HISTÓRIA DO EMPREENDEDORISMO AMERICANO 1
Prof Eduardo Simões
“Mania” de composição
__ Na segunda metade do século XIX, o historiador e
homem de Estado norte-americano George Bancroft afirmou, em seu livro History of the United States, que o
princípio unificador da Inglaterra, ou Reino Unido, ou Grã-Bretanha, que eu
prefiro, não se deveu à presença de uma poderosa aristocracia ou mesmo de uma
casa real que teima contra o tempo e todas as expectativas (1), mas do
comércio, ou de seu produto mais valorizado: o lucro! Eu, porém, creio que
Bancroft foi muito reducionista, pois antes do comércio se fazer tão decisivo
na vida dos ingleses, dois outros fatores os uniram de forma indelével: o
cristianismo católico e a língua inglesa, zelosamente levados a todos na ilha.
__ Olhando à distância, parece que a Grã-Bretanha é
uma ilha de poucos atrativos para antigos invasores: Não havia notícias de
metais preciosos ou grandes e ricas cidades, para saquear, como em vários
rincões do continente europeu, mesmo a vida urbana aconteceu tardiamente, após
a invasão dos romanos. Aparentemente só haveria um motivo para se invadir a
ilha: busca de lugar para morar; uma pátria para refugiados! Um caráter
originário mais ou menos parecido com o de cidade marcada para formar um grande
império mundial, e comercial: Roma...
__ A primeira leva de estrangeiros a invadir a ilha
foram os celtas, que exterminaram, etnicamente, seus primeiros moradores, os
construtores de grandes megalitos, como os de Stonehenge, expulsos inclusive
das sagas celtas, e dos quais só sobraram vestígios arqueológicos; e que
vestígios! A seguir vieram os romanos, para forçar uma aliança com as
aguerridas tribos celtas locais, que não paravam de infernizar a fronteira
norte das opulentas Gálias, e acabaram se instalando lá e mudando decisivamente
o caráter da cultura local – é um mistério a razão porque os romanos investiram
tanto na ilha, onde só lhes prosperavam problemas, inclusive momentosas
revoltas, como a de Boudica e das tribos escocesas, que os obrigou a construir
um dispendioso sistema defensivo, até que, como quem acorda, após levar uma
paulada na cabeça, os romanos largam voluntariamente a Grã-Bretanha, em 410.
Coincidentemente, um século antes, foi daí, de Eboracum, atual York, que um
ambicioso general saiu para tornar-se peça decisiva consolidação do
cristianismo mundial: o primeiro imperador cristão, Constantino!
https://img00.deviantart.net/bd0e/i/2007/221/b/7/constantine_the_great_by_daliscar.jpg
deviantart.com
Monumento de bronze dedicado a Constantino, em
York, próximo ao local onde ele foi aclamado “Augusto” pelas tropas de seu pai,
que falecera naquele mesmo dia, 25 de junho de 306. Dos romanos os ingleses
herdaram, além da religião cristã, o gosto pela diplomacia, pela resolução de
conflitos por meio de acordos, o gosto pelas leis e pela estabilidade política,
além de um espírito cosmopolita, tudo isso muito útil a um povo que se pretende
hábil em comércio (2).
__ Os romanos compuseram uma civilização meio celta
meio latina, com os povos locais, mas com a saída daqueles, o fino tecido
político que unia as duas culturas começou a esgaçar, e a anarquia começou a
tomar conta da ilha. Nessa época, um grupo de monges irlandeses, ligados à
tradição monástica oriental, famosa pelos excessos de penitência e trabalhos,
começam uma árdua missão no sentido de reconverter a população local ao
cristianismo, visto que muitos começavam a retornar aos antigos cultos celtas,
ao mesmo tempo que levas de colonos procedentes do continente, tribos alemãs,
famosas por sua habilidade náutica, os anglos e os saxões, principalmente os
últimos, começam a invadir irresistivelmente a ilha, empurrando as populações
celta-romanas para as extremidades, Cornualha, Gales e Escócia, e até para o
exterior – para a Bretanha, na França – mas, graças aos sacrifícios e a
disponibilidade incansável dos monges, os recém-chegados foram convertidos ao
cristianismo, e, da mesma forma como aconteceu com os romanos antes,
incorporados à população já existente.
__ Aproveitando-se da estabilidade reinante, uma
nova leva de missionários traz uma nova modalidade de monaquismo do continente à
Grã-Bretanha: o beneditino, criado por um devoto patrício romano: Bento de
Núrcia, no início do século VI, esse projeto religioso era baseado numa regra,
a Regra de São Bento, um manual de
gestão de comunidades religiosas, ainda em uso, e com sucesso, há mais de 1500
anos! Essa regra é um modelo acabado de administração, onde tudo é tratado com
grande moderação e prudência, tratando com cuidado as partes envolvidas,
promovendo a autoridade sem deixar de estimular a participação de todos
(democracia), reforçando de maneira sutil, mas decisivamente, três
características da comunidade beneditina, que por sinal estão muito presentes
na cultura inglesa tradicional: o amor à religião, ao trabalho e aos estudos (3). A prudência, o “senso de medida” é
a essência da Regra de São Bento.
http://www.english-heritage.org.uk/remote/www.english-heritage.org.uk/content/properties/rievaulx-abbey/3002326/rievaulx-history?w=550&h=350&mode=crop&scale=both&cache=always&quality=60&anchor=middlecenter
englishheritage.org,uk
__ O mais impressionante foi a resposta da
sociedade inglesa da época, celta-anglo-saxã, a essa proposta de vida. A
Grã-Bretanha ficou coalhada de centenas de mosteiros beneditinos, que não podem
ter desaparecido ou diminuído ao longo dos séculos, sem deixar marcas profundas
no temperamento e na cultura ingleses, entre os quais, eu reputo: o amor ao
trabalho, mas sem o açodamento dos americanos, o amor aos estudos, a participação
nos problemas da comunidade, uma democracia temperada pelo “bom senso”, além de
um profundo senso religioso, especialmente cristão, sem falar da obrigação de
tentar uma composição com o adversário, evitando o conflito até a extinção de
uma das partes. Vemos, acima, uma reprodução do que seria o cotidiano na abadia
de Rievaux, em North-Yorkshire, e, abaixo, o seu aspecto atual, após ser
fechada por Henrique VIII. É um estilo
de vida bem estranho e avesso ao temperamento médio dos latinos mediterrâneos
ou atlânticos, e seus descendentes, como nós, os brasileiros.
By Rob Bendall(For more information, see my
userpage...), Attribution, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15831244
__ Essa Inglaterra repleta de mosteiros famosos e
ricos, tornou-se alvo da cobiça do mais ousado grupo de navegadores da história
medieval: os vikings, de origem principalmente dinamarquesa e norueguesa, que
ao final do século VIII começaram a fazer razias nas comunidades costeiras, até
que paulatinamente começaram a desembarcar gente na condição de colonos,
empurrando para ocidente e norte os grupos de anglo-saxões e celtas que não
queriam se submeter aos seus costumes, agravado pelo fato de não serem cristãos.
A luta contra os vikings foi tremenda, e cheia de episódios tão gloriosos
quanto bárbaros, no sentido mais pejorativo do termo, até que os anglo-saxões
conseguiram deter o avanço dos invasores, e com eles fizeram uma composição,
estabelecendo um modus vivendi pacífico, de interesse recíproco, após
conseguirem a conversão gradual dos vikings ao cristianismo, e as duas
comunidades se foram se fundido aos poucos. Não havia como a navegação não
fazer parte do instinto básico do inglês antigo.
__ A última leva de invasores..., físicos, foram os
normandos, descendentes dos antigos vikings noruegueses, misturados com outros
povos (celtas, francos e romanos), que haviam se estabelecido numa região da
França, uns duzentos anos antes, criando uma cultura própria, que conseguiram,
numa rápida campanha, conquistar a Inglaterra para si, em 1067. Foi mais um
elemento estrangeiro para os ingleses ajuntarem ao mosaico de sua formação, mas
não foi o último até o início da colonização da América, antes disso a
Inglaterra sofreu mais uma poderosa invasão cultural: a da Reforma Protestante.
__ Iniciada pela confluência da libido desgovernada
de um rei, da ambição fundiária de muitos nobres e de ambiciosos projetos comerciais
de uma burguesia sequiosa por mais espaço no paraíso da ideologia religiosa nacional,
aos quais se poderia acrescentar, bem-humoradamente, da sovinice instintiva dos
escoceses, a Reforma, na Inglaterra, longe de despertar ódios em massa e
guerras intermináveis, como no continente, que impediram, por muito tempo, a
convivência pacífica entre católicos e protestantes – é preciso reconhecer que
as medidas mais duras tomadas contra o catolicismo, no país, foram em grande
parte resultante de ações desastradas, antirromanas, no espírito, tomadas por
católicos ingleses ou Papas mal-informados – os ingleses, muito britanicamente,
criaram uma nova religião que compunha, quase meio a meio, tradições e
preceitos religiosos católicos e protestantes. Quantas vidas e recursos não
teriam sido poupados, naquela época, se essa prática tivesse sido seguida no
continente!
__ A formação cultural dos ingleses é, portanto,
uma colcha de retalhos que, habilmente cosidos, criaram um tipo único,
altamente flexível e adaptável, adequado para formar impérios grandes e estáveis,
como nenhum outro povo do Ocidente, além dos romanos, foi capaz de fazer, único,
porém, na dignidade em que encaminha o seu longo ocaso, e como os antigos
romanos eles também legaram à história a sua continuidade, o seu Império
Bizantino, espetacularmente poderoso, mas seu o brilho do original. Donald Trump,
que não me deixa mentir...
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/31/Richard_Burchett_-_Sanctuary_%281867%29_contrasted.jpg
Gentlemen, isso são modos!? Um episódio deixou os
ingleses momentaneamente fora do prumo, resgatando lá do pé as suas raízes mais
selvagens: a Guerra das Rosas (1455-1485), durante as quais foram cometidas as
mais grotescas crueldades, apesar de os seus principais comandantes e
interessados serem todos gente das famílias mais nobres do país; tudo “gente
fina”. No quadro acima vemos o momento em que Eduardo IV de York, força a
entrada da Abadia de Tewkesbury, para massacrar alguns lancasterianos, que nela
haviam se refugiado, pedindo por sua vida, após sua arrasadora derrota num
campo próximo, em 4 de maio de 1471; de nada adiantou o gesto dramático do
abade local, e alguns foram mortos dentro da igreja ou arrastados para fora,
para serem executados, e não “profanar” ainda mais o local, tanto que dias
depois a igreja teve que ser novamente reconsagrada. O fim dessa guerra, trouxe
de volta o velho e bom espírito inglês, e o grupo vencedor, os Tudors, assumiu
como emblema para si uma rosa, que era o símbolo tanto de York como de
Lancaster, só que com as cores das duas casas derrotadas: a borda vermelha de York e
o centro branco de Lancaster. Como vemos abaixo. Esses caras sabem lidar com conflitos!
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/3f/Tudor_Rose.svg/250px-Tudor_Rose.svg.png
Notas
1 - Dizem que o rei Faruk, o riquíssimo e desajuizado rei do Egito,
deposto por um golpe militar em 1952, teria dito no momento de sua deposição:
“daqui a vinte anos só existirão cinco reis: os do baralho e o da Inglaterra”.
2 – Uma mistura de cultura pop, ignorância e licença poética, para não
falar de mágoas e ressentimentos tão antigos quanto desnecessários e inúteis,
tenta mostrar, nos maios de entretenimento, o Império Romano como um organismo
político estritamente repressor, sempre fiado na força bruta, que não hesita em
cometer os maiores excessos seja contra sua gente, em Roma, ou contra outras
nações, nas províncias, sem falar da aura de invencibilidade que seguia o seu
exército, idolatrado por seu povo, que passa a falsa impressão de o Império
Romano foi construído na base do “ceda ou morra”. Nada disso! Como lemos no livro
Roma e seu destino, do especialista
francês Jean Cousin, a diplomacia romana trabalhava exaustiva e minuciosamente,
antes que as legiões fossem postas em marcha, mesmo porque elas demandavam uma
gigantesca quantidade de recursos para se tornarem operacionais – o que explica
o seu desaparecimento com o fim do Império. O sucesso do dividir para dominar,
ao longo dos mil anos da civilização romana, é a melhor prova disso.
Abusivamente violento e militarista, isso sim, foi o Império Assírio, vários
séculos antes de Roma, e sua destruição, movida pelo ressentimento e o ódio dos
povos dominados foi tão grande, que durante 2.500 anos ela só foi conhecida por
meio da Bíblia, tão arrasadas foram suas gigantescas cidades; bem diferente de
Roma, que construiu um império muito maior e muito mais estável. Não pode ter
sido só pela violência, ou teremos que admitir que os povos todos da bacia do
Mediterrâneo eram compulsivamente masoquistas...
3 – Vejam por exemplo, o que a regra recomenda para quando o chefe da
comunidade, o abade ou o prior, tiver que tomar uma decisão mais abrangente e
como devem ser distribuídas as leituras e o trabalho: “Todas as vezes que
deverem ser feitas coisas importantes no mosteiro, convoque o Abade toda a
comunidade e diga ele próprio de que se trata. Ouvindo o conselho dos irmãos,
considere consigo mesmo e faça o que julgar mais útil. Dissemos que todos
fossem chamados a conselho porque muitas vezes o Senhor revela ao mais moço o
que é melhor. Deem, pois, os irmãos o seu conselho com toda a submissão da
humildade e não ousem defender arrogantemente o seu parecer. Que a solução
dependa antes do arbítrio do abade e todos lhe obedeçam no que ele tiver
julgado ser mais salutar... Se, porém, for preciso fazer alguma coisa de menor
importância dentre os negócios do mosteiro, use o abade do conselho somente dos
mais velhos, conforme está escrito: "Faze tudo com conselho e depois de
feito não te arrependerás" (Pr 31,3) (Cap 3). A ociosidade é inimiga da
alma; por isso em certas horas devem ocupar-se os irmãos com o trabalho manual,
e em outras horas com a leitura espiritual... Se, porém, a necessidade do lugar
ou a pobreza exigirem que se ocupem, pessoalmente, em colher os produtos da
terra, não se entristeçam por isso, porque então são verdadeiros monges se
vivem do trabalho de suas mãos, como também os nossos Pais e os Apóstolos.
Tudo, porém, se faça comedidamente por causa dos fracos [os fisicamente
fracos]... Nesses dias de Quaresma, recebam todos respectivamente livros da
biblioteca e leiam-nos pela ordem e por inteiro; esses livros são distribuídos
no início da Quaresma. Antes de tudo, porém, designem-se um ou dois dos mais
velhos, os quais circulem no mosteiro nas horas que os irmãos se entregam à
leitura e verão se não há, por acaso, algum irmão que se entrega ao ócio ou às
conversas... Também no domingo entreguem-se todos à leitura, menos aqueles que
foram designados para os diversos ofícios. Se, entretanto, alguém for tão
negligente ou relaxado que não queira ou não possa meditar ou ler,
determine-se-lhe um trabalho que possa fazer, para que não fique à toa. Aos
irmãos enfermos ou delicados designe-se um trabalho ou ofício de tal sorte que
não fiquem ociosos nem sejam oprimidos ou afugentados pela violência do
trabalho; a fraqueza desses deve ser levada em consideração pelo Abade” (Cap
48). Cada um, pois, deve trabalhar naquilo que tem vocação e conforme a sua
natureza, sem nunca descuidar da oração e da leitura. A regra prevê, inclusive,
a destituição de um abade mau, inclusive com intervenção externa ao mosteiro! “Aquele
que deve ser ordenado [abade] seja eleito pelo mérito da vida e pela doutrina
da sabedoria, ainda que seja o último na ordem da comunidade. E se toda a
comunidade eleger, em conselho comum, o que não aconteça, uma pessoa conivente
com seus vícios e estes vícios chegarem de algum modo ao conhecimento do bispo
da diocese a que pertence o lugar, ou se tornarem evidentes para os abades ou
cristãos vizinhos, não permitam que prevaleça o consenso dos maus, mas
constituam para a casa de Deus um dispensador digno, sabendo que por isto
receberão a boa recompensa, se o fizerem castamente e com zelo divino” (Cap 64)
E dá um conselho de liderança aos abades, digno da escrita dos mais hábeis
administradores modernos: “Deve ser, pois, [o abade] douto na lei divina para
que saiba e tenha de onde tirar as coisas novas e antigas; deve ser casto,
sóbrio, misericordioso e fazer prevalecer sempre a misericórdia sobre o
julgamento, para que obtenha o mesmo para si. Odeie os vícios, ame os irmãos.
Na própria correção proceda prudentemente e não com demasia para que, enquanto
quer raspar demais a ferrugem, não se quebre o vaso. Suspeite sempre da própria
fragilidade e lembre-se que não deve esmagar o caniço já rachado. Com isso não
dizemos que permita que os vícios sejam nutridos, mas que os ampute
prudentemente e com caridade, conforme vê que convém a cada um, como já
dissemos; e se esforce por ser mais amado que temido. Não seja turbulento nem
inquieto, não seja excessivo nem obstinado, nem ciumento, nem muito
desconfiado, pois nunca terá descanso; seja prudente e refletido nas suas
ordens, e quer seja de Deus, quer do século o trabalho que ordenar, faça-o com
discernimento e equilíbrio...” (idem).