terça-feira, 7 de agosto de 2018


HISTÓRIA DO EMPREENDEDORISMO AMERICANO 1

Prof Eduardo Simões

“Mania” de composição
__ Na segunda metade do século XIX, o historiador e homem de Estado norte-americano George Bancroft afirmou, em seu livro History of the United States, que o princípio unificador da Inglaterra, ou Reino Unido, ou Grã-Bretanha, que eu prefiro, não se deveu à presença de uma poderosa aristocracia ou mesmo de uma casa real que teima contra o tempo e todas as expectativas (1), mas do comércio, ou de seu produto mais valorizado: o lucro! Eu, porém, creio que Bancroft foi muito reducionista, pois antes do comércio se fazer tão decisivo na vida dos ingleses, dois outros fatores os uniram de forma indelével: o cristianismo católico e a língua inglesa, zelosamente levados a todos na ilha.
__ Olhando à distância, parece que a Grã-Bretanha é uma ilha de poucos atrativos para antigos invasores: Não havia notícias de metais preciosos ou grandes e ricas cidades, para saquear, como em vários rincões do continente europeu, mesmo a vida urbana aconteceu tardiamente, após a invasão dos romanos. Aparentemente só haveria um motivo para se invadir a ilha: busca de lugar para morar; uma pátria para refugiados! Um caráter originário mais ou menos parecido com o de cidade marcada para formar um grande império mundial, e comercial: Roma...
__ A primeira leva de estrangeiros a invadir a ilha foram os celtas, que exterminaram, etnicamente, seus primeiros moradores, os construtores de grandes megalitos, como os de Stonehenge, expulsos inclusive das sagas celtas, e dos quais só sobraram vestígios arqueológicos; e que vestígios! A seguir vieram os romanos, para forçar uma aliança com as aguerridas tribos celtas locais, que não paravam de infernizar a fronteira norte das opulentas Gálias, e acabaram se instalando lá e mudando decisivamente o caráter da cultura local – é um mistério a razão porque os romanos investiram tanto na ilha, onde só lhes prosperavam problemas, inclusive momentosas revoltas, como a de Boudica e das tribos escocesas, que os obrigou a construir um dispendioso sistema defensivo, até que, como quem acorda, após levar uma paulada na cabeça, os romanos largam voluntariamente a Grã-Bretanha, em 410. Coincidentemente, um século antes, foi daí, de Eboracum, atual York, que um ambicioso general saiu para tornar-se peça decisiva consolidação do cristianismo mundial: o primeiro imperador cristão, Constantino!

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Monumento de bronze dedicado a Constantino, em York, próximo ao local onde ele foi aclamado “Augusto” pelas tropas de seu pai, que falecera naquele mesmo dia, 25 de junho de 306. Dos romanos os ingleses herdaram, além da religião cristã, o gosto pela diplomacia, pela resolução de conflitos por meio de acordos, o gosto pelas leis e pela estabilidade política, além de um espírito cosmopolita, tudo isso muito útil a um povo que se pretende hábil em comércio (2).

__ Os romanos compuseram uma civilização meio celta meio latina, com os povos locais, mas com a saída daqueles, o fino tecido político que unia as duas culturas começou a esgaçar, e a anarquia começou a tomar conta da ilha. Nessa época, um grupo de monges irlandeses, ligados à tradição monástica oriental, famosa pelos excessos de penitência e trabalhos, começam uma árdua missão no sentido de reconverter a população local ao cristianismo, visto que muitos começavam a retornar aos antigos cultos celtas, ao mesmo tempo que levas de colonos procedentes do continente, tribos alemãs, famosas por sua habilidade náutica, os anglos e os saxões, principalmente os últimos, começam a invadir irresistivelmente a ilha, empurrando as populações celta-romanas para as extremidades, Cornualha, Gales e Escócia, e até para o exterior – para a Bretanha, na França – mas, graças aos sacrifícios e a disponibilidade incansável dos monges, os recém-chegados foram convertidos ao cristianismo, e, da mesma forma como aconteceu com os romanos antes, incorporados à população já existente.
__ Aproveitando-se da estabilidade reinante, uma nova leva de missionários traz uma nova modalidade de monaquismo do continente à Grã-Bretanha: o beneditino, criado por um devoto patrício romano: Bento de Núrcia, no início do século VI, esse projeto religioso era baseado numa regra, a Regra de São Bento, um manual de gestão de comunidades religiosas, ainda em uso, e com sucesso, há mais de 1500 anos! Essa regra é um modelo acabado de administração, onde tudo é tratado com grande moderação e prudência, tratando com cuidado as partes envolvidas, promovendo a autoridade sem deixar de estimular a participação de todos (democracia), reforçando de maneira sutil, mas decisivamente, três características da comunidade beneditina, que por sinal estão muito presentes na cultura inglesa tradicional: o amor à religião, ao trabalho e aos estudos (3). A prudência, o “senso de medida” é a essência da Regra de São Bento.

http://www.english-heritage.org.uk/remote/www.english-heritage.org.uk/content/properties/rievaulx-abbey/3002326/rievaulx-history?w=550&h=350&mode=crop&scale=both&cache=always&quality=60&anchor=middlecenter
englishheritage.org,uk

__ O mais impressionante foi a resposta da sociedade inglesa da época, celta-anglo-saxã, a essa proposta de vida. A Grã-Bretanha ficou coalhada de centenas de mosteiros beneditinos, que não podem ter desaparecido ou diminuído ao longo dos séculos, sem deixar marcas profundas no temperamento e na cultura ingleses, entre os quais, eu reputo: o amor ao trabalho, mas sem o açodamento dos americanos, o amor aos estudos, a participação nos problemas da comunidade, uma democracia temperada pelo “bom senso”, além de um profundo senso religioso, especialmente cristão, sem falar da obrigação de tentar uma composição com o adversário, evitando o conflito até a extinção de uma das partes. Vemos, acima, uma reprodução do que seria o cotidiano na abadia de Rievaux, em North-Yorkshire, e, abaixo, o seu aspecto atual, após ser fechada por  Henrique VIII. É um estilo de vida bem estranho e avesso ao temperamento médio dos latinos mediterrâneos ou atlânticos, e seus descendentes, como nós, os brasileiros.

By Rob Bendall(For more information, see my userpage...), Attribution, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15831244

__ Essa Inglaterra repleta de mosteiros famosos e ricos, tornou-se alvo da cobiça do mais ousado grupo de navegadores da história medieval: os vikings, de origem principalmente dinamarquesa e norueguesa, que ao final do século VIII começaram a fazer razias nas comunidades costeiras, até que paulatinamente começaram a desembarcar gente na condição de colonos, empurrando para ocidente e norte os grupos de anglo-saxões e celtas que não queriam se submeter aos seus costumes, agravado pelo fato de não serem cristãos. A luta contra os vikings foi tremenda, e cheia de episódios tão gloriosos quanto bárbaros, no sentido mais pejorativo do termo, até que os anglo-saxões conseguiram deter o avanço dos invasores, e com eles fizeram uma composição, estabelecendo um modus vivendi pacífico, de interesse recíproco, após conseguirem a conversão gradual dos vikings ao cristianismo, e as duas comunidades se foram se fundido aos poucos. Não havia como a navegação não fazer parte do instinto básico do inglês antigo.
__ A última leva de invasores..., físicos, foram os normandos, descendentes dos antigos vikings noruegueses, misturados com outros povos (celtas, francos e romanos), que haviam se estabelecido numa região da França, uns duzentos anos antes, criando uma cultura própria, que conseguiram, numa rápida campanha, conquistar a Inglaterra para si, em 1067. Foi mais um elemento estrangeiro para os ingleses ajuntarem ao mosaico de sua formação, mas não foi o último até o início da colonização da América, antes disso a Inglaterra sofreu mais uma poderosa invasão cultural: a da Reforma Protestante.
__ Iniciada pela confluência da libido desgovernada de um rei, da ambição fundiária de muitos nobres e de ambiciosos projetos comerciais de uma burguesia sequiosa por mais espaço no paraíso da ideologia religiosa nacional, aos quais se poderia acrescentar, bem-humoradamente, da sovinice instintiva dos escoceses, a Reforma, na Inglaterra, longe de despertar ódios em massa e guerras intermináveis, como no continente, que impediram, por muito tempo, a convivência pacífica entre católicos e protestantes – é preciso reconhecer que as medidas mais duras tomadas contra o catolicismo, no país, foram em grande parte resultante de ações desastradas, antirromanas, no espírito, tomadas por católicos ingleses ou Papas mal-informados – os ingleses, muito britanicamente, criaram uma nova religião que compunha, quase meio a meio, tradições e preceitos religiosos católicos e protestantes. Quantas vidas e recursos não teriam sido poupados, naquela época, se essa prática tivesse sido seguida no continente!
__ A formação cultural dos ingleses é, portanto, uma colcha de retalhos que, habilmente cosidos, criaram um tipo único, altamente flexível e adaptável, adequado para formar impérios grandes e estáveis, como nenhum outro povo do Ocidente, além dos romanos, foi capaz de fazer, único, porém, na dignidade em que encaminha o seu longo ocaso, e como os antigos romanos eles também legaram à história a sua continuidade, o seu Império Bizantino, espetacularmente poderoso, mas seu o brilho do original. Donald Trump, que não me deixa mentir...              

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Gentlemen, isso são modos!? Um episódio deixou os ingleses momentaneamente fora do prumo, resgatando lá do pé as suas raízes mais selvagens: a Guerra das Rosas (1455-1485), durante as quais foram cometidas as mais grotescas crueldades, apesar de os seus principais comandantes e interessados serem todos gente das famílias mais nobres do país; tudo “gente fina”. No quadro acima vemos o momento em que Eduardo IV de York, força a entrada da Abadia de Tewkesbury, para massacrar alguns lancasterianos, que nela haviam se refugiado, pedindo por sua vida, após sua arrasadora derrota num campo próximo, em 4 de maio de 1471; de nada adiantou o gesto dramático do abade local, e alguns foram mortos dentro da igreja ou arrastados para fora, para serem executados, e não “profanar” ainda mais o local, tanto que dias depois a igreja teve que ser novamente reconsagrada. O fim dessa guerra, trouxe de volta o velho e bom espírito inglês, e o grupo vencedor, os Tudors, assumiu como emblema para si uma rosa, que era o símbolo tanto de York como de Lancaster, só que com as cores das duas casas derrotadas: a borda vermelha de York e o centro branco de Lancaster. Como vemos abaixo. Esses caras sabem lidar com conflitos!   
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Notas
1 - Dizem que o rei Faruk, o riquíssimo e desajuizado rei do Egito, deposto por um golpe militar em 1952, teria dito no momento de sua deposição: “daqui a vinte anos só existirão cinco reis: os do baralho e o da Inglaterra”.
2 – Uma mistura de cultura pop, ignorância e licença poética, para não falar de mágoas e ressentimentos tão antigos quanto desnecessários e inúteis, tenta mostrar, nos maios de entretenimento, o Império Romano como um organismo político estritamente repressor, sempre fiado na força bruta, que não hesita em cometer os maiores excessos seja contra sua gente, em Roma, ou contra outras nações, nas províncias, sem falar da aura de invencibilidade que seguia o seu exército, idolatrado por seu povo, que passa a falsa impressão de o Império Romano foi construído na base do “ceda ou morra”. Nada disso! Como lemos no livro Roma e seu destino, do especialista francês Jean Cousin, a diplomacia romana trabalhava exaustiva e minuciosamente, antes que as legiões fossem postas em marcha, mesmo porque elas demandavam uma gigantesca quantidade de recursos para se tornarem operacionais – o que explica o seu desaparecimento com o fim do Império. O sucesso do dividir para dominar, ao longo dos mil anos da civilização romana, é a melhor prova disso. Abusivamente violento e militarista, isso sim, foi o Império Assírio, vários séculos antes de Roma, e sua destruição, movida pelo ressentimento e o ódio dos povos dominados foi tão grande, que durante 2.500 anos ela só foi conhecida por meio da Bíblia, tão arrasadas foram suas gigantescas cidades; bem diferente de Roma, que construiu um império muito maior e muito mais estável. Não pode ter sido só pela violência, ou teremos que admitir que os povos todos da bacia do Mediterrâneo eram compulsivamente masoquistas...
3 – Vejam por exemplo, o que a regra recomenda para quando o chefe da comunidade, o abade ou o prior, tiver que tomar uma decisão mais abrangente e como devem ser distribuídas as leituras e o trabalho: “Todas as vezes que deverem ser feitas coisas importantes no mosteiro, convoque o Abade toda a comunidade e diga ele próprio de que se trata. Ouvindo o conselho dos irmãos, considere consigo mesmo e faça o que julgar mais útil. Dissemos que todos fossem chamados a conselho porque muitas vezes o Senhor revela ao mais moço o que é melhor. Deem, pois, os irmãos o seu conselho com toda a submissão da humildade e não ousem defender arrogantemente o seu parecer. Que a solução dependa antes do arbítrio do abade e todos lhe obedeçam no que ele tiver julgado ser mais salutar... Se, porém, for preciso fazer alguma coisa de menor importância dentre os negócios do mosteiro, use o abade do conselho somente dos mais velhos, conforme está escrito: "Faze tudo com conselho e depois de feito não te arrependerás" (Pr 31,3) (Cap 3). A ociosidade é inimiga da alma; por isso em certas horas devem ocupar-se os irmãos com o trabalho manual, e em outras horas com a leitura espiritual... Se, porém, a necessidade do lugar ou a pobreza exigirem que se ocupem, pessoalmente, em colher os produtos da terra, não se entristeçam por isso, porque então são verdadeiros monges se vivem do trabalho de suas mãos, como também os nossos Pais e os Apóstolos. Tudo, porém, se faça comedidamente por causa dos fracos [os fisicamente fracos]... Nesses dias de Quaresma, recebam todos respectivamente livros da biblioteca e leiam-nos pela ordem e por inteiro; esses livros são distribuídos no início da Quaresma. Antes de tudo, porém, designem-se um ou dois dos mais velhos, os quais circulem no mosteiro nas horas que os irmãos se entregam à leitura e verão se não há, por acaso, algum irmão que se entrega ao ócio ou às conversas... Também no domingo entreguem-se todos à leitura, menos aqueles que foram designados para os diversos ofícios. Se, entretanto, alguém for tão negligente ou relaxado que não queira ou não possa meditar ou ler, determine-se-lhe um trabalho que possa fazer, para que não fique à toa. Aos irmãos enfermos ou delicados designe-se um trabalho ou ofício de tal sorte que não fiquem ociosos nem sejam oprimidos ou afugentados pela violência do trabalho; a fraqueza desses deve ser levada em consideração pelo Abade” (Cap 48). Cada um, pois, deve trabalhar naquilo que tem vocação e conforme a sua natureza, sem nunca descuidar da oração e da leitura. A regra prevê, inclusive, a destituição de um abade mau, inclusive com intervenção externa ao mosteiro! “Aquele que deve ser ordenado [abade] seja eleito pelo mérito da vida e pela doutrina da sabedoria, ainda que seja o último na ordem da comunidade. E se toda a comunidade eleger, em conselho comum, o que não aconteça, uma pessoa conivente com seus vícios e estes vícios chegarem de algum modo ao conhecimento do bispo da diocese a que pertence o lugar, ou se tornarem evidentes para os abades ou cristãos vizinhos, não permitam que prevaleça o consenso dos maus, mas constituam para a casa de Deus um dispensador digno, sabendo que por isto receberão a boa recompensa, se o fizerem castamente e com zelo divino” (Cap 64) E dá um conselho de liderança aos abades, digno da escrita dos mais hábeis administradores modernos: “Deve ser, pois, [o abade] douto na lei divina para que saiba e tenha de onde tirar as coisas novas e antigas; deve ser casto, sóbrio, misericordioso e fazer prevalecer sempre a misericórdia sobre o julgamento, para que obtenha o mesmo para si. Odeie os vícios, ame os irmãos. Na própria correção proceda prudentemente e não com demasia para que, enquanto quer raspar demais a ferrugem, não se quebre o vaso. Suspeite sempre da própria fragilidade e lembre-se que não deve esmagar o caniço já rachado. Com isso não dizemos que permita que os vícios sejam nutridos, mas que os ampute prudentemente e com caridade, conforme vê que convém a cada um, como já dissemos; e se esforce por ser mais amado que temido. Não seja turbulento nem inquieto, não seja excessivo nem obstinado, nem ciumento, nem muito desconfiado, pois nunca terá descanso; seja prudente e refletido nas suas ordens, e quer seja de Deus, quer do século o trabalho que ordenar, faça-o com discernimento e equilíbrio...” (idem).

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