HISTÓRIA
DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – V
Aproveito para agradecer às pessoas que
no Brasil, Estados Unidos, Índia, Chile, Portugal, Espanha, Rússia e Ucrânia
acessaram este blog nessas últimas semanas, espero que tenham encontrado algo
útil para si, e espero continuar sendo útil.
Prof
Eduardo Simões
O Voo da Fênix
http://newthoughtministries.org/
A antiga Roma era, de fato, predestinada.
Cornell e Matthews (1996; p 50), comentando o resultado da Segunda Guerra
Púnica e sobre o segredo de sua capacidade de construir e unificar um grande
império, chegam a seguinte conclusão: “uma capacidade quase inifinita de se
recuperar das suas perdas... Tito Lívio tinha toda razão ao declarar
(referindo-se a Trasímeno e Canas [duas terríveis derrotas romanas]): “Nenhuma
outra nação podia ter sofrido tão tremendos desastres sem ter sido subjugada””.
Dito no diapasão do samba de Vanzolini: era a capacidade infinita de Roma em
levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, e assim aquela que lhe
sucedeu.
O fundador do cristianismo estava
morto. Morrera da forma mais infame, agravada pela traição e o abandono de
todos aqueles que, até ali, sempre tratara como íntimos e aos quais já revelara
coisas impressionantes, mas que não foram o bastante para garantir-lhe a
lealdade dos seus. Todos o abandonaram. Os discípulos agora vegetavam
deprimidos, culpando-se até o mais alto grau por sua ignominiosa covardia. Alguns
deles, Pedro, com certeza, podiam estar pensando até em se suicidar. Existe história
sobre a fundação de alguma religião que seja mais patética e desastrada do que
essa. Fracasso, fracasso, total! Até que umas mulheres, logo elas, tão
desprezadas na sociedade, chegam contando uma coisa estranha: o seu corpo
desaparecera da tumba e ele fora visto por perto. A última das desgraças: seu
corpo fora roubado... ou não? Como era “natural”, muitos não acreditaram nas
mulheres (Lc 24,22-24), pois a ideia de ressurreição era absurda demais para se
dar crédito. É impressionante a honestidade dos evangelhos! (1)
Novos acontecimentos se sucederam e a
certeza de que o mestre realmente estava vivo foi se acentuando, até que eles
viram algo que lhes deu certeza da ressurreição, e ganharam alento; um alento
tal que foi capaz de criar e sustentar até hoje a instituição religiosa mais
impressionante da história. Daí a algum tempo outro acontecimento misterioso, e
igualmente fundante, chamado pela Igreja de “Pentecostes” (2), teve início a espetacular aventura missionária da Igreja, rumo
à conquista do mundo, para transformá-lo em um reino para Deus.
No dia em que houve a descida do
Espírito Santo, Jerusalém estava repleta de judeus piedosos e estrangeiros convertidos,
ou prosélitos, de todas as partes do mundo romano, em especial da Ásia, um campo
fértil para a atuação dos apóstolos, que, tomados por um novo e contagiante
entusiasmo, começaram a pregar o Evangelho de Jesus, atraindo milhares de
adeptos para a nova fé (At 2,41), formando o primeiro núcleo da Igreja.
Que Igreja era essa? Longe de
apresentar-se como uma nova tendência religiosa independente, com faziam os
diversos grupos da época (fariseus, saduceus, essênios, zelotes, etc.), os
apóstolos e seus seguidores continuaram se definindo como uma corrente dentro
da ortodoxia judaica, diferenciada apenas pela pessoa de seu mestre e rabino,
Jesus Cristo, e sua espetacular ressurreição. Apóstolos e discípulos praticavam
as ações litúrgicas específicas do judaísmo e não saiam de perto do templo,
onde oravam de acordo com o que era prescrito na Lei e na liturgia dos
sacerdotes. Os discursos preservados desse período mostram um claro desejo de
não confrontar com os poderes religiosos locais, e não entrar em questões
teológicas mais controvertidas ou acusações morais, como fizera Jesus de forma mais
ou menos desabusada. Qual a razão desse comportamento? Um apego à roupa velha?
Ao odre velho? É possível, mas também podia ainda haver a pretensão de converter
de dentro para fora, senão a totalidade, pelo menos a maioria de Israel, e torná-lo
a ponta de lança do Reino de Deus sobre a terra, ou as duas coisas juntas.
Porém, o Templo e a sinagoga reagiram
violentamente ao forte crescimento da nova seita, e a causa disso era
justamente a pessoa de Jesus. A simples existência de seguidores do Nazareno
era uma denúncia contra as suas últimas ações, a crucifixão de Jesus, que ainda
estavam bem marcadas no inconsciente coletivo, e o teor dessa nova pregação: a
ressurreição do justiçado colocava os principais chefes do judaísmo de então na
situação no mínimo constrangedora, de ter que explicar ou debater com o povo a
possibilidade de terem mandado matar o Messias de Israel. Isso com certeza não
podia acontecer e o pretexto para a primeira intervenção veio quando após um
acontecimento singular, envolvendo Pedro e João, produziu-se um ajuntamento, seguido de
cárcere e o comparecimento de ambos diante do sinédrio, At 3-4, que terminou só
em ameaças, embora pouco depois as coisas tenham ido bem mais além.
Dentro da própria Igreja a situação
também se complexificava, à medida que o número de convertidos aumentava, e se
passava do quadro idílico composto por Lucas em At 2,42-47; 5,12-16 para um momento
de certa tensão interna, que transparece no conflito que redundou na escolha
dos 7 diáconos, quando os judeus cristãos, oriundos da diáspora ou “helenistas”,
reclamaram por estar sendo preteridos pelos judeus cristãos palestinenses ou
“hebreus”. O forte sentimento sectário-tribal do entorno se fazia sentir dentro
da Igreja, mostrando o quão difícil é, ao conceito de “irmão”, superar as
barreiras do ambiente estritamente familiar ou étnico-cultural. A verdade é que
os judeus cristãos da diáspora se mostraram particularmente ativos na pregação
do Evangelho, e Atos dos Apóstolos é uma prova disso, gerando algum ciúme dos
judeus cristãos palestinenses, muitos de passado farisaico, que insistiam,
sempre que possível, em tornar o cristianismo numa extensão do judaísmo,
sujeitando o desenvolvimento daquele em função da conversão deste. Não é por
acaso que o primeiro mártir da fé cristã foi justamente um dos diáconos
escolhidos acima: Estevão, assim como foi pela iniciativa e pela fé de outro,
Filipe, que foi convertido o primeiro grande dignitário estrangeiro At 7,55-60;
8,26-40.
A conversão alcançada por Filipe não
gerou maior estresse porque aconteceu à margem da “grande igreja”, bem
diferente de quando Pedro, apesar de líder reconhecido, ousou batizar o
Centurião Cornélio, apesar de este ser apresentado por Lucas como “piedoso e
temente a Deus”, que “dava muitas esmolas ao povo judeu e orava a Deus
constantemente” (10,2). Quando Pedro retornou da casa de Cornélio,
imediatamente um grupo dos que “eram da circuncisão” foi-lhe pedir satisfações
nos seguintes termos; “entrastes na casa de incircuncisos e comestes
com ele!” (11,2-3). Dá para notar alguma diferença do discurso dos fariseus para
com Jesus? Das explicações dadas por Pedro depreendemos que foi necessário um
milagre portentoso para retirar dos judeus cristãos a mentalidade do
exclusivismo adocional, herdado de sua cultura. “Só nós fomos escolhidos filhos
de Deus!”. Ainda assim eles, Pedro inclusive, não se mexiam, não saiam de
Jerusalém e arredores. Isso não podia perdurar.
Enquanto a alta cúpula da Igreja, os apóstolos,
hesitava, a morte de Estevão por apedrejamento, por volta de 33, trazia consequências
que fogem ao ocntrole: os cristãos da diáspora, o principal foco da
perseguição, dispersaram-se em várias direções, e alguns deles, oriundos da
ilha de Chipre e da Cirenaica (norte da África), chegados a Antioquia (3), começaram a pregar a Palavra entre
os gregos, conseguindo muitas conversões, afinal “a mão do Senhor estava com
eles” (11,21), isso lá pelo ano de 37. Não dava mais para deter, ou tentar
conduzir por meios humanos, o desenvolvimento natural da semente. Ainda mais
porque agora, ajuntara-se ao grupo dos cristãos “universalistas”, uma
personalidade fulgurante e irrefreável.
O Apóstolo dos Gentios
Wikipedia
Paulo ou Saulo, seu nome aramaico, nasceu
e foi criado no mundo da diáspora. Seu pai deve ter sido um próspero artesão,
um peleteiro, que granjeou por seus próprios méritos a cidadania romana, que
seu filho herdará. Do contato com as tradições de sua gente veio-lhe o desejo
intenso de ser um fiel fariseu, e do contato com o ativo mundo mercantil de sua
cidade, veio-lhe uma certa abertura de espírito, uma visão mais ampla do mundo
e dos homens, avessa ao exclusivismo farisaico, um amplo domínio da koiné, uma
variante popular da língua grega, a língua mais difundida na bacia do
mediterrâneo, além do conhecimento sobre a forma de pensar e argumentar dos
povos ocidentais.
Seja como for, mesmo sendo adepto da
corrente menos rigorista do judaísmo, expressa pela escola do rabino Hillel, e
aluno do mestre Gamaliel (22,3) (4),
Paulo, em Jerusalém, se aproxima dos elementos mais raivosos de seu povo na
perseguição à nova seita. Ele está entre os que insuflam o linchamento de
Estevão e, talvez no ano de 34, ele, com um grupo de jovens arrojados e
intolerantes, parte para Damasco a fim de dar caça aos cristãos aí infiltrados,
quando no caminho acontece alguma uma coisa. Uma insolação, com perda
momentânea da consciência, seguida de uma visão, um colapso nervoso devido à
furiosa contradição que via entre as ordens da corrente majoritária do sinédrio
e aquilo que aprendera de Gamaliel? Algo que está acima de nossa explicação ou
tudo isso misturado? É então que Paulo, o mais terrível e preparado perseguidor
dos cristãos, muda. Muda, e se afasta de tudo durante três anos, findo os quais
apresenta-se à comunidade de Jerusalém como um cristão perfeitamente preparado,
obtendo o aval dos principais apóstolos.
De onde lhe veio esse preparo? Como ele
obteve esse conhecimento tão vasto e sublime sobre a essência do cristianismo e
essa teologia tão densa, que aparece em suas cartas? Decerto que não foi com o
singelo Ananias, um instrumento de cura. Paulo simplesmente cala-se, como a
guardar um segredo precioso, embora fale aqui e ali de coisas inefáveis (Gl 1,15-19;
1Cor 15,8, e, principalmente, 2Cor 12,1-4), que escapam à análise da
historiografia, e nos deixa cheios de dúvidas sobre quem foi o mestre cristão
de Paulo? Por que ele omitiu o seu nome, se viveu para propagar o nome de
outro, Jesus Cristo. Como ele pode se intitular “apóstolo”, ainda que o menor
de todos, se esse termo, desde a mais antiga tradição, sempre se referiu
àqueles que Jesus escolheu pessoalmente, como pode Paulo, sempre tão discreto
ao falar de si mesmo, na abertura da Carta aos Colossenses, 1,1, assumir
claramente o título de apóstolo?
A
ação cristã de Paulo, assim como os seus atos no judaísmo, logo se fizera
notar, e ele angariou uma legião de inimigos encarniçados. Sua vida, em
Jerusalém, corria perigo, e não valia a pena expor uma pessoa com tanto
potencial a tal perigo, quando ainda havia tanto a ser feito pelo mundo afora,
e ninguém, como Paulo, parecia mais talhado para isso. Ele parte em missão, com
seu amigo Barnabé, um judeu cipriota. Nesse meio tempo, a perseguição na
Palestina recrudesce, e lá por volta de 44, Herodes Agripa, filho mais novo de
Herodes Magno, manda decapitar o mais velho dos “filhos do trovão”, Tiago,
irmão de João, e manda prender Pedro, que se salva miraculosamente, no capítulo
12 de Atos, para reaparecer logo depois, no Concílio de Jerusalém, em torno de
50. Nesse ínterim assume a frente da comunidade um grupo rigorista
judeu-cristão encabeçado por Tiago, dito “irmão do Senhor”. Porém, até Pedro
terá que sair de sua zona de conforto, próxima ao Templo, para ir direto ao
centro daquilo que ele mais temia, para pregar a palavra de Deus: Roma.
Como era o mundo que os missionários
cristãos iriam enfrentar?
O Judaísmo da Diáspora
Wikipedia
Desde o século VIII a.C., em vagas
sucessivas, na maioria das vezes forçada, de emigrantes e exilados judeus, se
espalharam pela bacia do Mediterrâneo, formando colônias consideráveis nas
cidades greco-romanas – ao todo contam-se umas 150, mais ou menos. Eles eram
numerosos em Antioquia, Roma e principalmente Alexandria, onde ocupavam dois
dos cinco grandes bairros que formavam a malha urbana, com uma característica
que lhes era familiar: a formação de comunidades fechadas, o que devia atrair
sobre eles certa antipatia e despeito da comunidade gentia, mas que também não
deixava de se admirar com as demonstrações tão fortes e espontâneas de
solidariedade entre eles, como era comum na sua cultura tribal e na sua ética
religiosa, o que decerto deu ensejo a muitos estrangeiros de se tornar um deles,
embora isso também causasse ressentimentos, na medida em que essa solidariedade
não era compartilhada com os estranhos.
Essas comunidades tinham o centro de
sua vida cultural e religiosa na sinagoga, dirigida por um arquisinagogo,
assessorado por um conselho de anciãos para assuntos civis, que se moviam com
grande autonomia junto às autoridades. Nesse assunto podemos dizer que os
judeus foram muito diligentes e bem sucedidos, junto às autoridades estatais
romanas, para conseguir isenções e privilégios consideráveis para a sua gente e
práticas religiosas (5).
No plano econômico tinham uma presença
difusa e variada. “na Ásia Menor e no Egito, muitos deles se ocupavam da
agricultura, como camponeses ou pequenos proprietários independentes [na Idade
Média isso lhes será vedado]. Um ofício que exerceu sobre eles particular
atração foi a de tecelão e tintureiro [Paulo de Tarso entre eles]... [foram
também] coletores de impostos, juízes e oficiais do exército. Na grande cidade
de Alexandria exerceram um importante papel no setor bancário” (Jedin; 1966; p
121). Sua aptidão para o comércio para o comércio e as finanças já eram
consideráveis, e pouco propícias e a lhes granjear simpatias.
No plano intelectual mostraram uma grande
versatilidade, e, onde lhes foi dado espaço, tiveram um papel considerável na
cultura, como em Alexandria, onde prosperou a escola filosófica do mestre Fílon,
morto em torno de 50, um judeu oriundo de família rica e importante, o primeiro
a tentar construir uma ponte entre a religião hebraica e a filosofia grega, de
corrente platônica – segundo Jedin (1966; p 122), Fílon chamava seu mestre de o
“muito santo Platão” – dando origem a uma filosofia mosaica, cujo arcabouço foi
de grande valia para o pensamento cristão posterior e de cujos trabalhos destacamos
os seguintes pontos:
a)
Leitura alegórica do texto bíblico: “sem renunciar ao sentido literal
primário dos acontecimentos... descritos na Bíblia, se podia encontrar, para
além deles, um sentido oculto mais profundo, que via, por exemplo, em Adão o
símbolo da razão humana, em Eva o da sensibilidade, e na árvore da vida do
paraíso o da virtude, e o Paraíso mesmo como símbolo da sabedoria de Deus; dele
afluíam quatro rios que são as quatro virtudes cardeais [prudência, justiça,
fortaleza, temperança]” (idem; idem).
b) Conceito
de Logos: Fílon foi o primeiro a refletir sobre a existência de um
intermediário entre Deus e o homem, uma hipóstase (uma manifestação da
essência) de Deus. O termo logos, que em grego primitivamente queria dizer
“palavra”, termo mais tarde enriquecido pela tradição filosófica, tem muito a
ver com o fato de, segundo o Gênesis, Deus ter criado o mundo pela sua palavra,
portanto não estamos falando de uma palavra puramente humana, mas de outra que é
capaz de criar substância, matéria, do nada. É uma espécie de poder criador que
existe em Deus, que tem vida própria, mas que não é Deus. Segundo Fílon, o
Logos “é o intermediário entre Deus e os homens. É o mais antigo dos seres; é o
filho primogênito de Deus, e é a imagem Deste. O Logos, entretanto, é inferior
a Deus e se acha na fronteira que separa a criação do criador” (Wikipedia em
espanhol – Filón de Alejandría).
Seria ainda uma espécie de “Arcanjo Mediador”, que junto com as Potências de
Deus, outras hipóstases ligadas às diversas atividades de Deus (julgar,
sustentar a existência do mundo, dispensar graças, etc.), evitariam o contato
direto de Deus, sumamente bom, com o mundo físico, considerado mau pelos gregos
e por Fílon (Reale–Antiseri; p 31-33)
c) Visão
tripartite do homem: o homem seria constituído de três elementos: o corpo
(físico), a alma-intelecto (princípio vital) e o espírito. “Apenas este é
imortal, porque é diretamente inspirado por Deus” (idem, idem)
O pensamento de Fílon é muito avançado
e prometia um longo e frutuoso diálogo entre a fé e a razão, entre o judaísmo e
o mundo não judeu, mas com a queda de Jerusalém, em 70, a nação se fechou ao
mundo num feroz ressentimento, e vice-versa, e o diálogo foi encerrado, de tal
sorte que a sua teologia se limitou, ao longo dos séculos, a interpor
comentários sobre comentários ao texto sagrado, cujo valor é ressaltado pela
autoridade ou prestígio de quem os fez.
Dos judeus de Alexandria também saiu um
dos maiores tesouros religiosos da humanidade: a Bíblia na versão dos Setenta,
ou LXX ou Septuaginta, usada, até hoje, pela maioria dos cristãos como sua
Bíblia padrão, principalmente os católicos, embora rejeitada, posteriormente,
pelos judeus (6) Mas que ninguém se
precipite. Fílon, e a maioria dos judeus da diáspora são extremamente leais ao
Templo e às manifestações religiosas vindas da Palestina e, pressionados, de
fato ou só na sua imaginação, pelo entorno pagão, mantiveram-se muito unidos e
coesos na sua fé, enquanto na Palestina a nação se dividia em facções
mutuamente excludentes.
Da
mesma forma, enquanto na Palestina boa parte dos judeus via com desconfiança e
ressentimento a presença de gentios em seu território, na diáspora os judeus
arregaçavam as mangas e atraíam cada vez mais gentios para a sua fé. Diz Jedin:
“O êxito dessa propaganda... é palpável no grande número de gentios que se
colocavam de forma mais ou menos próxima à religião judaica. O passo formal
para a religião judaica o cumpriam os “prosélitos” que, pela circuncisão,
batismo de imersão e sacrifícios, se tornavam plenamente judeus...
Substancialmente maior foi o número dos “tementes a Deus”, que não aceitavam
desde logo a circuncisão, culturalmente difícil para o sentimento gentio, mas
que não resistiam à ideia do culto monoteísta... celebravam o sábado, e
aceitavam várias outras práticas religiosas, e, de uma maneira geral, seus
filhos davam um passo além, fazendo-se circuncidar” (p 124).
Notas
(1) A ressurreição é, a meu ver, o
primeiro fato fundador da nossa Igreja, e um dos mais grandiosos e inefáveis
motivos de nossa fé, entretanto, é também um fato acientífico, ahistórico, na
medida em que não pode ser aquilatado como verdadeiro ou falso de acordo com os
métodos exigidos pela pesquisa científica. Como diz McKenzie (2003; p 792),
citando W. Grossouw: “o Jesus ressuscitado (e as suas aparições) é uma
realidade sobrenatural, que não pertence a este mundo e não pode ser objeto de
investigação histórica como tal; ela é exclusivamente objeto da fé. A
ressurreição... é um fato real, mas sendo um mistério da fé, não é um fato que
pode ser demonstrado com certeza pelos métodos de investigação histórica. A
história pode demonstrar apenas a fé dos discípulos na ressurreição”. Recomendo
muito a obra de McKenzie.
(2) Pentecostes era, segundo McKenzie,
uma festa do antigo calendário judaico, da época em que eles começaram a se
tornar agricultores sedentários, após a tomada de Canaã, chamada de festa das
Semanas, que foi adquirindo cada vez mais importância com o passar do tempo,
sem nunca ter alcançado a popularidade da festa das Tendas. No Primeiro
Testamento é citada em Ex 23,14-12; 34,22; Lv 23,15-21; Nm 28,26-31 e Dt
16,9-12, como uma festa que seria marcada com 7 semanas, mais um dia de repouso
sabático, a partir da colheita das primeiras espigas de trigo, o que lhe dava
uma grande mobilidade no calendário, até ser fundida com a festa dos Ázimos,
que também tem a ver com o pão e o trigo, e ganhar uma data regular no
calendário judaico: cinquenta dias após a Páscoa. Seguindo os passos de Lucas
sabemos que Jesus ressuscitado passou 40 dias entre os seus discípulos, a sua
última grande penitência antes de gozar a plenitude da felicidade junto ao Pai,
findo os quais elevou-se aos céus. Daí justamente a dez dias houve a descida
espetacular do Espírito Santo sobre os apóstolos e a mãe de Jesus (At 2,1-4).
(3) fundada em 300 a.C. pelo rei
Seleuco, em homenagem a seu pai Antíoco, a cidade estava situada nas margens do
rio Orontes, em meio a uma grande planície fértil, situada entre montanhas, a
cidade atingiu uma tal prosperidade que se tornou uma das maiores do mundo
antigo ocidental – alguns autores acreditam que sua população oscilava entre
500 e 800 mil – tornando-se a capital do reino Selêucida. Tomada pelos romanos
em 64 a.C., foi erigida capital da província da Síria. Tinha fama de ser um
grande centro de vícios e luxúria, o que implica que a vida da gente mais pobre
devia ser muito mais difícil. A cidade manteve a sua fama e o seu vigor até a Idade
Média. Foi arrasada pelo sultão egípcio Baibars, em 1268, e depois foi decaindo
lentamente, até que, em 1432, só possuía 300 casas habitadas, a maioria por
turcomanos. Hoje é um sítio arqueológico.
(4) Hillel Hazaken (o sábio), um dos maiores
nomes do judaísmo, nasceu em Babilônia, 70 a.C., e morreu em Jerusalém, no ano
10. Embora de família muito rica, quis ganhar seu sustento com as próprias
mãos, fazendo uma profissão não especializada, que lhe permitisse mais tempo
para estudar as escrituras. Tornou-se lenhador e mudou-se para Jerusalém. Dizem
que, como era pobre e não podia pagar as lições de um mestre conceituado,
tentou assistir suas aulas do telhado da casa – as aulas deviam acontecer num
pátio aberto – onde foi achado enregelado, no dia seguinte e dispensado do
pagamento. Sua inteligência aguda, a sua interpretação flexível e o seu
conhecimento da Lei lhe abriram as portas para se tornar presidente do
Sinédrio, até a sua morte. Conta-se que certa vez um gentio, conhecedor das
longas e minuciosas descrições que os rabinos faziam da Torá, desafiou a Hillel
nos seguintes termos: “se você me resumir a Lei, durante o tempo em que eu
conseguir ficar em um pé só, eu me converto”. Hillel respondeu: “não faças ao
próximo o que não queres que te façam; apenas nisso se resume a Lei, o resto
são comentários”. Outra máxima sua a esse respeito era: “não se imponha nenhuma
obrigação, quanto à Lei, que não possa ser cumprida pela maioria”. É ainda: “Se
eu não sou por mim, quem será? E se eu não sou por mim, quem sou eu? Se não
agora quando?”. Comentário do rabino Moisés Schul sobre essa passagem: “Cada um
deve se cuidar de si mesmo e assegurar a sua salvação, sem depender de ninguém,
sem perder um só instante, porque nossos méritos são pequenos, o caminho é
muito longo e amanhã nós poderemos não mais estar vivos” (traduzido da
Wikipedia em francês – Hillel Hazaken).
Os adeptos de Hillel compunham a mais popular escola de interpretação da Torá,
conhecida como Beith Hillel (Casa de Hillel).
Quando
Hillel morreu no ano 10, sua influência no Sinédrio foi abafada pela de seu
êmulo mais famoso: rabino Shammai, um observador minucioso da letra da Lei, fazendo-se
conhecido na história pelo seu temperamento irascível e intratável. Shammai era
um hierosolimitano, nascido em 50 a.C. e morto em 30 a.C., onde exercia a
profissão de arquiteto ou pedreiro, de onde teria vindo a sua compulsão pela
medida exata ou por um reducionismo legalista. Sua máxima mais conhecida era:
“Faça do estudo da Lei sua principal ocupação. Fale pouco, pratique muito e
acolha todos os homens de maneira amigável”. Uns contam que ele tentou obrigar
seu filho, ainda menor perante a Lei, a cumprir o rigoroso jejum do Yom Kippur,
sendo dissuadido por seus amigos. Segundo outra versão, ele lhe deu alimento só
com uma mão. Como sua nora estivesse convalescendo do parto durante a Festa das
Tendas, ele fez um buraco no teto do quarto dela, e construiu sobre ele uma
cabana ritual, na qual judeus costumam se abrigar durante essa festa. Cada um
que medite sobre isso. A Wikipedia em inglês e francês trazem mais informações
sobre Shammai, mas não muito mais que não pareçam lendas ou criações literárias.
Uma coisa é certa: com a morte de Hillel o rigorismo de Shammai avançou na
sociedade judaica, e foi justamente essa versão rigorista que Jesus enfrentou,
da parte dos fariseus. Seus adeptos compunham a Casa de Shammai (Beith
Shammai). Posteriormente, seu rigorismo foi associado às desgraças que se
seguiram após a morte de Jesus, como a destruição do Templo e a dispersão do
povo, e ele, hoje, e a sua doutrina, passou a ser deplorada por muitos judeus.
Gamaliel
o Velho, mestre de Paulo, era neto de Hillel, e é considerado outro grande
expoente do judaísmo. Morreu em 50. Uma de suas máximas é: “Aproxime-se do seu
mestre, afaste-se das dúvidas [religiosas], e só raramente pague o dízimo de
acordo com o valor legal [dê sempre mais]”. Fez uma curiosa classificação dos
aprendizes da Lei, comparando-os a peixes: “Um peixe ritualmente impuro: é quem
memorizou tudo pelo estudo, mas não tem entendimento; é filho de pai pobre. Um
peixe ritualmente puro: é quem aprendeu e entendeu tudo, e é filho de pais
ricos. Um peixe do Jordão: é quem aprendeu tudo, mas não sabe como responder.
Um peixe do Mediterrâneo: é quem aprendeu tudo e sabe como responder”
(Wikipedia em inglês – Gamaliel).
Gamaliel entra para a história da Igreja em virtude da citação de seu nome por
Paulo, como sendo seu discípulo pessoal – hoje vários estudiosos contestam essa
versão, baseados nas fontes judaicas, que não mencionam Paulo. Há uma tradição
cristã, divulgada pelo Patriarca Ecumênico de Constantinopla Fócio I, do século
IX, que diz que Gamaliel, seu filho e Nicodemos, foram secretamente batizados
por Pedro e João, de tal sorte que católicos e ortodoxos o veneram como santo.
Os judeus, no Talmud, afirmam que ele morreu fariseu, e fazem-lhe o mais
rasgado elogio: “Desde que Rabban [outro título] Gamaliel morreu, não houve
mais reverência à Lei, e a piedade e a pureza morreram com ele” (Wikipedia em
inglês).
(5) Ao contrário do que dizem os canais
de “história” da televisão americana, os romanos foram muito mais receptivos e
sensíveis à especificidade do povo judeu do que normalmente se divulga. Segundo
Bloch-Cousin, as concessões que Julio Cesar e outros imperadores fizeram aos judeus
incluíam: serem governados por judeus; dispensa de tributo de sete em sete
anos, por causa do ano sabático; proibição de tropas romanas desfilarem em
Jerusalém com a imagem do imperador; isenção de recrutamento e de requisições
entre os judeus da Judeia e da diáspora; direito de administrarem seus próprios
bens e de imporem contribuições aos seus seguidores, mesmo em território
romano; autorização para julgar e punir crimes conforme previsto na lei
mosaica; proteção do Estado à religião mosaica. E acrescenta ainda a
“notificação desses privilégios a todas as nações aliadas ou submetidas a Roma.
Criava-se assim uma situação excepcional: nenhuma “nação” beneficiava ou viria
a beneficiar em Roma de tais favores” (1964; p 402-403). Bem diferente era a
atitude do homem comum, o pagão “politicamente correto”, que estranhava seu
modo de vida muito diferente do habitual, mesmo comparado com o de outros povos
asiáticos. “Acusavam-nos de “deprezarem os deuses”, de só adorarem um deus “mal
definido”, de mentirem quando declaravam que seu deus habitava o santo dos
santos do templo de Jerusalém, onde Pompeio, quando entrou, “não viu nada...”
Não comiam porco, porque o porco dá a lepra, [os judeus] descendiam de leprosos
expulsos do Egito” (idem; p 403)
(6) A Bíblia de Alexandria, a
Septuaginta, ganhou esse nome porque, segundo a lenda, ela foi elaborada a
pedido do rei Ptolomeu II Filadelfo, no início do século III a.C., que,
impressionado com a riqueza dos ensinamentos contidos na Bíblia hebraica,
instou com os anciãos de Jerusalém para que lhe mandassem 72 sábios, 6 para
cada tribo de Israel, para fazer um trabalho de tradução seguro do hebraico
para o grego, a fim de melhor difundir aquele manancial de sabedoria. Conta
ainda a lenda que, chegados ao Egito, esses sábios foram trancados em 72
câmaras diferentes e incomunicáveis, lá ficando até cada um terminar o seu
trabalho. Ao terminarem o trabalho constatou-se uma maravilha: as 72 traduções
eram absolutamente iguais, fazendo cair por terra qualquer dúvida que o rei
ainda tivesse sobre a inspiração divina dos livros.
Bibliografia
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho;
Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado
de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia
Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da
Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
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