padrão essencial oculto [a exploração do homem pelo homem], concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente [livre iniciativa, prosperidade, liberdade de escolha, etc. e ocultação da pobreza, das injustiças, etc.] (idem). A ideologia seria, portanto, por estas palavras, uma consequência direta das distorções geradas pela natureza desumana do sistema de produção capitalista, deixando no ar a possibilidade de haver, e ser conhecida pelo homem, uma outra realidade, a verdadeira, que superaria, no plano material e mental, as inversões do capitalismo.
Quarta, como podemos ver acima, o conceito de ideologia sempre apareceu em Marx e Engels com uma conotação negativa, como uma distorção da realidade criada para sustentar os interesses de uma classe minoritária, para embasar e até ampliar mecanismos de dominação sobre vastas maiorias, levantando uma questão chave: até que ponto esse processo era consciente? Até que ponto os membros das classes dominantes ao longo dos séculos (senhores de escravos, senhores feudais, burgueses, etc.) tinham consciência de que o que faziam com seus empregados era errado, e que melhor e mais justo seria dividir as riquezas e o poder com estes, colocando o próprio conceito de história em cheque?
__ Depois da morte de Marx teve início uma revisão do conceito entre os marxistas, agora apresentado como um desdobramento intelectual, inevitável e histórico, na superestrutura, das mudanças ocorridas na infraestrutura (relações com a natureza, com a sociedade e as atividades produtivas), e nesse sentido seria correto dizer que o movimento operário, após a tomada do poder, fabricaria ele próprio a sua ideologia, que assim perde o caráter negativo dos escritos de Marx e Engels, adquirindo um significado politicamente mais neutro, de onde se levantou a questão: o marxismo, seria ele próprio uma ideologia? (2) Sem falar de uma questão igualmente crucial: percebe-se, nos escritos de Marx, uma forte tendência de isolar a sua cosmovisão ou a sua explicação sobre a dinâmica histórico-social (sua ideologia?), das outras, como a ‘burguesa’, sempre apresentada de uma forma negativa, como “falsa consciência” ou “mascaramento da realidade”, sem falar de outras tendências dentro do próprio movimento operário ou anticapitalista, apresentado como ‘utópico’, usando, para difenciar o seu socialismo dos outros, o termo “científico”, como se este conceito lhe acrescentasse uma qualidade superior tanto em relação à “ideologia burguesa”, como ao “socialismo utópico”. Mas onde ficaria o conhecimento científico e o próprio conceito de ciência nisso tudo, pois se a ciência faz parte da superestrutura então está sujeito aos condicionamentos históricos de classe? Se é o caso, então este termo, “científico” não serve de garantia para nada nem qualifica o que quer que seja, inclusive o socialismo de Marx! Mas se o conhecimento científico independe da superestrutura e do devir histórico, podendo apresentar um conhecimento imparcial, isento de interesses de classe, como acontece com a ideologia, ficam sem sentido expressões como ‘ciência burguesa’ e ‘ciência revolucionária’, tão a gosto de “neoconversos” ou velhos “emperrados”. Mas afinal onde se coloca, dentro do pensamento marxista, o chamado “conhecimento científico”?
__ A escola marxista nunca conseguiu responder a isso de forma satisfatória, por isso vamos seguir adiante (3).
Notas
1 - segundo Mora (1964), a origem do termo deve-se ao filósofo francês Destutt de Tracy (1754-1836), e significaria a “análise das faculdades e dos diversos tipos de “ideias” produzidos por elas [as faculdades mentais]...” (p 906). Seu objeto seria, portanto, “os conhecimentos”, já indicando que o seu berço estava na confusão, mas que mesmo assim atraiu muitos intelectuais em busca de novidade, desculpe-me o pleonasmo, como P,-L Roederer, Joseph Lakanal, J,-F de Saint Lambert, Cabanis, Benjamin Constant, de Gérando, etc., que formavam uma quase “escola” e ficaram conhecidos como “ideólogos”, fortemente enquadrados pela ironia ressentida de Napoleão Bonaparte, inconformado com a rapidez com que os ideólogos ‘viraram a casaca’ a seu respeito – quem não gostava de Napoleão, na ótica de Napoleão, só podia estar iludido, vivendo em um mundo de fantasias. Segundo ainda Mora, vários filósofos continuaram usando o sentido aproximado do termo, inclusive Hegel, com um matiz puramente intelectual, vinculado às ações da mente ou do espírito, cujas nuances e percalços seriam aclarados apenas na esfera da racionalidade.
2 – Em Bottomore (2013) atribui-se essa evolução à edição muito tardia do livro de Marx e Engels Ideologia alemã, feita só em 1920, deixando espaço aberto para uma maior influência do significado mais flexível presente no Anti-Dühring, de Engels, de 1859; seja como for, o “mal” já estava feito, e os pensadores marxistas, fazendo bom uso da liberdade “burguesa”, aproveitaram para aprimorar o significado do conceito e aplicá-lo onde antes era inimaginável, no próprio marxismo, como o fez o social-democrata Edward Bernstein (1850-1932), que lembrou-se que, “embora as ideias proletárias tenham uma direção realista, uma vez que se referem aos fatores materiais da evolução das sociedades, elas ainda assim são reflexos do pensamento” (idem), logo são ideologia como outra qualquer. O revolucionário russo Vladimir Lenin (1870-1924) aparentemente encerrou essa questão, em nível do socialismo oficial, pois para ele “a ideologia é a consciência política ligada aos interesses de cada classe... inclusive da classe proletária” (idem), sem com isso querer dizer que a ideologia burguesa equiparava-se à proletária e não seja falsa – na melhor das hipóteses, como diria o marxista húngaro Gyorgy Lukács (1885-1971), a ideologia burguesa seria “estruturalmente limitada”, por não adotar uma abordagem materialista da realidade e as “descobertas” do materialismo histórico, além de seu caráter reificador (transforma tudo em coisa, em coisa, em mercadoria, inclusive as pessoas). Foi o pensador marxista Antonio Gramsci (1891-1937), morto prematuramente pelo regime fascista, que fez um dos aporte mais interessantes (Bottomore, p 296) – aparentemente desconhecidos por Schumpeter, que não lhe cita em HAE – distinguindo as “ideologias arbitrárias”, equiparadas mais ou menos ao senso comum, e as “ideologias orgânicas”, vinculadas aos interesses de classe; para ele a ideologia é uma “concepção de mundo, manifesta na arte, no direito na atividade econômica e em todas as manifestações da vida social e coletiva”, e, para ele o marxismo também era uma ideologia. Eis o que nos informa um precioso artigo de Leandro Konder (1936-2014), citando passagens dos célebres Cadernos do cárcere, postado no site acessa.com: “A própria "filosofia da práxis" (o marxismo) não pode se pretender imune às vicissitudes da ideologia. Na medida em que está comprometido com um projeto e uma ação de crescente mobilização das classes populares - cuja consciência se move no plano do "senso comum" - compreende-se que o marxismo tenha acabado por se mostrar um tanto impregnado pelos critérios (frequentemente preconceituosos ou supersticiosos) determinados pela percepção das massas”. O pensador italiano constatava: "a filosofia da práxis se tornou, ela também, ´preconceito` e ´superstição`" (GRAMSCI, 1977, p. 1.861)”. Gramsci, convém ressalvar, não se assustava com essa constatação. Ele estava convencido de que nenhuma força inovadora consegue atuar com eficácia imediata e preservar sua coesão com completa coerência. De fato, a força inovadora "é sempre racionalidade e irracionalidade, arbítrio e necessidade. É ´vida`, quer dizer, tem todas as fraquezas e forças da vida, tem todas as suas contradições e suas antíteses" (GRAMSCI, 1977, p. 1.326).
Entre os marxistas, quem melhor colocou essa questão, a meu ver, mas com a insuficiência de sempre, foi a militante chilena Marta Harnecker (1937- ), em seu livro Los conceptos elementales del materialismo histórico, que assim define ideologia: “A ideologia congrega as pessoas e as justifica em seus papeis, em suas funções e suas relações sociais. A ideologia impregna todas as atividades do homem... Está presente em suas atitudes frente às obrigações de produção [o trabalho]... Está presente nas atitudes e nas escolhas políticas, no cinismo, na honestidade, na resignação e na rebelião. Governa os comportamentos familiares dos indivíduos e suas relações com outros homens... Está presente em suas conclusões acerca do sentido da vida” (p 76, traduzido do castelhano). Num determinado momento ela reconhece que a ideologia é um fenômeno geral (ou seria melhor dizer ‘universal’?) que dificulta (ou inviabiliza?) o conhecimento científico, por inviabilizar à percepção “pura” do objeto. “Quando se pensa estar frente a uma percepção pura e isenta da realidade ou de uma prática pura, o que ocorre, na verdade, é que se está de frente a uma percepção ou a uma prática “impura”, marcada pelas estruturas visíveis da ideologia. Como o vulgo não se apercebe de sua ação [da ideologia], ele tende a tomar a percepção das coisas e do mundo por percepções das “coisas mesmas”, sem dar-se conta que esta percepção não se dá senão sob a ação deformadora da ideologia” (p 77) e logo em seguida, na p 81, ela tem aquela que é a grande sacada desse capítulo: “[A percepção da realidade, pela classe dominante ou burguesa, é] deformada e falseada. Esta deformação da realidade não provém, portanto, essencialmente de um interesse de enganar da classe dominante, mas antes do caráter objetivo [isento de percepção?!] do sistema econômico como tal (ou seja a diferença entre o lucro e a mais-valia [?])... a deformação da realidade, pelo conhecimento ideológico, não se explica por uma “má consciência” ou “vontade de enganar” das classes dominantes, senão pela necessária opacidade das realidades sociais, que são estruturas complexas às quais só se pode compreender por meio da análise científica delas” A questão de uma análise e mesmo de um método, como por vezes ressalta Harnecker em outras partes do livro, criados a revelia da percepção, sempre enganadora, é bizarra, mas deixemos para comendar isso na próxima nota para não saturar esta; então sarturemos aquela...
3 – A confureba geral! Partindo do núcleo Marx-Engels, podemos deduzir que o axioma básico ou o imperativo categórico fundamental, é que só Marx conseguiu perceber “cientificamente” a dinâmica da evolução das sociedades humanas, enquanto os “outros” se deixaram levar pelas ideologias ou pela “fantasia”. É claro que isso coloca questões do tipo: como Marx conseguiu ficar imune à ideologia de sua época ou ela não é tão onipresente como afirmam Marx e os teóricos marxistas? Mesmo que ele tnha conseguido furar o bloqueio da ideologia, como pode assegurar que alcançou a objetividade máxima possível a respeito de um fenômeno tão geral e complexo, como o é a evolução das sociedades humanas? Se o que Marx desenvolveu foi apenas um método de pesquisas em ciências sociais, este sim verdadeiramente “científico”, como quer, por exemplo, Marta Harnecker, como explicar o apego religioso dos marxistas a respeito das premissas do materialismo histórico, muitas delas não tão evidentes quanto pretendiam seus fundadores? Vamos avançando aos poucos, para podermos responder com mais precisão à possibilidade ou não de haver um conhecimento minimamente científico, e qual é o status da ciência frente a ideologia, na seara marxista.
Tomando como ponto de partida um pensador mais “primitivo”, mais fiel às premissas originais, como o filósofo marxista francês Georges Politzer (1903-1942) da corrente dita “stalinista”, em seu livro Princípios elementares de filosofia (escrito entre 1935-36), que assume fortemente o conceito de ideologia como uma “falsa consciência”, a ponto de tornar até mesmo um operário, que a absorva, num inimigo de classe – “porque raciocinou mal e escolheu mal a sua ideologia, esse operário pode tornar-se, para nós, um inimigo de classe, ainda que, no entanto, seja da nossa classe” (p 98) (a questão então é: Como saber objetiva ou cientificamente a escolha certa a fazer?) – embora também reconheça o marxismo como uma ideologia: “ O marxismo é uma ideologia que forma um todo e oferece um método de resolução de todos os problemas” (p 96). Essa última declaração não é muito “científica”. O caráter totalizante da ideologia fica presente neste trecho: “[O que é] forma ideológica? Designa-se assim um conjunto de ideias particulares que formam uma ideologia num domínio especializado. A religião, a moral são formas da ideologia, do mesmo modo que a ciência, a filosofia, a literatura, a arte, a poesia”. Curioso é que para chegar a esse ponto Politzer tenha passado batido por uma mina de ouro: o caráter mobilizador da ideologia, que ele chama de “fator ideológico”, e que seria o seguinte: “é uma causa ou uma força que age, que é capaz de influenciar, e é por isso que se fala da ação do ‘fator ideológico’”. Guardem bem isso para as nossas conclusões posteriores... É claro que a argumentação de Politzer é forçada e teria, mais cedo ou mais tarde, que cair em contradição, assim, no final de seu capítulo sobre ideologia ele diz: “graças à Universidade Operária de Paris, vários milhares de homens aprenderam o que é o materialismo dialético... e a nossa luta contra a burguesia mostrando de que lado está a ciência”. Qual ciência, a do operariado ou a da burguesia, afinal ambas não são ideologia e, portanto, parciais em suas conclusões?
Bottomore (2013), no interessante verbete “ciência”, reconhece a tensão permanente entre a dialética, que constituiria a base histórica do pensamento marxista, com o materialismo, que seria o fundamento de cientificidade do mesmo, pois ao realçar a primeira relativizaria o conceito de ciência, tão caro ao marxismo, e ao realçar o segundo, esvaziaria a reflexão histórica, tão importante na mobilização das massas e na apresentação do próprio marxismo, e embora Marx enfatize a unidade entre esses dois elementos de análise, não raro observou-se, não sem a participação do próprio Marx, “um triunfalismo tecnológico de tipo prometeico, disfarçado em uma concepção evolucionista ou mecanicista-voluntarista da história, e um realismo contemplativo ou vulgar, no qual o pensamento era visto como um reflexo ou cópia da realidade” (p 101), dando como subproduto duas vertentes “antitéticas”,: “as correntes dialéticas... e as correntes materialistas” (idem) que evoluem de forma diferenciada, com a primeira se afastando razoavelmente das expectativas originais do marxismo, pois nesta “a ênfase passa... da ciência como fonte de mistificação para a ciência como agente de dominação, para a ciência hermeneuticamente inadequada ao mundo humano [a hermenêutica diz respeito à explicação do sentido]... a ciência, ao decompor a totalidade em fatos fragmentados (atomizados), é essencialmente uma expressão da REIFICAÇÃO endêmica da sociedade capitalista; e o MATERIALISMO HISTÓRICO contrapõe-se à ciência ao caracterizar-se por um método totalizador que lhe é próprio” (p 102). Isso coloca, aparentemente o materialismo histórico fora do âmbito da ciência e até oposto a ela, o que redundaria na negação do grande diferencial que Marx propunha à sua teoria: o fato de ela ser “científica”. Entre os que defenderiam essa posição são citados: Lukács, Gramsci, Horkheimer, Adorno, Habermas, Marcuse, Lefevbre, Sartre, etc., enquanto a outra corrente, a materialista, representada principalmente pelo filósofo francês Louis Althusser (1918-1970), procura ressaltar “a autonomia específica do marxismo como ciência e de sua autonomia relativa como uma prática, dentro do campo das ciências e da totalidade social”. Uma ciência a parte! Como casariam nesse contexto as práticas ideológicas com as científicos-naturais? A ideologia dirigiria ou condicionaria até as últimas consequências as descobertas no âmbito da natureza, impondo a aceitação de descobertas e teorias elaboradas alhures, no âmbito das sociedades burguesas, apenas quando se enquadrassem no figurino “marxista”? Diz ainda Bottomore: “Na tradição da Escola de Frankfurt , a ciência é associada a uma razão ou interesse instrumental, que são entendidos, pelo menos na esfera social, como uma agência mais ou menos diretamente repressiva; à razão instrumental contrapõe-se a razão ou o interesse emancipatório, estimulante da vida, ou desrepressor”. A ciência, suporte conveniente do marxismo nascente, não passa agora de um instrumento de repressão, a serviço de grupos ou classes dominantes.
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Gramsci (acima) também refletiu sobre o tema, mas não foi mais feliz. Partindo da diferenciação entre “ideologias arbitrárias”, ligadas ao senso comum, e as “ideologias orgânicas”, ele defende, em um artigo de Leandro Konder transcrito em www.acessa.com, que “as ideologias "historicamente orgânicas", constituem o campo no qual se realizam os avanços da ciência, as conquistas da "objetividade", quer dizer, as vitórias da representação "daquela realidade que é reconhecida por todos os homens, que é independente de qualquer ponto de vista meramente particular ou de grupo” (idem); podemos deduzir daí a defesa do caráter puramente descritivo, “representativo”, da ciência, da mesma forma como a via Sir Isaac Newton. Ele tenta explicar melhor a sua compreensão sobre o assunto da seguinte maneira: “a ciência é um conhecimento que se expande, que se aprofunda e se revê, se corrige, continuamente [nesse sentido é muito diferente dos outros conceitos de ideologia]. Ela também é histórica, não pode pretender situar-se acima da história, não pode pretender escapar às marcas que o fluxo da história, a cada momento, imprime nas suas construções. Por isso, não é razoável tentar promover uma contraposição rígida entre ciência e ideologia. "Na realidade", escreveu Gramsci, "a ciência também é uma supra-estrutura, uma ideologia” (idem). Então ela não pode ser critério de nada, não pode afirmar nada conclusivamente e deve ser combatida da mesma forma que uma falsa ideologia?
Eis abaixo uma coletânea das afirmações de Gramsci sobre esse tema, retiradas de seu livro Concepção dialética da história (1978).
Após comentar a insuficiência epistemológica do senso comum ele alerta: “mas tudo isso que a ciência afirma é “objetivamente” verdadeiro? De modo definitivo? Se as verdades científicas fossem definitivas a ciência teria deixado de existir como tal, como investigação... reduzindo-se a atividade científica à repetição do que já foi descoberto... a ciência é uma categoria histórica, um movimento em contínua evolução. Apenas a ciência não coloca nenhuma forma de “incognoscível” metafísico [Deus, por exemplo], mas reduz tudo o que o homem não conhece a um empírico não-conhecimento, que não exclui a cognoscibilidade, e condiciona o desenvolvimento dos instrumentos físicos ao desenvolvimento da inteligência histórica dos cientistas... o que interessa à ciência não é tanto não é tanto a objetividade do real [ela de fato existe?] quanto o homem que elabora seus métodos de pesquisa, que retifica continuamente os seus instrumentos que reforçam seus órgãos sensoriais e os instrumento lógicos... e discriminação e de verificação, isto é, a cultura, a concepção de mundo, a relação do homem com a realidade com a mediação da tecnologia... sem a atividade do homem, criadora de todos os valores, inclusive os científicos, que seria a objetividade?”
Num determinado momento ele questiona a ideia de considerar a ciência como autônoma da ideologia; “fazer da ciência a concepção do mundo por excelência, a que liberta os olhos de qualquer ilusão ideológica, que põe o homem em face à realidade tal como ela é... [ignora que] a ciência é uma superestrutura, uma ideologia [portanto o materialismo histórico não só prescinde dela para explicar a evolução das sociedades, como é posto num mais elevado patamar; mas então qual o mérito, fora o propagandístico, é claro, em dizer que o marxismo é uma “ciência”, acima das outras, que seriam “utópicas” ou “ideológicas”?]. É possível dizer, contudo, que no estudo das superestruturas a ciência ocupa um lugar privilegiado, pelo fato de que a sua reação sobre a estrutura tem um caráter particular... [que] a ciência seja uma superestrutura... é demonstrado também pelo fato de que ela tenha tido períodos inteiros de eclipse, obscurecida por uma ideologia dominante, a religião [ao longo da Idade Média]... Além disso, não obstante todos os esforços dos cientistas, a ciência jamais se apresenta como uma noção objetiva; ela aparece ssempre revestida por uma ideologia e, concretamente, a ciência é a união do fato objetivo com uma hipótese, ou um sistema de hipóteses, que superam o fato objetivo. É verdade que é relativamente fácil, neste caso, distinguir a noção objetiva do sistema de hipóteses, através de um processo de abstrações... [e] esta é a razão pela qual um grupo social pode se apropriar da ciência de um outro grupo, sem aceitar a sua ideologia (a ideologia da evolução vulgar, por exemplo) [não sei se nesse momento Gramsci está se referindo a Charles Darwin ou qualquer outra coisa, outro autor ou mesmo uma compreensão simplificada daquele, se a primeira suposição for verdadeira ele perfilará junto com o ditador Josef Stalin no mais colossal engano já cometido pelos socialistas nesse setor: a aprovação e implementação da pseudociência de um contemporâneo seu: Trofim Lysenko (1898-1978), o caso mais brutal e mais trágico de charlatanismo na história da ciência, que, com base na negação peremptória do evolucionismo darwiniano, devastou a agricultura soviética, acarretando milhões de mortos]”. Gramsci ataca a crença ingênua nos poderes da ciência, muito comum no final do século XIX e início do XX, comparando a essa atitude com as fantasias de quem tem “fumado nova espécie de ópio” (1978), invertendo simetricamente a perspectiva marxista tradicional de se apresentar como “científico”, enquanto chamava a religião de “ópio do povo”.
Marta Harnecker não faz a teoria evoluir melhor que Gramsci. Após dividir a ideología em duas categorías, as “práticas” e as “teóricas”, diz ela na pg 79: “ estas “ideologías teóricas” podem conter elementos de tipo científico [logo o conhecimento científico é, de alguma maneira, diferente do ideológico], mas pelo fato de que estes elementos estão integrados em uma estrutura de tipo ideológico, só logram dar conhecimentos parciais que se veem deformados ou limitados por sua situação dentro desta estrutura”. Certamente que ela fala das descobertas científicas feitas dentro de uma ordem burguesa; no marxismo seria diferente, desde que o marxismo não seja uma ideologia como outra qualquer? “Para que a ideología obreira espontânea chegue a transformar-se a ponto de ser liberada da ideologia burguesa, é necessário que receba, do exterior, o socorro da ciência e que se transforme, sob a influência deste novo elemento, radicalmente distinto da ideologia, em uma ideologia en que predominam os elementos científicos”. Observando: a necessidade da ajuda da ciência à ideologia operária, defendida por Harnecker, é terminantemente negada por Gramsci, e vemos nesse trecho que o conhecimento científico é não só diferente, mas qualitativamente superior à ideologia comum, inclusive aquela oriunda da classe operária. A coisa fica cada vez mais confusa; o próprio Louis Althusser, citado por Harnecker, também critica Gramsci, dizendo: “Fazer da ciência uma superestrutura é pensá-la como uma dessas ideologias “orgânicas” que estão tão unidas com a estrutura que devem desaparecer com ela” (p 72). Citando Marx, Harnecker diz que “o conhecimento das leis da natureza... o conhecimento das realidades sociais, não podem ser o produto de simples percepção ou vivência das mesmas, mas, ao contrário, produto de uma atividade científica que capta “através da aparência, a natureza intrínseca e o significado íntimo, dessas realidades””; prossegue Harnecker: “Só a teoria marxista foi capaz de romper a opacidade de toda a sociedade e penetrar em sua estrutura mais íntima, à primeira vista invisível, descobrindo o papel fundamental que têm nela as relações de produção. Desde então o proletariado conta com armas teóricas para corrigir a imagen necessariamente falseada que espontaneamente se tem da sociedade marxista, a ideologia tradicional de classe social: a ideologia do proletariado, pode transformar-se, pela primera vez, em uma “ideologia científica”” (p 82). Mas o que se pode apresentar de prova ou de critério universalmente aceito, tipo uma lei científica, que confirme isso? Como o marxismo chegou a adquirir essa “virtude” pela via natural? Caso contrário teremos que admitir uma revelação especial de um demiurgo aos seus fundadores, Marx e Engels, ou aceitar, sem querer entender, que estes, “milagrosamente”, conseguiram se safar dos condicionamentos ideológicos de sua época ao criar a sua teoria social, se é que realmente o conseguiram.
Bibliografia
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Bottomore, Tom; Dicionário do pensamento marxista; trad Waltensir Dutra; Zahar; Rio de Janeiro; 2012 – edição digital de 2013
Diakov, Vladimir; História da Antiguidade – Roma; vol 3; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965.
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Politzer, Georges; Principios fundamentais de filosofía; online
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