terça-feira, 24 de julho de 2018

RUMO AO PRIMEIRO CENTENÁRIO

Prof Eduardo Simões

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__ Um dos traços mais obstinados da esquerda latino-americana é o da ojeriza, provavelmente herdada do primitivo receituário marxista, agravado por uma percepção maniqueísta da história, a tudo que se refira a “elite”, exceto, é claro, a que surge naturalmente no seio de suas próprias congregações. Nesse sentido pode-se dizer que uma de suas grandes metas políticas sempre foi o de gerar a fórceps as chamadas democracias “populares”, não tanto pelo fato de o povo determinar, ou pelo menos condicionar, as ações do estado, mas antes de se comportar docilmente às diretrizes do grupo de esquerda no poder.
__ A inutilidade, senão o prejuízo causado pelas elites não esquerdistas ao processo de amadurecimento político das nações americanas é por eles etiquetado como algo líquido e certo; mas será que esse julgamento se sustenta, pelo menos no caso da evolução da república brasileira, da qual dispomos de dados mais completos? A esse respeito vale a pena refletir sobre o que o economista e político liberal-monetarista, Roberto Campos, escreveu em sua biografia: “A lanterna na popa”:
No plano “político”, a administração pacífica dos conflitos – que é a essência da democracia – pressupõe consenso básico sobre as instituições [bem diferentes de petistas e corruptos de todos os matizes, mancomunados para encurralar o Judiciário e manietar a imprensa]. O que supõe, por sua vez, um certo grau de homogeneização cultural [ai de nós que descuramos da educação e dos estímulos à superação das desigualdades, muito além da mera igualdade de renda, como prega a esquerda]. No plano “econômico”, as necessidades de acumulação de capital exigem a contenção de pressões distributivas [impostas por grupos à revelia do mercado], que a democracia libera e às vezes açula. [Eugenio] Gudin costumava citar [Gunnar] Myrdal, segundo o qual “a história não registra um só exemplo de país onde se tenha atingido com sucesso a plena democracia de sufrágio universal, sem que primeiramente se tivesse conseguido um nível bastante elevado de padrão de vida e um alto grau de igualdade de oportunidade [só factível por meio de uma educação de qualidade e igual para todos]”... As duas grandes e mais antigas matrizes democráticas – Inglaterra e Estados Unidos – conduziram seu processo de industrialização sob a égide de “democracias elitistas”... esse países só atingiram a democracia de massa quando já haviam completado a sua modernização econômica e atingido o consumo de massa. E. Gudin costumava lembrar que na história brasileira o único período de normalidade democrática, de Prudente de Morais e Epitácio Pessoa, teve características de “democracia elitista”. A democracia se tornou instável precisamente quando buscava tornar-se mais “autêntica” pela incorporação [artificial e demagógica] das massas” (volume único; p 243-244).
__ li, certa vez, um escritor inglês, se gabar de que em seu país o voto só foi consentido ao povo depois de ele estar razoavelmente educado, e educação foi condição para o voto universal, e por isso, acreditava ele, o Inglaterra podia se gabar de estar já a trezentos anos sem um golpe de estado ou uma administração populista que torrasse impunemente as verbas públicas, o dinheiro de seu povo – bem diferente não?
__ Vejamos agora se a história nega ou confirma o aforismo de Roberto Campos e seu maior mentor, Eugênio Gudin, partindo do princípio que um dos principais sintomas de estabilidade em um regime republicano é a transmissão oficial do poder do governante ao seu sucessor; no caso do Brasil e transmissão da faixa presidencial:

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Primeira República (1889 a 1930)
Nesse período os únicos acontecimentos que tumultuaram a transmissão pacífica de poder foi a resistência do Congresso e a renúncia de Deodoro da Fonseca em 1891, além da morte de Afonso Pena, antes do fim do mandato, por pneumonia, em 1909, e a morte de Rodrigues Alves, antes de tomar posse, em 1919, devido a um câncer.

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Era Vargas (1930 a 1945)
1930 – Getúlio depõe, com um golpe que teve amplo apoio popular, o último presidente da Primeira República, Washington Luiz, logo não recebe deste a faixa.
1937 – Getúlio aplica um golpe no seu próprio governo e cria uma ditadura pessoal.
1945 – Golpe com golpe se paga; e Getúlio renuncia neste ano sob pressão do Exército; José Linhares, presidente do STF, assume interinamente.

http://memorialdademocracia.com.br/publico/image/5162
República Populista (1946-1964)
1946 – Dutra assume a presidência, sem receber a faixa do antecessor, que renunciara.
1951 – Getúlio e eleito pelo voto popular e recebe a faixa de antecessor.
1954 – À eminência de um golpe da Aeronáutica, Getúlio se suicida. Assume o vice Café Filho,
1955 – Café Filho adoece e se licencia, assume Carlos Luz, Presidente da Câmara, que começa a trabalhar no sentido de evitar a posse de Juscelino Kubitschek, sendo então deposto pelo exército. Nereu Ramos, do STF, assume interinamente.
1956 – Juscelino assume, sem receber a faixa do antecessor.
1961 – Jânio Quadros recebe a faixa de Juscelino e, em agosto, renuncia.
1961-1963 – Improvisa-se um parlamentarismo para driblar a resistência dos militares ao vice de Jânio, João Goulart; Goulart se torna presidente pleno em 1963.

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Regime Militar (1964-1985)
1964 – Os militares derrubam João Goulart; o primeiro presidente militar, Castelo Branco, não recebe a faixa do antecessor.
1967 – General Costa e Silva recebe a faixa do seu antecessor.
1969 – Um derrame acomete o presidente Costa e Silva, justo quando ele começava a contrariar os militares mais raivosos. Sedentos de sangue, poder e privilégios os três ministros militares dão um golpe e impedem que o vice, Pedro Aleixo, tome posse. As Forças Armadas impõem Garrastazu Medici na presidência, que assume sem receber a faixa do antecessor.
1974 – General Geisel assume a presidência e recebe a faixa do antecessor e a passará ao seu sucessor – o último presidente que recebera a faixa do antecessor e passara ao sucessor tinha sido Artur Bernardes, a mais de cinquenta anos (1922-1926)!
1979 – General Figueiredo recebe a faixa de Geisel.
1985 – General Figueiredo deixa Brasília, na surdina, para não entregar a faixa ao seu sucessor Tancredo Neves, eleito pelo Congresso. Tancredo adoece e morre, antes de tomar posse.

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Nova República (1985-  )
1985 – Sarney, vice de Tancredo, assume sem receber a faixa do antecessor,
1990 – Assume Collor de Mello, vitorioso em eleição direta, recebendo a faixa do antecessor.
1992 – Collor de Mello sofre impedimento, e é obrigado a renunciar. Assume o vice: Itamar Franco
1995 – Fernando Henrique assume e presidência sem receber a faixa do antecessor, que seria legalmente Collor de Mello, mas passará a faixa a Lula
2003 – Luis Inácio Lula da Silva recebe a faixa do antecessor e a passará ao seu sucessor, Dilma, 34 anos depois de Geisel, que recebera e transmitira a faixa normalmente.
2011- Assume Dilma Rousseff, que recebera a faixa de Lula.
2016 – Dilma Rousseff é impedida e assume o seu vice: Michel Temer; parece que vai começar tudo de novo!!

__ O próximo presidente, que iniciará o seu mandato em 1919, até 1922, assumirá sem receber a faixa presidencial de seu antecessor, e se considerarmos que todo esse processo de desordem política começou justo com a Revolução de 1930, veremos o quão exageradas e injustas podem ser as homenagens prestadas a Getúlio Vargas; que falta apenas 12 anos para completarmos um século de instabilidade política no Poder Federal; e que estamos no meio de uma crise política sem precedentes, com todas as mais altas instâncias decisórias do país completamente desmoralizadas, com o candidato mais “popular” na cadeia e o segundo colocado agindo como uma viúva do período mais violento e negativo da República; podemos então concluir que ainda estamos longe de “terra firme” e até que talvez o pior ainda está por vir...
__ Sem querer ser “desmancha prazer”, já sendo, seria bom lembrar que os acontecimentos mais trágicos, sangrentos e carregados de injustiças da história recente tiveram ampla e decisiva participação das massas, como que liderando o processo, embora fossem, na realidade, controladas por grupos de origem “popular” e oratória inflamada, a saber: a Revolução Francesa, a Revolução Russa, o Nazismo e o Fascismo, a Revolução Cultural na China e o governo do Kmer Vermelho no Camboja.

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Cena e 2011. Corremos, corremos, corremos, e estamos de onde começamos! O senador Randolfe Rodrigues e o deputado Chico Alencar seguram vassouras levadas ao Congresso pela ONG Rio de Paz e Movimento de Combate à Corrupção. 

terça-feira, 3 de julho de 2018


DIÁLOGOS COM SCHUMPETER – 4
(Baseado na História da análise econômica de Joseph A. Schumpeter)
(adendo à última nota, acrescido em 24/03/18)

Eduardo Simões

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__ A discussão sobre ideologia lança sérios questionamentos sobre possibilidades de uma objetividade confiável o bastante para que uma afirmação qualquer possa ser chamada de “científica”, algo que a ciência do final do século XIX e início do XX julgava possuir, e era expresso principalmente pela corrente do empirismo na filosofia e do comportamentalismo na psicologia, pelo funcionalismo na sociologia, etc., que tendiam a isolar o objeto do observador e da realidade social, imaginando ter assim um conhecimento “fiel”, da realidade.
__ Mesmo na sua versão mais branda de elemento neutro e não mais negativo, como se fora um mascaramento, uma falsificação, consciente ou não da realidade, como propunham Marx e Engels, o termo ideologia ainda implicava num compromisso político que certamente interferiria, peço vênia aos marxistas, em última instância, no resultado das pesquisas, comprometendo a própria credibilidade ou a consistência do conhecimento científico, justo quando a economia lutava para fazer valer o seu status de ciência, junto às já consagradas ciências naturais.

Uma reviravolta

__ Quando Schumpeter começou a escrever História da análise econômica, no início dos anos 40, ele ainda estava firmemente convencido, de que era possível à ciência alcançar um grau de objetividade que permitisse ao pesquisador acessar à objetividade do real, isolando os elementos ideológicos da análise econômica, tal como acontecia com a descrição dos fenômenos e a elaboração leis nas ciências naturais. E esse era o seu maior objetivo – seu biógrafo Thomas McCraw (2012) chega a dizer que ele, por um tempo, dispendeu um grande esforço para aprimorar a sua matemática, no intuito de dar mais precisão à sua análise, entretanto após uma luta exaustiva Schumpeter teve que “jogar a toalha”, como diz McCraw: “Finalmente chegara ao fim a busca de Schumpeter por uma economia exata. A longa batalha que travara consigo mesmo e com os outros economistas... [o impasse] afinal se resolvia, pelo menos no seu espírito, jamais seria possível alcançar uma economia exata em grande escala. Com a ajuda de outras disciplinas – especialmente a história – contudo, poderia haver constante progresso” (p 509).
__ A revelação dessa grande descoberta foi feita no seu discurso de posse como presidente da Associação Americana de Economia, em 30 de dezembro de 1948, em Cleveland, e mais tarde publicada na The American Economic Review, no ano seguinte, cujos trechos eu traduzo abaixo, com um resultado surpreendente.

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Schumpeter discursando para a AEA, numa postura que lhe era característica nesses momentos: jogar levemente a cabeça para traz.

__ Numa reunião solene, prestigiada pela nata dos economistas americanos, Schumpeter começa seu discurso de posse enaltecendo as grandes conquistas analíticas já feitas por economistas e o enorme enriquecimento da análise econômica em geral, graças não só ao grande acúmulo de dados como à criação de novos e engenhosos métodos de abordagem, em paralelo com o que acontecia nas ciências naturais, principalmente nesse período tão dinâmico – o pós-Guerra – embora a paisagem por vezes pareça devastada, uma vez que nos últimos 20 anos houvera a maior crise econômica global e a maior guerra de todos os tempos, bem no seio das sociedades capitalistas; mas não há motivos para desesperanças, embora reconheça as dificuldades inerentes à complexidade da prática científica:
Muitos tipos de mente são necessários para construir a estrutura do conhecimento humano, tipos que nunca se entendem muito bem. A ciência é técnica, e quanto mais ela se desenvolve, mais ela ultrapassa o alcance da compreensão não apenas do público, mas também a própria especialidade escolhida pelo pesquisador” (p 346).
__ A expansão tremenda do conhecimento humano, na atualidade, seria, portanto, um obstáculo considerável a uma compreensão globalizante da realidade; mas não é essa a única dificuldade a ser enfrentada:
A maioria de nós, não contente com sua tarefa científica, cede ao chamado do dever público e ao desejo de servir ao seu país e à sua geração, e, ao fazê-lo, introduz sua análise seus esquemas de valores individuais, os seus costumes, as suas crenças políticas, a totalidade de sua personalidade moral e até sua crença espiritual” (idem).
__ Ou seja, buscando fazer o bem, participar mais e ser útil à comunidade, não raro o economista contamina o seu discurso e sua prática científica com elementos vinculados às suas escolhas pessoais, independente e por vezes contradizendo do que acontece no âmbito da pesquisa científica (1); mas a questão não era tão grave assim:
Não vou reabrir a velha discussão sobre juízos de valor ou sobre a defesa dos interesses de grupo. Pelo contrário, é essencial para o meu propósito enfatizar que, em si mesmo o desempenho científico não exige que nos despojemos de nossos juízos de valor ou que renunciemos ao chamado de defender algum interesse particular. Investigar fatos ou desenvolver ferramentas para isso é uma coisa; avaliá-los de algum ponto de vista moral ou cultural é, na lógica, outra coisa, e os dois não precisam entrar em conflito. Similarmente, o defensor de algum interesse ainda pode fazer um trabalho analítico honesto, e o motivo de provar um ponto para o interesse ao qual ele deve lealdade não prova nada a favor ou contra esse trabalho analítico. Dito de outra maneira: defender não implica em mentir... Para mencionar um exemplo: estabelecer a consistência lógica das condições (equações) descritivas de uma economia socialista parecerá à maioria das pessoas equivalente a querer ganhar pontos para o socialismo; mas isso foi feito por Enrico Barone (2), um homem que, o que quer que ele tenha sido, com certeza não foi simpatizante de ideais socialistas” (p 347).
__ Mas existe algo mais insidioso e deletério à análise científica, que os chamados juízos de valores, estes, em geral, derivados do senso comum e claramente explícito:
Porque elas parecem fora do nosso controle, em um sentido em que juízos de valor e simpatias pessoais não são, e, embora aliados a estes, merecem ser separado e discutidos independentemente, que são aquilo que nós chamamos de ideologias” (idem).
__ Schumpeter passa então a discorrer sobre a origem e o significado do termo, até o seu sentido mais geral, propalado pelo senso comum, que a identifica praticamente com tudo que possa sair da mente humana, o que o torna em um conceito praticamente inútil devido ao seu elevado gau de abrangência. Interessa a Schumpeter explorar um sentido espécifico de ideologia,
um que pode ser mais facilmente deduzido por meio do "materialismo histórico" de Marx e Engels. De acordo com essa doutrina, a história é determinada pela evolução autônoma da estrutura de produção: a organização social e política, religiões, moral, artes e ciências são meras "superestruturas ideológicas" geradas pelo processo econômico” (idem).
__ Segue-se uma introdução histórica:
Desde metade do século XIX a evolução da "ciência" tinha sido considerada como um processo puramente intelectual - como uma sequência de explorações do que é empiricamente dado pelo universo ou, como também podemos dizê-lo, como um processo de filiação de descobertas ou ideias analíticas que ocorreram, ainda que, sem dúvida, sob a influência da história social e sendo influenciado por ela de muitas maneiras, mas de acordo com uma lei própria. Marx foi o primeiro a transformar essa relação de interdependência entre "ciência" e outros elementos da história social em uma relação de dependência daquela aos dados objetivos da estrutura social e, em particular, sobre a localização social de trabalhadores científicos determinando a sua visão sobre a realidade e daí o que eles veem e como veem isso”.
__ Estavam todos, segundo os dizeres de Marx, envolvidos numa armadilha perfeita, a armadilha ideológica, embora Schumpeter reconheça que nos casos das matemáticas e das ciências naturais essa armadilha não chega a ser tão asfixiante assim, colocando questionamentos inevitáveis
Poucos negarão que nos casos de lógica, matemática e física a influência do viés ideológico não se estende para além da escolha dos problemas eleitos e da abordagem escolhida, mas é forçoso reconhecer que o sistema de interpretação sociológico, pelo menos nos últimos dois ou três séculos, nunca chegou a desafiar a "verdade objetiva" dos resultados. Esta "verdade objetiva" pode ser, e atualmente está sendo, contestada por outros motivos, mas não com base que uma determinada proposição é verdadeira apenas com referência a localização social dos homens que a formularam [alguns bem que tentam, e saem por aí falando em “ciência burguesa” versus “ciência proletária”]... Um pedregulho cai da mesma forma para o capitalista e para o proletário. Ora, isso não acontece no caso das ciências sociais que ficam expostas a ação das ideologias não só nos seus fundamentos como nas suas conclusões” (p 348), o que não deixa de acarretar problemas para as pretensões de cientificidade da economia, uma vez que ela é também uma ciência social.
__ A primeira coisa é colocar tudo em pratos limpos:
Há poucos estudiosos que negam pra valer que exista na economia um estoque de fatos "corretamente observados" e proposições "verdadeiras". Mas igualmente pequeno é o número daqueles que negam inteiramente a influência do preconceito ideológico. A maioria dos economistas está entre esses extremos: eles estão prontos o suficiente para admitir a sua presença, porém, como Marx, eles o acham só nos outros e nunca em si mesmos; mas eles não admitem que é uma maldição inescapável e que vicia a economia em seu núcleo”. E nesse momento ele dá uma definição muito feliz de ideologia: “aquilo que os homens pensam que veem” (idem). Genial!
__ Schumpeter avança marcando melhor a sua posição, esvaziando-se de veleidades etnocêntricas ou da acusação de anacronismo, tão comuns na análise dos “experts” de hoje:
estou falando de ciência, enquanto técnica, que produz resultados, os quais, juntamente com juízos de valor ou preferências [dos cientistas], produz recomendações individuais ou grandes sistemas, tais como o mercantilismo, o liberalismo e assim por diante... Eu concordo plenamente com aqueles que sustentam que julgamentos sobre os valores mais adequados para o Bem Comum, por exemplo, estão além do alcance do cientista, exceto como objetos de estudo, que estes temas são ideológicos por natureza e que o conceito de progresso científico só pode ser aplicado a eles somente na medida em que os ajudam a ser aperfeiçoados ou implementados. Eu compartilho a convicção que não faz sentido dizer que as idéias do mundo contemporâneo são "superiores", em qualquer sentido relevante, às idéias da Idade Média, ou as idéias gestadas sob o socialismo em relação àquelas do capitalismo liberal. Na verdade, acredito ainda que não há outro motivo, senão preferência pessoal, para dizer que há mais sabedoria ou conhecimento em nossas políticas do que no tempo dos Tudors ou dos Stuarts ou ainda, pouco importa, no de Carlos Magno” (p 349).
__ De fato, é um absurdo (anacronismo) querer julgar os atos pessoais, sociais ou jurídicos criados em outros contextos históricos, tomando como padrão os comportamentos e juízos de valores hodiernos. E agora ele toma como ponto de partida dois procedimentos próprios para a correção de excessos ideológicos durante uma análise: 
“Parte-se da percepção de um conjunto de fenômenos relacionados que desejamos analisar e acaba, por enquanto, num modelo científico, em que esses fenômenos são conceituados e as relações entre eles explicitamente formuladas, seja como pressupostos ou como proposições (teoremas)”... [Nesse momento duas coisas devem ser observadas] Primeiro, essa percepção de um conjunto de fenômenos relacionados é um ato pré-científico. Deve ser realizado para dar às nossas mentes algo com que fazer o trabalho científico... mas não é científica em si mesmo, e, embora pré-científico, não é pré-analítico. Ela não consiste simplesmente em perceber fatos por um ou mais de nossos sentidos, antes esses fatos devem ser reconhecidos como tendo algum significado ou relevância que justifique o nosso interesse por eles, e eles devem ser reconhecidos como relacionados entre si, para que possamos separá-los dos outros - que envolve algum trabalho analítico por nossa imaginação ou senso comum, e é essa mistura de percepções e análises pré-científicas que chamaremos de “visão” ou “intuição” do pesquisador. Na prática, é claro, dificilmente se começa do zero, de modo que se possa dizer que o ato de visão pré-científica seja apenas nosso. Nós começamos muito frequentemente a partir da consideração de trabalhos já feitos por nossos antecessores ou contemporâneos, ou então das idéias que existem ao nosso redor, na mente das pessoas” (p 350)
Em segundo lugar, é preciso clarificar as condições em que se dá o “modelo” que eu pretendo utilizar na análise científica dos fatos abarcados pelos sentidos. O modelo econômico vigente em nossos dias e sua analogia com outras ciências são, naturalmente, o produto de estágios finais dos esforços da ciência. Essencialmente, no entanto, eles não acrescentam nada que não já estivesse presente nas primeiras formas de esforço analítico... e outras realizações de trabalhadores individuais, em primitivos modelos fragmentados e ineficientes. Este trabalho consiste em escolher certos fatos em vez de outros, classificando-os, além do acúmulo de fatos adicionais, não apenas para suplementá-los, mas também para substituir alguns daqueles originalmente fixados na formulação e melhorar as relações percebidas de forma breve, em pesquisa tanto "factual" como "teórica"... em uma cadeia infinita... com os fatos posteriores sugerindo novos instrumentos analíticos (teorias) e estes por sua vez nos levando ao reconhecimento da importância de novos fatos” (p 350-351).
__ Há, portanto, um processo cumulativo, que precisa ser conhecido e reconhecido, ressaltando a importância da história, e, porque não dizer, da “tradição”, na formulação de um conceito mais consistente daquilo que se poderia chamar “economia”, ou melhor dizendo: “ciência econômica”:
Tão logo tenhamos realizado o milagre de saber o que nós normalmente não percebemos: a existência do viés ideológico em nós mesmos e nos outros, e podemos rastreá-lo até sua fonte mais simples. Esta fonte é a visão inicial dos fenômenos que nós propomos submeter a tratamento científico. Este tratamento em si está sob controle objetivo, no sentido de que é sempre possível estabelecer se uma determinada declaração, em referência a um determinado estado de conhecimento, é demonstrável, refutável, ou nem uma coisa nem outra. Claro que isso não exclui erros honestos ou desonestos... Mas permite a exclusão desse tipo particular de ilusão que nós chamamos ideologia porque o teste envolvido é indiferente a qualquer ideologia”. É uma forma de dizer que existem elementos sociais, isto é, colegiados de cientistas, em universidades, editoras científicas e institutos respeitáveis, que podem rastrear e identificar contaminações puramente ideológicas em um trabalho, por meio de verificações diversas, contraprovas criadas para esta finalidade, terminando por classificar as conclusões do trabalho avaliado como válidas, a comprovar ou simplesmente inválidas.
__ Após mais algumas observações, ele se debruça sobre a influência ideológica presente na obra de três dos mais famosos analistas econômicos da história: Adam Smith, Karl Marx e Mainard Keynes:
No caso de Adam Smith, o que chama a atenção não é tanto a ausência, mas a inofensividade do preconceito ideológico. Não estou me referindo à sabedoria prática dele, ligada ao seu tempo e às condições de seu país, sobre o laissez-faire, livre comércio, colônias e afins... preferências políticas e recomendações do homem [e não do economista]... Estou me referindo exclusivamente a seu trabalho analítico, este mesmo sempre indicativo, nunca impositivo... seguindo o receituário marxista [para identificar a ideologia de alguém], devemos olhar para sua localização social... a sua classe social e ancestral, filiações, e, além da conotação de classe, das influências que podem ter formado ou ajudado a formar aquilo que chamamos de sua cosmovisão. Ele era um “homo academicus”, que se tornou um funcionário público. Seu ambiente era mais ou menos semelhante: sua família não era pobre nem rica, mas manteve um certo padrão de educação, que se enquadrava em um grupo social bem conhecido na Escócia de seus dias. Acima tudo isso não pertencia à classe empresarial... Ele contemplou o processo econômico de seu tempo com um olhar frio e inquiridor, e instintivamente olhou para a sua mecânica, ao invés de fatores pessoais, para suas explicações, como na divisão do trabalho. Sua atitude para com os terratenentes e para as classes capitalistas foi a do observador de fora, e ele deixou bem claro que considerava o proprietário rural (o senhorio “preguiçoso”, que colhe onde não semeou), desnecessário, e o capitalista (que contrata "gente industriosa" e os provê com recursos, matérias-primas e ferramentas) como um mal necessário... Além disso, suas simpatias foram inteiramente para o trabalhador, aquele que "veste todo mundo, enquanto ele mesmo anda em farrapos... devo enfatizar que o outro componente desta visão, a filosofia da lei natural, que ele absorveu na sua formação, era produto de homens condicionados de forma semelhante, e norteou o fundo ideológico a partir do qual ele escreveu em defesa da liberdade de ação [livre iniciativa], do direito natural do trabalhador à integralidade do produto de seu trabalho... tudo isso foi ensinado a ele antes que suas faculdades críticas fossem desenvolvidas, mas dificilmente havia necessidade de ensinar-lhe essas coisas, porque elas lhe foram induzidas "naturalmente" pelo ambiente onde ele viva. Mas... essa ideologia, tão fortemente enraizada, realmente não prejudicou muito a sua realização científica” (p 352-353).
__ Após mais algumas informações irrelevantes, a meu ver, sobre Smith, mostrando o quanto, nas suas conclusões acadêmicas, ele era dominado pelo senso comum, embora fosse estritamente lógico quando analisava os fatos, comparando o viés ideológico deste com um “inofensivo homem de palha” (3), Schumpeter dá início a análise da ideologia de Karl Marx:
Marx foi o economista que descobriu a ideologia para nós [economistas] e quem melhor entendeu a sua natureza. Cinquenta anos antes de Freud, este foi um desempenho da primeira classe [que elogio!]. Mas, é constrangedor dizê-lo, ele era totalmente cego para os seus perigos no que dizia respeito a si mesmo. Somente as outras pessoas, os economistas burgueses e os socialistas utópicos, foram vítimas de ideologia. Ao mesmo tempo, o caráter ideológico de suas premissas e o viés ideológico de seu argumento é óbvio em toda parte – alguns de seus seguidores, como Mehring (4), por exemplo, reconheceram isso. Não é difícil descrever o caráter sua ideologia: ele era um radical burguês, que rompeu com o radicalismo burguês... Sua crítica não foi original; ela permeou os círculos radicais de Paris e pode ser rastreada até escritores do século XVIII, como Linguet (5). História concebida como luta entre classes, que, em Linguet, são definidas como haves [os possuidores] e havenots [os despossuídos], com a exploração de uma pela outra, com o aumento contínuo da riqueza da minoria, os haves, e uma miséria e degradação cada vez maior entre os havenots, movendo-os para uma inevitável e necessária explosão social... esta visão, porém, implica em várias declarações que certamente não resistem a uma análise científica; e, de fato, na medida que seu trabalho analítico amadureceu, Marx não apenas elaborou muitas peças de análise que eram neutras para essa visão, mas também algumas que parecem não concordar bem com isso, como quando, por exemplo, ele superou as teorias do subconsumo, concomitante com a superprodução, como fonte das crises do capitalismo, que ele parece ter defendido no início, além de inúmeros vestígios eventualmente encontrados no quebra-cabeças de seus escritos posteriores. Ele introduziu outros elementos em sua análise, para a sustentação do ideário original, por meio do artifício de declará-lo uma lei "absoluta" (ou seja, abstrata [= não testável]), embora admitindo a existência de forças contrárias, que expunham fenômenos divergentes de suas afirmações na vida real. Algumas partes de sua visão, finalmente, se refugiaram na fraseologia vituperativa que não afeta os elementos científicos de seus argumentos. Por exemplo, certo ou errado, sua teoria da mais-valia é uma genuína peça de análise teórica, enquanto suas frases raivosas contra a exploração poderiam muito bem ser anexadas a outras teorias e autores como Bohm-Bawerk (6)(p 354-355).
__ Nesse momento, com a anuência prazenteira da plateia, ele põe o dedo bem na feria do marxismo:
Mas alguns elementos de sua visão original – em particular, o aumento inevitável miséria das massas, que acabaria por arrastá-las à revolução e à vitória final – eram insustentáveis e ao mesmo tempo indispensáveis para ele, uma vez que estavam tão intimamente ligados ao significado mais profundo de sua mensagem, que não seria possível descartá-los; e foram justamente eles que lhe atraíram uma multidão de seguidores movidos por uma lealdade fervorosa. Foram eles [esses elementos] que explicam o efeito organizador e mobilizador de seu pensamento, que, sem eles, há muito já teria sido considerado obsoleto e sem vida. E assim, nós vemos, neste caso, a vitória da ideologia sobre a análise, com a consequente transformação de sua visão em um credo social, tornando a sua análise cientificamente estéril”.
__ Até ali Schumpeter saira-se bem à sisuda plateia que acompanhava atentamente cada palavra sua. Pegara leve com Adam Smith, um símbolo histórico, e, embora também tenha sido complacente com Marx, o desafeto de quase todos, e o teórico por trás da força que então se opunha aos Estados Unidos e ao capitalismo, a União Soviética, mais do que a maioria gostaria, não deixara outrossim de lhe vibrar uma contundente crítica, mas agora era a vez de analisar ideologicamente o mais recente “queridinho da América”: o economista inglês Maynard Keynes. Ele começa fazendo menção ao opúsculo de Keynes, Consequências da paz (o Tratado de Versalhes, 1919) editado em 1920:
Esses parágrafos criaram o estagnacionismo moderno (7); entretanto, humores estagnacionistas já haviam sido expressos, em intervalos regulares, por muitos economistas, até antes do Britannia Languens, em 1680 (8), prevendo e explicitando as características essenciais da sociedade capitalista madura e arteriosclerótica, que tenta poupar mais do que suas oportunidades de investimento decadente podem absorver. Essa visão nunca mais desapareceu” (p 355-356). Ou seja: não havia nada de novo no pensamento de Keynes, era inclusive muito antigo...
__ Prossegue Schumpeter dizendo que, embora essa tendência já fosse apontada no livro do economista Dennis Robertson (1890-1963) (9), Práticas bancárias e nível de preço, Keynes tratou o tema como algo menor, até perceber que o ambiente social criado pela Grande Depressão de 1929, tornou as pessoas (ideologicamente) receptivas a essa mensagem – alguém poderá deduzir das palavras de Schumpetr uma leve acusação de “oportunismo” a Keynes, não necessariamente em sentido “neutro”.
Também isso era ideologia – a visão de que a decadência do capitalismo poderia ser explicada em apenas uma de muitas causas possíveis – e foi ela quem salvou a pátria, e não uma conclusão analítica, no livro de 1936 (10), que por si mesmo, sem a proteção que encontrou no amplo apelo a ela, teria sofrido muito mais com as críticas que lhe foram dirigidas quase imediatamente. Ainda assim, o aparato conceitual era não só de uma mente brilhante, mas também madura, de um marshaliano [que, segundo Schumpeter, Keynes nunca deixou de ser] (11)... Ele [Keynes] continuou a ser aquilo em que havia se tornado em 1914, um mestre do ofício teórico, que foi capaz de fornecer a sua visão com uma tal armadura que impediu muitos de seus seguidores de ver o elemento ideológico em tudo... não existe [na obra de Keynes] princípios realmente novos para absorver. A ideologia do subemprego crônico e de contenção de gastos – que é um termo melhor para usar aqui do que “poupança” – é prontamente visto para ser incorporado em algumas poucas restritivas suposições que enfatizam certos fatos (reais ou supostos)... Isso reduz as controvérsias keynesianas ao nível ciência técnica. Na falta de apoio institucional, o "credo" esgotou-se junto com a situação que o tornara plausível. Mesmo os mais robustos McCullochs (12) dos nossos dias estão fadados a entrar em uma dessas posições dos quais é difícil dizer se envolvem renúncia, reinterpretação, ou mal-entendido da mensagem original” (p 356).
__ Schumpeter passa então a considerar pontos específicos da teoria de Keynes, lembrando que as discussões envolvendo a poupança, muito ampliadas por este, na verdade já haviam sido levantadas no passado por grandes economistas do século XVIII, como Adam Smith (1723-1790) e Turgot (1727-1781), e até antes deles, até o arremate impiedoso:
Mas ai há, como sempre acontece, pregação elogiosa ou vituperativa sobre o assunto, que, auxiliado por truques terminológicos como a confusão entre poupar e não gastar, conseguiu produzir um falso antagonismo entre os escritores sobre o assunto. Tem-se enfatizado muito as diferenças na doutrina, para as quais não há base factual ou analítica, indicando, embora em si mesmos não provem, a presença de viés ideológico de um lado ou de ambos - o que neste caso provêm de duas atitudes diferentes para o modo de vida burguês [uma baseado na “gastança” outra na “avareza”]”.
Outro exemplo de ideologia desse tipo é proporcionado pela atitude de muitos, senão a maioria dos economistas, em relação a qualquer coisa ligada ao monopólio (oligopólio) e à fixação de preços combinados (cartel). Essa atitude não mudou desde Aristóteles e Molina (13), embora tenha adquirido um significado um pouco diferente sob as condições da indústria moderna. Agora como então, a maioria dos economistas subscreveria o dito de Molina: “o monopólio é injusto e uma injúria à sociedade”, mas não é esse juízo de valor que é relevante ao meu argumento... antes a análise que leva a isso e a influência ideológica que aí transparece. Quem já leu os Princípios de Marshall, e mais ainda Indústria e comércio, deve saber que entre as empresas que são cobertas por aqueles termos [monopólio e oligopólio], existem muitas que beneficiam, e não injuriam, a eficiência da economia e os interesses dos consumidores. E mais, a análise moderna tem demonstrado claramente que muito poucas e não qualificadas objeções podem ser verdadeiras para todas elas, e que os meros fatos do tamanho, da venda exclusiva, da limitação de mercado e do preço combinado, não são em si suficientes para afirmar que o desempenho resultante desse tipo de empresa seja inferior ao que teria sido esperado em um ambiente de concorrência perfeita – em outras palavras a análise econômica não oferece material que dê suporte à desconfiança generalizada sobre os “trustes”, e o material que, porventura, dê azo a esse tipo de sentimento deve ser procurado no âmbito de cada caso particular [como acontece com quaisquer outras empresas]. Mas o certo é que muitos economistas dão apoio a esse tipo de desconfiança generalizada... A ideologia deles é que a economia capitalista cumpriria sua função social, como que num toque de mágica, não fosse a sombra que monopólios ou oligopólios lançam sobre o sistema. Nenhum argumento é mais poderoso em prol dos negócios de maior escala que a sua inevitabilidade, assim como inevitáveis são os custos sociais envolvidos na destruição das estruturas existentes e o fracasso do modelo de concorrência perfeita [enterrem de vez a Adam Smith!]”.
Entretanto, mesmo nos estendendo bem sobre os efeitos da ideologia, não conseguimos abarcar toda a sua área de influência; e não há lugar onde ela deixe mais fortemente as marcas de sua influência que na história econômica... [por exemplo] o tema sobre o papel que as políticas de governos desempenham no desenvolvimento econômico, proporciona uma excelente base para uma discussão: historiadores econômicos, sozinhos ou em grupos, têm sistematicamente super- ou subestimado a importância dessas políticas, de uma maneira que aponta para inequívocas convicções pré-científicas [ideológicas]. Mesmo as inferências derivadas das estatísticas, tão propícias à objetividade e boa lógica, ficam comprometidas quando temas ideologicamente relevantes estão em jogo. Muitas das vagas sociológicas, psicológicas, antropológicas e biológicas que vêm bater em nossas praias estão tão viciadas pelo viés ideológico, que os economistas só podem avançar por entre esses escolhos com estudos comparativos”
“Há um pequeno conforto em postular, como tem acontecido algumas vezes, a existência de mentes destacadas, imunes ao viés ideológico e, em hipótese, capazes de superá-lo. Tais mentes podem realmente existir, e isso pode ser facilmente observado em grupos que se mantém mais afastados da influência ideológica do que outros, embora pertençam a um estrato social muito susceptível à ação ideológica tanto na área politica como econômica [nem todo operário é militante marxista e nem todo empresário fecha com a defesa do liberalismo e do capitalismo tradicional]... Há ainda mais o conforto na observação de que nenhuma ideologia econômica dura para sempre... e disso segue não só o fato de que os padrões sociais mudam e que, portanto, toda ideologia econômica a eles vinculada está destinada a murchar, mas também a relação que a ideologia mantém com o ato cognitivo pré-científico que chamamos de visão. Uma vez que este ato gera a busca e a análise de fatos, e estes tendem a destruir o que não resistir o crivo de testagens, nenhuma ideologia econômica poderia sobreviver indefinidamente, mesmo em um mundo social estacionário. Como o tempo passa e esses testes estão sendo aperfeiçoados, eles fazem seu trabalho mais rapidamente e mais efetivamente. Mas ainda assim temos a certeza de que alguma ideologia sempre estará conosco, e disso eu estou bem convencido”.
“Mas isso não é uma desgraça. É pertinente lembrar outro aspecto da relação entre ideologia e visão. Esse ato cognitivo pré-científico, que é a fonte de nossas ideologias é também o pré-requisito de nosso trabalho científico [tanto a ciência como a ideologia nascem de nosso sistema sensorial, lato senso]. Nenhum início, recomeço ou mudança em qualquer ciência é possível sem isso. Através dele, adquirimos novos materiais para nossos esforços científicos e algo para formular teorias, defender e atacar. Nosso estoque de fatos e ferramentas cresce e se rejuvenesce no processo. E assim, embora nós devamos prosseguir devagar por causa de nossas ideologias, talvez não conseguíssemos prosseguir sem elas” (p 357-359).
__ Nesse momento, diz McCraw a sisuda, douta e convencional plateia presente levantou-se, e como que tocada de uma só vez por uma potente descarga elétrica, e prorrompeu numa ovação pouco comum ao contido e formal temperamento anglo-saxão, ainda mais em um meio acadêmico, considerada também a época do evento: metade do século XX. Até Schumpeter se admirou, mas não havia dúvidas, depois de todas as incompreensões e até perseguições que sofrera nos Estados Unidos – chegou a ser vigiado pelo FBI do controvertido J Edgar Hoover (1895-1975), por suspeita de filogermanismo – sua carreira chegara ao auge, e ele podia alimentar a ilusão juvenil de ter se tornado o maior economista do seu tempo, ainda que dividindo o posto com Keynes . Eufórico ele escreve em seu diário:

A força das Coelhinhas (14) se afirmava gloriosamente. Obrigado Coelhinhas por me apoiarem e por um dos mais ricos presentes. Todos se levantaram para aplaudir... Todo o público presente no salão de baile de Cleveland levantou-se para me aplaudir. Não foi um momento pequeno e de pobreza. E ainda assim imerecido. Obrigado Coelhinhas. Oh, deem-me forças, Oh Deus, Oh Coelhinhas. E que eu possa me acostumar lentamente à ideia de uma morte voluntária. Deveria pedir, talvez, ajudem-me a alcançar uma morte voluntária? Oh Deus e Coelhinhas, obrigado. Abençoem 1949, se for possível. Eu não poderia aguentar muito mais que um ano”.

__ Essa palavras foram escritas no penúltimo dia de 1948, e no dia 8 de janeiro de 1950 ele morreu, enquanto dormia, de uma hemorragia cerebral, que lhe causou coma seguido de morte em poucas horas.

Álbum

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http://cowellhubbard.com/wp-content/uploads/2012/01/Scanned-Horz-w-credts-9.jpg
Cleveland, 1948; as marcas da força revolucionária do capitalismo que tanto impressionou a Schumpeter.

https://www.aeaweb.org/images/2018_webcasts.jpg

https://www.aeaweb.org/content/file?id=987
Reunião da AEA, em 2018; duas coisas que quase não havia no tempo de Schumpeter: mulheres e gente de pele amorenada.   

Notas
1 – Certa vez em um encontro acadêmico, o célebre epistemólogo suíço Jean Piaget, foi indagado de chofre se ele gostava de crianças, afinal a grande massa de suas pesquisas dizia respeito a elas. Surpreso, Piaget afirmou que sim, mas que não via como isso poderia ter influenciado os resultados de suas pesquisas, que era sobre o que ele falava na ocasião...
2 – Enrico Barone (1859-1942) foi um economista italiano, muito ligado a Vilfredo Pareto, a quem Schumpeter muito admirava, que fez um estudo técnico do socialismo, em um artigo, escrito em 1908, chamado “O ministro da produção no estado coletivista”, cujo resumo recente, traduzido do italiano, apresento abaixo, corroborando o que foi dito por Schumpeter acima: “Aqui estão as últimas peças do ensaio de Enrico Barone sobre a praticidade teórica de um sistema econômico com planejamento central. De uma forma muito concisa, ele antecipa as conclusões a que von Mises chegará em seu ensaio sobre o socialismo (Die Gemeinwirthschaft) publicado em 1922. Barone também salienta a impossibilidade, numa economia planificada, de um sistema de preços que garanta a implementação dos melhores coeficientes de produção na ausência do mecanismo de livre comércio e experimentação produtiva. A chamada "anarquia de produção" que para os centralistas é o sinal do fracasso da "mão invisível", pois leva a uma mudança contínua de produção e processos de produção, para Barone é o pré-requisito para que dos coeficientes [dos diferentes tipos de produção e processos] surja continuamente uma produção mais eficiente. Assim, para "administrar" a economia em vista do resultado coletivo máximo, o ministro da produção do Estado coletivista não pode deixar de usar as mesmas categorias de livre comércio que ele busca extinguir [pelo planejamento centralizado], a menos que ele queira implementar um sistema econômico caracterizado por uma ineficiência muito alta na alocação de fatores de produção. Não é precisamente isso que ocorreu no decorrer do século XX, em todas as tentativas de economia centralizada?” [quando Maduro, Ortega, Díaz-Canel, e os latino-americanos aprenderão isso?] (ver, em italiano, http://www.panarchy.org/barone/stato.collettivista.1908.html).
3 – Nesse momento Schumpeter deve estar a fazer referência ao espantalho do filme Mágico de Oz, que estreou em 1939, um dos sucessos mais retumbantes do cinema e um símbolo caro da classe média americana da época. Quem assistiu ao filme sabe o quanto o homem de palha era inofensivo: só queria um cérebro para ter poder pensar melhor e se tornar sábio, coisa que os amantes atuais das ideologias também deviam almejar.
4 – Franz Erdmann Mehring (1846-1919) um socialdemocrata alemão que escreveu uma biografia de Marx que ficou clássica: Karl Marx, a história de sua vida. Numa carta de Engels a Mehring, datada de 14 de julho de 1893, fica bem claro a cegueira de que Schumpeter fala: “A ideologia é um processo que, com efeito, é completado com consciência pelo chamado pensador, mas com uma consciência falsa. As forças impulsionadoras propriamente ditas que o movem permanecem-lhe desconhecidas; se não, não seria, precisamente, processo ideológico nenhum. Ele (o pensador) imagina, portanto, forças impulsionadoras falsas ou ilusórias. Porque o (processo) é um processo de pensamento, ele deduz tanto o seu conteúdo como a sua forma do puro pensar, quer do seu próprio quer do dos seus antecessores. Ele trabalha com mero material de pensamento, que, sem dar por isso, toma como produzido pelo pensar e, aliás, não investiga mais (se ele tem) uma origem mais afastada, independente do pensar; e, com efeito, isso é para ele evidente, porque, para ele, todo o agir, porque mediado pelo pensar, parece também em última instância fundado no pensar... o ideólogo histórico tem, portanto, em cada domínio científico uma matéria que se formou autonomamente a partir do pensar de gerações anteriores e que fez um ciclo de desenvolvimento próprio, autônomo, no cérebro dessas gerações sucessivas. Sem dúvida que fatos exteriores, que pertencem ao próprio domínio ou a outros, podem co-determinantemente ter actuado sobre este desenvolvimento, mas esses fatos são, segundo o pressuposto tácito, eles próprios, meros frutos de um processo de pensamento e, assim, permanecemos sempre na esfera do mero pensar, que aparentemente digeriu com facilicidade mesmo os fatos mais duros”. A questão central permanece, porém, insepulta ou não respondida: como Marx e Engels, e só eles, escaparam da ilusão ou da falsificação ideológica? Às vezes parece que Marx e Engel atribuem gratuitamente para os seus desafetos, vistos sempre como grupo ou classe, nunca individualmente, embora ambos busquem sempre deixar bem claro o que é próprio de um e de outro – o culto de Engels a Marx é impressionante – “ideias típicas”, dando a entender que suas conclusões se baseiam mais no mecanismo freudiano da compensação ou da projeção do que em pesquisas “isentas” de ideologia. Freud fez mal em ter se manifestado só cinquenta anos mais tarde... (carta completa de Engels em https://www.marxists.org/portugues/marx/1893/07/14.htm)
5 – Simon-Nicolas-Henri Linguet (1736-1794), advogado e jornalista “incendiário”, no período pré-revolucionário e neste, assim como a maioria dos que se sobressaíam, acabou miseravelmente na guilhotina. Segundo a Wikipedia em francês ele “se opunha aos filósofos, aos jansenistas, e sobretudo ao liberalismo econômico implementado pela Revolução Francesa, cujas consequências ele denuncia com virulência aos membros das classes trabalhadoras”.
6 – Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914), economista austríaco e um dos fundadores da ultraliberal escola austríaca, Böhm-Bawerk fez um minucioso trabalho criticando a teoria da mais-valia.
7 – A estagnação econômica é assim definida pela Wikipedia em inglês: “um período de fraco crescimento econômico (medido em termo de PIB), geralmente acompanhado de altas taxas de desemprego. O termo “fraco” significa que o crescimento real analisado é menor que o crescimento potencial de uma economia, medido por macroeconomistas, no âmbito de uma economia específica”. Não existe uma taxa absoluta a partir da qual se possa dizer que um crescimento é fraco ou forte. Sandroni (1999) lembra que a estagnação pode ser consequência de uma baixa demanda global, um impulso generalizado para a poupança, como aconteceu recentemente com o Japão. Sandroni também traz uma informação importante para o contexto de que estamos falando: “Segundo os economistas da escola keynesiana, a tendência a estagnação é uma das características do capitalismo, caso a economia concorrencial seja relegada aos seus mecanismos naturais. Para combater essa tendência, advogam a intervenção do estado na economia, como instrumento de controle de taxa de juros e incentivador de novos investimentos” (p 221). Foi provavelmente daqui que Lula, Dilma e os economistas da nova matriz econômica tiraram sua principal linha de atuação econômica.
8 – “A Grã-Bretanha enlanguece (se esvai)”; folhetim escrito por William Petyt (1640-1707), advogado e funcionário público, não confundir com o economista homófono, William Petty (1623-1687),  publicado em 1689, cuja ementa esclarece sobejamente o seu conteúdos: “um discurso sobre o comércio, mostrando que a atual administração do comércio na Inglaterra é  verdadeira causa da decadência de nossas manufaturas e a da última grande queda das rendas da terra, e que a intensificação do comércio, pelo método agora em uso, deve decair, e com ele a Inglaterra. O que fica particularmente demonstrado é a atual administração da Companhia das Indias Orientais quase destruiu o nosso comércio naquelas terras, assim como na Turquia, e que em curto espaço de tempo levará a nação à mendicância. Humildemente oferecido à consideração deste presente Parlamento”. Onde Schumpeter foi desencavar esse documento, feito por um personagem obscuro – embora fosse um funcionário bem colocado, que sequer chegou a ser político, embora simpatizante dos Wighs? Entretanto o fato de ele se dirigir ao parlamento para esolver uma questão tipicamente econômica-administrativa denuncia bem o seu caráter “keynesiano”. Ou seria o caráter petytiano de Keynes?
9 – Dennis Holme Robertson, economista inglês, trabalhou muito próximo a Keynes nas décadas de 20 e 30, e teria sido o criador de um conceito muito escutado em conversas de economistas: “armadilha de liquidez”. Keyne gabava-o de ter “uma inteligência perfeita de primeira classe”.
10Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, uma das obras mais famosas e admiradas de Keynes.
11 – Referência ao economista inglês Alfred Marshall (1842-1924), da chamada “escola neoclássica”, um dos mais importantes economistas do final do século XIX. É uma forma de dizer que não havia nada de novo em Keynes, apesar da admiração do vulgo.
12 – Referência a um célebre processo judiciário americano envolvendo um funcionário do Segundo Banco dos Estados Unidos, em Baltimore, Maryland, no ano de 1819, Thomas McCulloch, conhecido como McCulloch v Maryland, remetido à Suprema Corte, onde pontificava nessa época outro Marshall, um dos mais famosos juízes americanos, John James Marshall (1755-1835). O caso todo girou em torno da possibilidade de a União poder exercer atividade financeira ou interferir na economia, e de sua autonomia diante das leis estaduais, ambas as possibilidades reconhecidas pela Suprema Corte.
13 – Aristóteles (384-322aC), filósofo grego que especulou algo sobre o assunto, e Luis de Molina (1535-1600), um padre jesuíta espanhol, que deu algumas contribuições interessantes para a análise econômica. 
14 – No original o termo aparece em alemão e no plural – “Hasen” (coelhas) – que, segundo Robert Allen, em seu livro “Opening Doors: the Life and Work of Joseph Schumpeter”, books-google.com, era a forma como Schumpeter se referia a Johanna Schumpeter, sua mãe, e Annie Reisinger, o grande amor de sua vida, ambas mortas no terrível biênio 1926-27. Diz ainda Allen, que entre os alemães, no tempo de Schumpeter, esse termo era usado para se referir a pessoa(s) querida(s), íntima(s). Curioso é que, na heráldica, a lebre ou o coelho, é o símbolo do “homem de ânimo pacífico, que evita os perigos [um sábio], um espírito que aprecia o silencio e a solidão, um homem alheio à fadiga e ao cansaço”, segundo a Wikipedia em italiano, era assim, mais ou menos, como Schumpeter se sentia em seu “exílio” em Taconic, Massachussetts, EUA, segundo McCraw (2012): “em paz, mas sem alegria”.
Adendo: A respeito do sentido das palavras no diário dele, diz McCraw: "Falando de morte voluntária, Schumpeter provavelmente não se referia a um suicídio. Nada em sua maneira habitual de pensar, apontava nessa direção, nem mesmo a assustadora perspectiva de uma vida sem Elizabeth [que já estava muito doente, entretanto alguns autores batem nessa tecla, em trabalhos bem menos fundamentados que McCraw, impressionados com o linguajar dramático de Schumpeter]. Ele parecia ter em mente, na verdade, um certo espírito de resignação... Quando chegasse a hora ele não se insurgiria contra o apagar das luzes". Reproduzindo um pouco a cultura urbana da época, ainda mais na América que valorizava tanto o vigor produtivo da juventude, ao completar sessenta anos Schumpeter já se sentia velho e decadente, sem falar de uma ou outra limitação típica da idade, como a redução natural das jornadas de leitura e capacidade de concentração e memória, além dos traumas psicológicos, que ele adquiriu ao longo de sua intensa e atribulada vida de gênio incompreendido.   

Bibliografia

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Bottomore, Tom; Dicionário do pensamento marxista; trad Waltensir Dutra; Zahar; Rio de Janeiro; 2012 – edição digital de 2013
Diakov, Vladimir; História da Antiguidade – Roma; vol 3; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965.
Gramsci, Antonio: Concepção dialética da história; trad Carlos Nelson Coutinho; 3ª edição; Civilização Brasileira; Rio de Janeiro; 1978.
McCraw, Thomas; O profeta da inovação; trad Clovis Marques; 1ª edição; Record; Rio de Janeiro-São Paulo; 2012; 
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