HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – IV
Aproveito para agradecer às pessoas que no Brasil, Estados Unidos, Índia, Chile, Portugal, Espanha, Rússia e Ucrânia acessaram este blog nessas últimas semanas, espero que tenham encontrado algo útil para si, e espero continuar sendo útil. Desculpem-me se a edição nem sempre é boa. entendo pouco disso.
Aproveito para agradecer às pessoas que no Brasil, Estados Unidos, Índia, Chile, Portugal, Espanha, Rússia e Ucrânia acessaram este blog nessas últimas semanas, espero que tenham encontrado algo útil para si, e espero continuar sendo útil. Desculpem-me se a edição nem sempre é boa. entendo pouco disso.
rof
Eduardo Simões
Wadi
Qumran
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/c1/Kumeran4.jpg/290px-Kumeran4.jpg
Wikipedia
Em novembro de 1946, um pastor de
cabras jordaniano, Muhammed edh-Dib, e mais dois jovens, procuravam cabras
perdidas em meio a rochedos escarpados, no inóspito Wadi (vale) Qumran, quando
deram, acidentalmente, com grutas, caprichosamente ocultas pela paisagem, e,
procurando suas cabras em uma delas, acharam grandes potes de cerâmica, alguns
danificados, contendo vários rolos de pergaminho com uma escrita muito antiga.
Eles pegaram alguns e levaram para os seus parentes que, conhecedores do afã
dos estrangeiros por objetos como aqueles, mantiveram a descoberta em segredo e
começaram a vender aquilo que retiravam da gruta. Para aumentar os lucros eles começaram
a rasgar os pergaminhos encontrados e os venderam aos poucos. E assim foi até
fevereiro de 1947.
Por acaso, alguns fragmentos foram
parar em mãos de especialistas conceituados como o padre francês Roland de Vaux
(1903-1971), diretor da conceituadíssima Escola Bíblica e Arqueológica Francesa
de Jerusalém, pertencente aos padres dominicanos, dos professores, especialistas
bíblicos e arqueólogos americanos John C. Trever (1916-2006), William F.
Albright (1891-1971), Ovid R. Sellers (1884-1875), etc., além do arqueólogo
israelense Eleazar Sukenik (1889-1953), que, em 1948, conseguiu convencer o
estado israelense a comprar todos os rolos que fossem postos à venda. Houve
então uma revoada de expedições arqueológicas ao local, e até 1956 mais dez
cavernas forma descobertas, e novos manuscritos foram achados – ao todo uns 870
rolos, dos quais 220 bíblicos, divididos em milhares de fragmentos – enquanto a
situação política se deteriorava e a região experimentou o primeiro ciclo de
guerras árabes-israeleneses, entre maio de 1848 e março de 1949. À medida que
os rolos iam sendo datados e decifrados, muitos especialistas começaram a
clamar: “é a maior descoberta arqueológica de todos os tempos!”
Wikipedia
Com o avanço do racionalismo
iluminista do século XVIII, a Bíblia foi dissecada de alto a baixo sob o crivo
da razão científica, que não podia, naquele momento, chegar senão à conclusão
de que tudo não passava de um amontoado de lendas, mitos, histórias
fantásticas, para justificar a fé de mulheres, crianças e adultos fracos de
juízo, meras invenções, e até falsificações, de padres e monges medievais com o
intuito de facilitar o domínio intelectual que a Igreja Católica sobre a Europa
cristã. Muito provavelmente, diziam, a Bíblia que fora lida pelos judeus e por
Jesus já não era a mesma que se lia nos tempos atuais, tantos teriam sido os
acréscimos espúrios. Favorecia a essas concepções o fato de que os manuscritos
mais antigos que se conhecia da Bíblia Hebraica datavam da metade para o fim da
Idade Média.
Essa tese tão fácil sofreu seu
primeiro choque com a descoberta e classificação de documentos antigos, na
geniza da sinagoga do Cairo, por Solomon Schechter, um rabino e estudioso
inglês, no ano de 1896, de textos bíblicos datando dos séculos IX e X – geniza
é uma espécie de depósito onde os funcionários da sinagoga guardam documentos
deteriorados ou não mais em uso (1).
Ainda assim esses documentos distavam vários séculos do fim da ocupação judia
da Palestina. A dúvida, portanto, persistia: será que os padres mutilaram, e continuavam
mutilando, a Bíblia? Será que não foi por isso que, por muito tempo, eles, criaram
tantos empecilhos para a leitura livre da Bíblia?
Os primeiros trechos daqueles rolos,
chamados de Rolos ou Manuscritos do Mar Morto, uma vez que o
Vale de Qumran estava situado próximo a esse mar, que foram traduzidos pelos
especialistas, causaram furor: eram trechos do livro de Isaías, mil anos mais
antigos que qualquer outro manuscrito bíblico conhecido!
Estávamos de volta à era de Jesus!
O
Testemunho de Flavio Josefo
http://www.virtualqumran.com/photos/Fort_3_1000.jpg
http://www.virtualqumran.com
O potencial arqueológico da região era
conhecido desde o século XIX, quando o arqueólogo francês Felicien de Saulcy
(1807-1888) pesquisou a área em torno de um cemitério antigo, em 1851. Cinco
anos depois foi a vez do reverendo anglicano e orientalista inglês Albert
Isaacs (?), que visitou algumas ruínas próximas, e chegou à conclusão que se
tratava de uma pequeno posto de guarda com uma cisterna. Entre 1900 e 1901, o
estudioso inglês William G. Masterman (?) esteve diversas vezes no local, e
também acabou convencido que se tratava de uma pequena fortaleza, embora ela destoasse,
pela sua pequenez, do cemitério próximo,
que suporia uma guarnição muito grande para o tamanho do forte. O pastor
luterano Gustaf Dalman (1855-1941), visitou o local em 1914 e chegou a
conclusão que as ruínas em Qumran eram de um pequeno forte ou de uma cidadezinha,
e assim por diante. Havia, entretanto um mistério que se arrastava desde a
Antiguidade: uma seita judia misteriosa, que teria habitado nessa região, na
época de Jesus, e que escritores, como Plínio o Velho, Flávio Josefo, Filon,
Dion Crisóstomo e Epifânio de Ostia, chamavam de “essênios”. Entre esses
autores o mais abalizado é o judeu Flávio Josefo, que, segundo alguns, chegara
a viver três anos com um deles. As informações que Josefo nos passa sobre eles
são as seguintes:
1 – acreditavam com fervor na
Providência Divina, e tudo a Ela entregavam
2 – acreditavam na imortalidade da alma
e na premiação dos justos após a morte.
3 – levam oferendas ao Templo, mas
mantêm-se em áreas restritas, para não entrar em contato com pessoas impuras. Além
disso, são muito ritualistas – era proibido cuspir na frente ou à direita de
alguém – e rigoristas, às vezes até mais que os fariseus, na observação do
repouso sabático (toda comida era feita na sexta-feira e comida fria, para não
se acender um fogo, e nesse dia eles evitavam, inclusive, de defecar).
4 – possuem um elevado código de conduta
moral e os que cometem falta grave são punidos com a expulsão da comunidade,
condição esta que pode leva-los à morte pela fome, às vezes evitada pela
piedade dos outros. Os episódios de má conduta eram julgados por um tribunal de
cem membros, como juízes, e se a acusação fosse de falar mal ou blasfemar
contra o fundador da seita ou contra Moisés, a sentença seria de morte.
5 – dedicam-se exclusivamente à
agricultura, visto que praticam um vegetarianismo estrito, por respeito à vida
dos animais. Alguns viram nisso contato com seitas indianas;
6 – todo aquele que deseja entrar na
comunidade deve distribuir os seus bens entre os irmãos, de sorte que não há
entre eles distinção entre ricos e pobres. Antes de entrar, porém, o postulante
deve permanecer um ano onde sempre viveu, mas vivenciando as regras essenias,
para depois passar dois anos em observação, numa comunidade exclusivamente
essênia, antes de ser aceito – nesse momento o neófito faz um juramento de honrar
a Deus, de ser justo, não prejudicar a ninguém deliberadamente, de amar aos
bons e odiar aos maus e de obediência irrestrita aos seus superiores.
7 – aqueles que assumem posição de
autoridade juram não abusar dos subordinados, não procurar sobressair-se, amar
a verdade, reprimir os mentirosos, não ocultar nada aos membros da seita, mas
também nada revelar aos de fora, nunca praticar o latrocínio, honrar os livros
da Lei e o nome dos anjos (culto angélico?).
8 – embora não desestimem o casamento,
recomendam aos seus membros, (predominantemente homens) uma vida celibatária,
pois o matrimônio é motivo de disputa – aquele que deseja cassar deve submeter
sua noiva à prova na vida essênia por três anos. Adotam crianças alheias quando
ainda são maleáveis e aptas para receber os seus ensinamentos
9 – em hipótese alguma admitem a posse
de escravos por seus membros – a escravidão estimula a injustiça.
10 – consideravam o óleo um agente
contaminante. Se algum deles fosse umedecido por óleo devia esfregar
vigorosamente a parte atingida.
11 – tinham por hábito vestir branco, e
usavam suas vestes e calçados até ele ficarem completamente rotos, quando então
obtinham outros novos, por meio de troca direta, porque não aceitavam a mediação
de moeda em suas transações. Muito pudicos, homens e mulheres não se despem na
hora de tomar banho, e quando vão fazer alguma necessidade fisiológica,
costumam se afastar, cavar um buraco e se cobrir todo com um pano, para que os
céus não vejam a sua nudez.
12 – elegem administradores para cuidar
do patrimônio e dos ritos da comunidade.
13 – embora fossem contrários às
guerras, e se comportassem com neutralidade política ante o conflito
onipresente entre judeus e romanos, quando de viagem os essênios não carregavam
mantimentos ou vestes extras, mas levavam armas para se defender de
salteadores.
14 – São muito cautelosos com suas
palavras e evitam assuntos profanos.
15 – à mesa, nas suas comunidades, eles
se servem, após um sacerdote abençoar o alimento, em geral pão e vinho, e os
tomam em completo silêncio. Suas palavras devem ser poucas, diretas e dignas de
crédito. São proibidos de jurar.
Etc. (2)
O conjunto dessas informações, e outras
dos autores acima nomeados, fizeram surgir a hipótese, muitas vezes apresentada
com ares de verdade ou “revelação”, de que João Batista e mesmo Jesus Cristo
fossem essênios – essa, por exemplo, foi a tese logo abraçada pelo doutor
Sukenik, acima citado – ou tivessem sofrido, deles, influência decisiva...
desde que se ignorasse as diferenças gritantes.
Os
Testemunhos da Arqueologia e da História
http://www.virtualqumran.com/photos/Mill_1_1000.jpg
http://www.virtualqumran.com
Com a descoberta dos rolos, os
arqueólogos voltaram a atenção para as ruínas do pequeno “posto militar”,
Kirbeth (ruínas, em árabe) Qumran, trazendo á luz novas fundações ainda
soterradas, que pareciam apontar outra função para o edifício. Foram encontrados,
por exemplo, aposentos contendo diversas estruturas que pareciam mesas de
pedra, com diversos tinteiros nelas escavados, além de cacos de cerâmica contendo
nomes de pessoas. Definitivamente aquilo não era apenas um fortim militar. A
história mais provável para a ocupação de Qumran é a seguinte:
La por volta de 135 a.C., no tempo do
reinado de Jônatas Macabeu, um grupo de judeus piedoso migrou para essa região,
talvez fugindo da usurpação do sumo-sacerdócio feita por aquele, e, movido pelo
desejo de não se contaminar com tanto pecado, ocupou as ruínas de um velho
forte de fronteira, fazendo dele a sede do seu movimento – entretanto, embora
as pesquisas arqueológicas tenham expostos diversos aposentos onde eram
realizadas atividades diversas, tanto intelectuais como artesanais, não foi
encontrada nenhuma estrutura que propiciasse condições de moradia permanente, o
que faz alguns estudiosos defender a hipótese de que Kirbeth Qumran era uma
espécie de centro cerimonial, frequentado apenas para estudos e realização de
certas atividades e eventos festivos. E as pessoas que o utilizavam? Talvez
morassem precariamente nos arredores, habitando em tendas e até usando
esporadicamente as cavernas das redondezas.
Por volta do ano 100 a.C., a estrutura
é ampliada consideravelmente, o sistema de abastecimento de água aperfeiçoado e
ampliado. São construídas três enormes cisternas. Foi erguida uma torre maciça,
quadrada (como se vê na reconstituição acima), para proteger a entrada. Havia
salões amplos, com bancos pegados em cada lado das paredes, uma cozinha,
dispensa e vasilhames de cerâmica – até hoje foram encontradas sete grandes
cisternas e seis pequenas, mas a crença mais geral é que fossem apenas
depósitos de água, artigo raro, e não locais para abluções ou centros de batismo
(para que tanto poço batismal?).
Por volta de 31 a.C. a estrutura é
abalada por um terremoto, e retomada 27 anos depois, sendo toda restaurada.
Em 68, durante a Primeira Guerra
Judaico-Romana, a comunidade fica na zona de operação da 10ª Legião Fretensis,
ocupada em destruir meticulosamente qualquer foco de resistência judaica na
área. Houve confronto sério em Kirbeth Qumran: sinais de destruição e várias
pontas de flechas romanas foram encontradas no lugar, mas parece que os prédios
foram abandonados antes de um assalto final, que teria redundado numa
destruição muito maior.
Após a guerra, o local foi ocupado
provisoriamente por uma guarnição romana, até que foi definitivamente
abandonado, no final do século I, e tomado de vez pelas areias do deserto e do
tempo.
Quantas pessoas viveram em Kirbeth
Qumran, ou em suas imediações, na época dos essênios? Os especialistas se
dividem, mas o número mais aceito oscila em torno de 200, já o total dos
essênios, segundo Josefo, seria de uns 4.000, espalhados em diversos lugares e
cidades da redondeza.
Os
Manuscritos do Mar Morto
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5f/The_War_Scroll_-_Dead_Sea_Scroll.jpg
Wikipedia
Como dissemos acima, dentro das
cavernas foram encontrados vários manuscritos (textos escritos à mão, como era
comum na Antiguidade Ocidental), sobre suportes de papiro (um tipo de “papel”
feito do caule de uma planta nativa do Egito e do Sudão), pergaminho (outro
tipo de “papel” feito pele de animais como cabras, bois e ovelhas), além de uma
misteriosa chapa de cobre. O estado desse material era, na maioria das vezes,
lamentável, como vemos na foto acima, que mostra um trecho do chamado Manual da Guerra, enquanto que outros
estão mais bem conservados, como um rolo completo de Isaías, em meio a outros
fragmentos que mal chegam ao tamanho de uma unha humana.
http:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIUncPWMMb-FkfQb9j0p1LZsyIc-v8fpPqs3syDKU9zJ67Q_DhfCbRI40Doio9qJltbv3Oz4RaELd7cY1PYFs3KgABPBtsg22pCh7t_Fz7Ujtr5WKr4PxhfbtSgpNVo8Elth8wrvXfIoY/s1600/ScrollJars.jpg
http://exposing-religious-deception.blogspot.com.br/
Esse material estava acondicionado em
potes de cerâmica, com uma tampa, veja acima, alguns bastante arrebentados,
como se vê nas marcas do pote à esquerda. O uso desses potes para guardar
documentos e livros (rolos) era comum na antiguidade, pois eles faziam as vezes
de estante, e em Kirbeth Qumran foi encontrada uma olaria com inúmeros
fragmentos de potes como estes.
O primeiro manuscrito a ser traduzido
foi um rolo contendo o texto completo de Isaías, feito pela Escola Americana de
Estudos Orientais (3), e logo em
seguida vieram outros, como um manuscrito de Isaías todo fragmentário; um
comentário de Habacuc, faltando o capítulo 3, presente na Septuaginta; o Manual da Disciplina ou Regra da Comunidade que trata dos
deveres, obrigações e punições previstas para os membros da seita, e que
reflete um forte dualismo (bem x mal, filhos da luz x filhos das trevas) além
do papel destacado dos sacerdotes na comunidade; o Manual da guerra ou Regra da guerra
ou ainda Rolo da guerra dos Filhos da Luz
contra os Filhos das Trevas, onde se descreve um combate escatológico entre
os filhos da luz e os das trevas, com uma grande riqueza de detalhes – “o texto
descreve a estratégia, o armamento usado (funda, lanças, setas, arpões,
espadas, escudos), a organização militar (cavalaria, infantaria ligeira,
infantaria pesada)” (tradução da Wikipedia em francês – Règle de la Guerre). Segundo o mesmo texto na Wikipedia,, em inglês
o armamento e a disposição tática dos filhos das trevas lembram muito o
armamento e as táticas romanas, que são nomeadas por “kittim” – além de um
apócrifo do Gênesis, cheio de adendos fantasiosos (em estilo de midraxe).
Além dessas obras completas, ou quase,
foram encontrados fragmentos de todos os livros da Bíblia hebraica, exceto
Ester, além de Tobias e Eclesiástico, que não são aceitos nas Bíblias judaicas
contemporâneas. Foram encontrados livros apócrifos como Jubileus, Enoc, o
Testamento dos 12 Patriarcas, livros onde abundam descrições apocalípticas. Há
comentários a Isaías, Oseias, Miqueias, Naum, Sofonias e Salmos. Várias obras
dirigidas à organização da seita, textos litúrgicos e um misterioso rolo de
cobre, que contém, por meio de um código cifrado, indicações de onde encontrar
os tesouros ocultos da comunidade, que deixou os especialistas desconfiados,
afinal aponta para a existência de uma reserva secreta secreta de 200 t de ouro
e prata! Aliás, este não é o único documento escrito dessa forma, dando a
entender que havia um “culto do segredo” entre os autores desses manuscritos,
http://www.virtualqumran.com
Os fragmentos, apesar de milhares,
foram rapidamente reunidos e a tradução também não se fez esperar, no entanto uma
série de pendências de caráter judicial e político – o agravamento de tensões
no Oriente Médio e a Guerra dos Seis Dias (1967) – um caso de racismo, quando
o pesquisador americano, chefe da equipe que deveria publicar o texto dos
manuscritos, John Strugnell, declarou-se publicamente “antijudaico”, para não
falar da eterna disputa pelos direitos autorais... Assim o conteúdo que já
podia ter sido publicado no início dos anos 1960, só o foi no final do século.
No mundo acadêmico sério, os especialistas
estrilam e denunciam a demora para a publicação dos resultados das traduções,
como o pesquisador e teólogo anglo-húngaro Geza Vermes (1924-2013). Noutros
meios, menos sérios e mais propensos ao escândalo e ao sensacionalismo, começam
a se propagar boatos de que o atraso se devia a pressão do Vaticano, uma vez
que a publicação dos manuscritos revelaria segredos que poderiam acabar definitivamente
com o cristianismo, atingindo especialmente a Igreja Católica (4). Finalmente as traduções saíram e o
resultado foi sensacional, mas não na direção que supunham os sensacionalistas.
Controvérsias
No início, a quase totalidade dos
pesquisadores se inclinou à hipótese de que os rolos encontrados nas cavernas
estavam estreitamente ligados à gente que morara nas ruínas, mas com o passar
do tempo foi-se constatando a falta de elementos mais sólidos que ligassem os
rolos nas cavernas a Kirbeth Qumran, a exceção dos potes de argila, para
guardar os rolos, que, de resto, eram comuns em toda Palestina – os estudos
arqueológicos foram inconclusivos quanto a isso. O fato de serem encontrados
muitos cacos de cerâmica nas ruínas fez com que alguns pesquisadores
explanassem a tese de que ali apenas funcionava uma grande olaria.
Outra coisa que chamou a atenção foi
a enorme quantidade de moedas encontradas nas escavações: 1250, sendo 569 de
prata e 681 de bronze, que aponta para um fluxo normal. Muito alto, de moedas, incompatível
a uma comunidade apresentada como pobre e desprovida de ambição pecuniária, sem
falar de outros restos de alto valor na época, como vidro, encontrados no
lugar. Será que Josefo mentiu propositalmente sobre o ideal de pobreza do grupo
ou, enlevado pelo pouco que conheceu da seita, generalizou suas virtudes
precipitadamente. Outro problema trazido pelo estudo das moedas é sobre o ano
da destruição do local, tradicionalmente apontado como 68. Elas sugerem que a
destruição se deu no mesmo ano que a da fortaleza rebelde de Massada, que fica
ali perto, em 73. Por fim apareceram fortes evidências que boa parte das moedas
de prata encontradas lá são do século III, o que, aparentemente, contradiz a
tese original que o lugar foi abandonado ainda no século I.
Assim começam a pipocar teses apontando
outras finalidades para Kirbeth Qumran, que não um monastério essênio. Segundo
uns seria uma vila rústica, uma propriedade autossuficiente, pertencente a
ricos comerciantes, para outros seria uma espécie de centro comercial e para
outros seria uma espécie de prolongamento de Jericó, vila próxima, servindo
para produção sazonal de peles e cerâmica.
E os rolos encontrados nas cavernas?
Bem, em primeiro lugar não foi
encontrado neles nada parecido com o termo “essênio” (5), embora várias das regras e costumes nele relatados coincida com
as relatadas pelos escritores antigos acerca deles. A si mesmo eles davam o
nome de Yachad.
Como dissemos acima os relatos sobre
a Yachad confirmam muitas coisas que os escritores antigos disseram, mas
também, às vezes, os negam de forma cabal, o que, no caso de Josefo, cheira
mais a uma peça propagandística que num relato sóbrio, e em virtude disso
alguns estudiosos supuseram que os Yachad seriam uma espécie de seita saduceia,
tal o seu rigorismo legal, que também os aproxima dos fariseus, o que nos leva
a outra conclusão: o conjunto dos documentos está muito longe de ser homogêneo.
A falta de homogeneidade dos
documentos levou vários cientistas a defender a posição de que os rolos nada
têm a ver com Kirbeth Qumran, uma vez que o local das ruínas não é mencionado
em nenhum documento. A citação, ou as citações, podem ter se perdido, e aí é
muita falta de sorte. O certo é que nada foi encontrado, então, cientificamente
falando, hoje, não há qualquer relação entre os rolos e as ruínas.
Mas então, de onde vieram os rolos?
Alguns supõem que podem ser da biblioteca do próprio Templo de Jerusalém,
levada às pressas para Qumran, a fim de escapar da destruição. Outros afirmam
que seriam oriundos de várias bibliotecas particulares, o que explicaria melhor
a sua heterogeneidade. Outra explicação possível, muito difícil de ser aceita
hoje, é a de que o judaísmo no tempo de Jesus era, teologicamente, bem mais
flexível que o atual, e isso estaria consubstanciado naquela biblioteca, pelo
menos nos escritos de Yachad, onde partes da Bíblia hebraica foram encontradas
juntas com a Bíblia grega, a versão dos Setenta, ou Septuaginta, que hoje não é
aceita como canônica pelos judeus, mas que no tempo de Jesus aparentemente era.
Havia mesmo livros escritos em grego naquela biblioteca. Isso tudo veio a
reforçar a crença tradicional da Igeja Católica na canonicidade original da
Septuaginta, embora o argumento mais forte, sempre usado pela Igreja para
justificar a sua aceitação da versão ampliada dos Setenta, é que nos evangelhos
e nas cartas ela é muito citada por Jesus e pelos Apóstolos.
Resultados
Primeiro: a tradição bíblica ficou
mais confirmada do que nunca. Como dissemos antes, os iluministas puseram a
Bíblia sob o microscópio e assacaram contra ela as piores denúncias, de que não
passava de um livro de mitologias, no mesmo nível de uma Guerra de Troia ou
qualquer obra da literatura religiosa pagã da antiguidade, e que, com certeza,
a Bíblia que se lia na Palestina, até a destruição de Jerusalém pelos romanos,
nada tinha a ver com as Bíblias contemporâneas, uma vez que estas teriam sido
adulteradas irremediavelmente pelos padres, os guardiões das Sagradas
Escrituras no Ocidente. Pois bem, os textos bíblicos dos manuscritos de Qumran
são praticamente iguais aos da Bíblia de hoje e, portanto, nada substancial foi
modificado ao longo dos séculos, tirante os erros comuns a tiragens antigas feitas
à mão. A Bíblia hebraica, o Primeiro Testamento, que lemos hoje é similar ao
que era lido no tempo de Jesus, e a Igreja Católica longe de ser uma sociedade
secreta, cheia de falsificadores, embusteiros, a serviço do acúmulo de riquezas
mercantil, as mesmas que sobram aos seus inimigos, enquanto lhes falta a
riqueza moral, da qual a Igreja sobeja, quando colocada sob o crivo da
arqueologia, que aponta, nesse episódio, a Igreja como uma instituição
historicamente correta, verídica, que enaltece o gênero humano.
Segundo: a confirmação da tradição
bíblica reforça a historicidade do Primeiro Testamento e, de tabela, a do
Segundo, a dos evangelhos de Jesus, ainda mais porque as descrições dos
costumes judaicos, dos grupos religiosos neles retratados, encontraram a sua
confirmação nos rolos de Qumran. Mais pontos para a fidelidade histórica dos
escritores sagrados, e para a instituição que os preservou.
Terceiro, embora os textos se
estendam até o início dos anos 60, nenhuma menção foi encontrada neles a João
Batista, a Jesus ou aos cristãos, o que seria muito estranho se eles fossem
essênios, considerando que nessa época os cristãos já padeciam das sangrentas
represálias das autoridades tão desprezadas e odiadas pelos essênios ou pelos
Yachad, que também esperavam um messias... Na verdade dois messias, um político,
da casa de Davi, e outro religioso, da de Aarão, ao qual o primeiro estaria
submetido. Uma repercussão tardia da reação forte e duradoura ao movimento dos
Hasmoneus em se apossar do sumo sacerdócio, conforme já se sabia antes sobre os
essênios.
Nota
(1)
Segundo o verbete, Guenizah du Caire,
na Wikipedia em francês, “Como os judeus consideravam o hebreu a língua de
Deus, e o hebraico como a escrita Dele próprio, não era admissível destruir os
textos, mesmo após um longo tempo de inutilidade” (tradução livre). Na Geniza
do Cairo foi feita uma descoberta impactante: uma versão do Siracida, livro da Bíblia que os
católicos chamam Eclesiástico,
escrito na língua hebraica – os judeus, durante a difusão do cristianismo,
excluíram esse livro de sua Bíblia sob o pretexto de ele não ter sido escrito
originalmente em sua língua sagrada. Uma pergunta logo se fez ouvir: o que estava
fazendo, no depósito de uma sinagoga, um livro repudiado como não canônico, mas
transcrito em hebreu, considerando que seu original foi escrito em grego? A
solução encontrada foi a seguinte: ele era canônico para a comunidade judia do
Egito, mas não entre os judeus palestinenses.
(2)
Quem quiser saber o que Flavio Josefo falou sobre os essênios vá ao seguinte
endereço, em espanhol: http://www.geocities.ws/dodecaedro1/eseniosjosefo.htm
(3)
Encontrado na primeira cova (1Q), pelos beduínos, junto com outros seis rolos,
foi vendido ao metropolita (uma espécie de arcebispo) da Igreja Ortodoxa Síria,
Mar Samuel, que, transferido para os Estados Unidos, revendeu-o ao arqueólogo
israelense Yigael Yadin por US$250.000, e este os entregou ao Estado de Israel,
em 1954. Todos os documentos em posse de Israel estão hoje no chamado Santuário
do Livro, uma modernosa ala do Museu de Israel, em Jerusalém. Ele é o mais
completo e bem conservado rolo entre os 220 rolos bíblicos encontrados em
Qumran. A datação eletrônica do pergaminho oscilou entre 335 e 107 a.C.,
enquanto estudos paleográficos apontam os anos entre 150 e 100 a.C. para a
redação do texto – ou seja, esse manuscrito é 1.100 anos mais antigo que a mais
antiga cópia do mesmo texto conhecida no mundo até então: o chamado Códice de
Leningrado. O rolo é muito extenso e se compõe de 17 folhas de pergaminho
coladas, que se você quiser desenrolar, centímetro por centímetro, deve
recorrer ao seguinte endereço: http://www.imj.org.il/shrine_center/Isaiah_Scrolling/index.html
(4)
eu, que vivi esse tempo e posso atestar o quanto esses boatos eram impregnantes
e com uma formidável capacidade de propagação, ainda mais em um país onde a
grande maioria das pessoas ignora que o Vaticano não fica nos Estados Unidos e
que Israel não é um país católico, os dois países cuja intelligentsia universitária
controlava os estudos sobre os textos.
(5)
Segundo a Wikipedia o termo derivaria do grego “ossio” (santo, pio), uma
transcrição do hebraico “hassidim”, ou “hassideu”, com o mesmo significado, ou
ainda do arameu “hesé”. Nos documentos, o termo usado para designar a seita é
“Yachad”, que em hebraico quer dizer “juntos”, “unidos”, neste caso
“comunidade”. Ver http://bibliaparalela.com/hebrew/3162.htm
Bibliografia
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado
de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia
Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da
Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los
comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz
Bueno; Herder; Barcelona 1966;
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus;
São Paulo; 2003.
Recomendo
ainda os verbetes referentes a Qumran, Essenios, Rolos do Mar Morto, presentes
na Wikipedia em inglês e francês.
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