quarta-feira, 18 de novembro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – IV

Aproveito para agradecer às pessoas que no Brasil, Estados Unidos, Índia, Chile, Portugal, Espanha, Rússia e Ucrânia acessaram este blog nessas últimas semanas, espero que tenham encontrado algo útil para si, e espero continuar sendo útil. Desculpem-me se a edição nem sempre é boa. entendo pouco disso.

rof Eduardo Simões

         Wadi Qumran

         https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/c1/Kumeran4.jpg/290px-Kumeran4.jpg
         Wikipedia

         Em novembro de 1946, um pastor de cabras jordaniano, Muhammed edh-Dib, e mais dois jovens, procuravam cabras perdidas em meio a rochedos escarpados, no inóspito Wadi (vale) Qumran, quando deram, acidentalmente, com grutas, caprichosamente ocultas pela paisagem, e, procurando suas cabras em uma delas, acharam grandes potes de cerâmica, alguns danificados, contendo vários rolos de pergaminho com uma escrita muito antiga. Eles pegaram alguns e levaram para os seus parentes que, conhecedores do afã dos estrangeiros por objetos como aqueles, mantiveram a descoberta em segredo e começaram a vender aquilo que retiravam da gruta. Para aumentar os lucros eles começaram a rasgar os pergaminhos encontrados e os venderam aos poucos. E assim foi até fevereiro de 1947.
         Por acaso, alguns fragmentos foram parar em mãos de especialistas conceituados como o padre francês Roland de Vaux (1903-1971), diretor da conceituadíssima Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém, pertencente aos padres dominicanos, dos professores, especialistas bíblicos e arqueólogos americanos John C. Trever (1916-2006), William F. Albright (1891-1971), Ovid R. Sellers (1884-1875), etc., além do arqueólogo israelense Eleazar Sukenik (1889-1953), que, em 1948, conseguiu convencer o estado israelense a comprar todos os rolos que fossem postos à venda. Houve então uma revoada de expedições arqueológicas ao local, e até 1956 mais dez cavernas forma descobertas, e novos manuscritos foram achados – ao todo uns 870 rolos, dos quais 220 bíblicos, divididos em milhares de fragmentos – enquanto a situação política se deteriorava e a região experimentou o primeiro ciclo de guerras árabes-israeleneses, entre maio de 1848 e março de 1949. À medida que os rolos iam sendo datados e decifrados, muitos especialistas começaram a clamar: “é a maior descoberta arqueológica de todos os tempos!”

        
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5d/Solomon_Schechter.jpg
Wikipedia

Com o avanço do racionalismo iluminista do século XVIII, a Bíblia foi dissecada de alto a baixo sob o crivo da razão científica, que não podia, naquele momento, chegar senão à conclusão de que tudo não passava de um amontoado de lendas, mitos, histórias fantásticas, para justificar a fé de mulheres, crianças e adultos fracos de juízo, meras invenções, e até falsificações, de padres e monges medievais com o intuito de facilitar o domínio intelectual que a Igreja Católica sobre a Europa cristã. Muito provavelmente, diziam, a Bíblia que fora lida pelos judeus e por Jesus já não era a mesma que se lia nos tempos atuais, tantos teriam sido os acréscimos espúrios. Favorecia a essas concepções o fato de que os manuscritos mais antigos que se conhecia da Bíblia Hebraica datavam da metade para o fim da Idade Média.
Essa tese tão fácil sofreu seu primeiro choque com a descoberta e classificação de documentos antigos, na geniza da sinagoga do Cairo, por Solomon Schechter, um rabino e estudioso inglês, no ano de 1896, de textos bíblicos datando dos séculos IX e X – geniza é uma espécie de depósito onde os funcionários da sinagoga guardam documentos deteriorados ou não mais em uso (1). Ainda assim esses documentos distavam vários séculos do fim da ocupação judia da Palestina. A dúvida, portanto, persistia: será que os padres mutilaram, e continuavam mutilando, a Bíblia? Será que não foi por isso que, por muito tempo, eles, criaram tantos empecilhos para a leitura livre da Bíblia?
Os primeiros trechos daqueles rolos, chamados de Rolos ou Manuscritos do Mar Morto, uma vez que o Vale de Qumran estava situado próximo a esse mar, que foram traduzidos pelos especialistas, causaram furor: eram trechos do livro de Isaías, mil anos mais antigos que qualquer outro manuscrito bíblico conhecido!
Estávamos de volta à era de Jesus!

         O Testemunho de Flavio Josefo

         http://www.virtualqumran.com/photos/Fort_3_1000.jpg
         http://www.virtualqumran.com

         O potencial arqueológico da região era conhecido desde o século XIX, quando o arqueólogo francês Felicien de Saulcy (1807-1888) pesquisou a área em torno de um cemitério antigo, em 1851. Cinco anos depois foi a vez do reverendo anglicano e orientalista inglês Albert Isaacs (?), que visitou algumas ruínas próximas, e chegou à conclusão que se tratava de uma pequeno posto de guarda com uma cisterna. Entre 1900 e 1901, o estudioso inglês William G. Masterman (?) esteve diversas vezes no local, e também acabou convencido que se tratava de uma pequena fortaleza, embora ela destoasse, pela sua pequenez, do  cemitério próximo, que suporia uma guarnição muito grande para o tamanho do forte. O pastor luterano Gustaf Dalman (1855-1941), visitou o local em 1914 e chegou a conclusão que as ruínas em Qumran eram de um pequeno forte ou de uma cidadezinha, e assim por diante. Havia, entretanto um mistério que se arrastava desde a Antiguidade: uma seita judia misteriosa, que teria habitado nessa região, na época de Jesus, e que escritores, como Plínio o Velho, Flávio Josefo, Filon, Dion Crisóstomo e Epifânio de Ostia, chamavam de “essênios”. Entre esses autores o mais abalizado é o judeu Flávio Josefo, que, segundo alguns, chegara a viver três anos com um deles. As informações que Josefo nos passa sobre eles são as seguintes:
         1 – acreditavam com fervor na Providência Divina, e tudo a Ela entregavam
         2 – acreditavam na imortalidade da alma e na premiação dos justos após a morte.
         3 – levam oferendas ao Templo, mas mantêm-se em áreas restritas, para não entrar em contato com pessoas impuras. Além disso, são muito ritualistas – era proibido cuspir na frente ou à direita de alguém – e rigoristas, às vezes até mais que os fariseus, na observação do repouso sabático (toda comida era feita na sexta-feira e comida fria, para não se acender um fogo, e nesse dia eles evitavam, inclusive, de defecar).
         4 – possuem um elevado código de conduta moral e os que cometem falta grave são punidos com a expulsão da comunidade, condição esta que pode leva-los à morte pela fome, às vezes evitada pela piedade dos outros. Os episódios de má conduta eram julgados por um tribunal de cem membros, como juízes, e se a acusação fosse de falar mal ou blasfemar contra o fundador da seita ou contra Moisés, a sentença seria de morte.
     5 – dedicam-se exclusivamente à agricultura, visto que praticam um vegetarianismo estrito, por respeito à vida dos animais. Alguns viram nisso contato com seitas indianas;
     6 – todo aquele que deseja entrar na comunidade deve distribuir os seus bens entre os irmãos, de sorte que não há entre eles distinção entre ricos e pobres. Antes de entrar, porém, o postulante deve permanecer um ano onde sempre viveu, mas vivenciando as regras essenias, para depois passar dois anos em observação, numa comunidade exclusivamente essênia, antes de ser aceito – nesse momento o neófito faz um juramento de honrar a Deus, de ser justo, não prejudicar a ninguém deliberadamente, de amar aos bons e odiar aos maus e de obediência irrestrita aos seus superiores.
       7 – aqueles que assumem posição de autoridade juram não abusar dos subordinados, não procurar sobressair-se, amar a verdade, reprimir os mentirosos, não ocultar nada aos membros da seita, mas também nada revelar aos de fora, nunca praticar o latrocínio, honrar os livros da Lei e o nome dos anjos (culto angélico?).
   8 – embora não desestimem o casamento, recomendam aos seus membros, (predominantemente homens) uma vida celibatária, pois o matrimônio é motivo de disputa – aquele que deseja cassar deve submeter sua noiva à prova na vida essênia por três anos. Adotam crianças alheias quando ainda são maleáveis e aptas para receber os seus ensinamentos
         9 – em hipótese alguma admitem a posse de escravos por seus membros – a escravidão estimula a injustiça.
   10 – consideravam o óleo um agente contaminante. Se algum deles fosse umedecido por óleo devia esfregar vigorosamente a parte atingida.
         11 – tinham por hábito vestir branco, e usavam suas vestes e calçados até ele ficarem completamente rotos, quando então obtinham outros novos, por meio de troca direta, porque não aceitavam a mediação de moeda em suas transações. Muito pudicos, homens e mulheres não se despem na hora de tomar banho, e quando vão fazer alguma necessidade fisiológica, costumam se afastar, cavar um buraco e se cobrir todo com um pano, para que os céus não vejam a sua nudez.
         12 – elegem administradores para cuidar do patrimônio e dos ritos da comunidade.
         13 – embora fossem contrários às guerras, e se comportassem com neutralidade política ante o conflito onipresente entre judeus e romanos, quando de viagem os essênios não carregavam mantimentos ou vestes extras, mas levavam armas para se defender de salteadores.
         14 – São muito cautelosos com suas palavras e evitam assuntos profanos.
         15 – à mesa, nas suas comunidades, eles se servem, após um sacerdote abençoar o alimento, em geral pão e vinho, e os tomam em completo silêncio. Suas palavras devem ser poucas, diretas e dignas de crédito. São proibidos de jurar.
         Etc. (2)
         O conjunto dessas informações, e outras dos autores acima nomeados, fizeram surgir a hipótese, muitas vezes apresentada com ares de verdade ou “revelação”, de que João Batista e mesmo Jesus Cristo fossem essênios – essa, por exemplo, foi a tese logo abraçada pelo doutor Sukenik, acima citado – ou tivessem sofrido, deles, influência decisiva... desde que se ignorasse as diferenças gritantes.

         Os Testemunhos da Arqueologia e da História

         http://www.virtualqumran.com/photos/Mill_1_1000.jpg
         http://www.virtualqumran.com

         Com a descoberta dos rolos, os arqueólogos voltaram a atenção para as ruínas do pequeno “posto militar”, Kirbeth (ruínas, em árabe) Qumran, trazendo á luz novas fundações ainda soterradas, que pareciam apontar outra função para o edifício. Foram encontrados, por exemplo, aposentos contendo diversas estruturas que pareciam mesas de pedra, com diversos tinteiros nelas escavados, além de cacos de cerâmica contendo nomes de pessoas. Definitivamente aquilo não era apenas um fortim militar. A história mais provável para a ocupação de Qumran é a seguinte:
         La por volta de 135 a.C., no tempo do reinado de Jônatas Macabeu, um grupo de judeus piedoso migrou para essa região, talvez fugindo da usurpação do sumo-sacerdócio feita por aquele, e, movido pelo desejo de não se contaminar com tanto pecado, ocupou as ruínas de um velho forte de fronteira, fazendo dele a sede do seu movimento – entretanto, embora as pesquisas arqueológicas tenham expostos diversos aposentos onde eram realizadas atividades diversas, tanto intelectuais como artesanais, não foi encontrada nenhuma estrutura que propiciasse condições de moradia permanente, o que faz alguns estudiosos defender a hipótese de que Kirbeth Qumran era uma espécie de centro cerimonial, frequentado apenas para estudos e realização de certas atividades e eventos festivos. E as pessoas que o utilizavam? Talvez morassem precariamente nos arredores, habitando em tendas e até usando esporadicamente as cavernas das redondezas.
         Por volta do ano 100 a.C., a estrutura é ampliada consideravelmente, o sistema de abastecimento de água aperfeiçoado e ampliado. São construídas três enormes cisternas. Foi erguida uma torre maciça, quadrada (como se vê na reconstituição acima), para proteger a entrada. Havia salões amplos, com bancos pegados em cada lado das paredes, uma cozinha, dispensa e vasilhames de cerâmica – até hoje foram encontradas sete grandes cisternas e seis pequenas, mas a crença mais geral é que fossem apenas depósitos de água, artigo raro, e não locais para abluções ou centros de batismo (para que tanto poço batismal?).
         Por volta de 31 a.C. a estrutura é abalada por um terremoto, e retomada 27 anos depois, sendo toda restaurada.
         Em 68, durante a Primeira Guerra Judaico-Romana, a comunidade fica na zona de operação da 10ª Legião Fretensis, ocupada em destruir meticulosamente qualquer foco de resistência judaica na área. Houve confronto sério em Kirbeth Qumran: sinais de destruição e várias pontas de flechas romanas foram encontradas no lugar, mas parece que os prédios foram abandonados antes de um assalto final, que teria redundado numa destruição muito maior.
         Após a guerra, o local foi ocupado provisoriamente por uma guarnição romana, até que foi definitivamente abandonado, no final do século I, e tomado de vez pelas areias do deserto e do tempo.
         Quantas pessoas viveram em Kirbeth Qumran, ou em suas imediações, na época dos essênios? Os especialistas se dividem, mas o número mais aceito oscila em torno de 200, já o total dos essênios, segundo Josefo, seria de uns 4.000, espalhados em diversos lugares e cidades da redondeza.

         Os Manuscritos do Mar Morto

         https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5f/The_War_Scroll_-_Dead_Sea_Scroll.jpg
         Wikipedia

         Como dissemos acima, dentro das cavernas foram encontrados vários manuscritos (textos escritos à mão, como era comum na Antiguidade Ocidental), sobre suportes de papiro (um tipo de “papel” feito do caule de uma planta nativa do Egito e do Sudão), pergaminho (outro tipo de “papel” feito pele de animais como cabras, bois e ovelhas), além de uma misteriosa chapa de cobre. O estado desse material era, na maioria das vezes, lamentável, como vemos na foto acima, que mostra um trecho do chamado Manual da Guerra, enquanto que outros estão mais bem conservados, como um rolo completo de Isaías, em meio a outros fragmentos que mal chegam ao tamanho de uma unha humana.

http:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIUncPWMMb-FkfQb9j0p1LZsyIc-v8fpPqs3syDKU9zJ67Q_DhfCbRI40Doio9qJltbv3Oz4RaELd7cY1PYFs3KgABPBtsg22pCh7t_Fz7Ujtr5WKr4PxhfbtSgpNVo8Elth8wrvXfIoY/s1600/ScrollJars.jpg
http://exposing-religious-deception.blogspot.com.br/

         Esse material estava acondicionado em potes de cerâmica, com uma tampa, veja acima, alguns bastante arrebentados, como se vê nas marcas do pote à esquerda. O uso desses potes para guardar documentos e livros (rolos) era comum na antiguidade, pois eles faziam as vezes de estante, e em Kirbeth Qumran foi encontrada uma olaria com inúmeros fragmentos de potes como estes.
         O primeiro manuscrito a ser traduzido foi um rolo contendo o texto completo de Isaías, feito pela Escola Americana de Estudos Orientais (3), e logo em seguida vieram outros, como um manuscrito de Isaías todo fragmentário; um comentário de Habacuc, faltando o capítulo 3, presente na Septuaginta; o Manual da Disciplina ou Regra da Comunidade que trata dos deveres, obrigações e punições previstas para os membros da seita, e que reflete um forte dualismo (bem x mal, filhos da luz x filhos das trevas) além do papel destacado dos sacerdotes na comunidade; o Manual da guerra ou Regra da guerra ou ainda Rolo da guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas, onde se descreve um combate escatológico entre os filhos da luz e os das trevas, com uma grande riqueza de detalhes – “o texto descreve a estratégia, o armamento usado (funda, lanças, setas, arpões, espadas, escudos), a organização militar (cavalaria, infantaria ligeira, infantaria pesada)” (tradução da Wikipedia em francês – Règle de la Guerre). Segundo o mesmo texto na Wikipedia,, em inglês o armamento e a disposição tática dos filhos das trevas lembram muito o armamento e as táticas romanas, que são nomeadas por “kittim” – além de um apócrifo do Gênesis, cheio de adendos fantasiosos (em estilo de midraxe).
         Além dessas obras completas, ou quase, foram encontrados fragmentos de todos os livros da Bíblia hebraica, exceto Ester, além de Tobias e Eclesiástico, que não são aceitos nas Bíblias judaicas contemporâneas. Foram encontrados livros apócrifos como Jubileus, Enoc, o Testamento dos 12 Patriarcas, livros onde abundam descrições apocalípticas. Há comentários a Isaías, Oseias, Miqueias, Naum, Sofonias e Salmos. Várias obras dirigidas à organização da seita, textos litúrgicos e um misterioso rolo de cobre, que contém, por meio de um código cifrado, indicações de onde encontrar os tesouros ocultos da comunidade, que deixou os especialistas desconfiados, afinal aponta para a existência de uma reserva secreta secreta de 200 t de ouro e prata! Aliás, este não é o único documento escrito dessa forma, dando a entender que havia um “culto do segredo” entre os autores desses manuscritos,

        
http://www.virtualqumran.com/photos/146.jpg
http://www.virtualqumran.com

Os fragmentos, apesar de milhares, foram rapidamente reunidos e a tradução também não se fez esperar, no entanto uma série de pendências de caráter judicial e político – o agravamento de tensões no Oriente Médio e a Guerra dos Seis Dias (1967) – um caso de racismo, quando o pesquisador americano, chefe da equipe que deveria publicar o texto dos manuscritos, John Strugnell, declarou-se publicamente “antijudaico”, para não falar da eterna disputa pelos direitos autorais... Assim o conteúdo que já podia ter sido publicado no início dos anos 1960, só o foi no final do século.
No mundo acadêmico sério, os especialistas estrilam e denunciam a demora para a publicação dos resultados das traduções, como o pesquisador e teólogo anglo-húngaro Geza Vermes (1924-2013). Noutros meios, menos sérios e mais propensos ao escândalo e ao sensacionalismo, começam a se propagar boatos de que o atraso se devia a pressão do Vaticano, uma vez que a publicação dos manuscritos revelaria segredos que poderiam acabar definitivamente com o cristianismo, atingindo especialmente a Igreja Católica (4). Finalmente as traduções saíram e o resultado foi sensacional, mas não na direção que supunham os sensacionalistas.

Controvérsias

No início, a quase totalidade dos pesquisadores se inclinou à hipótese de que os rolos encontrados nas cavernas estavam estreitamente ligados à gente que morara nas ruínas, mas com o passar do tempo foi-se constatando a falta de elementos mais sólidos que ligassem os rolos nas cavernas a Kirbeth Qumran, a exceção dos potes de argila, para guardar os rolos, que, de resto, eram comuns em toda Palestina – os estudos arqueológicos foram inconclusivos quanto a isso. O fato de serem encontrados muitos cacos de cerâmica nas ruínas fez com que alguns pesquisadores explanassem a tese de que ali apenas funcionava uma grande olaria.
Outra coisa que chamou a atenção foi a enorme quantidade de moedas encontradas nas escavações: 1250, sendo 569 de prata e 681 de bronze, que aponta para um fluxo normal. Muito alto, de moedas, incompatível a uma comunidade apresentada como pobre e desprovida de ambição pecuniária, sem falar de outros restos de alto valor na época, como vidro, encontrados no lugar. Será que Josefo mentiu propositalmente sobre o ideal de pobreza do grupo ou, enlevado pelo pouco que conheceu da seita, generalizou suas virtudes precipitadamente. Outro problema trazido pelo estudo das moedas é sobre o ano da destruição do local, tradicionalmente apontado como 68. Elas sugerem que a destruição se deu no mesmo ano que a da fortaleza rebelde de Massada, que fica ali perto, em 73. Por fim apareceram fortes evidências que boa parte das moedas de prata encontradas lá são do século III, o que, aparentemente, contradiz a tese original que o lugar foi abandonado ainda no século I.
Assim começam a pipocar teses apontando outras finalidades para Kirbeth Qumran, que não um monastério essênio. Segundo uns seria uma vila rústica, uma propriedade autossuficiente, pertencente a ricos comerciantes, para outros seria uma espécie de centro comercial e para outros seria uma espécie de prolongamento de Jericó, vila próxima, servindo para produção sazonal de peles e cerâmica.
E os rolos encontrados nas cavernas?
Bem, em primeiro lugar não foi encontrado neles nada parecido com o termo “essênio” (5), embora várias das regras e costumes nele relatados coincida com as relatadas pelos escritores antigos acerca deles. A si mesmo eles davam o nome de Yachad.
Como dissemos acima os relatos sobre a Yachad confirmam muitas coisas que os escritores antigos disseram, mas também, às vezes, os negam de forma cabal, o que, no caso de Josefo, cheira mais a uma peça propagandística que num relato sóbrio, e em virtude disso alguns estudiosos supuseram que os Yachad seriam uma espécie de seita saduceia, tal o seu rigorismo legal, que também os aproxima dos fariseus, o que nos leva a outra conclusão: o conjunto dos documentos está muito longe de ser homogêneo.
A falta de homogeneidade dos documentos levou vários cientistas a defender a posição de que os rolos nada têm a ver com Kirbeth Qumran, uma vez que o local das ruínas não é mencionado em nenhum documento. A citação, ou as citações, podem ter se perdido, e aí é muita falta de sorte. O certo é que nada foi encontrado, então, cientificamente falando, hoje, não há qualquer relação entre os rolos e as ruínas.
Mas então, de onde vieram os rolos? Alguns supõem que podem ser da biblioteca do próprio Templo de Jerusalém, levada às pressas para Qumran, a fim de escapar da destruição. Outros afirmam que seriam oriundos de várias bibliotecas particulares, o que explicaria melhor a sua heterogeneidade. Outra explicação possível, muito difícil de ser aceita hoje, é a de que o judaísmo no tempo de Jesus era, teologicamente, bem mais flexível que o atual, e isso estaria consubstanciado naquela biblioteca, pelo menos nos escritos de Yachad, onde partes da Bíblia hebraica foram encontradas juntas com a Bíblia grega, a versão dos Setenta, ou Septuaginta, que hoje não é aceita como canônica pelos judeus, mas que no tempo de Jesus aparentemente era. Havia mesmo livros escritos em grego naquela biblioteca. Isso tudo veio a reforçar a crença tradicional da Igeja Católica na canonicidade original da Septuaginta, embora o argumento mais forte, sempre usado pela Igreja para justificar a sua aceitação da versão ampliada dos Setenta, é que nos evangelhos e nas cartas ela é muito citada por Jesus e pelos Apóstolos.   

Resultados

Primeiro: a tradição bíblica ficou mais confirmada do que nunca. Como dissemos antes, os iluministas puseram a Bíblia sob o microscópio e assacaram contra ela as piores denúncias, de que não passava de um livro de mitologias, no mesmo nível de uma Guerra de Troia ou qualquer obra da literatura religiosa pagã da antiguidade, e que, com certeza, a Bíblia que se lia na Palestina, até a destruição de Jerusalém pelos romanos, nada tinha a ver com as Bíblias contemporâneas, uma vez que estas teriam sido adulteradas irremediavelmente pelos padres, os guardiões das Sagradas Escrituras no Ocidente. Pois bem, os textos bíblicos dos manuscritos de Qumran são praticamente iguais aos da Bíblia de hoje e, portanto, nada substancial foi modificado ao longo dos séculos, tirante os erros comuns a tiragens antigas feitas à mão. A Bíblia hebraica, o Primeiro Testamento, que lemos hoje é similar ao que era lido no tempo de Jesus, e a Igreja Católica longe de ser uma sociedade secreta, cheia de falsificadores, embusteiros, a serviço do acúmulo de riquezas mercantil, as mesmas que sobram aos seus inimigos, enquanto lhes falta a riqueza moral, da qual a Igreja sobeja, quando colocada sob o crivo da arqueologia, que aponta, nesse episódio, a Igreja como uma instituição historicamente correta, verídica, que enaltece o gênero humano.
Segundo: a confirmação da tradição bíblica reforça a historicidade do Primeiro Testamento e, de tabela, a do Segundo, a dos evangelhos de Jesus, ainda mais porque as descrições dos costumes judaicos, dos grupos religiosos neles retratados, encontraram a sua confirmação nos rolos de Qumran. Mais pontos para a fidelidade histórica dos escritores sagrados, e para a instituição que os preservou.
Terceiro, embora os textos se estendam até o início dos anos 60, nenhuma menção foi encontrada neles a João Batista, a Jesus ou aos cristãos, o que seria muito estranho se eles fossem essênios, considerando que nessa época os cristãos já padeciam das sangrentas represálias das autoridades tão desprezadas e odiadas pelos essênios ou pelos Yachad, que também esperavam um messias... Na verdade dois messias, um político, da casa de Davi, e outro religioso, da de Aarão, ao qual o primeiro estaria submetido. Uma repercussão tardia da reação forte e duradoura ao movimento dos Hasmoneus em se apossar do sumo sacerdócio, conforme já se sabia antes sobre os essênios.

        

Nota
(1) Segundo o verbete, Guenizah du Caire, na Wikipedia em francês, “Como os judeus consideravam o hebreu a língua de Deus, e o hebraico como a escrita Dele próprio, não era admissível destruir os textos, mesmo após um longo tempo de inutilidade” (tradução livre). Na Geniza do Cairo foi feita uma descoberta impactante: uma versão do Siracida, livro da Bíblia que os católicos chamam Eclesiástico, escrito na língua hebraica – os judeus, durante a difusão do cristianismo, excluíram esse livro de sua Bíblia sob o pretexto de ele não ter sido escrito originalmente em sua língua sagrada. Uma pergunta logo se fez ouvir: o que estava fazendo, no depósito de uma sinagoga, um livro repudiado como não canônico, mas transcrito em hebreu, considerando que seu original foi escrito em grego? A solução encontrada foi a seguinte: ele era canônico para a comunidade judia do Egito, mas não entre os judeus palestinenses.

(2) Quem quiser saber o que Flavio Josefo falou sobre os essênios vá ao seguinte endereço, em espanhol: http://www.geocities.ws/dodecaedro1/eseniosjosefo.htm

(3) Encontrado na primeira cova (1Q), pelos beduínos, junto com outros seis rolos, foi vendido ao metropolita (uma espécie de arcebispo) da Igreja Ortodoxa Síria, Mar Samuel, que, transferido para os Estados Unidos, revendeu-o ao arqueólogo israelense Yigael Yadin por US$250.000, e este os entregou ao Estado de Israel, em 1954. Todos os documentos em posse de Israel estão hoje no chamado Santuário do Livro, uma modernosa ala do Museu de Israel, em Jerusalém. Ele é o mais completo e bem conservado rolo entre os 220 rolos bíblicos encontrados em Qumran. A datação eletrônica do pergaminho oscilou entre 335 e 107 a.C., enquanto estudos paleográficos apontam os anos entre 150 e 100 a.C. para a redação do texto – ou seja, esse manuscrito é 1.100 anos mais antigo que a mais antiga cópia do mesmo texto conhecida no mundo até então: o chamado Códice de Leningrado. O rolo é muito extenso e se compõe de 17 folhas de pergaminho coladas, que se você quiser desenrolar, centímetro por centímetro, deve recorrer ao seguinte endereço: http://www.imj.org.il/shrine_center/Isaiah_Scrolling/index.html

(4) eu, que vivi esse tempo e posso atestar o quanto esses boatos eram impregnantes e com uma formidável capacidade de propagação, ainda mais em um país onde a grande maioria das pessoas ignora que o Vaticano não fica nos Estados Unidos e que Israel não é um país católico, os dois países cuja intelligentsia universitária controlava os estudos sobre os textos.

(5) Segundo a Wikipedia o termo derivaria do grego “ossio” (santo, pio), uma transcrição do hebraico “hassidim”, ou “hassideu”, com o mesmo significado, ou ainda do arameu “hesé”. Nos documentos, o termo usado para designar a seita é “Yachad”, que em hebraico quer dizer “juntos”, “unidos”, neste caso “comunidade”. Ver http://bibliaparalela.com/hebrew/3162.htm



Bibliografia

Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966;
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Recomendo ainda os verbetes referentes a Qumran, Essenios, Rolos do Mar Morto, presentes na Wikipedia em inglês e francês.


Nenhum comentário:

Postar um comentário