segunda-feira, 23 de novembro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – V

         Aproveito para agradecer às pessoas que no Brasil, Estados Unidos, Índia, Chile, Portugal, Espanha, Rússia e Ucrânia acessaram este blog nessas últimas semanas, espero que tenham encontrado algo útil para si, e espero continuar sendo útil.

Prof Eduardo Simões

         O Voo da Fênix

        
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         A antiga Roma era, de fato, predestinada. Cornell e Matthews (1996; p 50), comentando o resultado da Segunda Guerra Púnica e sobre o segredo de sua capacidade de construir e unificar um grande império, chegam a seguinte conclusão: “uma capacidade quase inifinita de se recuperar das suas perdas... Tito Lívio tinha toda razão ao declarar (referindo-se a Trasímeno e Canas [duas terríveis derrotas romanas]): “Nenhuma outra nação podia ter sofrido tão tremendos desastres sem ter sido subjugada””. Dito no diapasão do samba de Vanzolini: era a capacidade infinita de Roma em levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, e assim aquela que lhe sucedeu.
         O fundador do cristianismo estava morto. Morrera da forma mais infame, agravada pela traição e o abandono de todos aqueles que, até ali, sempre tratara como íntimos e aos quais já revelara coisas impressionantes, mas que não foram o bastante para garantir-lhe a lealdade dos seus. Todos o abandonaram. Os discípulos agora vegetavam deprimidos, culpando-se até o mais alto grau por sua ignominiosa covardia. Alguns deles, Pedro, com certeza, podiam estar pensando até em se suicidar. Existe história sobre a fundação de alguma religião que seja mais patética e desastrada do que essa. Fracasso, fracasso, total! Até que umas mulheres, logo elas, tão desprezadas na sociedade, chegam contando uma coisa estranha: o seu corpo desaparecera da tumba e ele fora visto por perto. A última das desgraças: seu corpo fora roubado... ou não? Como era “natural”, muitos não acreditaram nas mulheres (Lc 24,22-24), pois a ideia de ressurreição era absurda demais para se dar crédito. É impressionante a honestidade dos evangelhos! (1)
         Novos acontecimentos se sucederam e a certeza de que o mestre realmente estava vivo foi se acentuando, até que eles viram algo que lhes deu certeza da ressurreição, e ganharam alento; um alento tal que foi capaz de criar e sustentar até hoje a instituição religiosa mais impressionante da história. Daí a algum tempo outro acontecimento misterioso, e igualmente fundante, chamado pela Igreja de “Pentecostes” (2), teve início a espetacular aventura missionária da Igreja, rumo à conquista do mundo, para transformá-lo em um reino para Deus.
      No dia em que houve a descida do Espírito Santo, Jerusalém estava repleta de judeus piedosos e estrangeiros convertidos, ou prosélitos, de todas as partes do mundo romano, em especial da Ásia, um campo fértil para a atuação dos apóstolos, que, tomados por um novo e contagiante entusiasmo, começaram a pregar o Evangelho de Jesus, atraindo milhares de adeptos para a nova fé (At 2,41), formando o primeiro núcleo da Igreja.
         Que Igreja era essa? Longe de apresentar-se como uma nova tendência religiosa independente, com faziam os diversos grupos da época (fariseus, saduceus, essênios, zelotes, etc.), os apóstolos e seus seguidores continuaram se definindo como uma corrente dentro da ortodoxia judaica, diferenciada apenas pela pessoa de seu mestre e rabino, Jesus Cristo, e sua espetacular ressurreição. Apóstolos e discípulos praticavam as ações litúrgicas específicas do judaísmo e não saiam de perto do templo, onde oravam de acordo com o que era prescrito na Lei e na liturgia dos sacerdotes. Os discursos preservados desse período mostram um claro desejo de não confrontar com os poderes religiosos locais, e não entrar em questões teológicas mais controvertidas ou acusações morais, como fizera Jesus de forma mais ou menos desabusada. Qual a razão desse comportamento? Um apego à roupa velha? Ao odre velho? É possível, mas também podia ainda haver a pretensão de converter de dentro para fora, senão a totalidade, pelo menos a maioria de Israel, e torná-lo a ponta de lança do Reino de Deus sobre a terra, ou as duas coisas juntas.
      Porém, o Templo e a sinagoga reagiram violentamente ao forte crescimento da nova seita, e a causa disso era justamente a pessoa de Jesus. A simples existência de seguidores do Nazareno era uma denúncia contra as suas últimas ações, a crucifixão de Jesus, que ainda estavam bem marcadas no inconsciente coletivo, e o teor dessa nova pregação: a ressurreição do justiçado colocava os principais chefes do judaísmo de então na situação no mínimo constrangedora, de ter que explicar ou debater com o povo a possibilidade de terem mandado matar o Messias de Israel. Isso com certeza não podia acontecer e o pretexto para a primeira intervenção veio quando após um acontecimento singular, envolvendo Pedro e João,  produziu-se um ajuntamento, seguido de cárcere e o comparecimento de ambos diante do sinédrio, At 3-4, que terminou só em ameaças, embora pouco depois as coisas tenham ido bem mais além.
         Dentro da própria Igreja a situação também se complexificava, à medida que o número de convertidos aumentava, e se passava do quadro idílico composto por Lucas em At 2,42-47; 5,12-16 para um momento de certa tensão interna, que transparece no conflito que redundou na escolha dos 7 diáconos, quando os judeus cristãos, oriundos da diáspora ou “helenistas”, reclamaram por estar sendo preteridos pelos judeus cristãos palestinenses ou “hebreus”. O forte sentimento sectário-tribal do entorno se fazia sentir dentro da Igreja, mostrando o quão difícil é, ao conceito de “irmão”, superar as barreiras do ambiente estritamente familiar ou étnico-cultural. A verdade é que os judeus cristãos da diáspora se mostraram particularmente ativos na pregação do Evangelho, e Atos dos Apóstolos é uma prova disso, gerando algum ciúme dos judeus cristãos palestinenses, muitos de passado farisaico, que insistiam, sempre que possível, em tornar o cristianismo numa extensão do judaísmo, sujeitando o desenvolvimento daquele em função da conversão deste. Não é por acaso que o primeiro mártir da fé cristã foi justamente um dos diáconos escolhidos acima: Estevão, assim como foi pela iniciativa e pela fé de outro, Filipe, que foi convertido o primeiro grande dignitário estrangeiro At 7,55-60; 8,26-40.
         A conversão alcançada por Filipe não gerou maior estresse porque aconteceu à margem da “grande igreja”, bem diferente de quando Pedro, apesar de líder reconhecido, ousou batizar o Centurião Cornélio, apesar de este ser apresentado por Lucas como “piedoso e temente a Deus”, que “dava muitas esmolas ao povo judeu e orava a Deus constantemente” (10,2). Quando Pedro retornou da casa de Cornélio, imediatamente um grupo dos que “eram da circuncisão” foi-lhe pedir satisfações nos seguintes termos; “entrastes na casa de incircuncisos e comestes com ele!” (11,2-3). Dá para notar alguma diferença do discurso dos fariseus para com Jesus? Das explicações dadas por Pedro depreendemos que foi necessário um milagre portentoso para retirar dos judeus cristãos a mentalidade do exclusivismo adocional, herdado de sua cultura. “Só nós fomos escolhidos filhos de Deus!”. Ainda assim eles, Pedro inclusive, não se mexiam, não saiam de Jerusalém e arredores. Isso não podia perdurar.
         Enquanto a alta cúpula da Igreja, os apóstolos, hesitava, a morte de Estevão por apedrejamento, por volta de 33, trazia consequências que fogem ao ocntrole: os cristãos da diáspora, o principal foco da perseguição, dispersaram-se em várias direções, e alguns deles, oriundos da ilha de Chipre e da Cirenaica (norte da África), chegados a Antioquia (3), começaram a pregar a Palavra entre os gregos, conseguindo muitas conversões, afinal “a mão do Senhor estava com eles” (11,21), isso lá pelo ano de 37. Não dava mais para deter, ou tentar conduzir por meios humanos, o desenvolvimento natural da semente. Ainda mais porque agora, ajuntara-se ao grupo dos cristãos “universalistas”, uma personalidade fulgurante e irrefreável.

         O Apóstolo dos Gentios

               
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         Wikipedia

         Paulo ou Saulo, seu nome aramaico, nasceu e foi criado no mundo da diáspora. Seu pai deve ter sido um próspero artesão, um peleteiro, que granjeou por seus próprios méritos a cidadania romana, que seu filho herdará. Do contato com as tradições de sua gente veio-lhe o desejo intenso de ser um fiel fariseu, e do contato com o ativo mundo mercantil de sua cidade, veio-lhe uma certa abertura de espírito, uma visão mais ampla do mundo e dos homens, avessa ao exclusivismo farisaico, um amplo domínio da koiné, uma variante popular da língua grega, a língua mais difundida na bacia do mediterrâneo, além do conhecimento sobre a forma de pensar e argumentar dos povos ocidentais.
         Seja como for, mesmo sendo adepto da corrente menos rigorista do judaísmo, expressa pela escola do rabino Hillel, e aluno do mestre Gamaliel (22,3) (4), Paulo, em Jerusalém, se aproxima dos elementos mais raivosos de seu povo na perseguição à nova seita. Ele está entre os que insuflam o linchamento de Estevão e, talvez no ano de 34, ele, com um grupo de jovens arrojados e intolerantes, parte para Damasco a fim de dar caça aos cristãos aí infiltrados, quando no caminho acontece alguma uma coisa. Uma insolação, com perda momentânea da consciência, seguida de uma visão, um colapso nervoso devido à furiosa contradição que via entre as ordens da corrente majoritária do sinédrio e aquilo que aprendera de Gamaliel? Algo que está acima de nossa explicação ou tudo isso misturado? É então que Paulo, o mais terrível e preparado perseguidor dos cristãos, muda. Muda, e se afasta de tudo durante três anos, findo os quais apresenta-se à comunidade de Jerusalém como um cristão perfeitamente preparado, obtendo o aval dos principais apóstolos.
         De onde lhe veio esse preparo? Como ele obteve esse conhecimento tão vasto e sublime sobre a essência do cristianismo e essa teologia tão densa, que aparece em suas cartas? Decerto que não foi com o singelo Ananias, um instrumento de cura. Paulo simplesmente cala-se, como a guardar um segredo precioso, embora fale aqui e ali de coisas inefáveis (Gl 1,15-19; 1Cor 15,8, e, principalmente, 2Cor 12,1-4), que escapam à análise da historiografia, e nos deixa cheios de dúvidas sobre quem foi o mestre cristão de Paulo? Por que ele omitiu o seu nome, se viveu para propagar o nome de outro, Jesus Cristo. Como ele pode se intitular “apóstolo”, ainda que o menor de todos, se esse termo, desde a mais antiga tradição, sempre se referiu àqueles que Jesus escolheu pessoalmente, como pode Paulo, sempre tão discreto ao falar de si mesmo, na abertura da Carta aos Colossenses, 1,1, assumir claramente o título de apóstolo?
A ação cristã de Paulo, assim como os seus atos no judaísmo, logo se fizera notar, e ele angariou uma legião de inimigos encarniçados. Sua vida, em Jerusalém, corria perigo, e não valia a pena expor uma pessoa com tanto potencial a tal perigo, quando ainda havia tanto a ser feito pelo mundo afora, e ninguém, como Paulo, parecia mais talhado para isso. Ele parte em missão, com seu amigo Barnabé, um judeu cipriota. Nesse meio tempo, a perseguição na Palestina recrudesce, e lá por volta de 44, Herodes Agripa, filho mais novo de Herodes Magno, manda decapitar o mais velho dos “filhos do trovão”, Tiago, irmão de João, e manda prender Pedro, que se salva miraculosamente, no capítulo 12 de Atos, para reaparecer logo depois, no Concílio de Jerusalém, em torno de 50. Nesse ínterim assume a frente da comunidade um grupo rigorista judeu-cristão encabeçado por Tiago, dito “irmão do Senhor”. Porém, até Pedro terá que sair de sua zona de conforto, próxima ao Templo, para ir direto ao centro daquilo que ele mais temia, para pregar a palavra de Deus: Roma.
         Como era o mundo que os missionários cristãos iriam enfrentar?

         O Judaísmo da Diáspora

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         Wikipedia

         Desde o século VIII a.C., em vagas sucessivas, na maioria das vezes forçada, de emigrantes e exilados judeus, se espalharam pela bacia do Mediterrâneo, formando colônias consideráveis nas cidades greco-romanas – ao todo contam-se umas 150, mais ou menos. Eles eram numerosos em Antioquia, Roma e principalmente Alexandria, onde ocupavam dois dos cinco grandes bairros que formavam a malha urbana, com uma característica que lhes era familiar: a formação de comunidades fechadas, o que devia atrair sobre eles certa antipatia e despeito da comunidade gentia, mas que também não deixava de se admirar com as demonstrações tão fortes e espontâneas de solidariedade entre eles, como era comum na sua cultura tribal e na sua ética religiosa, o que decerto deu ensejo a muitos estrangeiros de se tornar um deles, embora isso também causasse ressentimentos, na medida em que essa solidariedade não era compartilhada com os estranhos.
         Essas comunidades tinham o centro de sua vida cultural e religiosa na sinagoga, dirigida por um arquisinagogo, assessorado por um conselho de anciãos para assuntos civis, que se moviam com grande autonomia junto às autoridades. Nesse assunto podemos dizer que os judeus foram muito diligentes e bem sucedidos, junto às autoridades estatais romanas, para conseguir isenções e privilégios consideráveis para a sua gente e práticas religiosas (5).
         No plano econômico tinham uma presença difusa e variada. “na Ásia Menor e no Egito, muitos deles se ocupavam da agricultura, como camponeses ou pequenos proprietários independentes [na Idade Média isso lhes será vedado]. Um ofício que exerceu sobre eles particular atração foi a de tecelão e tintureiro [Paulo de Tarso entre eles]... [foram também] coletores de impostos, juízes e oficiais do exército. Na grande cidade de Alexandria exerceram um importante papel no setor bancário” (Jedin; 1966; p 121). Sua aptidão para o comércio para o comércio e as finanças já eram consideráveis, e pouco propícias e a lhes granjear simpatias.
         No plano intelectual mostraram uma grande versatilidade, e, onde lhes foi dado espaço, tiveram um papel considerável na cultura, como em Alexandria, onde prosperou a escola filosófica do mestre Fílon, morto em torno de 50, um judeu oriundo de família rica e importante, o primeiro a tentar construir uma ponte entre a religião hebraica e a filosofia grega, de corrente platônica – segundo Jedin (1966; p 122), Fílon chamava seu mestre de o “muito santo Platão” – dando origem a uma filosofia mosaica, cujo arcabouço foi de grande valia para o pensamento cristão posterior e de cujos trabalhos destacamos os seguintes pontos:
         a) Leitura alegórica do texto bíblico: “sem renunciar ao sentido literal primário dos acontecimentos... descritos na Bíblia, se podia encontrar, para além deles, um sentido oculto mais profundo, que via, por exemplo, em Adão o símbolo da razão humana, em Eva o da sensibilidade, e na árvore da vida do paraíso o da virtude, e o Paraíso mesmo como símbolo da sabedoria de Deus; dele afluíam quatro rios que são as quatro virtudes cardeais [prudência, justiça, fortaleza, temperança]” (idem; idem).
         b) Conceito de Logos: Fílon foi o primeiro a refletir sobre a existência de um intermediário entre Deus e o homem, uma hipóstase (uma manifestação da essência) de Deus. O termo logos, que em grego primitivamente queria dizer “palavra”, termo mais tarde enriquecido pela tradição filosófica, tem muito a ver com o fato de, segundo o Gênesis, Deus ter criado o mundo pela sua palavra, portanto não estamos falando de uma palavra puramente humana, mas de outra que é capaz de criar substância, matéria, do nada. É uma espécie de poder criador que existe em Deus, que tem vida própria, mas que não é Deus. Segundo Fílon, o Logos “é o intermediário entre Deus e os homens. É o mais antigo dos seres; é o filho primogênito de Deus, e é a imagem Deste. O Logos, entretanto, é inferior a Deus e se acha na fronteira que separa a criação do criador” (Wikipedia em espanhol – Filón de Alejandría). Seria ainda uma espécie de “Arcanjo Mediador”, que junto com as Potências de Deus, outras hipóstases ligadas às diversas atividades de Deus (julgar, sustentar a existência do mundo, dispensar graças, etc.), evitariam o contato direto de Deus, sumamente bom, com o mundo físico, considerado mau pelos gregos e por Fílon (Reale–Antiseri; p 31-33)
         c) Visão tripartite do homem: o homem seria constituído de três elementos: o corpo (físico), a alma-intelecto (princípio vital) e o espírito. “Apenas este é imortal, porque é diretamente inspirado por Deus” (idem, idem)
         O pensamento de Fílon é muito avançado e prometia um longo e frutuoso diálogo entre a fé e a razão, entre o judaísmo e o mundo não judeu, mas com a queda de Jerusalém, em 70, a nação se fechou ao mundo num feroz ressentimento, e vice-versa, e o diálogo foi encerrado, de tal sorte que a sua teologia se limitou, ao longo dos séculos, a interpor comentários sobre comentários ao texto sagrado, cujo valor é ressaltado pela autoridade ou prestígio de quem os fez.
         Dos judeus de Alexandria também saiu um dos maiores tesouros religiosos da humanidade: a Bíblia na versão dos Setenta, ou LXX ou Septuaginta, usada, até hoje, pela maioria dos cristãos como sua Bíblia padrão, principalmente os católicos, embora rejeitada, posteriormente, pelos judeus (6) Mas que ninguém se precipite. Fílon, e a maioria dos judeus da diáspora são extremamente leais ao Templo e às manifestações religiosas vindas da Palestina e, pressionados, de fato ou só na sua imaginação, pelo entorno pagão, mantiveram-se muito unidos e coesos na sua fé, enquanto na Palestina a nação se dividia em facções mutuamente excludentes.
Da mesma forma, enquanto na Palestina boa parte dos judeus via com desconfiança e ressentimento a presença de gentios em seu território, na diáspora os judeus arregaçavam as mangas e atraíam cada vez mais gentios para a sua fé. Diz Jedin: “O êxito dessa propaganda... é palpável no grande número de gentios que se colocavam de forma mais ou menos próxima à religião judaica. O passo formal para a religião judaica o cumpriam os “prosélitos” que, pela circuncisão, batismo de imersão e sacrifícios, se tornavam plenamente judeus... Substancialmente maior foi o número dos “tementes a Deus”, que não aceitavam desde logo a circuncisão, culturalmente difícil para o sentimento gentio, mas que não resistiam à ideia do culto monoteísta... celebravam o sábado, e aceitavam várias outras práticas religiosas, e, de uma maneira geral, seus filhos davam um passo além, fazendo-se circuncidar” (p 124).  

         Notas
         (1) A ressurreição é, a meu ver, o primeiro fato fundador da nossa Igreja, e um dos mais grandiosos e inefáveis motivos de nossa fé, entretanto, é também um fato acientífico, ahistórico, na medida em que não pode ser aquilatado como verdadeiro ou falso de acordo com os métodos exigidos pela pesquisa científica. Como diz McKenzie (2003; p 792), citando W. Grossouw: “o Jesus ressuscitado (e as suas aparições) é uma realidade sobrenatural, que não pertence a este mundo e não pode ser objeto de investigação histórica como tal; ela é exclusivamente objeto da fé. A ressurreição... é um fato real, mas sendo um mistério da fé, não é um fato que pode ser demonstrado com certeza pelos métodos de investigação histórica. A história pode demonstrar apenas a fé dos discípulos na ressurreição”. Recomendo muito a obra de McKenzie.
         (2) Pentecostes era, segundo McKenzie, uma festa do antigo calendário judaico, da época em que eles começaram a se tornar agricultores sedentários, após a tomada de Canaã, chamada de festa das Semanas, que foi adquirindo cada vez mais importância com o passar do tempo, sem nunca ter alcançado a popularidade da festa das Tendas. No Primeiro Testamento é citada em Ex 23,14-12; 34,22; Lv 23,15-21; Nm 28,26-31 e Dt 16,9-12, como uma festa que seria marcada com 7 semanas, mais um dia de repouso sabático, a partir da colheita das primeiras espigas de trigo, o que lhe dava uma grande mobilidade no calendário, até ser fundida com a festa dos Ázimos, que também tem a ver com o pão e o trigo, e ganhar uma data regular no calendário judaico: cinquenta dias após a Páscoa. Seguindo os passos de Lucas sabemos que Jesus ressuscitado passou 40 dias entre os seus discípulos, a sua última grande penitência antes de gozar a plenitude da felicidade junto ao Pai, findo os quais elevou-se aos céus. Daí justamente a dez dias houve a descida espetacular do Espírito Santo sobre os apóstolos e a mãe de Jesus (At 2,1-4).
         (3) fundada em 300 a.C. pelo rei Seleuco, em homenagem a seu pai Antíoco, a cidade estava situada nas margens do rio Orontes, em meio a uma grande planície fértil, situada entre montanhas, a cidade atingiu uma tal prosperidade que se tornou uma das maiores do mundo antigo ocidental – alguns autores acreditam que sua população oscilava entre 500 e 800 mil – tornando-se a capital do reino Selêucida. Tomada pelos romanos em 64 a.C., foi erigida capital da província da Síria. Tinha fama de ser um grande centro de vícios e luxúria, o que implica que a vida da gente mais pobre devia ser muito mais difícil. A cidade manteve a sua fama e o seu vigor até a Idade Média. Foi arrasada pelo sultão egípcio Baibars, em 1268, e depois foi decaindo lentamente, até que, em 1432, só possuía 300 casas habitadas, a maioria por turcomanos. Hoje é um sítio arqueológico.
         (4) Hillel Hazaken (o sábio), um dos maiores nomes do judaísmo, nasceu em Babilônia, 70 a.C., e morreu em Jerusalém, no ano 10. Embora de família muito rica, quis ganhar seu sustento com as próprias mãos, fazendo uma profissão não especializada, que lhe permitisse mais tempo para estudar as escrituras. Tornou-se lenhador e mudou-se para Jerusalém. Dizem que, como era pobre e não podia pagar as lições de um mestre conceituado, tentou assistir suas aulas do telhado da casa – as aulas deviam acontecer num pátio aberto – onde foi achado enregelado, no dia seguinte e dispensado do pagamento. Sua inteligência aguda, a sua interpretação flexível e o seu conhecimento da Lei lhe abriram as portas para se tornar presidente do Sinédrio, até a sua morte. Conta-se que certa vez um gentio, conhecedor das longas e minuciosas descrições que os rabinos faziam da Torá, desafiou a Hillel nos seguintes termos: “se você me resumir a Lei, durante o tempo em que eu conseguir ficar em um pé só, eu me converto”. Hillel respondeu: “não faças ao próximo o que não queres que te façam; apenas nisso se resume a Lei, o resto são comentários”. Outra máxima sua a esse respeito era: “não se imponha nenhuma obrigação, quanto à Lei, que não possa ser cumprida pela maioria”. É ainda: “Se eu não sou por mim, quem será? E se eu não sou por mim, quem sou eu? Se não agora quando?”. Comentário do rabino Moisés Schul sobre essa passagem: “Cada um deve se cuidar de si mesmo e assegurar a sua salvação, sem depender de ninguém, sem perder um só instante, porque nossos méritos são pequenos, o caminho é muito longo e amanhã nós poderemos não mais estar vivos” (traduzido da Wikipedia em francês – Hillel Hazaken). Os adeptos de Hillel compunham a mais popular escola de interpretação da Torá, conhecida como Beith Hillel (Casa de Hillel).
Quando Hillel morreu no ano 10, sua influência no Sinédrio foi abafada pela de seu êmulo mais famoso: rabino Shammai, um observador minucioso da letra da Lei, fazendo-se conhecido na história pelo seu temperamento irascível e intratável. Shammai era um hierosolimitano, nascido em 50 a.C. e morto em 30 a.C., onde exercia a profissão de arquiteto ou pedreiro, de onde teria vindo a sua compulsão pela medida exata ou por um reducionismo legalista. Sua máxima mais conhecida era: “Faça do estudo da Lei sua principal ocupação. Fale pouco, pratique muito e acolha todos os homens de maneira amigável”. Uns contam que ele tentou obrigar seu filho, ainda menor perante a Lei, a cumprir o rigoroso jejum do Yom Kippur, sendo dissuadido por seus amigos. Segundo outra versão, ele lhe deu alimento só com uma mão. Como sua nora estivesse convalescendo do parto durante a Festa das Tendas, ele fez um buraco no teto do quarto dela, e construiu sobre ele uma cabana ritual, na qual judeus costumam se abrigar durante essa festa. Cada um que medite sobre isso. A Wikipedia em inglês e francês trazem mais informações sobre Shammai, mas não muito mais que não pareçam lendas ou criações literárias. Uma coisa é certa: com a morte de Hillel o rigorismo de Shammai avançou na sociedade judaica, e foi justamente essa versão rigorista que Jesus enfrentou, da parte dos fariseus. Seus adeptos compunham a Casa de Shammai (Beith Shammai). Posteriormente, seu rigorismo foi associado às desgraças que se seguiram após a morte de Jesus, como a destruição do Templo e a dispersão do povo, e ele, hoje, e a sua doutrina, passou a ser deplorada por muitos judeus.
Gamaliel o Velho, mestre de Paulo, era neto de Hillel, e é considerado outro grande expoente do judaísmo. Morreu em 50. Uma de suas máximas é: “Aproxime-se do seu mestre, afaste-se das dúvidas [religiosas], e só raramente pague o dízimo de acordo com o valor legal [dê sempre mais]”. Fez uma curiosa classificação dos aprendizes da Lei, comparando-os a peixes: “Um peixe ritualmente impuro: é quem memorizou tudo pelo estudo, mas não tem entendimento; é filho de pai pobre. Um peixe ritualmente puro: é quem aprendeu e entendeu tudo, e é filho de pais ricos. Um peixe do Jordão: é quem aprendeu tudo, mas não sabe como responder. Um peixe do Mediterrâneo: é quem aprendeu tudo e sabe como responder” (Wikipedia em inglês – Gamaliel). Gamaliel entra para a história da Igreja em virtude da citação de seu nome por Paulo, como sendo seu discípulo pessoal – hoje vários estudiosos contestam essa versão, baseados nas fontes judaicas, que não mencionam Paulo. Há uma tradição cristã, divulgada pelo Patriarca Ecumênico de Constantinopla Fócio I, do século IX, que diz que Gamaliel, seu filho e Nicodemos, foram secretamente batizados por Pedro e João, de tal sorte que católicos e ortodoxos o veneram como santo. Os judeus, no Talmud, afirmam que ele morreu fariseu, e fazem-lhe o mais rasgado elogio: “Desde que Rabban [outro título] Gamaliel morreu, não houve mais reverência à Lei, e a piedade e a pureza morreram com ele” (Wikipedia em inglês).
         (5) Ao contrário do que dizem os canais de “história” da televisão americana, os romanos foram muito mais receptivos e sensíveis à especificidade do povo judeu do que normalmente se divulga. Segundo Bloch-Cousin, as concessões que Julio Cesar e outros imperadores fizeram aos judeus incluíam: serem governados por judeus; dispensa de tributo de sete em sete anos, por causa do ano sabático; proibição de tropas romanas desfilarem em Jerusalém com a imagem do imperador; isenção de recrutamento e de requisições entre os judeus da Judeia e da diáspora; direito de administrarem seus próprios bens e de imporem contribuições aos seus seguidores, mesmo em território romano; autorização para julgar e punir crimes conforme previsto na lei mosaica; proteção do Estado à religião mosaica. E acrescenta ainda a “notificação desses privilégios a todas as nações aliadas ou submetidas a Roma. Criava-se assim uma situação excepcional: nenhuma “nação” beneficiava ou viria a beneficiar em Roma de tais favores” (1964; p 402-403). Bem diferente era a atitude do homem comum, o pagão “politicamente correto”, que estranhava seu modo de vida muito diferente do habitual, mesmo comparado com o de outros povos asiáticos. “Acusavam-nos de “deprezarem os deuses”, de só adorarem um deus “mal definido”, de mentirem quando declaravam que seu deus habitava o santo dos santos do templo de Jerusalém, onde Pompeio, quando entrou, “não viu nada...” Não comiam porco, porque o porco dá a lepra, [os judeus] descendiam de leprosos expulsos do Egito” (idem; p 403)
         (6) A Bíblia de Alexandria, a Septuaginta, ganhou esse nome porque, segundo a lenda, ela foi elaborada a pedido do rei Ptolomeu II Filadelfo, no início do século III a.C., que, impressionado com a riqueza dos ensinamentos contidos na Bíblia hebraica, instou com os anciãos de Jerusalém para que lhe mandassem 72 sábios, 6 para cada tribo de Israel, para fazer um trabalho de tradução seguro do hebraico para o grego, a fim de melhor difundir aquele manancial de sabedoria. Conta ainda a lenda que, chegados ao Egito, esses sábios foram trancados em 72 câmaras diferentes e incomunicáveis, lá ficando até cada um terminar o seu trabalho. Ao terminarem o trabalho constatou-se uma maravilha: as 72 traduções eram absolutamente iguais, fazendo cair por terra qualquer dúvida que o rei ainda tivesse sobre a inspiração divina dos livros.

         Bibliografia
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho; Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)
Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009

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