segunda-feira, 23 de novembro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – V

         Aproveito para agradecer às pessoas que no Brasil, Estados Unidos, Índia, Chile, Portugal, Espanha, Rússia e Ucrânia acessaram este blog nessas últimas semanas, espero que tenham encontrado algo útil para si, e espero continuar sendo útil.

Prof Eduardo Simões

         O Voo da Fênix

        
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg2V5Z9CxnGR5MNa18_4NO_PXDKGz2ZE3zNUS_A-Ps9JwZ0aYY0jmdPp69fpNpG4LvhPBYUKavNRAzWTYUqM-Tfd1ZLA1wY8z3muwzUVQlMLrVSEOZguvgDz1xT6duv-oPuG8l-61AQV6xP/s1600/Mafa011-medium.jpg
         http://newthoughtministries.org/

         A antiga Roma era, de fato, predestinada. Cornell e Matthews (1996; p 50), comentando o resultado da Segunda Guerra Púnica e sobre o segredo de sua capacidade de construir e unificar um grande império, chegam a seguinte conclusão: “uma capacidade quase inifinita de se recuperar das suas perdas... Tito Lívio tinha toda razão ao declarar (referindo-se a Trasímeno e Canas [duas terríveis derrotas romanas]): “Nenhuma outra nação podia ter sofrido tão tremendos desastres sem ter sido subjugada””. Dito no diapasão do samba de Vanzolini: era a capacidade infinita de Roma em levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, e assim aquela que lhe sucedeu.
         O fundador do cristianismo estava morto. Morrera da forma mais infame, agravada pela traição e o abandono de todos aqueles que, até ali, sempre tratara como íntimos e aos quais já revelara coisas impressionantes, mas que não foram o bastante para garantir-lhe a lealdade dos seus. Todos o abandonaram. Os discípulos agora vegetavam deprimidos, culpando-se até o mais alto grau por sua ignominiosa covardia. Alguns deles, Pedro, com certeza, podiam estar pensando até em se suicidar. Existe história sobre a fundação de alguma religião que seja mais patética e desastrada do que essa. Fracasso, fracasso, total! Até que umas mulheres, logo elas, tão desprezadas na sociedade, chegam contando uma coisa estranha: o seu corpo desaparecera da tumba e ele fora visto por perto. A última das desgraças: seu corpo fora roubado... ou não? Como era “natural”, muitos não acreditaram nas mulheres (Lc 24,22-24), pois a ideia de ressurreição era absurda demais para se dar crédito. É impressionante a honestidade dos evangelhos! (1)
         Novos acontecimentos se sucederam e a certeza de que o mestre realmente estava vivo foi se acentuando, até que eles viram algo que lhes deu certeza da ressurreição, e ganharam alento; um alento tal que foi capaz de criar e sustentar até hoje a instituição religiosa mais impressionante da história. Daí a algum tempo outro acontecimento misterioso, e igualmente fundante, chamado pela Igreja de “Pentecostes” (2), teve início a espetacular aventura missionária da Igreja, rumo à conquista do mundo, para transformá-lo em um reino para Deus.
      No dia em que houve a descida do Espírito Santo, Jerusalém estava repleta de judeus piedosos e estrangeiros convertidos, ou prosélitos, de todas as partes do mundo romano, em especial da Ásia, um campo fértil para a atuação dos apóstolos, que, tomados por um novo e contagiante entusiasmo, começaram a pregar o Evangelho de Jesus, atraindo milhares de adeptos para a nova fé (At 2,41), formando o primeiro núcleo da Igreja.
         Que Igreja era essa? Longe de apresentar-se como uma nova tendência religiosa independente, com faziam os diversos grupos da época (fariseus, saduceus, essênios, zelotes, etc.), os apóstolos e seus seguidores continuaram se definindo como uma corrente dentro da ortodoxia judaica, diferenciada apenas pela pessoa de seu mestre e rabino, Jesus Cristo, e sua espetacular ressurreição. Apóstolos e discípulos praticavam as ações litúrgicas específicas do judaísmo e não saiam de perto do templo, onde oravam de acordo com o que era prescrito na Lei e na liturgia dos sacerdotes. Os discursos preservados desse período mostram um claro desejo de não confrontar com os poderes religiosos locais, e não entrar em questões teológicas mais controvertidas ou acusações morais, como fizera Jesus de forma mais ou menos desabusada. Qual a razão desse comportamento? Um apego à roupa velha? Ao odre velho? É possível, mas também podia ainda haver a pretensão de converter de dentro para fora, senão a totalidade, pelo menos a maioria de Israel, e torná-lo a ponta de lança do Reino de Deus sobre a terra, ou as duas coisas juntas.
      Porém, o Templo e a sinagoga reagiram violentamente ao forte crescimento da nova seita, e a causa disso era justamente a pessoa de Jesus. A simples existência de seguidores do Nazareno era uma denúncia contra as suas últimas ações, a crucifixão de Jesus, que ainda estavam bem marcadas no inconsciente coletivo, e o teor dessa nova pregação: a ressurreição do justiçado colocava os principais chefes do judaísmo de então na situação no mínimo constrangedora, de ter que explicar ou debater com o povo a possibilidade de terem mandado matar o Messias de Israel. Isso com certeza não podia acontecer e o pretexto para a primeira intervenção veio quando após um acontecimento singular, envolvendo Pedro e João,  produziu-se um ajuntamento, seguido de cárcere e o comparecimento de ambos diante do sinédrio, At 3-4, que terminou só em ameaças, embora pouco depois as coisas tenham ido bem mais além.
         Dentro da própria Igreja a situação também se complexificava, à medida que o número de convertidos aumentava, e se passava do quadro idílico composto por Lucas em At 2,42-47; 5,12-16 para um momento de certa tensão interna, que transparece no conflito que redundou na escolha dos 7 diáconos, quando os judeus cristãos, oriundos da diáspora ou “helenistas”, reclamaram por estar sendo preteridos pelos judeus cristãos palestinenses ou “hebreus”. O forte sentimento sectário-tribal do entorno se fazia sentir dentro da Igreja, mostrando o quão difícil é, ao conceito de “irmão”, superar as barreiras do ambiente estritamente familiar ou étnico-cultural. A verdade é que os judeus cristãos da diáspora se mostraram particularmente ativos na pregação do Evangelho, e Atos dos Apóstolos é uma prova disso, gerando algum ciúme dos judeus cristãos palestinenses, muitos de passado farisaico, que insistiam, sempre que possível, em tornar o cristianismo numa extensão do judaísmo, sujeitando o desenvolvimento daquele em função da conversão deste. Não é por acaso que o primeiro mártir da fé cristã foi justamente um dos diáconos escolhidos acima: Estevão, assim como foi pela iniciativa e pela fé de outro, Filipe, que foi convertido o primeiro grande dignitário estrangeiro At 7,55-60; 8,26-40.
         A conversão alcançada por Filipe não gerou maior estresse porque aconteceu à margem da “grande igreja”, bem diferente de quando Pedro, apesar de líder reconhecido, ousou batizar o Centurião Cornélio, apesar de este ser apresentado por Lucas como “piedoso e temente a Deus”, que “dava muitas esmolas ao povo judeu e orava a Deus constantemente” (10,2). Quando Pedro retornou da casa de Cornélio, imediatamente um grupo dos que “eram da circuncisão” foi-lhe pedir satisfações nos seguintes termos; “entrastes na casa de incircuncisos e comestes com ele!” (11,2-3). Dá para notar alguma diferença do discurso dos fariseus para com Jesus? Das explicações dadas por Pedro depreendemos que foi necessário um milagre portentoso para retirar dos judeus cristãos a mentalidade do exclusivismo adocional, herdado de sua cultura. “Só nós fomos escolhidos filhos de Deus!”. Ainda assim eles, Pedro inclusive, não se mexiam, não saiam de Jerusalém e arredores. Isso não podia perdurar.
         Enquanto a alta cúpula da Igreja, os apóstolos, hesitava, a morte de Estevão por apedrejamento, por volta de 33, trazia consequências que fogem ao ocntrole: os cristãos da diáspora, o principal foco da perseguição, dispersaram-se em várias direções, e alguns deles, oriundos da ilha de Chipre e da Cirenaica (norte da África), chegados a Antioquia (3), começaram a pregar a Palavra entre os gregos, conseguindo muitas conversões, afinal “a mão do Senhor estava com eles” (11,21), isso lá pelo ano de 37. Não dava mais para deter, ou tentar conduzir por meios humanos, o desenvolvimento natural da semente. Ainda mais porque agora, ajuntara-se ao grupo dos cristãos “universalistas”, uma personalidade fulgurante e irrefreável.

         O Apóstolo dos Gentios

               
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0b/PaulusTarsus_LKANRW.jpg
         Wikipedia

         Paulo ou Saulo, seu nome aramaico, nasceu e foi criado no mundo da diáspora. Seu pai deve ter sido um próspero artesão, um peleteiro, que granjeou por seus próprios méritos a cidadania romana, que seu filho herdará. Do contato com as tradições de sua gente veio-lhe o desejo intenso de ser um fiel fariseu, e do contato com o ativo mundo mercantil de sua cidade, veio-lhe uma certa abertura de espírito, uma visão mais ampla do mundo e dos homens, avessa ao exclusivismo farisaico, um amplo domínio da koiné, uma variante popular da língua grega, a língua mais difundida na bacia do mediterrâneo, além do conhecimento sobre a forma de pensar e argumentar dos povos ocidentais.
         Seja como for, mesmo sendo adepto da corrente menos rigorista do judaísmo, expressa pela escola do rabino Hillel, e aluno do mestre Gamaliel (22,3) (4), Paulo, em Jerusalém, se aproxima dos elementos mais raivosos de seu povo na perseguição à nova seita. Ele está entre os que insuflam o linchamento de Estevão e, talvez no ano de 34, ele, com um grupo de jovens arrojados e intolerantes, parte para Damasco a fim de dar caça aos cristãos aí infiltrados, quando no caminho acontece alguma uma coisa. Uma insolação, com perda momentânea da consciência, seguida de uma visão, um colapso nervoso devido à furiosa contradição que via entre as ordens da corrente majoritária do sinédrio e aquilo que aprendera de Gamaliel? Algo que está acima de nossa explicação ou tudo isso misturado? É então que Paulo, o mais terrível e preparado perseguidor dos cristãos, muda. Muda, e se afasta de tudo durante três anos, findo os quais apresenta-se à comunidade de Jerusalém como um cristão perfeitamente preparado, obtendo o aval dos principais apóstolos.
         De onde lhe veio esse preparo? Como ele obteve esse conhecimento tão vasto e sublime sobre a essência do cristianismo e essa teologia tão densa, que aparece em suas cartas? Decerto que não foi com o singelo Ananias, um instrumento de cura. Paulo simplesmente cala-se, como a guardar um segredo precioso, embora fale aqui e ali de coisas inefáveis (Gl 1,15-19; 1Cor 15,8, e, principalmente, 2Cor 12,1-4), que escapam à análise da historiografia, e nos deixa cheios de dúvidas sobre quem foi o mestre cristão de Paulo? Por que ele omitiu o seu nome, se viveu para propagar o nome de outro, Jesus Cristo. Como ele pode se intitular “apóstolo”, ainda que o menor de todos, se esse termo, desde a mais antiga tradição, sempre se referiu àqueles que Jesus escolheu pessoalmente, como pode Paulo, sempre tão discreto ao falar de si mesmo, na abertura da Carta aos Colossenses, 1,1, assumir claramente o título de apóstolo?
A ação cristã de Paulo, assim como os seus atos no judaísmo, logo se fizera notar, e ele angariou uma legião de inimigos encarniçados. Sua vida, em Jerusalém, corria perigo, e não valia a pena expor uma pessoa com tanto potencial a tal perigo, quando ainda havia tanto a ser feito pelo mundo afora, e ninguém, como Paulo, parecia mais talhado para isso. Ele parte em missão, com seu amigo Barnabé, um judeu cipriota. Nesse meio tempo, a perseguição na Palestina recrudesce, e lá por volta de 44, Herodes Agripa, filho mais novo de Herodes Magno, manda decapitar o mais velho dos “filhos do trovão”, Tiago, irmão de João, e manda prender Pedro, que se salva miraculosamente, no capítulo 12 de Atos, para reaparecer logo depois, no Concílio de Jerusalém, em torno de 50. Nesse ínterim assume a frente da comunidade um grupo rigorista judeu-cristão encabeçado por Tiago, dito “irmão do Senhor”. Porém, até Pedro terá que sair de sua zona de conforto, próxima ao Templo, para ir direto ao centro daquilo que ele mais temia, para pregar a palavra de Deus: Roma.
         Como era o mundo que os missionários cristãos iriam enfrentar?

         O Judaísmo da Diáspora

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/1/15/Jewish_Children_with_their_Teacher_in_Samarkand.jpg/800px-Jewish_Children_with_their_Teacher_in_Samarkand.jpg
         Wikipedia

         Desde o século VIII a.C., em vagas sucessivas, na maioria das vezes forçada, de emigrantes e exilados judeus, se espalharam pela bacia do Mediterrâneo, formando colônias consideráveis nas cidades greco-romanas – ao todo contam-se umas 150, mais ou menos. Eles eram numerosos em Antioquia, Roma e principalmente Alexandria, onde ocupavam dois dos cinco grandes bairros que formavam a malha urbana, com uma característica que lhes era familiar: a formação de comunidades fechadas, o que devia atrair sobre eles certa antipatia e despeito da comunidade gentia, mas que também não deixava de se admirar com as demonstrações tão fortes e espontâneas de solidariedade entre eles, como era comum na sua cultura tribal e na sua ética religiosa, o que decerto deu ensejo a muitos estrangeiros de se tornar um deles, embora isso também causasse ressentimentos, na medida em que essa solidariedade não era compartilhada com os estranhos.
         Essas comunidades tinham o centro de sua vida cultural e religiosa na sinagoga, dirigida por um arquisinagogo, assessorado por um conselho de anciãos para assuntos civis, que se moviam com grande autonomia junto às autoridades. Nesse assunto podemos dizer que os judeus foram muito diligentes e bem sucedidos, junto às autoridades estatais romanas, para conseguir isenções e privilégios consideráveis para a sua gente e práticas religiosas (5).
         No plano econômico tinham uma presença difusa e variada. “na Ásia Menor e no Egito, muitos deles se ocupavam da agricultura, como camponeses ou pequenos proprietários independentes [na Idade Média isso lhes será vedado]. Um ofício que exerceu sobre eles particular atração foi a de tecelão e tintureiro [Paulo de Tarso entre eles]... [foram também] coletores de impostos, juízes e oficiais do exército. Na grande cidade de Alexandria exerceram um importante papel no setor bancário” (Jedin; 1966; p 121). Sua aptidão para o comércio para o comércio e as finanças já eram consideráveis, e pouco propícias e a lhes granjear simpatias.
         No plano intelectual mostraram uma grande versatilidade, e, onde lhes foi dado espaço, tiveram um papel considerável na cultura, como em Alexandria, onde prosperou a escola filosófica do mestre Fílon, morto em torno de 50, um judeu oriundo de família rica e importante, o primeiro a tentar construir uma ponte entre a religião hebraica e a filosofia grega, de corrente platônica – segundo Jedin (1966; p 122), Fílon chamava seu mestre de o “muito santo Platão” – dando origem a uma filosofia mosaica, cujo arcabouço foi de grande valia para o pensamento cristão posterior e de cujos trabalhos destacamos os seguintes pontos:
         a) Leitura alegórica do texto bíblico: “sem renunciar ao sentido literal primário dos acontecimentos... descritos na Bíblia, se podia encontrar, para além deles, um sentido oculto mais profundo, que via, por exemplo, em Adão o símbolo da razão humana, em Eva o da sensibilidade, e na árvore da vida do paraíso o da virtude, e o Paraíso mesmo como símbolo da sabedoria de Deus; dele afluíam quatro rios que são as quatro virtudes cardeais [prudência, justiça, fortaleza, temperança]” (idem; idem).
         b) Conceito de Logos: Fílon foi o primeiro a refletir sobre a existência de um intermediário entre Deus e o homem, uma hipóstase (uma manifestação da essência) de Deus. O termo logos, que em grego primitivamente queria dizer “palavra”, termo mais tarde enriquecido pela tradição filosófica, tem muito a ver com o fato de, segundo o Gênesis, Deus ter criado o mundo pela sua palavra, portanto não estamos falando de uma palavra puramente humana, mas de outra que é capaz de criar substância, matéria, do nada. É uma espécie de poder criador que existe em Deus, que tem vida própria, mas que não é Deus. Segundo Fílon, o Logos “é o intermediário entre Deus e os homens. É o mais antigo dos seres; é o filho primogênito de Deus, e é a imagem Deste. O Logos, entretanto, é inferior a Deus e se acha na fronteira que separa a criação do criador” (Wikipedia em espanhol – Filón de Alejandría). Seria ainda uma espécie de “Arcanjo Mediador”, que junto com as Potências de Deus, outras hipóstases ligadas às diversas atividades de Deus (julgar, sustentar a existência do mundo, dispensar graças, etc.), evitariam o contato direto de Deus, sumamente bom, com o mundo físico, considerado mau pelos gregos e por Fílon (Reale–Antiseri; p 31-33)
         c) Visão tripartite do homem: o homem seria constituído de três elementos: o corpo (físico), a alma-intelecto (princípio vital) e o espírito. “Apenas este é imortal, porque é diretamente inspirado por Deus” (idem, idem)
         O pensamento de Fílon é muito avançado e prometia um longo e frutuoso diálogo entre a fé e a razão, entre o judaísmo e o mundo não judeu, mas com a queda de Jerusalém, em 70, a nação se fechou ao mundo num feroz ressentimento, e vice-versa, e o diálogo foi encerrado, de tal sorte que a sua teologia se limitou, ao longo dos séculos, a interpor comentários sobre comentários ao texto sagrado, cujo valor é ressaltado pela autoridade ou prestígio de quem os fez.
         Dos judeus de Alexandria também saiu um dos maiores tesouros religiosos da humanidade: a Bíblia na versão dos Setenta, ou LXX ou Septuaginta, usada, até hoje, pela maioria dos cristãos como sua Bíblia padrão, principalmente os católicos, embora rejeitada, posteriormente, pelos judeus (6) Mas que ninguém se precipite. Fílon, e a maioria dos judeus da diáspora são extremamente leais ao Templo e às manifestações religiosas vindas da Palestina e, pressionados, de fato ou só na sua imaginação, pelo entorno pagão, mantiveram-se muito unidos e coesos na sua fé, enquanto na Palestina a nação se dividia em facções mutuamente excludentes.
Da mesma forma, enquanto na Palestina boa parte dos judeus via com desconfiança e ressentimento a presença de gentios em seu território, na diáspora os judeus arregaçavam as mangas e atraíam cada vez mais gentios para a sua fé. Diz Jedin: “O êxito dessa propaganda... é palpável no grande número de gentios que se colocavam de forma mais ou menos próxima à religião judaica. O passo formal para a religião judaica o cumpriam os “prosélitos” que, pela circuncisão, batismo de imersão e sacrifícios, se tornavam plenamente judeus... Substancialmente maior foi o número dos “tementes a Deus”, que não aceitavam desde logo a circuncisão, culturalmente difícil para o sentimento gentio, mas que não resistiam à ideia do culto monoteísta... celebravam o sábado, e aceitavam várias outras práticas religiosas, e, de uma maneira geral, seus filhos davam um passo além, fazendo-se circuncidar” (p 124).  

         Notas
         (1) A ressurreição é, a meu ver, o primeiro fato fundador da nossa Igreja, e um dos mais grandiosos e inefáveis motivos de nossa fé, entretanto, é também um fato acientífico, ahistórico, na medida em que não pode ser aquilatado como verdadeiro ou falso de acordo com os métodos exigidos pela pesquisa científica. Como diz McKenzie (2003; p 792), citando W. Grossouw: “o Jesus ressuscitado (e as suas aparições) é uma realidade sobrenatural, que não pertence a este mundo e não pode ser objeto de investigação histórica como tal; ela é exclusivamente objeto da fé. A ressurreição... é um fato real, mas sendo um mistério da fé, não é um fato que pode ser demonstrado com certeza pelos métodos de investigação histórica. A história pode demonstrar apenas a fé dos discípulos na ressurreição”. Recomendo muito a obra de McKenzie.
         (2) Pentecostes era, segundo McKenzie, uma festa do antigo calendário judaico, da época em que eles começaram a se tornar agricultores sedentários, após a tomada de Canaã, chamada de festa das Semanas, que foi adquirindo cada vez mais importância com o passar do tempo, sem nunca ter alcançado a popularidade da festa das Tendas. No Primeiro Testamento é citada em Ex 23,14-12; 34,22; Lv 23,15-21; Nm 28,26-31 e Dt 16,9-12, como uma festa que seria marcada com 7 semanas, mais um dia de repouso sabático, a partir da colheita das primeiras espigas de trigo, o que lhe dava uma grande mobilidade no calendário, até ser fundida com a festa dos Ázimos, que também tem a ver com o pão e o trigo, e ganhar uma data regular no calendário judaico: cinquenta dias após a Páscoa. Seguindo os passos de Lucas sabemos que Jesus ressuscitado passou 40 dias entre os seus discípulos, a sua última grande penitência antes de gozar a plenitude da felicidade junto ao Pai, findo os quais elevou-se aos céus. Daí justamente a dez dias houve a descida espetacular do Espírito Santo sobre os apóstolos e a mãe de Jesus (At 2,1-4).
         (3) fundada em 300 a.C. pelo rei Seleuco, em homenagem a seu pai Antíoco, a cidade estava situada nas margens do rio Orontes, em meio a uma grande planície fértil, situada entre montanhas, a cidade atingiu uma tal prosperidade que se tornou uma das maiores do mundo antigo ocidental – alguns autores acreditam que sua população oscilava entre 500 e 800 mil – tornando-se a capital do reino Selêucida. Tomada pelos romanos em 64 a.C., foi erigida capital da província da Síria. Tinha fama de ser um grande centro de vícios e luxúria, o que implica que a vida da gente mais pobre devia ser muito mais difícil. A cidade manteve a sua fama e o seu vigor até a Idade Média. Foi arrasada pelo sultão egípcio Baibars, em 1268, e depois foi decaindo lentamente, até que, em 1432, só possuía 300 casas habitadas, a maioria por turcomanos. Hoje é um sítio arqueológico.
         (4) Hillel Hazaken (o sábio), um dos maiores nomes do judaísmo, nasceu em Babilônia, 70 a.C., e morreu em Jerusalém, no ano 10. Embora de família muito rica, quis ganhar seu sustento com as próprias mãos, fazendo uma profissão não especializada, que lhe permitisse mais tempo para estudar as escrituras. Tornou-se lenhador e mudou-se para Jerusalém. Dizem que, como era pobre e não podia pagar as lições de um mestre conceituado, tentou assistir suas aulas do telhado da casa – as aulas deviam acontecer num pátio aberto – onde foi achado enregelado, no dia seguinte e dispensado do pagamento. Sua inteligência aguda, a sua interpretação flexível e o seu conhecimento da Lei lhe abriram as portas para se tornar presidente do Sinédrio, até a sua morte. Conta-se que certa vez um gentio, conhecedor das longas e minuciosas descrições que os rabinos faziam da Torá, desafiou a Hillel nos seguintes termos: “se você me resumir a Lei, durante o tempo em que eu conseguir ficar em um pé só, eu me converto”. Hillel respondeu: “não faças ao próximo o que não queres que te façam; apenas nisso se resume a Lei, o resto são comentários”. Outra máxima sua a esse respeito era: “não se imponha nenhuma obrigação, quanto à Lei, que não possa ser cumprida pela maioria”. É ainda: “Se eu não sou por mim, quem será? E se eu não sou por mim, quem sou eu? Se não agora quando?”. Comentário do rabino Moisés Schul sobre essa passagem: “Cada um deve se cuidar de si mesmo e assegurar a sua salvação, sem depender de ninguém, sem perder um só instante, porque nossos méritos são pequenos, o caminho é muito longo e amanhã nós poderemos não mais estar vivos” (traduzido da Wikipedia em francês – Hillel Hazaken). Os adeptos de Hillel compunham a mais popular escola de interpretação da Torá, conhecida como Beith Hillel (Casa de Hillel).
Quando Hillel morreu no ano 10, sua influência no Sinédrio foi abafada pela de seu êmulo mais famoso: rabino Shammai, um observador minucioso da letra da Lei, fazendo-se conhecido na história pelo seu temperamento irascível e intratável. Shammai era um hierosolimitano, nascido em 50 a.C. e morto em 30 a.C., onde exercia a profissão de arquiteto ou pedreiro, de onde teria vindo a sua compulsão pela medida exata ou por um reducionismo legalista. Sua máxima mais conhecida era: “Faça do estudo da Lei sua principal ocupação. Fale pouco, pratique muito e acolha todos os homens de maneira amigável”. Uns contam que ele tentou obrigar seu filho, ainda menor perante a Lei, a cumprir o rigoroso jejum do Yom Kippur, sendo dissuadido por seus amigos. Segundo outra versão, ele lhe deu alimento só com uma mão. Como sua nora estivesse convalescendo do parto durante a Festa das Tendas, ele fez um buraco no teto do quarto dela, e construiu sobre ele uma cabana ritual, na qual judeus costumam se abrigar durante essa festa. Cada um que medite sobre isso. A Wikipedia em inglês e francês trazem mais informações sobre Shammai, mas não muito mais que não pareçam lendas ou criações literárias. Uma coisa é certa: com a morte de Hillel o rigorismo de Shammai avançou na sociedade judaica, e foi justamente essa versão rigorista que Jesus enfrentou, da parte dos fariseus. Seus adeptos compunham a Casa de Shammai (Beith Shammai). Posteriormente, seu rigorismo foi associado às desgraças que se seguiram após a morte de Jesus, como a destruição do Templo e a dispersão do povo, e ele, hoje, e a sua doutrina, passou a ser deplorada por muitos judeus.
Gamaliel o Velho, mestre de Paulo, era neto de Hillel, e é considerado outro grande expoente do judaísmo. Morreu em 50. Uma de suas máximas é: “Aproxime-se do seu mestre, afaste-se das dúvidas [religiosas], e só raramente pague o dízimo de acordo com o valor legal [dê sempre mais]”. Fez uma curiosa classificação dos aprendizes da Lei, comparando-os a peixes: “Um peixe ritualmente impuro: é quem memorizou tudo pelo estudo, mas não tem entendimento; é filho de pai pobre. Um peixe ritualmente puro: é quem aprendeu e entendeu tudo, e é filho de pais ricos. Um peixe do Jordão: é quem aprendeu tudo, mas não sabe como responder. Um peixe do Mediterrâneo: é quem aprendeu tudo e sabe como responder” (Wikipedia em inglês – Gamaliel). Gamaliel entra para a história da Igreja em virtude da citação de seu nome por Paulo, como sendo seu discípulo pessoal – hoje vários estudiosos contestam essa versão, baseados nas fontes judaicas, que não mencionam Paulo. Há uma tradição cristã, divulgada pelo Patriarca Ecumênico de Constantinopla Fócio I, do século IX, que diz que Gamaliel, seu filho e Nicodemos, foram secretamente batizados por Pedro e João, de tal sorte que católicos e ortodoxos o veneram como santo. Os judeus, no Talmud, afirmam que ele morreu fariseu, e fazem-lhe o mais rasgado elogio: “Desde que Rabban [outro título] Gamaliel morreu, não houve mais reverência à Lei, e a piedade e a pureza morreram com ele” (Wikipedia em inglês).
         (5) Ao contrário do que dizem os canais de “história” da televisão americana, os romanos foram muito mais receptivos e sensíveis à especificidade do povo judeu do que normalmente se divulga. Segundo Bloch-Cousin, as concessões que Julio Cesar e outros imperadores fizeram aos judeus incluíam: serem governados por judeus; dispensa de tributo de sete em sete anos, por causa do ano sabático; proibição de tropas romanas desfilarem em Jerusalém com a imagem do imperador; isenção de recrutamento e de requisições entre os judeus da Judeia e da diáspora; direito de administrarem seus próprios bens e de imporem contribuições aos seus seguidores, mesmo em território romano; autorização para julgar e punir crimes conforme previsto na lei mosaica; proteção do Estado à religião mosaica. E acrescenta ainda a “notificação desses privilégios a todas as nações aliadas ou submetidas a Roma. Criava-se assim uma situação excepcional: nenhuma “nação” beneficiava ou viria a beneficiar em Roma de tais favores” (1964; p 402-403). Bem diferente era a atitude do homem comum, o pagão “politicamente correto”, que estranhava seu modo de vida muito diferente do habitual, mesmo comparado com o de outros povos asiáticos. “Acusavam-nos de “deprezarem os deuses”, de só adorarem um deus “mal definido”, de mentirem quando declaravam que seu deus habitava o santo dos santos do templo de Jerusalém, onde Pompeio, quando entrou, “não viu nada...” Não comiam porco, porque o porco dá a lepra, [os judeus] descendiam de leprosos expulsos do Egito” (idem; p 403)
         (6) A Bíblia de Alexandria, a Septuaginta, ganhou esse nome porque, segundo a lenda, ela foi elaborada a pedido do rei Ptolomeu II Filadelfo, no início do século III a.C., que, impressionado com a riqueza dos ensinamentos contidos na Bíblia hebraica, instou com os anciãos de Jerusalém para que lhe mandassem 72 sábios, 6 para cada tribo de Israel, para fazer um trabalho de tradução seguro do hebraico para o grego, a fim de melhor difundir aquele manancial de sabedoria. Conta ainda a lenda que, chegados ao Egito, esses sábios foram trancados em 72 câmaras diferentes e incomunicáveis, lá ficando até cada um terminar o seu trabalho. Ao terminarem o trabalho constatou-se uma maravilha: as 72 traduções eram absolutamente iguais, fazendo cair por terra qualquer dúvida que o rei ainda tivesse sobre a inspiração divina dos livros.

         Bibliografia
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho; Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)
Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – IV

Aproveito para agradecer às pessoas que no Brasil, Estados Unidos, Índia, Chile, Portugal, Espanha, Rússia e Ucrânia acessaram este blog nessas últimas semanas, espero que tenham encontrado algo útil para si, e espero continuar sendo útil. Desculpem-me se a edição nem sempre é boa. entendo pouco disso.

rof Eduardo Simões

         Wadi Qumran

         https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/c1/Kumeran4.jpg/290px-Kumeran4.jpg
         Wikipedia

         Em novembro de 1946, um pastor de cabras jordaniano, Muhammed edh-Dib, e mais dois jovens, procuravam cabras perdidas em meio a rochedos escarpados, no inóspito Wadi (vale) Qumran, quando deram, acidentalmente, com grutas, caprichosamente ocultas pela paisagem, e, procurando suas cabras em uma delas, acharam grandes potes de cerâmica, alguns danificados, contendo vários rolos de pergaminho com uma escrita muito antiga. Eles pegaram alguns e levaram para os seus parentes que, conhecedores do afã dos estrangeiros por objetos como aqueles, mantiveram a descoberta em segredo e começaram a vender aquilo que retiravam da gruta. Para aumentar os lucros eles começaram a rasgar os pergaminhos encontrados e os venderam aos poucos. E assim foi até fevereiro de 1947.
         Por acaso, alguns fragmentos foram parar em mãos de especialistas conceituados como o padre francês Roland de Vaux (1903-1971), diretor da conceituadíssima Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém, pertencente aos padres dominicanos, dos professores, especialistas bíblicos e arqueólogos americanos John C. Trever (1916-2006), William F. Albright (1891-1971), Ovid R. Sellers (1884-1875), etc., além do arqueólogo israelense Eleazar Sukenik (1889-1953), que, em 1948, conseguiu convencer o estado israelense a comprar todos os rolos que fossem postos à venda. Houve então uma revoada de expedições arqueológicas ao local, e até 1956 mais dez cavernas forma descobertas, e novos manuscritos foram achados – ao todo uns 870 rolos, dos quais 220 bíblicos, divididos em milhares de fragmentos – enquanto a situação política se deteriorava e a região experimentou o primeiro ciclo de guerras árabes-israeleneses, entre maio de 1848 e março de 1949. À medida que os rolos iam sendo datados e decifrados, muitos especialistas começaram a clamar: “é a maior descoberta arqueológica de todos os tempos!”

        
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5d/Solomon_Schechter.jpg
Wikipedia

Com o avanço do racionalismo iluminista do século XVIII, a Bíblia foi dissecada de alto a baixo sob o crivo da razão científica, que não podia, naquele momento, chegar senão à conclusão de que tudo não passava de um amontoado de lendas, mitos, histórias fantásticas, para justificar a fé de mulheres, crianças e adultos fracos de juízo, meras invenções, e até falsificações, de padres e monges medievais com o intuito de facilitar o domínio intelectual que a Igreja Católica sobre a Europa cristã. Muito provavelmente, diziam, a Bíblia que fora lida pelos judeus e por Jesus já não era a mesma que se lia nos tempos atuais, tantos teriam sido os acréscimos espúrios. Favorecia a essas concepções o fato de que os manuscritos mais antigos que se conhecia da Bíblia Hebraica datavam da metade para o fim da Idade Média.
Essa tese tão fácil sofreu seu primeiro choque com a descoberta e classificação de documentos antigos, na geniza da sinagoga do Cairo, por Solomon Schechter, um rabino e estudioso inglês, no ano de 1896, de textos bíblicos datando dos séculos IX e X – geniza é uma espécie de depósito onde os funcionários da sinagoga guardam documentos deteriorados ou não mais em uso (1). Ainda assim esses documentos distavam vários séculos do fim da ocupação judia da Palestina. A dúvida, portanto, persistia: será que os padres mutilaram, e continuavam mutilando, a Bíblia? Será que não foi por isso que, por muito tempo, eles, criaram tantos empecilhos para a leitura livre da Bíblia?
Os primeiros trechos daqueles rolos, chamados de Rolos ou Manuscritos do Mar Morto, uma vez que o Vale de Qumran estava situado próximo a esse mar, que foram traduzidos pelos especialistas, causaram furor: eram trechos do livro de Isaías, mil anos mais antigos que qualquer outro manuscrito bíblico conhecido!
Estávamos de volta à era de Jesus!

         O Testemunho de Flavio Josefo

         http://www.virtualqumran.com/photos/Fort_3_1000.jpg
         http://www.virtualqumran.com

         O potencial arqueológico da região era conhecido desde o século XIX, quando o arqueólogo francês Felicien de Saulcy (1807-1888) pesquisou a área em torno de um cemitério antigo, em 1851. Cinco anos depois foi a vez do reverendo anglicano e orientalista inglês Albert Isaacs (?), que visitou algumas ruínas próximas, e chegou à conclusão que se tratava de uma pequeno posto de guarda com uma cisterna. Entre 1900 e 1901, o estudioso inglês William G. Masterman (?) esteve diversas vezes no local, e também acabou convencido que se tratava de uma pequena fortaleza, embora ela destoasse, pela sua pequenez, do  cemitério próximo, que suporia uma guarnição muito grande para o tamanho do forte. O pastor luterano Gustaf Dalman (1855-1941), visitou o local em 1914 e chegou a conclusão que as ruínas em Qumran eram de um pequeno forte ou de uma cidadezinha, e assim por diante. Havia, entretanto um mistério que se arrastava desde a Antiguidade: uma seita judia misteriosa, que teria habitado nessa região, na época de Jesus, e que escritores, como Plínio o Velho, Flávio Josefo, Filon, Dion Crisóstomo e Epifânio de Ostia, chamavam de “essênios”. Entre esses autores o mais abalizado é o judeu Flávio Josefo, que, segundo alguns, chegara a viver três anos com um deles. As informações que Josefo nos passa sobre eles são as seguintes:
         1 – acreditavam com fervor na Providência Divina, e tudo a Ela entregavam
         2 – acreditavam na imortalidade da alma e na premiação dos justos após a morte.
         3 – levam oferendas ao Templo, mas mantêm-se em áreas restritas, para não entrar em contato com pessoas impuras. Além disso, são muito ritualistas – era proibido cuspir na frente ou à direita de alguém – e rigoristas, às vezes até mais que os fariseus, na observação do repouso sabático (toda comida era feita na sexta-feira e comida fria, para não se acender um fogo, e nesse dia eles evitavam, inclusive, de defecar).
         4 – possuem um elevado código de conduta moral e os que cometem falta grave são punidos com a expulsão da comunidade, condição esta que pode leva-los à morte pela fome, às vezes evitada pela piedade dos outros. Os episódios de má conduta eram julgados por um tribunal de cem membros, como juízes, e se a acusação fosse de falar mal ou blasfemar contra o fundador da seita ou contra Moisés, a sentença seria de morte.
     5 – dedicam-se exclusivamente à agricultura, visto que praticam um vegetarianismo estrito, por respeito à vida dos animais. Alguns viram nisso contato com seitas indianas;
     6 – todo aquele que deseja entrar na comunidade deve distribuir os seus bens entre os irmãos, de sorte que não há entre eles distinção entre ricos e pobres. Antes de entrar, porém, o postulante deve permanecer um ano onde sempre viveu, mas vivenciando as regras essenias, para depois passar dois anos em observação, numa comunidade exclusivamente essênia, antes de ser aceito – nesse momento o neófito faz um juramento de honrar a Deus, de ser justo, não prejudicar a ninguém deliberadamente, de amar aos bons e odiar aos maus e de obediência irrestrita aos seus superiores.
       7 – aqueles que assumem posição de autoridade juram não abusar dos subordinados, não procurar sobressair-se, amar a verdade, reprimir os mentirosos, não ocultar nada aos membros da seita, mas também nada revelar aos de fora, nunca praticar o latrocínio, honrar os livros da Lei e o nome dos anjos (culto angélico?).
   8 – embora não desestimem o casamento, recomendam aos seus membros, (predominantemente homens) uma vida celibatária, pois o matrimônio é motivo de disputa – aquele que deseja cassar deve submeter sua noiva à prova na vida essênia por três anos. Adotam crianças alheias quando ainda são maleáveis e aptas para receber os seus ensinamentos
         9 – em hipótese alguma admitem a posse de escravos por seus membros – a escravidão estimula a injustiça.
   10 – consideravam o óleo um agente contaminante. Se algum deles fosse umedecido por óleo devia esfregar vigorosamente a parte atingida.
         11 – tinham por hábito vestir branco, e usavam suas vestes e calçados até ele ficarem completamente rotos, quando então obtinham outros novos, por meio de troca direta, porque não aceitavam a mediação de moeda em suas transações. Muito pudicos, homens e mulheres não se despem na hora de tomar banho, e quando vão fazer alguma necessidade fisiológica, costumam se afastar, cavar um buraco e se cobrir todo com um pano, para que os céus não vejam a sua nudez.
         12 – elegem administradores para cuidar do patrimônio e dos ritos da comunidade.
         13 – embora fossem contrários às guerras, e se comportassem com neutralidade política ante o conflito onipresente entre judeus e romanos, quando de viagem os essênios não carregavam mantimentos ou vestes extras, mas levavam armas para se defender de salteadores.
         14 – São muito cautelosos com suas palavras e evitam assuntos profanos.
         15 – à mesa, nas suas comunidades, eles se servem, após um sacerdote abençoar o alimento, em geral pão e vinho, e os tomam em completo silêncio. Suas palavras devem ser poucas, diretas e dignas de crédito. São proibidos de jurar.
         Etc. (2)
         O conjunto dessas informações, e outras dos autores acima nomeados, fizeram surgir a hipótese, muitas vezes apresentada com ares de verdade ou “revelação”, de que João Batista e mesmo Jesus Cristo fossem essênios – essa, por exemplo, foi a tese logo abraçada pelo doutor Sukenik, acima citado – ou tivessem sofrido, deles, influência decisiva... desde que se ignorasse as diferenças gritantes.

         Os Testemunhos da Arqueologia e da História

         http://www.virtualqumran.com/photos/Mill_1_1000.jpg
         http://www.virtualqumran.com

         Com a descoberta dos rolos, os arqueólogos voltaram a atenção para as ruínas do pequeno “posto militar”, Kirbeth (ruínas, em árabe) Qumran, trazendo á luz novas fundações ainda soterradas, que pareciam apontar outra função para o edifício. Foram encontrados, por exemplo, aposentos contendo diversas estruturas que pareciam mesas de pedra, com diversos tinteiros nelas escavados, além de cacos de cerâmica contendo nomes de pessoas. Definitivamente aquilo não era apenas um fortim militar. A história mais provável para a ocupação de Qumran é a seguinte:
         La por volta de 135 a.C., no tempo do reinado de Jônatas Macabeu, um grupo de judeus piedoso migrou para essa região, talvez fugindo da usurpação do sumo-sacerdócio feita por aquele, e, movido pelo desejo de não se contaminar com tanto pecado, ocupou as ruínas de um velho forte de fronteira, fazendo dele a sede do seu movimento – entretanto, embora as pesquisas arqueológicas tenham expostos diversos aposentos onde eram realizadas atividades diversas, tanto intelectuais como artesanais, não foi encontrada nenhuma estrutura que propiciasse condições de moradia permanente, o que faz alguns estudiosos defender a hipótese de que Kirbeth Qumran era uma espécie de centro cerimonial, frequentado apenas para estudos e realização de certas atividades e eventos festivos. E as pessoas que o utilizavam? Talvez morassem precariamente nos arredores, habitando em tendas e até usando esporadicamente as cavernas das redondezas.
         Por volta do ano 100 a.C., a estrutura é ampliada consideravelmente, o sistema de abastecimento de água aperfeiçoado e ampliado. São construídas três enormes cisternas. Foi erguida uma torre maciça, quadrada (como se vê na reconstituição acima), para proteger a entrada. Havia salões amplos, com bancos pegados em cada lado das paredes, uma cozinha, dispensa e vasilhames de cerâmica – até hoje foram encontradas sete grandes cisternas e seis pequenas, mas a crença mais geral é que fossem apenas depósitos de água, artigo raro, e não locais para abluções ou centros de batismo (para que tanto poço batismal?).
         Por volta de 31 a.C. a estrutura é abalada por um terremoto, e retomada 27 anos depois, sendo toda restaurada.
         Em 68, durante a Primeira Guerra Judaico-Romana, a comunidade fica na zona de operação da 10ª Legião Fretensis, ocupada em destruir meticulosamente qualquer foco de resistência judaica na área. Houve confronto sério em Kirbeth Qumran: sinais de destruição e várias pontas de flechas romanas foram encontradas no lugar, mas parece que os prédios foram abandonados antes de um assalto final, que teria redundado numa destruição muito maior.
         Após a guerra, o local foi ocupado provisoriamente por uma guarnição romana, até que foi definitivamente abandonado, no final do século I, e tomado de vez pelas areias do deserto e do tempo.
         Quantas pessoas viveram em Kirbeth Qumran, ou em suas imediações, na época dos essênios? Os especialistas se dividem, mas o número mais aceito oscila em torno de 200, já o total dos essênios, segundo Josefo, seria de uns 4.000, espalhados em diversos lugares e cidades da redondeza.

         Os Manuscritos do Mar Morto

         https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5f/The_War_Scroll_-_Dead_Sea_Scroll.jpg
         Wikipedia

         Como dissemos acima, dentro das cavernas foram encontrados vários manuscritos (textos escritos à mão, como era comum na Antiguidade Ocidental), sobre suportes de papiro (um tipo de “papel” feito do caule de uma planta nativa do Egito e do Sudão), pergaminho (outro tipo de “papel” feito pele de animais como cabras, bois e ovelhas), além de uma misteriosa chapa de cobre. O estado desse material era, na maioria das vezes, lamentável, como vemos na foto acima, que mostra um trecho do chamado Manual da Guerra, enquanto que outros estão mais bem conservados, como um rolo completo de Isaías, em meio a outros fragmentos que mal chegam ao tamanho de uma unha humana.

http:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIUncPWMMb-FkfQb9j0p1LZsyIc-v8fpPqs3syDKU9zJ67Q_DhfCbRI40Doio9qJltbv3Oz4RaELd7cY1PYFs3KgABPBtsg22pCh7t_Fz7Ujtr5WKr4PxhfbtSgpNVo8Elth8wrvXfIoY/s1600/ScrollJars.jpg
http://exposing-religious-deception.blogspot.com.br/

         Esse material estava acondicionado em potes de cerâmica, com uma tampa, veja acima, alguns bastante arrebentados, como se vê nas marcas do pote à esquerda. O uso desses potes para guardar documentos e livros (rolos) era comum na antiguidade, pois eles faziam as vezes de estante, e em Kirbeth Qumran foi encontrada uma olaria com inúmeros fragmentos de potes como estes.
         O primeiro manuscrito a ser traduzido foi um rolo contendo o texto completo de Isaías, feito pela Escola Americana de Estudos Orientais (3), e logo em seguida vieram outros, como um manuscrito de Isaías todo fragmentário; um comentário de Habacuc, faltando o capítulo 3, presente na Septuaginta; o Manual da Disciplina ou Regra da Comunidade que trata dos deveres, obrigações e punições previstas para os membros da seita, e que reflete um forte dualismo (bem x mal, filhos da luz x filhos das trevas) além do papel destacado dos sacerdotes na comunidade; o Manual da guerra ou Regra da guerra ou ainda Rolo da guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas, onde se descreve um combate escatológico entre os filhos da luz e os das trevas, com uma grande riqueza de detalhes – “o texto descreve a estratégia, o armamento usado (funda, lanças, setas, arpões, espadas, escudos), a organização militar (cavalaria, infantaria ligeira, infantaria pesada)” (tradução da Wikipedia em francês – Règle de la Guerre). Segundo o mesmo texto na Wikipedia,, em inglês o armamento e a disposição tática dos filhos das trevas lembram muito o armamento e as táticas romanas, que são nomeadas por “kittim” – além de um apócrifo do Gênesis, cheio de adendos fantasiosos (em estilo de midraxe).
         Além dessas obras completas, ou quase, foram encontrados fragmentos de todos os livros da Bíblia hebraica, exceto Ester, além de Tobias e Eclesiástico, que não são aceitos nas Bíblias judaicas contemporâneas. Foram encontrados livros apócrifos como Jubileus, Enoc, o Testamento dos 12 Patriarcas, livros onde abundam descrições apocalípticas. Há comentários a Isaías, Oseias, Miqueias, Naum, Sofonias e Salmos. Várias obras dirigidas à organização da seita, textos litúrgicos e um misterioso rolo de cobre, que contém, por meio de um código cifrado, indicações de onde encontrar os tesouros ocultos da comunidade, que deixou os especialistas desconfiados, afinal aponta para a existência de uma reserva secreta secreta de 200 t de ouro e prata! Aliás, este não é o único documento escrito dessa forma, dando a entender que havia um “culto do segredo” entre os autores desses manuscritos,

        
http://www.virtualqumran.com/photos/146.jpg
http://www.virtualqumran.com

Os fragmentos, apesar de milhares, foram rapidamente reunidos e a tradução também não se fez esperar, no entanto uma série de pendências de caráter judicial e político – o agravamento de tensões no Oriente Médio e a Guerra dos Seis Dias (1967) – um caso de racismo, quando o pesquisador americano, chefe da equipe que deveria publicar o texto dos manuscritos, John Strugnell, declarou-se publicamente “antijudaico”, para não falar da eterna disputa pelos direitos autorais... Assim o conteúdo que já podia ter sido publicado no início dos anos 1960, só o foi no final do século.
No mundo acadêmico sério, os especialistas estrilam e denunciam a demora para a publicação dos resultados das traduções, como o pesquisador e teólogo anglo-húngaro Geza Vermes (1924-2013). Noutros meios, menos sérios e mais propensos ao escândalo e ao sensacionalismo, começam a se propagar boatos de que o atraso se devia a pressão do Vaticano, uma vez que a publicação dos manuscritos revelaria segredos que poderiam acabar definitivamente com o cristianismo, atingindo especialmente a Igreja Católica (4). Finalmente as traduções saíram e o resultado foi sensacional, mas não na direção que supunham os sensacionalistas.

Controvérsias

No início, a quase totalidade dos pesquisadores se inclinou à hipótese de que os rolos encontrados nas cavernas estavam estreitamente ligados à gente que morara nas ruínas, mas com o passar do tempo foi-se constatando a falta de elementos mais sólidos que ligassem os rolos nas cavernas a Kirbeth Qumran, a exceção dos potes de argila, para guardar os rolos, que, de resto, eram comuns em toda Palestina – os estudos arqueológicos foram inconclusivos quanto a isso. O fato de serem encontrados muitos cacos de cerâmica nas ruínas fez com que alguns pesquisadores explanassem a tese de que ali apenas funcionava uma grande olaria.
Outra coisa que chamou a atenção foi a enorme quantidade de moedas encontradas nas escavações: 1250, sendo 569 de prata e 681 de bronze, que aponta para um fluxo normal. Muito alto, de moedas, incompatível a uma comunidade apresentada como pobre e desprovida de ambição pecuniária, sem falar de outros restos de alto valor na época, como vidro, encontrados no lugar. Será que Josefo mentiu propositalmente sobre o ideal de pobreza do grupo ou, enlevado pelo pouco que conheceu da seita, generalizou suas virtudes precipitadamente. Outro problema trazido pelo estudo das moedas é sobre o ano da destruição do local, tradicionalmente apontado como 68. Elas sugerem que a destruição se deu no mesmo ano que a da fortaleza rebelde de Massada, que fica ali perto, em 73. Por fim apareceram fortes evidências que boa parte das moedas de prata encontradas lá são do século III, o que, aparentemente, contradiz a tese original que o lugar foi abandonado ainda no século I.
Assim começam a pipocar teses apontando outras finalidades para Kirbeth Qumran, que não um monastério essênio. Segundo uns seria uma vila rústica, uma propriedade autossuficiente, pertencente a ricos comerciantes, para outros seria uma espécie de centro comercial e para outros seria uma espécie de prolongamento de Jericó, vila próxima, servindo para produção sazonal de peles e cerâmica.
E os rolos encontrados nas cavernas?
Bem, em primeiro lugar não foi encontrado neles nada parecido com o termo “essênio” (5), embora várias das regras e costumes nele relatados coincida com as relatadas pelos escritores antigos acerca deles. A si mesmo eles davam o nome de Yachad.
Como dissemos acima os relatos sobre a Yachad confirmam muitas coisas que os escritores antigos disseram, mas também, às vezes, os negam de forma cabal, o que, no caso de Josefo, cheira mais a uma peça propagandística que num relato sóbrio, e em virtude disso alguns estudiosos supuseram que os Yachad seriam uma espécie de seita saduceia, tal o seu rigorismo legal, que também os aproxima dos fariseus, o que nos leva a outra conclusão: o conjunto dos documentos está muito longe de ser homogêneo.
A falta de homogeneidade dos documentos levou vários cientistas a defender a posição de que os rolos nada têm a ver com Kirbeth Qumran, uma vez que o local das ruínas não é mencionado em nenhum documento. A citação, ou as citações, podem ter se perdido, e aí é muita falta de sorte. O certo é que nada foi encontrado, então, cientificamente falando, hoje, não há qualquer relação entre os rolos e as ruínas.
Mas então, de onde vieram os rolos? Alguns supõem que podem ser da biblioteca do próprio Templo de Jerusalém, levada às pressas para Qumran, a fim de escapar da destruição. Outros afirmam que seriam oriundos de várias bibliotecas particulares, o que explicaria melhor a sua heterogeneidade. Outra explicação possível, muito difícil de ser aceita hoje, é a de que o judaísmo no tempo de Jesus era, teologicamente, bem mais flexível que o atual, e isso estaria consubstanciado naquela biblioteca, pelo menos nos escritos de Yachad, onde partes da Bíblia hebraica foram encontradas juntas com a Bíblia grega, a versão dos Setenta, ou Septuaginta, que hoje não é aceita como canônica pelos judeus, mas que no tempo de Jesus aparentemente era. Havia mesmo livros escritos em grego naquela biblioteca. Isso tudo veio a reforçar a crença tradicional da Igeja Católica na canonicidade original da Septuaginta, embora o argumento mais forte, sempre usado pela Igreja para justificar a sua aceitação da versão ampliada dos Setenta, é que nos evangelhos e nas cartas ela é muito citada por Jesus e pelos Apóstolos.   

Resultados

Primeiro: a tradição bíblica ficou mais confirmada do que nunca. Como dissemos antes, os iluministas puseram a Bíblia sob o microscópio e assacaram contra ela as piores denúncias, de que não passava de um livro de mitologias, no mesmo nível de uma Guerra de Troia ou qualquer obra da literatura religiosa pagã da antiguidade, e que, com certeza, a Bíblia que se lia na Palestina, até a destruição de Jerusalém pelos romanos, nada tinha a ver com as Bíblias contemporâneas, uma vez que estas teriam sido adulteradas irremediavelmente pelos padres, os guardiões das Sagradas Escrituras no Ocidente. Pois bem, os textos bíblicos dos manuscritos de Qumran são praticamente iguais aos da Bíblia de hoje e, portanto, nada substancial foi modificado ao longo dos séculos, tirante os erros comuns a tiragens antigas feitas à mão. A Bíblia hebraica, o Primeiro Testamento, que lemos hoje é similar ao que era lido no tempo de Jesus, e a Igreja Católica longe de ser uma sociedade secreta, cheia de falsificadores, embusteiros, a serviço do acúmulo de riquezas mercantil, as mesmas que sobram aos seus inimigos, enquanto lhes falta a riqueza moral, da qual a Igreja sobeja, quando colocada sob o crivo da arqueologia, que aponta, nesse episódio, a Igreja como uma instituição historicamente correta, verídica, que enaltece o gênero humano.
Segundo: a confirmação da tradição bíblica reforça a historicidade do Primeiro Testamento e, de tabela, a do Segundo, a dos evangelhos de Jesus, ainda mais porque as descrições dos costumes judaicos, dos grupos religiosos neles retratados, encontraram a sua confirmação nos rolos de Qumran. Mais pontos para a fidelidade histórica dos escritores sagrados, e para a instituição que os preservou.
Terceiro, embora os textos se estendam até o início dos anos 60, nenhuma menção foi encontrada neles a João Batista, a Jesus ou aos cristãos, o que seria muito estranho se eles fossem essênios, considerando que nessa época os cristãos já padeciam das sangrentas represálias das autoridades tão desprezadas e odiadas pelos essênios ou pelos Yachad, que também esperavam um messias... Na verdade dois messias, um político, da casa de Davi, e outro religioso, da de Aarão, ao qual o primeiro estaria submetido. Uma repercussão tardia da reação forte e duradoura ao movimento dos Hasmoneus em se apossar do sumo sacerdócio, conforme já se sabia antes sobre os essênios.

        

Nota
(1) Segundo o verbete, Guenizah du Caire, na Wikipedia em francês, “Como os judeus consideravam o hebreu a língua de Deus, e o hebraico como a escrita Dele próprio, não era admissível destruir os textos, mesmo após um longo tempo de inutilidade” (tradução livre). Na Geniza do Cairo foi feita uma descoberta impactante: uma versão do Siracida, livro da Bíblia que os católicos chamam Eclesiástico, escrito na língua hebraica – os judeus, durante a difusão do cristianismo, excluíram esse livro de sua Bíblia sob o pretexto de ele não ter sido escrito originalmente em sua língua sagrada. Uma pergunta logo se fez ouvir: o que estava fazendo, no depósito de uma sinagoga, um livro repudiado como não canônico, mas transcrito em hebreu, considerando que seu original foi escrito em grego? A solução encontrada foi a seguinte: ele era canônico para a comunidade judia do Egito, mas não entre os judeus palestinenses.

(2) Quem quiser saber o que Flavio Josefo falou sobre os essênios vá ao seguinte endereço, em espanhol: http://www.geocities.ws/dodecaedro1/eseniosjosefo.htm

(3) Encontrado na primeira cova (1Q), pelos beduínos, junto com outros seis rolos, foi vendido ao metropolita (uma espécie de arcebispo) da Igreja Ortodoxa Síria, Mar Samuel, que, transferido para os Estados Unidos, revendeu-o ao arqueólogo israelense Yigael Yadin por US$250.000, e este os entregou ao Estado de Israel, em 1954. Todos os documentos em posse de Israel estão hoje no chamado Santuário do Livro, uma modernosa ala do Museu de Israel, em Jerusalém. Ele é o mais completo e bem conservado rolo entre os 220 rolos bíblicos encontrados em Qumran. A datação eletrônica do pergaminho oscilou entre 335 e 107 a.C., enquanto estudos paleográficos apontam os anos entre 150 e 100 a.C. para a redação do texto – ou seja, esse manuscrito é 1.100 anos mais antigo que a mais antiga cópia do mesmo texto conhecida no mundo até então: o chamado Códice de Leningrado. O rolo é muito extenso e se compõe de 17 folhas de pergaminho coladas, que se você quiser desenrolar, centímetro por centímetro, deve recorrer ao seguinte endereço: http://www.imj.org.il/shrine_center/Isaiah_Scrolling/index.html

(4) eu, que vivi esse tempo e posso atestar o quanto esses boatos eram impregnantes e com uma formidável capacidade de propagação, ainda mais em um país onde a grande maioria das pessoas ignora que o Vaticano não fica nos Estados Unidos e que Israel não é um país católico, os dois países cuja intelligentsia universitária controlava os estudos sobre os textos.

(5) Segundo a Wikipedia o termo derivaria do grego “ossio” (santo, pio), uma transcrição do hebraico “hassidim”, ou “hassideu”, com o mesmo significado, ou ainda do arameu “hesé”. Nos documentos, o termo usado para designar a seita é “Yachad”, que em hebraico quer dizer “juntos”, “unidos”, neste caso “comunidade”. Ver http://bibliaparalela.com/hebrew/3162.htm



Bibliografia

Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966;
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Recomendo ainda os verbetes referentes a Qumran, Essenios, Rolos do Mar Morto, presentes na Wikipedia em inglês e francês.


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) III

Prof Eduardo Simões

         Historicidade de Jesus

         http://www.answering-christianity.com/empty-tomb.jpg
         http://www.answering-christianity.com/

         Da existência concreta de um homem Jesus, historicamente situado em seu ambiente cultural, depende radicalmente a credibilidade da mensagem cristã e a existência da Igreja. A percepção desse fato foi precoce e premente nos primeiros membros da Igreja; São Paulo dirá em 1 Cor 15,14.19: “se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa opregação, vazia também é a vossa fé... Se temos esperança em Cristo somente para esta vida, somos os mais dignos de de compaixão de todos os homens” (Bíblia de Jerusalém).
         Durante mais de mil e setecentos anos, ninguém pôs em dúvida a existência histórica de Jesus, até que no final do século XVIII, na França, essa questão é apresentada pela primeira vez – a Wikipedia em inglês, Jesus Myth, atribui ao filósofo iluminista e político Constantin-François Volney (1757-1820), a iniciativa de lançar pela primeira vez dúvidas sobre a existência de Jesus. A argumentação de Volney é simples, para não dizer simplista, mas complexa demasiado para quem acredita que tudo pode ser reduzido à razão: a Bíblia, dizia ele, é um livro cheio de mitos e lendas, como seus similares da antiguidade pagã, e, por conseguinte, nada que existe nela, inclusive a existência de um indivíduo histórico chamado Jesus Cristo, jamais aconteceu, sendo uma criação espúria, entre ingênua e desonesta, das primeiras gerações de cristãos. A iniciativa de Volney foi devidamente sistematizada pelo filósofo alemão Bruno Bauer (1809-1882), nos três argumentos a seguir, exaustivamente repetidos até os dias de hoje.
         “1 – os evangelhos foram escritos muitas décadas ou mesmo um século após o ano estimado da morte de Jesus, por indivíduos que simplesmente nunca estiveram com Jesus, e foram editados e modificados ao longo dos séculos por escribas desconhecidos, com seus próprios apontamentos; 2 – não existe nenhum registro histórico sobre Jesus de Nazaré de qualquer autor não judeu até o segundo século, e Jesus não deixou nenhum escrito ou evidência arqueológica; 3 – algumas passagens dos evangelhos assemelham-se àquelas de morte-e-ressurreição de semideuses... deidades solares, salvadores, ou outros homens divinos como Horus, Mitra, Prometeu... assim como personagens históricos “crísticos” como Apolônio de Tiana (1)” (tradução livre da Wikipedia – Jesus Myth)
         É claro que esses argumentos levantados na primeira metade do século XIX, apesar de lógicos, não tinham como “adivinhar” as descobertas arqueológicas, que ocorreriam nos século seguinte, confirmando muitas das afirmações contidas nos evangelhos e nas cartas apostólicas, além do extraordinário avanço dos métodos de análise textual, que permitem levantar cada vez com mais certeza o que é original e o que não é, nos textos antigos, mas que, infelizmente, não são consideradas suficientes pelos modernos “céticos”, que continuam a repetir essa fórmula “surrada” de Bauer, quando não caem no ridículo, como o ex-pastor batista Robert McNair Price, que afirma só ser possível reconhecer a historicidade de Jesus se for descoberto o seu cadáver ou o seu diário pessoal (idem). Com gente portadora desse tipo de argumento não adianta perder tempo.
         O objetivo desse artigo é, portanto, dar ao crente cristão-católico alguns fatos que possam fortalecer a sua fé, mostrando elementos que evidenciam de forma muito categórica a historicidade de sua fé, e, eventualmente argumentos para dialogar com outros crentes ou não crentes, que não sejam como Price, para não incorrerem no erro descrito em Mt 7,6.

         A Multidão de Testemunhos Cristãos

         A vida de Jesus, como sabemos, foi descrita em diversos livros, de diversas maneiras, entre os quais os mais importantes e aceitos como “inspirados” ou “canônicos” pela vasta maioria dos cristãos são os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Ora, sobre esses livros nós podemos dizer o seguinte:
         1 – a quantidade de cópias deles existente em museus e bibliotecas do mundo é simplesmente absurda, são milhares! (2), nada que se lhes compare, e a concordância entre eles também é impressionante – existem, evidentemente, variantes, algumas muito estranhas, como as que aparecem nos evangelhos apócrifos, evangelhos não aceitos como canônicos, de autenticidade duvidosa, dúvida claramente suprimida pela multidão de cópias dos evangelhos autênticos, manuseados por grande número de pessoas de autoridade na Igreja.
         2 – quem lê os textos dos evangelhos percebe logo uma coisa que não se vê nem nas farsas literário-religiosas, que ainda hoje são montadas, uma preocupação incomum para a época, em nomear referências geográficas e autoridades, de sorte a facilitar a construção de uma cronologia e um ambiente que são confirmados de maneira cada vez mais exata pela moderna arqueologia (3).
3 – a lista de personagens históricos citados pelo Segundo Testamento, e confirmados por fontes independentes ou pela arqueologia é enorme, e cresce cada vez mais. Entre estes citamos: César (Otávio) Augusto, Herodes o Grande, Herodes Antipas, João Batista, Publio Sulpício Quirino, Anás, Caifás, Herodes Arquelau, Poncio Pilatus, etc. – há uma lista completa no verbete List of biblical figures identified in extra-biblical sources, na Wikipedia. Aqui se pode por uma questão de lógica rasteira: quer os evangelhos tenham sido escritos com o claro intuito de enganar, quer seja obra de “fanáticos ingênuos”, porque eles iriam rechear o conteúdo com personagens que de fato existiram, e eram bem conhecidos no mundo romano, que poderiam facilmente desmoralizar o “embuste” ou a “fantasia”? É obvio que o senso de objetividade histórica e relato fiel dos fatos era um conceito estranho para eles, mas tudo indica que os evangelhos e as cartas foram escritos com uma clara intenção de narrar fatos realmente acontecidos.
 4 – outra fonte que confirma a nossa crença atual na realidade desses fatos são os escritos dos Santos Padres, personagens importantes da história da Igreja nascente, homens de grande cultura e discernimento, cujas citações dos evangelhos canônicos são tão abundantes, que, diz-se, se os evangelhos todos se perdessem, seria possível reescrevê-los só ajuntando as passagens citadas por esses homens.

https://www.lds.org/scriptures/bc/scriptures/nt/matt/27/images/057-057-TheCrucifixion-full.jpg?download=true
www.lds.org/

5 – outro argumento fortíssimo que se pode aduzir sobre a historicidade dos evangelhos, e ao mesmo tempo ao caráter maravilhoso e único da religião cristã, é a própria natureza dos fatos ali relatados, quando comparados com a biografia de fundadores de outras religiões. A história de Jesus é, fundamentalmente, a história de um fracasso, o mais retumbante da história. Jesus é um fracassado por excelência, ou como dizem os americanos: um perdedor nato – embora, ironicamente, ele não cesse de ser usado pelos falsos profetas de religiões de “resultado”. Entretanto, é justamente sobre ele que se assenta o movimento e a estrutura religiosa mais consistente, volumosa e duradoura, até hoje. Quem, em sã consciência, iria criar uma religião baseada em um mito tão derrotado quanto este? (4) Ao aplicarmos a forma mais elementar da lógica humana seremos obrigados a aceitar que os fundadores do cristianismo resolveram, sabe-se lá porque razão, inventar quatro manuais para uma religião inviável, ou seremos obrigados a, usando novamente a lógica humana, reconhecer que estamos diante de um fato que supera, em muito, a mais complexa e refinada expressão dessa mesma lógica. Como, aliás, já havia notado um dos fundadores da Igreja, Paulo, em 1 Cor 1,25.
Contra a tese de que os relatos sobre a vida de Cristo e as verdades essenciais ao cristianismo foram criadas por padres e monges, no fim da Antiguidade e começo da Idade Média, há o testemunho de Paulo, em algumas de suas sete cartas reconhecidas e datadas com certa precisão, a saber: 1 Tessalonicenses (ano de 51), Filipenses (52-54), Filemon (52-54), 1 Coríntios (53-54), Gálatas (55), 2 Coríntios (55-56) e Romanos (55-58), nas quais ele fala sobre acontecimentos da vida de Jesus e de crenças anteriores ao seu apostolado, que já eram artigo de fé junto às primeiras comunidades cristãs. Em 1 Cor 15,3-5 ele diz: “Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi. Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze”. O primeiro Credo cristão, anterior à conversão de Paulo!
Seja como for, se aplicarmos ao conjunto dos personagens e fatos históricos da Antiguidade, e mesmo da História Medieval ou Moderna, os mesmos critérios que esses “céticos” inventaram para justificar sua descrença na historicidade de Jesus, então teríamos que cancelar quase toda a história do mundo conhecida até hoje. Isso não é razoável nem... científico.

O testemunho de Mara bar Serapion

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjMGw43bGT2-q5ADnYQJHZg4bOkzj9ZeYgsVqTLZWKhUcIdO1tSD-6TXsRxdEPuYEtr63QGEsBVMF9hmbRJZh5VbO6WmB-DrZwCVm5ucicEsYR2GFP-fmPCvB-ZiZdIBRiBav7yLQI9_FE/s1600/crucifiction+of+Yahshua+-+jews+say+crucify+him.jpg
http://truthseeker-archive.blogspot.com.br/

Em 1843, o padre anglicano e pesquisador inglês Henry Tattam, comprou de um mosteiro copta, do deserto da Nitria, no Egito, um antigo manuscrito que, traduzido, causou furor. Nesse manuscrito um homem chamado Mara bar Serapion, de origem assíria, natural da cidade de Samosata, na Ásia Menor, atual Turquia, passando por uma terrível situação, exilado de sua pátria pela intervenção de uma força estrangeira, escreve uma mensagem de alento ao seu filho, Serapion, citando exemplos de desventuras de homens célebres, como Pitágoras, Sócrates e o misterioso “rei sábio dos judeus”. Pelas informações contidas na carta deduz-se que ela foi escrita ou em 73, ou em 161-162, ou ainda em 256, sendo que a maioria dos estudiosos, e o próprio texto da carta, induzem muito fortemente à primeira data. A parte que fala de Jesus diz o seguinte:
Que vantagem obtiveram os judeus quando condenaram à morte o seu rei sábio? Depois desse fato o seu reino foi abolido [deve se referir à guerra de 66-73]. Deus, com justiça, vingou aqueles três homens... Sócrates não morreu definitivamente: continuou vivendo nos ensinamentos de Platão. Pitágoras não morreu: continuou vivendo na estátua de Juno [?]. Nem tampouco o rei sábio morreu verdadeiramente: continuou vivendo na nova lei que deixou” (tradução da Wikipedia em espanhol).
Com certeza ele não era nem judeu nem cristão, talvez um pagão com simpatias pelo monoteísmo. Da mesma forma não há qualquer indício de que ele estivesse mancomunado com os fundadores do cristianismo, para fabricar um falso elogio a Jesus.

O Testemunho de Flávio Josefo

Tito Flavio Josefo, é o nome latino do judeu José ben Matatias, de família sacerdotal, e um dos líderes da revolta contra os romanos de 66 a 73. Aprisionado pelos romanos no início da guerra, graças a sua grande cultura é levado para Roma e ganha as graças do imperador Tito, vindo a ser por este adotado. Em Roma ele escreveu alguns livros que sobreviveram ao tempo, e que são as únicas fontes conhecidas, completas, dos acontecimentos que intermediaram o Primeiro e o Segundo Testamento, principalmente sobre o que ocorreu na Palestina durante a revolta acima citada. Josefo foi odiado pelos judeus de seu tempo, e nos séculos seguintes, sendo tratado como um traidor por eles, mas isso não o impediu de fazer uma história de alto nível até sua morte, em 101, na capital do império.
No livro 18, capítulo 3,3, de seu livro Antiguidades judaicas, escrito no ano de 93, ele se refere a Jesus nos seguintes termos: “Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio, se é que é correto chamá-lo homem, já que realizou milagres muito impressionantes, um mestre para os homens que recebem a sua mensagem com alegria, e trouxe, após si, muitos discípulos judeus, e muitos gentios também, pois era o Cristo. Quando Pilatos, diante da denúncia de nossos principais, o condenou à cruz, aqueles que o haviam amado anteriormente não o abandonaram, já que lhes apareceu vivo novamente três dias depois, conforme essa e outras maravilhas que já haviam sido previstas sobre Ele pelos santos profetas. A tribo dos cristãos, chamados assim por causa Dele, não há cessado de crescer” (Wikipedia em espanhol – Testimonio flaviano).
Os estudiosos. Comparando os diversos exemplares que sobraram da obra de Josefo, e o fato de ele ser judeu, consideraram mais prudente aceitar que as partes em negrito são, na verdade, adições ou interpolações feitas por escribas cristãos, muito depois, sobre o original. O problema é que o pesquisador israelense Shlomo Pines descobriu, em 1971, uma versão antiga da História do Universo, do bispo egípcio Agápio, do século X, que reproduz o mesmo trecho de Josefo, com muito pouca diferença, de sorte que boa parte do material considerado interpolação ou adição posterior, ao que tudo indica, fazia parte da obra original, embora com menos entusiasmo (veja-se o verbete Testimonio flaviano na Wikipedia em espanhol).
No livro 20, capítulo 9,1, ele menciona indiretamente a Jesus quando relata a morte do apóstolo Tiago Menor, um dos famosos “irmãos de Jesus”, da seguinte maneira:
Ananias [provavelmente o filho daquele mesmo que ordenara a agressão a Paulo, em At 23,2] era um saduceu sem alma. Convocou astutamente o Sinédrio num momento propício. O procurador Festo havia falecido, e o sucessor, Albino, ainda estava a caminho. Fez com que o Sinédrio julgasse a Tiago, irmão de um certo Jesus, e a alguns outros. Os acusou de haver transgredido a lei e os entregou para que fossem apedrejados” (idem).
Essa passagem é interessante, pois é a única que narra, fora da Bíblia, a morte de um discípulo próximo a Jesus, por alguém de fora do contexto bíblico e da |Igreja, mas ela traz alguns problemas:
Primeiro: no livro Guerras judaicas, escrito entre 75 e 79, Josefo trata Ananias como um homem “prudente”. Por que teria mudado o seu julgamento? Alega-se que ele pode, entre os 20 anos que separam as duas obras, ter acessado a outras fontes que o fizeram mudar de parecer.
Segundo: a forma um tanto distante e indiferente com que cita o parentesco entre Tiago e Jesus, que esvazia o tom relativamente entusiástico de 8,3,3. Até parece que o Jesus, a que se liga Tiago, não é o mesmo citado no livro 8.
Entretanto não dá para negar que a forma como Ananias consegue reunir e manobrar o Sinédrio, claramente perceptível do texto, confirma muito do que os Evangelhos narram sobre o julgamento de Jesus, e das denúncias de Atos e das cartas paulinas sobre a perseguição intensa e mortal que os judeus, na época, moveram contra o cristianismo nascente.

Testemunhos Romanos

Por volta do ano 100 e 112, Caio Plinio Cecilio Segundo, ou Plínio o Jovem, na condição de legado, representante do Imperador, na Bitínia, escreveu para o imperador Trajano uma carta, que foi preservada, onde pede conselhos sobre como lidar com os cristãos e faz uma breve alusão de medidas que já teria tomado contra alguns deles: “...e que, além disso, [esses ex-cristãos] maldisseram a Cristo... todos estes veneraram a tua imagem e a efígie dos deuses e maldisseram a Cristo... [revelaram] que acostumavam reunir-se pela manhã e que cantavam um hino a Cristo, quase como a um Deus” (traduzido de Fuentes de la historicidad de Jesús – Wikipedia em espanhol)
O historiador romano Cornélio Tácito, em seu livro Anais, escrito lá por volta de 116-117, dá as seguintes informações sobre os cristãos: “Portanto, cessando os rumores, Nero prendeu aos réus e os submeteu a penalidades e investigações, por causa de suas ofensas ao povo, que os odiava e lhes chamava “cristãos”, nome que tomam de um tal Cristo, que na época de Tibério foi justiçado por Poncio Pilatos. Reprimida por um momento, a fatal superstição irrompeu de novo, não só na Judeia, de onde provém o mal, senão também na capital [Roma], onde todas as atrocidades e vergonhas do mundo confluem e se celebram” (idem).
O historiador Gaio Suetonio Tranquilo escreveu por volta de 120-121, em seu livro As vidas dos doze césares, a seguinte passagem referente ao governo de Cláudio (41-54): “aos judeus, instigados por Chrestus, expulsou-os de Roma por suas contínuas revoltas” (idem).
Nessa passagem há uma certa contradição, entre outras, como a da data do ocorrido (41 ou 49-50?). Além disso, o nome “chrestus” pode tanto ser uma corruptela de “Cristo” como pode estar sendo usado no sentido coloquial romano de “zé povinho” ou “pobre coitado”, algo que ganha crédito quando se considera que o cristianismo era muito popular entre os escravos, mas a ligação destes com os judeus parece apontar para o primeiro sentido – pode aludir a desentendimentos entre cristãos e judeus por causa de Cristo, o que reforça a tese de um conflito precoce entre as duas comunidades.
Suetonio, porém, volta a falar dos cristãos durante o reinado de Nero: “Sob o seu reinado, foram reprimidos e castigados muitos abusos, ditando-se regras muito severas... Nero infringiu suplícios aos cristãos, um gênero de homens ligados a uma superstição nova e maligna” (idem).
O famoso escritor satírico Luciano de Samosata, que morreu em 180, e que escreveu um livro chamado A morte de Peregrino, referente a um suicídio ocorrido em 165, durante uma olimpíada, que ele abominou. Nesse livro ele aproveita para espicaçar os mais famosos suicidas do momento, na visão dele: os mártires cristãos. “Os cristãos, como você sabe, adoram um homem que se tornou vonhecido nos dias de hoje, que introduziu novos ritos e foi crucificado por causa disso... essas pobres criaturas enganadas acreditam que são imortais... acreditam, segundo o ensinamento de seu pregador, que são todos irmãos, desde o momento em que se convertem... adoram o sábio crucificado, e vivem sob sua lei... eles desprezam todos os bens materiais, e os consideram como propriedade comum...” (tradução de Passing of Peregrinus – Wikipedia em inglês). Em tom de deboche, Luciano confirma, de uma só vez, dados sobre a vida de Jesus, sua doutrina e até uma passagem de Atos dos Apóstolos, 2,44-45.
Celso, só se sabe esse nome dele, foi um filósofo grego que escreveu no final do século II, um longo e relativamente bem pesquisado ataque contra os cristãos, resultado de suas pesquisas tanto entre os cristãos como entre os judeus, no qual desfere ataques e calúnias arrasadores: Cristo seria filho ilegítimo, nascido de um adultério, que ele teria ido ao Egito para lá aprender magia e tornar-se um feiticeiro e, por meio de truques, enganar os incautos e fazendo-os acreditar em sua divindade, entretanto, por razões “lógicas” a sua morte na cruz invalidaria qualquer pretensão a sua origem divina e sua ressurreição não passa de um absurdo propalado por seus discípulos. É um ataque feroz, arrasador, que tenta denegrir ou distorcer tudo o que os evangelhos falavam sobre Jesus, mas que em nenhum momento diz, ou pretende que as pessoas creiam, que este nunca existiu (5).

Testemunho dos Judeus

https://iamachild.files.wordpress.com/2011/05/the-lesson.jpg
iamachild.wordpress.co

É muito difícil fazer esse levantamento, uma vez que nunca gouve um diálogo minimamente construtivo e desapaixonado entre cristãos e judeus nos primeiros anos do cristianismo, e nos séculos seguintes, que gerasse alguma literatura mais consistente ou imparcial, além dos inúmeros atos de intolerância mortais, de ambas as partes, que não autorizam ninguém a disparar, sem reflexão, a pecha de “antissemitismo” ou de “conspiração judaica”, como fazem os criminosos dos sois lados. Além disso houve a destruição de muitos documentos e testemunhos judaicos, tanto nas guerras de 66-73 e 132-136, que arrasaram a Palestina e espalharam os judeus pelo mundo, como nos inumeráveis confrontos que os opuseram aos cristãos ao longo da história.
As evidências que hoje sobraram estão presentes em algumas cópias tardias do Talmud (6), uma coletânea de ensinamentos judaicos, que fazem menção a um certo Yeshu, que muitos viram, ao longo da história, como uma referencia a Jesus de Nazaré, ao qual os judeus afixaram as mais horrorosas atitudes e mais pérfidos defeitos pessoais. Não só ele como seus próximos.
Primeiro ele teria nascido de um adultério – uma provável alusão ao seu nascimento singular? – filho de um soldado romano – alusão à recusa de Cristo em assumir um messianismo político ou dos cristãos em pegar em armas contra os romanos, nas revoltas acima referidas? – era um feiticeiro que realizava maravilhas ou truques – alusão às suas curas e milagres? – que desencaminhava o povo judeu de sua religião – alusão à nova religião fundada em seu nome? – que foi pendurado na véspera de uma páscoa – embora no texto talmúdico se afirme que lhe foram dadas todas as condições de um julgamento justo, inclusive durante 40 dias pregoeiros teriam sido enviados as ruas de Jerusalém, atrás de alguém que soubesse de algo de bom sobre ele, para salvá-lo da execução, e, em vista de ninguém ter se apresentado, foi executado junto a cinco companheiros (alusão aos outros discípulos de Jesus executados após ele como Estevão, Tiago Maior e Tiago Menor?) – e que finalmente já morto, numa aparição a um filho de um imperador romano, reconhece a superioridade espiritual de Israel, enquanto revela que está no inferno... num poço de fezes ferventes.
Essas alusões acabaram sendo reforçadas, séculos mais tarde num livro chamado Sefer Toledot Yeshu (Livro das gerações, vida de Jesus), um livro anônimo, cujo manuscrito mais antigo data do século 11, mas que se refere a acontecimentos litúrgicos cristãos originados no século IV, supostamente compilados entre os séculos VI a IX, num ambiente de escrita aramaica, cujo conteúdo é uma grotesca paródia dos evangelhos, baseada nos trechos do Talmud acima (nascimento de um adultério, prática de magia, indução a heresia, sedução de mulheres – alusão à “liberdade” que ele dava às mulheres [episódio da samaritana, defesa da adúltera, convivência com Marta e Maria, etc.]? -  e morte infamante).
A esses elementos é bom ressaltar que os modernos comentadores judeus afirmam que esse Yeshu do Talmud não seria o mesmo Jesus de Nazaré dos cristãos, sequer uma única pessoa, mas diversos personagens, talvez até simbólicos, fictícios, embora reconheçam que o termo “Yeshu” pode ser a transliteração do nome de “Jesus”, que conhecemos, mas que os rabinos atuais preferem designá-lo pela forma mais tradicional, Yeshua. Quanto ao Toledot Yeshu, hoje, está totalmente desacreditado e não é mais considerado, como no passado, um documento oficial da sinagoga a respeito de Jesus e de sua Igreja. Não há porque se estressar por causa disso (7).
E mais uma vez, aqueles que no passado mais interesse tinham na inexistência de Jesus e do cristianismo, fossem judeus ou pagãos, a ponto de agredi-lo ferozmente, jamais chegaram a negar a sua existência histórica, o que seria excelente para ridicularizar os cristãos.

O Testemunho da Arqueologia

Não bastasse o testemunho dos antigos, começam a aflorar da terra vários testemunhos, que vêm reforçar a exatidão, a historicidade, das informações contidas nos evangelhos. Os mais importantes são os seguintes:
A Pedra de Pilatos: uma pedra de calcário, de 82 x 65 cm, encontrada nas ruínas do teatro da cidade de Cesareia Marítima, mandada construir por Herodes o Grande entre 22 a.C. e 10 d.C. Nessa pedra, descoberta por uma equipe de arqueólogos italianos, comandados pelo professor Antonio Frova, em junho de 1961, aparece a seguinte inscrição dedicatória, em letras maiúsculas, dispostas em 4 linhas: DIS AUGUSTIS TIBERIEUM – PONTIUS PILATUS – PRAEFECTUS IUDAEAE – FECIT DEDICAVIT (a parte da inscrição em negrito é legível hoje em dia, o resto foi danificado). Essa pedra acha-se hoje no Museu de Israel.
A Tumba de Caifás: descoberta acidentalmente, em 1990, por trabalhadores que escavavam um caminho para um parque no Vale da Geena, ao sul de Jerusalém, nessa tumba se encontrou 12 ossuários, contendo os restos de 63 pessoas, um dos quais, do primeiro século de nossa era, era caprichosamente decorado e continha a inscrição “José filho de Caifás” (da família Caifás) – esse era o nome completo de Caifás, segundo o historiador judeu Flavio Josefo – escrito em aramaico, além dos ossos de um homem de 60 anos.
O Túmulo de Zacarias: há um monumento, com o telhado em forma cônica, no Vale do Cedron, que era uma sepultura tradicionalmente atribuída ao filho rebelde de Davi, Absalão, que viveu no século X a.C. – durante séculos os moradores locais costumavam levar seus filhos para apedrejar o monumento, e ensiná-los sobre o triste fim dos filhos desnaturados. Pesquisas recentes, entretanto, indicam que esse monumento, na verdade, data do século I d.C., e em 2003, foi achada uma inscrição bizantina, do século IV, contendo a seguinte mensagem: “este é o túmulo de Zacarias, mártir, santo sacerdote, pai de João”.
Sobre Zacarias, pai de João, existe uma tradição antiga, narrada pelo evangelho apócrifo de Tiago, o Protoevangelho de Tiago, que diz que Zacarias foi morto por se recusar a entregar João, durante o célebre episódio (verídico?) da matança dos inocentes. A inscrição indica que ele era sacerdote, como aparece em Lc 1,5, e que foi morto por causa da fé. “Mártir”. Outra inscrição antiga, também encontrada em 2003, aponta aquele lugar como sendo a tumba de “Simeão, que foi um homem justo e um ancião devoto, que esperava a consolação do seu povo”, que reproduz quase literalmente a Lc 2,25 . Isso cria um impasse, pois o compartilhamento de túmulos não é habitual, podendo se tratar de uma confusão ou de uma pedra deslocada de outro lugar, já que a região foi muito modificada.
O Ossuário de Tiago (Jacob): em outubro de 2002, um programa de televisão, patrocinado pelo Discovery Channel e a Biblical Archaeology Society, anunciou que um engenheiro israelense, Oded Golan, comprara, no mercado negro, um ossuário, datando do século I, que continha a seguinte inscrição em aramaico: “Jacob (Tiago), filho de José, irmão de Jesus”. Seria o primeiro artefato arqueológico ligado diretamente ao círculo próximo de Jesus. Imediatamente as autoridades israelenses entraram no circuito, e declararam que as inscrições não eram autênticas, seriam de uma data muito posterior à do ossuário, e acusaram a Oded Golan de 44 crimes de forjicação, fraude e comércio ilegal de artefatos arqueológicos – Oded foi condenado por comércio ilegal de antiguidades e absolvido das outras acusações, mas o curioso é que o juiz israelense fez questão de ressaltar que o seu veredito, favorável a Golan, não era um reconhecimento da autenticidade da inscrição, como se isso tivesse que passar por uma autoridade judiciária, não especializada no assunto! Isso aconteceu em 2012. Não foi a toa que alguns acadêmicos viram nisso tudo uma tentativa, espúria, não científica, de invalidar a descoberta e começaram a clamar por análises externas, “imparciais”. De fato, os testes posteriores, feitos fora de Israel, com os equipamentos e métodos mais modernos, apontaram, até 2015, para a autenticidade da inscrição, enquanto a Revista de Arqueologia Bíblica, americana, fez uma análise estatística, apontando a probabilidade de existir apenas 1,7 pessoa na Palestina, no século I, que reunia ao mesmo tempo as duas características constantes da inscrição. Algo entre 85 e 90% de chance de ser o Tiago dos evangelhos.

Notas

(1) Esse curioso personagem era um filósofo grego, neopitagórico, que, embora nascido em uma família riquíssima, abriu mão de tudo, em favor de seu irmão, e foi levar uma vida errante e pobre, com o intuito de aprender e ensinar a sabedoria aos outros. Uma novo Sócrates. Foi contemporâneo de Jesus, vivendo entre 15 e 100 d.C., e, pelo que se conta dele, em relatos repletos de acontecimentos miraculosos, foi uma criança prodígio, além de assumir ainda em tenra idade um vegetarianismo estrito, por amor aos animais. Conta-se que esteve na Índia, onde aprendeu a antiga sabedoria local, perceptível em algumas de suas sentenças conservadas, e viajou por vastas áreas Oriente Médio e por quase toda Europa não “bárbara”. Foi conselheiro de vários reis e imperadores romanos, sendo por um destes, Domiciano, preso, humilhado e desterrado em Éfeso, onde morreu. Muito admirado pelos seus contemporâneos, foi equiparado por alguns a Cristo, causando uma forte reação de membros clero, que o acusaram de pacto dom o demônio. Para que se tenha ideia melhor do espírito que animava Apolônio, reproduzo uma anedota preservada em sua biografia: Certa vez, o rei da Babilônia perguntou-lhe como deveria punir a um escravo, que fora pego em amores com uma de suas concubinas: “Deixando-o vivo”, respondeu, “pois se vive, seu amor será o maior dos suplícios” (traduzido da Wikipedia em espanhol – Apolonio de Tiana). Usar do amor, como forma de tortura! Jesus jamais faria isso!

(2) Quem quiser observar uma lista bem completa deles recomendo os seguintes verbetes da Wikipedia em inglês: List of New Testament latin document, List of New Testament lectionaire, List of New Testament minuscules (é tão vasto que engloba três verbetes), List of New Testament uncials, List of New Testament papiry. Nessa pesquisa o leitor poderá ver e se certificar, inclusive, da grande mentira de Dan Brown, contida no Código Da Vinci, de que a Igreja Católica, aproveitou o seu controle sobre as cópias mais antigas das Sagradas Escrituras para manipular o texto dos evangelhos, pois a vastíssima maioria desses documentos não está no Vaticano! Para se ter uma ideia sobre o quão recente e vertiginosa foi a descoberta desses documentos, desqualificando completamente a suposição de Bauer e seguidores sobre a inexistência de provas arqueológicas sobre os evangelhos, considere-se que em 1900 só eram conhecidos 9 papiros com inscrições dos evangelhos, hoje, 2015, são 131! E cada ano se descobre mais!

(3) Os céticos gostam de citar a contradição entre os evangelhos de Lucas e de Mateus uma vez que o primeiro cita o nascimento de Jesus no tempo do procurador Quirino, na Síria, e o segundo coloca-o no tempo de Herodes, sendo que o Herodes histórico morreu, segundo o que se sabe, uns quatro anos antes de Quirino ser nomeado procurador. A questão do censo, de fato, está em aberto, uma vez que são conhecidos apenas três censos gerais ordenados por Augusto, a saber: em 28 a.C., em 8 a.C., e 14 d.C. o de 28 é muito antigo, e o de 14 muito recente; o de 8 é o que mais se adéqua, mas nesse período a Judeia era considerada um reino aliado, governado ainda por Herodes o Grande, de sorte que os romanos não iriam intervir assim tão ostensivamente, uma vez que o principal objetivo desses censos era a arrecadação de impostos. Seja como for essa citação se refere aos relatos do nascimento de Jesus, que usam muito de um estilo antigo de contar história chamado midraxe – o midraxe “é um comentário ou uma explicação de caráter homilético... com o objetivo bastante amplo de tirar delas [das narrativas da Bíblia] lições edificantes... o sentido literal [que é o cerne do moderno conceito de objetividade, de prova documental] é um conceito que não se encontra nem entre os escritos rabínicos nem nos escritores bíblicos. O midraxe visa a encontrar o máximo de exemplos edificantes: é uma meditação sobre um texto sagrado ou uma reconstrução imaginosa sobre o lugar e o episódio narrado [que de fato aconteceu]” (McKenzie; 2003; p 609). Em outras palavras; o midraxe é uma moldura espetacular envolvendo uma tela, por vezes, muito simples, mas que existe e justifica a moldura. McKenzie também chama a atenção para o caráter midráxico do Evangelho da Infância de mateus e Lucas, onde “com base em uma breve memória autêntica dos fatos, o relato é completado com uma antologia de citações extraídas do AT e apropriadas ao nascimento do Messias” (idem; p 610). Sem falar que o nascimento em si de Jesus, é irrelevante para a natureza de sua missão, tanto que é omitido em dois evangelhos (serve muito mais para realçar o papel de outros personagens bíblicos como João Batista, Maria, José, etc.).

(4) Compare-se a biografia de Jesus com a de outros grandes reformadores e criadores de religiões do passado, como Zoroastro, Mani, Buda, Mahavira, etc. Todos eles homens nobres, príncipes, ricos, enfim de estirpe ou qualificação social “superior” à do homem comum, que, mesmo sofrendo dificuldades no início de sua trajetória, venceram no final e se tornaram pessoas respeitadas e admiradas no seio seu povo, quando ainda eram vivos – nesse sentido podemos incluir Abraão, Moisés e Mohammed. Mesmo aqueles que acabaram mal, como Pitágoras, Sócrates, e Apolônio de Tiana, conheceram momentos de glória ou morreram cercados por amigos dedicados. Cristo, nem isso! Que loucura ou que delírio levaria alguém, ou um grupo, a inventar um reformador religioso nascido numa aldeia insignificante, de um pequeno reino, trabalhador manual, que vivia errante, que foi rejeitado por seu povo, cuja salvação era o objetivo primeiro de sua missão, e no final morreu como um criminoso, com uma descrição pormenorizada de todas as infâmias que sofreu, sem falar do “absurdo” da ressurreição, arrematando tudo?

(5) A obra de Celso perdeu-se. O que hoje nós temos dela são trechos citados por autores cristãos, em especial por Orígenes, que escreveu uma resposta a esses ataques chamada Contra Celso, mas para quem quiser saber mais recomendo o verbete Celso (filosofo) – Wikipedia em italiano e o seu análogo em espanhol. No endereço a seguir há um bom comentário sobre o discurso de Celso, em espanhol: http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S0049-34492004000200005&script=sci_arttext#2

(6) O Talmud, termo que em hebraico quer dizer “instrução, aprendizagem” é uma compilação de trechos de ensinamentos de rabinos mais conhecidos, versando sobre a lei, os costumes, tradições, histórias, aforismos e parábolas, que, ao longo dos séculos, formaram verdadeiras enciclopédias do saber religioso judaico, com algumas passagens verdadeiramente preciosas, devido ao seu elevado conteúdo ético-moral, e outras nem tanto. Essa coletânea foi sem dúvida uma sacada genial dos antigos judeus, uma vez que estes perceberam que só por meio dela poderiam preservar a essência da sua cultura, enquanto uma nação espalhada pelo mundo – é o exemplo mais cabal da cultura e do conhecimento salvando uma a vida de uma nação inteira, de onde o seu empenho metódico, heroico, e às vezes comovente, em conservar, ler e estudar esses livros. A grande missão do pai e da mãe de família judeu. Existem duas versões do Talmud: a de Jerusalém e a de Babilônia.

(7) Mais informações nos verbetes Yeshu; Toledot Yeshu; Jacob the heretic; Jesus in the Talmud – na Wikipedia em inglês. Jacob l’heretic; Toledot Yeshou; Tiberius Iulius Abdes Pantera – Wikipedia em francês; Toledot Yesu – Wikipedia em italiano. Consultar também Jesus of Nazareth, na Jewish Encyclopedia, edição 1903, online, onde Jesus é apresentado como um homem normal, cujos feitos reais foram encobertos por lendas piedosas, morto por causa de problemas com os romanos e com o partido dos saduceus (pró-romano), uma vez que Jesus era um essênio...

Bibliografia

Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966;

McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.