domingo, 27 de dezembro de 2015

HISTORIA DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – VIII

Obrigado aos amigos do Brasil, Estados Unidos, Canadá, Venezuela que acompanham esse blog. Que ele vos seja útil. Deus os abençoe.

Prof Eduardo Simões

A Tumba de Pedro

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Debaixo do baldaquino de Bernini, protegida por um vidro.

__ Um dos episódios mais marcantes da Bíblia é o relatado por Mateus, sobre a confissão de fé de Pedro (16,13-20), também narrado mais direto e secamente por Marcos (8,27-30) e Lucas (9,18-21). O fato teria acontecido no território de Cesareia de Filipe onde, após uma oração (Lc 9,18), seu momento de comunicação com o Pai, Jesus fez uma pergunta de supetão, como quem quer provocar uma revelação ou, de acordo com a psicologia humana, sondar as disposições de alguém, aparentemente a esmo: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13). Os discípulos, pegos de surpresa, relatam as opiniões disparatadas do vulgo, conforme o contexto da da época.
__ “E vós, prosseguiu Jesus, quem dizei que eu sou?” (16,15). Era a hora da verdade, provavelmente muitos já o tinham abandonado (Jo 6,66 ), e até aos apóstolos ele já teria feito um desafio, “e vós também não quereis ir?” (6,67). Era hora de ir além, de cada um justificar a Jesus e a si mesmo se valia a pena continuar investindo naquela empreitada perigosa. Os apóstolos hesitam, talvez ainda não entendessem bem o impacto de tudo o que até ali lhes fora revelado ou apenas se tivessem deixando levar pelo bem estar que lhes provocava a proximidade com Jesus. Simão, ousadamente, toma a palavra e diz algo que ele, Simão, provavelmente, nem entendia direito seu significado – os fatos futuros comprovariam esta suspeita – e diz: “tu és o Cristo, o filho do Deus vivo”. A resposta de Jesus é a de alguém profundamente alegre e impressionado com o que acaba de ouvir: “Bem-aventurado és tu, Simão filho de Jonas (Simão Bar Jonas), porque não foi a carne nem o sangue [Simão se tornara canal direto da Revelação] que te revelaram isso, e sim meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro [Pedro é um nome grego, mas Jesus deve ter dito “Cefas”, pedra em aramaico], e que sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Hades [o mal personificado] nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus...”

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__ Em 1939, o recém-eleito Papa Pio XII, resolveu mexer em uma área “tabu” dentro do Vaticano: uma área, debaixo do majestoso baldaquino de Bernini, onde fica o altar principal, chamado “da confissão” – a confissão de Pedro de que Jesus é o “Filho de Deus” – bem no centro da gigantesca cúpula que se eleva sobre a Basílica de São Pedro, onde, de acordo antiga tradição, estariam enterrados os ossos de São Pedro, local sempre cercado de respeito, devoção e pudor; um pudor quase sobrenatural de provocar a Deus, perturbando o descanso de uma pessoa tão venerável, só para conferir o acerto da tradição, sem falar que o cristão católico maduro, como o justo da Bíblia, vive da fé e não de sinais concretos (Hb 10,38). Estes não são mais que suportes, apoios, principalmente para aqueles que estão no início da caminhada.
__ Mas o mundo mudara. A incredulidade ativa, travestida de ceticismo, ganhara o mundo ocidental, capitalista, burguês, onde a Igreja Católica estava inserida, agora, como um apêndice, prestes ao seu final melancólico, como uma instituição desnecessária para o mundo moderno, propenso a crer somente naquilo que tinha substância suficiente para provocar os sentidos. O mundo, não a Igreja, precisava de uma demonstração sensível da fé, de uma prova, antes de ir pelos ares com as guerras que seus interesses mesquinhos estavam provocando, como a 1ª Guerra Mundial. Pio XII, entendendo esse momento, estava disposto a dar essa prova concreta. Ele resolveu, pela primeira vez desde o século IX, abrir as grutas do Vaticano à pesquisa de estudiosos e da moderna arqueologia, entregando os trabalhos aos cuidados do monsenhor alemão Ludwig Kaas, teólogo, historiador, político excessivamente pragmático e filósofo (1), que, apesar de sua boa vontade, não era um pesquisador de carreira e por pouco não pôs tudo a perder...

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Necrópole Vaticana, uma cidade para os mortos debaixo da Basílica de São Pedro

__ Quando começaram as escavações os arqueólogos quase perderam o fôlego. Havia, e ainda há, debaixo da Basílica de São Pedro, uma vasta necrópole – conjunto de edificações próximas, a semelhança de uma vila, feito para abrigar cadáveres, que, pelo seu luxo revelavam o elevado status das pessoas ali sepultadas – pré-cristã. A Necrópole Vaticana. De certa forma, se o túmulo de Pedro estivesse ali, parecia reproduzir as circunstâncias da morte de Jesus, sepultado com apreço (Mt 57,60), conforme previsto numa das leituras possíveis do profeta Isaías (53,9). Acima de tudo espantara-os o tamanho do terrapleno que fora feito por ordem do imperador Constantino, em 318, mais de um milhão de metros cúbicos de areia, quando havia uma área já aplainada ao lado, no chamado Circo de Nero, para plantar os alicerces da sua basílica! O que ele quis preservar ou marcar ali, inclusive soterrando túmulos de famílias importantes de Roma!

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Sepultura de Pedro vista de frente e em corte: upper niche = nicho superior; graffiti wall = muro dos grafites; repository = local onde se acharam os ossos em 1942; red wall = muro vermelho; original ground level of the tropaion = nível original do tropaion (monumento a Pedro mais antigo); surviving part of Peter’s grave = parte restante da sepultura [a primeira] de Pedro

__ Em 1942, foram encontrados alguns ossos, muito revolvidos, no local onde se supunha estar sepultado o apóstolo. Kaas, aparentemente sem saber de quem eram, os recolheu, temendo que fossem desrespeitados ou mal manuseados, guardou-os num local a parte, para submetê-los, posteriormente, a análise, enquanto os trabalhos se arrastavam sem nada digno de nota. Lá fora o mundo se autodestruía na 2ª Guerra Mundial. Entretanto, antes que algo pudesse ser feito em relação a esses ossos, Ludwig Kaas morreu, e os ossos, guardados noutro lugar, dentro de uma caixa, foram esquecidos (2). Outro momento embaraçoso foi quando, ao ser derrubada uma das paredes próximas à suposta tumba de Pedro, caíram em pedaços algumas das primeiras estruturas, e um dos dirigentes das escavações, o Pe. Antonio Ferrua, supondo ser entulho – a história nunca foi explicada direito – resolveu pegar um pedaço para guardar consigo. Amadorismo, excesso de pudor, caça às relíquias e até vaidades pessoais ameaçavam comprometer todo trabalho. E assim transcorreram as coisas até o ano de 1950, quando as escavações são encerradas oficialmente. Na radiomensagem de Natal daquele ano, 23/12/1950, o Papa Pio XII anuncia o descobrimento da tumba de São Pedro, mas deixa em aberto a questão sobre os ossos do apóstolo.

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Mesmo monumento acima visto de cima

__ Em 1952, Após a morte de Kaas, a direção dos trabalhos foi entregue a uma famosa epigrafista, a doutora Marguerita Guarducci (2), que começou a traduzir as inúmeras inscrições (grafites) nos muros que isolavam a área ao redor. Num deles podia se ler: “Pedro roga por nós, os cristãos que estamos sepultados junto ao seu corpo”. Havia ainda inúmeras referências a Pedro, com uma característica suis generis: à haste vertical da letra “P” se acrescentavam três pequenos apêndices horizontais, simulando uma chave, mas ainda faltava o principal. Os vários ossos encontrados nas imediações do suposto túmulo pertenciam a homens e mulheres comuns, sepultados sem maiores cuidados, além de animais diversos, pequenos mamíferos e aves, que rondam os cemitérios ou eram oferecidos em sacrifício aos mortos.  Nesse transe, ficou-se sabendo que o padre Ferrua estava de posse de um artefato, suposto entulho, retirado das escavações. Imediatamente foi expedida uma ordem dos mais altos escalões: “devolva-o já!” Nesse pedregulho o olhar clínico da doutora Guarducci identificou um tesouro valiosíssimo, um grafite incompleto, em grego, uma língua muito falada na Roma do século I, principalmente entre cristãos – o cristianismo criou fortes raízes na Grécia, antes de chegar a Roma – onde se podia ler: “PETROS ENI” = PEDRO ESTÁ AQUI ou PEDRO ESTÁ AQUI DENTRO. Mas onde estava Pedro?

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(idem)
Reconstituição.

__ Nesse momento de perplexidade, um trabalhador lembrou-se que o padre Kaas havia retirado uns ossos do local e guardado noutro lugar, um armazém nas oficinas do Vaticano, onde estavam colocados dentro de uma caixa, devidamente classificados (3). Os ossos foram submetidos à análise pelo Professor de Antropologia Venerando Correnti, da Universidade de Palermo, e as conclusões foram as seguintes:
1º - Os ossos continham terra semelhante a da tumba encontrada vazia – uma vez que Kaas retirara os ossos sem o conhecimento dos arqueólogos – e que era diferente da terra das outras sepulturas próximas.
2° - Os ossos continham, em seus poros, muita terra entranhada, sinal que estiveram por um bom tempo em contato diretamente com o solo, como seria de se esperar, tendo em conta as circunstâncias da morte de Pedro.
3º - Esses ossos apresentavam, misturados a eles, fios de um tecido de cor púrpura, emaranhados com fios de ouro finíssimos, uma trama que, na época, era exclusiva de vestes imperiais, mostrando que aqueles ossos, pertenciam a uma pessoa muito considerada, mas que morreu pobre, uma vez que esses indícios não estão associados ao primeiro sepultamento.
4º - Os ossos seriam de um homem robusto, que morreu entre os sessenta e setenta anos. A robustez coincidia com a profissão e o estilo de vida de Pedro, a idade também coincidia com a suposta pela tradição.
5º - As rótulas estavam muito gastas, como acostuma acontecer com pescadores, que as forçam muito ao empurrar seus barcos para dentro ou fora da água.
6º - foram encontrados ossos de todas as partes do corpo, menos dos pés, o que confirma um costume romano de cortar os pés daqueles que eram crucificados de cabeça para baixo, uma vez que era trabalhoso tirar os cravos que perfuravam os ossos dos pés e que também, neste caso, ficavam numa posição incômoda (no alto).

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__ Na área da tumba também foram encontradas muitas moedas antigas, dos séculos finais da Antiguidade e início da Idade Média, além dos cadáveres de homens e uma mulher, sepultados sem o mesmo cuidado. Pedro decerto não morreu sozinho. Seria essa mulher a sua esposa, confirmando mais um fato da tradição?

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(idem)
Reconstituição do muro de grafites

__ Percebendo o impasse interminável criado pelos limites da ciência humana – indagado sobre se a ossada na caixa era de fato a do Apóstolo Pedro, o professor Correnti respondera que havia uma “alta probabilidade”, de realmente serem de Pedro; e isso de fato era o máximo que a ciência então podia afirmar – e do clima “pesado” que se criara em torno da equipe responsável pelas escavações, em especial os atritos entre Margherita Guarducci e Antonio Ferrua, Paulo VI toma a iniciativa e declara oficialmente, em 26 de junho de 1968 a descoberta dos ossos de São Pedro, 12 séculos depois deles terem sido lacrados, por questões de segurança. Alguns desses ossos serão expostos ao público, numa missa campal, em 24 de novembro de 2013, pelo Papa Francisco, na abertura do Ano da Fé

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Estado atual do muro dos grafites

Palavras da Professora Guarducci – entre aspas ou parênteses, as minhas intervenções estão entre colchetes.

__ “As escavações começaram [em 1940] e duraram até 1949. Forma umas escavações estranhas nas quais muitos achados foram destruídos e se cometeram erros indescritíveis”
__ “Encontraram uma necrópole, um antigo e vasto cemitério, que se estendia de leste a oeste, paralelo ao Circo de Nero, o mesmo circo onde Pedro teria sofrido o martírio. Esta grande necrópole estava coberta de terra, porque Constantino, ou alguém em seu nome... queria construir aí os alicerces sobre os quais se erigiria a primeira basílica em honra de Pedro”
__ O que encontraram sob o altar papal? Uma sucessão de monumentos e altares: uns debaixo de outros, uns dentro de outros. Isto significava que aquele lugar... havia sido, desde séculos atrás, objeto do culto a Pedro. Debaixo do altar papal, que é o atual altar de Clemente VIII (1594), se encontrou o anterior, de Calisto II (1123); dentro do altar de Calisto II se encontrou o altar de Gregório Magno (590-604); o altar de Gregório Magno, por sua vez, se apoiava sobre o monumento que Constantino, ainda antes de construir a basílica, havia mandado erigir sobre a tumba de Pedro, e que pode ser datado de entre 321 e 326. O monumento ode Constantino abarcava outro mais antigo, que teria sido construído no século II, o primeiro monumento a Pedro... se incluía uma pequena edificação, encostada em um muro rebocado de vermelho, que fazia as vezes de fundo ao primeiro monumento de Pedro. Nesta pequena edificação havia um muro [lateral, pequeno e grosso] coberto de símbolos e antigas inscrições (naturalmente anteriores ao monumento de Constantino...)... epígrafos que indicavam, por sua abundância, a imensa devoção dos fieis. Depois, atrás dessa edificação, se vê que o primeiro monumento de São Pedro era uma espécie de forro, que cobria uma antiga tumba de terra [a sepultura original de Pedro], sobre a qual haviam se sobreposto todos esses monumentos. Sob esse forro, desgraçadamente, não havia nada...
__ “Esse era o estado das coisas quando se concluíram as escavações de 1940-1949... Comecei a ocupar-me das escavações de São Pedro, depois que estas haviam terminado e fora publicado um relatório, em 1952”
__ “Um dos escavadores [provavelmente o padre Ferrua] havia publicado, embora não corretamente, um dos epígrafos que se havia encontrado no lugar onde estava o muro coberto de inscrições citado acima”
__ “Já havia tido oportunidade de ver um dos epígrafos, do qual se havia intuído a leitura “Petros Eni” (“eni” no sentido de “enesti”: Pedro está dentro)”.
__ “Foi então que pedi autorização a Pio XII para visitar as escavações... Pio XII me concedeu a permissão, e então comecei a procurar a inscrição “Petros eni”, mas não a encontrei, porque um dos escavadores [Ferrua] a havia levado para casa”
__ “Comecei a estudar o muro das inscrições, que estava dentro do monumento constantiniano. Agora esse muro era como uma selva impenetrável... me propus a decifrá-lo. A tarefa durou meses. Foi uma das mais difíceis que já fiz... em um determinado momento, porém, eu peguei o fio da meada e comecei a entender. Usava-se, ali, uma criptografia mística, ou seja, se jogava, em um certo sentido, com as letras do alfabeto. Ali superabundava o nome de Pedro, expresso nas letras P, PE, PET, vinculado normalmente ao nome de Cristo, com a sigla de Cristo e com o nome de Maria, e, sobretudo, dominava, nesse muro, aclamações à vitória de Cristo, de Pedro e de Maria. Também se recordava a Trindade, a Cristo, segunda pessoa... toda a teologia do momento estava ali, escrita no muro”.
__ “Depois comecei a interessar-me pelos ossos de Pedro... Os ossos de Pedro estavam na tumba, na terra, sob o forro, como sustentava a tradição da Igreja. Depois, quando Constantino quis fazer um monumento em honra ao apóstolo, os ossos foram tirados da terra e envoltos num precioso manto de púrpura e ouro e depositado nesse nicho (4), e foi lacrado para sempre. Sucedeu que durante as escavações, os escavadores, ansiosos por chegar ao lugar que a tradição indicava como sepultura de Pedro, não se preocuparam com os detalhes. Derrubaram o altar de Calisto II a golpes de marreta... para chegar o quanto antes à tumba. E o que aconteceu? Sob os fortes golpes da marreta caiu uma grande quantidade de escombros, do antigo muro rebocado em roxo, e tudo ficou misturado nessa cavidade, com os infelizes ossos que Constantino havia mandado depositar no nicho do monumento. Assim pareciam [aos olhos dos amadores e de arqueólogos pensando noutras coisas] um montão de entulhos, onde não se reconheceram os ossos”.
__ “Naquele momento... Monsenhor Kaas (Homem de confiança de Pio XII) notou que entre os escombros do nicho havia alguns ossos. Fê-los apartar dos escombros [a todos eles?] e guardá-los dentro de uma caixa, posteriormente trancada em um armário nas grutas vaticanas, onde permaneceu ignorada por uns dez anos”
__ “Um antropólogo de minha confiança, o professor Correnti, examinou o grupo de ossos da caixa, e me disse: “Há algo estranho neles, porque todos os grupos de ossos que me fizeram examinar até agora [os primeiros que foram achados “oficialmente”] eram de indivíduos diversos, já estes são de um só indivíduo”. Perguntei-lhe: “De que sexo”. “Masculino”, respondeu-me. “Idade?”. “Avançada”. “Compleição?”. “Robusta”. [Fim do relato da professora Guarducci]
__ O texto é claro e igualmente muito embaraçoso para a equipe arqueológica original, da mesma forma que para todos os católicos, pelas vicissitudes desnecessárias que os ossos de Pedro tiveram que passar. Ele não deixa lugar para dúvidas ou maledicências, como as mostradas em sites e artigos de pretensas autoridades científicas que, impossibilitadas de atacar a honorabilidade da professora Guarducci e do professor Correnti, apegam-se a detalhes insignificantes que abundam em quase todos os sítios arqueológicos, sem nem por isso perderem a sua credibilidade, ou omitem escandalosamente dados fundamentais. Gente, enfim, que é movida não pelo amor à verdade, mas por um não querer crer (5).

Tumba de São Paulo

__ Bem menos trabalho deu a tumba do apóstolo Paulo!
__ Segundo uma antiga tradição, São Paulo foi decapitado em algum lugar da Via Ostiense, que ligava, e ainda liga, Roma ao porto de Óstia, como se pode depreender do testemunho muito antigo do presbítero Gaios, do século II, citado por Eusébio de Cesareia na História Eclesiástica, e o de Jerônimo, em seu Vidas ilustres, além de outros testemunhos de sua decapitação feitos por Tertuliano, Lactâncio, João Crisóstomo e Sulpício Severo (6).
__ Segundo a tradição, após sua execução, acontecida às margens da via Ostiense, fora dos muros de Roma, o seu corpo foi sepultado numa área funerária próxima, pertencente a uma rica matrona romana, simpatizante do cristianismo, chamada Lucilla ou Lucina, a uns 3 quilômetros do local da execução. No início do século IV, o imperador Constantino fez construir uma basílica, justo nesse local, que já era objeto de culto, tal como nos informa o testemunho de Gaios. Essa basílica chamou-se de São Paulo Extramuros. Como o afluxo de peregrinos aumentasse de ano a ano, os imperadores Valentiniano II, Teodósio e Honório resolveram, no final desse mesmo século, ampliar a basílica. Grandes reformas, acontecidas em 433, sob o Papa Leão Magno, após um terremoto ter comprometido a estrutura, lacrarão a sepultura definitivamente. Mais tarde a basílica será saqueada por um ataque dos árabes, em 846. O pior ainda estava por vir!
__ Na noite de 15 para 16 de julho de 1823, um incêndio tremendo, provocado pelo descuido de um operário, durante uma obra de manutenção, destrói completamente a antiga basílica; todo o teto desabou, ficando apenas as paredes enegrecidas pelo fogo. Na reforma que se seguiu optou-se por “atualizar” o edifício, alterando-se completamente o aspecto da antiga basílica romana. Entretanto, durante o processo de restauro, as crônicas monásticas locais, a basílica estava sob os cuidados dos monges beneditinos, apontaram que num determinado momento, sob o altar principal, apareceu uma lápide de mármore branco onde se podia ler nitidamente a inscrição: “PAULO APOSTOLO MART”, que, por razões desconhecidas, não constou dos relatórios oficiais finais, e tornou a ser coberta. E assim as coisas continuaram.

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Reprodução fotográfica da lápide de São Paulo

__ Entretanto, no jubileu do ano 2000, pressionado pelos peregrinos, que reclamavam de não poder rezar aos pés do apóstolo Paulo, o bispo Marcelo Costalunga, o administrador da basílica, pediu e recebeu autorização do Papa para realizar escavações no local tradicionalmente atribuído à sepultura de São Paulo, sob o altar principal. Escavando com todo cuidado a área ao redor do altar, bem diferente do que aconteceu com a tumba de Pedro, a equipe do arqueólogo Giorgio Filippi deu numa lápide de mármore, em pedaços colados, de 2,12 m por 1,27, onde estava escrito em letras bem grandes PAVLO APOSTOLOMART[YRI] = PAULO APÓSTOLO E MÁRTIR, com uma característica curiosa, que comprova a sua antiguidade: 3 buracos feitos nela, um circular e dois quadrados, que facilitariam o costume antigo de jogar substâncias aromáticas dentro de sepultura, sem ter que abri-la completamente, ou inserir dentro dela objetos atuais, que se tornariam relíquias por contato com os ossos do santo.
__ Ao invés de abri-la, os arqueólogos optaram por uma outra abordagem, introduzindo pinças mecânicas pelas aberturas, que recolheram algumas amostras e as entregaram a um laboratório de análise, sem que seus profissionais soubessem o que iam analisar. O que se concluiu dessas análises foi o seguinte:
a) restos de incenso e substâncias aromáticas
b) amostras de linho de cor púrpura, costurado com fios de ouro; como na sepultura de Pedro.
c) ossos de um homem datados pelo carbono 14 como sendo do Iº ou IIº século.
__ Juntando tudo a conclusão é óbvia, e ela veio de forma muito discreta e ponderada, da mesma forma como na tumba de Pedro, na homilia do Papa Bento XVI, em 28 de junho de 2009, quando do fechamento do Ano Paulino: “[Depois de uma breve descrição das conclusões da análise científica] Isto parece confirmar a unânime e incontrovertida tradição de que se trata dos restos mortais do Apóstolo Paulo” (traduzido de www.audioguiaroma.com/san-pablo-extramuros.php).

__ Fim das dúvidas. Tanto quanto é possível, com a ciência e a tecnologia contemporâneas, podemos acreditar no encontro dos restos mortais de Pedro e Paulo, personagens tão gloriosos e cercados de veneração, que nem pareciam mais ser desse mundo, quase elementos míticos ou lendários pela incrível sorte que tiveram de ver o que viram e enfrentar o que enfrentaram, e mais ainda: podemos apontar o seu endereço. Todos os dois na Igreja Católica e, no caso de Pedro, embaixo e bem no centro da sede da Igreja Católica – dizem os estudiosos que se for colocado um fio de prumo bem no centro da cúpula da Basílica de São Pedro, ele vai apontar diretamente para o sepulcro do fundador da Igreja – cumprindo literalmente a profecia de Cristo: “SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI A MINHA IGREJA”, que tem demonstrado ao longo da história uma capacidade imensa, misteriosa, de resistir incólume, quando não sai fortalecida, aos seus mais encarniçados inimigos; isto é o que mais veremos ao longo dos próximos capítulos dessa história apaixonante, sem falar que são dois exemplos cabais do acerto da Igreja em colocar a Tradição dos Santos Padres como uma de suas fontes de fé.

Notas
(1) Do grupo diretor das escavações faziam parte, além do Monsenhor Kaas, os arqueólogos Enrico Josi, Pe Antonio Ferrua, arqueólogo, Pe Engelberto Kirschbaum, arqueólogo, e o arquiteto Bruno Maria Apolonj Ghetti, e os trabalhos se estenderam de 1941 a 1950.
(2) Aqui começa uma situação particularmente espinhosa. Erros grosseiros cometidos durante as escavações, explicitados posteriormente pela doutora Guarducci, devem ter contaminado os relatórios feitos ao Papa Pio XII, induzindo-o a pensar em mudanças profundas na direção dos trabalhos, e tentar salvar todos os esforços já feitos. Houve, aparentemente, um grande açodamento no início das escavações, que levou à destruição precipitada de, no mínimo, importantes testemunhos epigráficos – antigas pichações deixadas nas paredes – talvez até por se desconhecer a sua importância! Será que algumas das pessoas envolvidas, percebendo a transcendental importância de sua tarefa, e a sorte de terem sido designadas para ela, entraram numa disputa do tipo “corrida do ouro”, buscando a primazia no achado e na divulgação dessa incrível descoberta? Seja como for, em 1952, aproveitando a morte de seu grande amigo e colaborador próximo, Ludwig Kaas, Pio XII começou tratativas com a famosa epigrafista Margherita Guarducci.
Marguerita era membro da tradicional e influente família italiana, e alguns quiseram ver nisso a influência do poderoso patriciado romano, que tantos problemas causou à Igreja, por sua excessiva ingerência nos assuntos papais, ao longo da história. Ela tinha contra si, também, o fato de não constar, desde o início, da equipe diretora da escavação, de não ser uma arqueóloga, mas uma epigrafista, especialista em ambiente, em “circunstâncias”, que pouco podia optar sobre o que mais interessava: o corpo de Pedro, de ser uma mulher em um mundo ainda muito masculino: o Vaticano, que ainda estava a digerir a famosa madre Pascalina Lehnert, o braço direito do Papa, a primeira mulher a morar no Vaticano, sem falar que, além de não ser  uma típica  “católica praticante”, nos moldes da época, chocada com o que vira, ela divulgará, com discrição, mas sem meias palavras, as barbaridades cometidas no início das escavações, que comprometiam a equipe original.
Entretanto é preciso reconhecer que o comportamento da professora, ao longo do período que ela esteve à frente dos trabalhos, foi absolutamente profissional e científico, em contraste com a de seus êmulos, em especial o Padre Antonio Ferrua, que se apropriará indevidamente de uma peça importantíssima das escavações, e que, até o final de seus dias, negará o valor das conclusões da sua chefa – para o padre Ferrua, morto em 2003, com 103 anos, os ossos encontrados nas escavações, nenhum deles, são de Pedro. No entanto, os Papas Pio XII e Paulo VI acatarão rigorosamente as conclusões da professora Guarducci e reconhecerão, no final, o seu papel fundamental para o sucesso da empreitada. Ela será a porta-voz oficial das escavações.
(3) Esse estranho episódio veio a luz em 1953, relatado pela professora Marguerita Guarducci, que, perplexa com a quantidade de grafites, quase todos referentes a Pedro, numa área das escavações, resolveu investigar mais a fundo se realmente nada fora encontrado na cripta abaixo deles, o local da tumba. Foi aí que ela entrou em contato com o funcionário responsável pela manutenção da Basílica, Giovanni Segoni, o braço direito do Monsenhor Kaas. Segoni contou que, certa vez, como costumavam fazer todos os dias, à noite, ele e o Monsenhor Kaas foram examinar o resultado das escavações, e encontraram uma pilha de pedras e ossos misturados no local da tumba, e que o Monsenhor, angustiado pela possibilidade de se estar profanando sepulturas alheias, mandou recolher e classificar todos os ossos que estivessem no meio daquela pilha de entulhos, guardando-os adequadamente, julgando, inclusive, que fossem de várias pessoas. Os ossos foram então guardados nos armazéns das Oficinas de São Pedro, nas grutas do Vaticano. Segoni foi então com Guarducci até o armazém, e mostrou a caixa com os ossos. Estava tudo como ele havia dito. Foram esses ossos, ao todo uns 135, de diversos tamanhos, que Venerando Correnti, analisando, concluiu serem de um homem só, que reunia as características mais prováveis de Pedro – apenas um osso craniano não batia com o conjunto.
(4) O famoso crítico de arte italiano Frederico Zeri, que se identifica como um “não crente” escreveu: “o que mais me persuadiu de que os ossos encontrados naquele nicho são os que a tradição atribuía a Pedro, ou melhor, que na época de Constantino eram considerados ossos de Pedro, é o fato de que estavam envoltos naquele tecido... isto é, um tecido púrpura (tingido com uma concha que vinha da costa da Síria, na costa libanesa) costurado com fios de ouro. Um tecido deste gênero estava reservado exclusivamente à autoridade mais sagrada do império, isto é, ao imperador... só o augusto tinha esse atributo [o uso exclusivo] da púrpura e do ouro. Não existe em absoluto outra possibilidade: o próprio imperador deve tê-los envolvido naquele tecido precioso, que era o símbolo de sua autoridade e, inclusive, de sua vontade” (traduzido do espanhol de http://www.conoze.com/doc.php?doc=1506). Noutras palavras: ou os ossos são de Pedro ou do mais excêntrico imperador romano que se tem notícia, ainda não descoberto...
(5) Na mesma linha seguem aqueles que fizeram, e ainda fazem estardalhaço por causa da descoberta de alguns ossuários, por frades franciscanos, em 1953, numa caverna no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, próximos à igreja Dominus Flevit, “o Senhor que chora”, no mesmo local onde, segundo uma tradição do tempo das cruzadas, Jesus chorou após ter uma vista geral de Jerusalém (Lc 19,41-44). No Monte das Oliveiras também, todos lembram, Jesus viveu seu momento mais angustiante, antes de morrer, seus discípulos o mais vergonhoso e foi lá que o prenderam. Naquele ano os franciscanos levantavam um muro para marcar a área de ocupação da futura igreja de Dominus Flevit, planejada e erguida entre 1953 e 1955, próximo às ruínas do tempo dos cruzados, quando deram com um cemitério muito antigo – os achados datavam do tempo dos cananeus até a ocupação bizantina – sem qualquer vestígio na tradição cristã, anterior às cruzadas, ligada aos apóstolos. Vários ossuários foram achados e em um deles pode se ler: “Shimon Bar Yonah” ou Simão filho de Jonas. Para alguns, então, as escavações do Vaticano eram falsas, e como foram encontradas evidências de ser um cemitério cristão, além dos ossuários de uma Marta e uma Maria, a conclusão foi imediata: Pedro fora sepultado junto com as irmãs de Lázaro! Mas há problemas; e que problemas!
a) Só havia um Simão Bar Jonas na Palestina daquela época?
b) Por que Pedro iria querer ser sepultado em um lugar de tão péssimas recordações? Se o sepultamento foi feito por cristãos a revelia das memórias de Pedro, então eles não podiam ter imaginado uma punição pior para o seu querido Apóstolo.
c) Se Pedro está sepultado ali, por que o local nunca foi lugar de culto?
d) Que relação há ou poderia ser encontrada, em qualquer lugar que seja, entre Pedro e as irmãs de Lázaro e entre estas e Jerusalém?
e) Por que os ossuários ficariam todos misturados, como se todos fossem do mesmo nível ou tivessem a mesma importância dentro da comunidade cristã, quando é exatamente isso que não se vê nem nos Evangelhos nem nos Atos dos Apóstolos.
O professor Stephen Pfann, da Universidade da Terra Santa, num estudo muito erudito, mostra que as inscrições devem ser lidas antes como “Shimon Barzillai”, membro dos Barzillai, uma poderosa e conhecida família judia da Palestina. O estudo do professor Pfann pode ser visto em http://www.uhl.ac/en/projects/talpiot-tomb/shimon-barzillai/
(6) Numa página do site do Vaticano lê-se que São Paulo foi decapitado “fora das muralhas aurelianas, na Via Ostiense, sem dúvida alguma em Aquas Salvias”; que “as escavações confirmaram a presença de um cemitério debaixo da Basílica e ao seu entorno, composto de nichos e fossas para pobres, escravos e libertos”; que “o presbítero Gaios, “que vivia no tempo de Zeferino, bispo dos romanos de 199 a 217”, foi o primeiro que disse ter visto a memória [os monumentos] dos dois apóstolos”; que “o orifício redondo, que não altera a inscrição, é sem dúvida nenhuma contemporâneo [ao período do sepultamento de Constantino], trata-se de um pequeno conduto unido à sepultura e recorda um costume romano, e depois também cristão, de verter perfumes nas tumbas. Esta lápide dos séculos IV/V testifica um culto anterior à grande construção de 386 [feita por Teodósio e outros imperadores]”    http://www.vatican.va/various/basiliche/san_paolo/sp/basilica/tomba.htm  

Bibliografia
Bíblia de Jerusalém; 3ª impressão; Paulus; São Paulo; 2004
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho; Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes; Petrópolis; 1987.
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)
Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009
Sobre a tumba de Pedro recomendo as seguintes páginas em espanhol, francês, inglês e italiano.
http://www.conoze.com/doc.php?doc=1506
http://w2.vatican.va/content/paul-vi/fr/audiences/1968/documents/hf_p-vi_aud_19680626.html
https://web.archive.org/web/20041127084958/http://www.amaldi2000.it/Giribaldi/itomba_di_pietro.htm
http://www.conocereisdeverdad.org/website/index.php?id=4969
http://stpetersbasilica.info/Necropolis/MG/TheTombofStPeter-1.htm
http://infocatolica.com/blog/razones.php/1008071230-san-pedro-en-el-vaticano-las

http://kaire.wikidot.com/san-pedro-en-vaticano-las-pruebas-indiscutibles

sábado, 19 de dezembro de 2015


HISTÓRIA DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – VII

Obrigado aos amigos da Rússia, Brasil, Estados Unidos, Espanha, Alemanha, Ucrânia, França, Canadá, que acompanham esse blog. Que ele vos seja útil . Deus os abençoe.

Prof Eduardo Simões

A Primeira Controvérsia... de muitas

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__ É sabido que, talvez ás vésperas da partida para Jerusalém, para o desenlace de sua missão, Jesus tomou seus três discípulos mais próximos: Pedro, João e Tiago, e com eles subiu um monte na baixa Galileia, e lá aconteceu algo, que passou para a história como a transfiguração (1); algo espetaculoso, ao mesmo tempo na forma de luz intensa e treva tenebrosa, como algo que é muito desejado, mas cuja apropriação é angustiosa, e que, por um momento, fez os discípulos desejarem não mais sair de lá, além de deixar uma lembrança profunda (2Pe 1,16-18). A memória que esse e de outros episódios ligados à pessoa de Jesus exercia sobre uma comunidade, ao mesmo tempo tão pequenina e frágil, hostilizada pelo entorno, exercia uma força de atração e de retenção, tremenda. Quem gostaria de sair de lá, de junto do Templo onde o Senhor orou, da terra onde ele pregou, para enfrentar aquele mundo estranho, incoerente, cheio de seitas e gente esquisita? Mas ainda assim a Igreja crescia, aos poucos, em paz, uma comunidade unânime, até que um episódio veio sacudir a paz idílica dos primeiros tempos da Igreja.
__ Lá por volta no ano 50, chegaram à pioneira e efervescente Antioquia, nessa época o centro de operações de dois campeões missionários, Paulo e Barnabé, alguns membros da igreja de Jerusalém ligados às tradições farisaicas mais restritivas (At 15,5), e começaram a ensinar aos gentios – pagãos convertidos – que era necessário, ao se tornarem cristãos, observar a lei de Moisés, principalmente no que tange a circuncisão. Jesus afinal não fora circuncidado e não dissera que seu objetivo era levar a Lei ao seu pleno cumprimento (Mt 5,17 e Lc 16,17)? O problema é que para greco-romanos o pênis, tal como se apresentava ao nascimento, era um órgão perfeito e a circuncisão seria uma como que uma violência tanto à natureza quanto à sabedoria de Deus, uma vez que fora Ele quem criara o órgão masculino com o prepúcio. Os gregos sempre repudiavam fortemente essa intervenção cirúrgica e os romanos os seguiram.
__ Quando Paulo e Barnabé voltaram de uma missão encontraram a sua comunidade em polvorosa, e, como era de se esperar, principalmente por conta do temperamento do primeiro, houve forte discussão entre eles e os recém-chegados. Um perigoso impasse agora dividia aquela próspera a fiel comunidade, e era necessário superá-lo, antes que seus efeitos se tornassem permanentes. Paulo, Barnabé e outros se dirigem então à Igreja-Mãe de Jerusalém, para dirimir a questão junto aos apóstolos e anciãos (At 5,6)(2).
__ Ao chegarem a Jerusalém, Paulo e Barnabé também que esse assunto também dividia a comunidade local, sobre a obrigação de cumprir ou não a lei de Moisés e, segundo Lucas, foi Pedro quem, tomando a palavra, usando de uma autoridade indiscutível, esclareceu a questão e colocou a norma que deveria reger a Igreja quanto a esse assunto, e que pode ser resumida da seguinte maneira:
1º - Os gentios não deveriam ser submetidos à lei de Moisés, insuportável até para os judeus (5,10)
2º - É pela graça de Jesus que somos salvos (5,11)
__ Paulo e Barnabé aproveitam então para relatar as últimas conquistas de sua pregação entre os gentios, reforçando a ideia de que já se avançara muito nesse terreno e não era possível se deixar perder uma colheita, ou uma “pesca”, tão abundante, para preservar aquilo contra o qual Jesus se rebelara. Nesse momento acontece algo curioso. Tiago, o irmão do Senhor (3), aparentemente ligado ao grupo rigorista, judaizante, toma a palavra e, como que complementando o que Pedro dissera, define com mais precisão o que se deveria exigir dos cristãos vindos da gentilidade, a saber: não participar de cerimônias idólatras; das uniões conjugais ilegítimas (ver Lv 18); das carnes sufocadas (quando o animal não é sangrado) e do consumo de sangue (15,13-21). Isso é logo acatado e, junto com uma delegação mandada a Antioquia com Paulo e Barnabé, segue um decreto “conciliar”, que reproduz fielmente as palavras do discurso de Tiago (22-29), sem fazer qualquer menção a Pedro ou a João, que também se achavam presentes (Gl 2,9)).
__ Como vemos, não é possível passar sobre essa assembleia de importância fundamental para o futuro da Igreja, sem reprisar os pontos mais importantes, desse encontro que:
1º - abriu e definiu um espaço para a colegialidade na resolução de questões complexas ou dúvidas doutrinárias, que seria utilizado pela Igreja ao longo de sua história, até hoje, exceto pela ausência de uma marca mais tangível Pedro no documento final, temperando o absolutismo monárquico natural de uma instituição iluminada diretamente por Deus, através do seu Espírito Santo, quem ousaria contestar a Deus e quem seria vasto o bastante para discernir, sem erro, a sua vontade?
2º - abriu definitivamente, de uma forma que dava para todos passar, as portas da Igreja para o mundo, superando a tentação de permanecer uma seita judaica, à sombra do Templo, e desaparecer com ele. Foi o espírito e a coragem de tomar e encaminhar essa decisão que garantiu, na prática universalidade da Igreja de Cristo, na fidelidade ao seu Espírito. Dito fdr outra maneira, dentro da Igreja Hillel venceu Shammai, sem a necessidade de uma grande tragédia nacional, como aconteceu aos judeus.
__ Depois da passagem acima referida, Pedro desaparece definitivamente de Atos, embora pelas cartas de Paulo se possa encontra-lo em Antioquia, onde, segundo alguns, teria se tornado bispo. Seria indício de que uma tendência mais rigorista, mais judaizante, tendo Tiago á frente, assumiu o controle da Igreja de Jerusalém? Certamente, pelo contexto local, só um grupo assim poderia sobreviver algum tempo mais num ambiente tão hostil, embora essa concessão não tenha sido o bastante sequer para salvar Tiago uma morte violenta. 
__ Quanto às viagens missionárias de Paulo, seus sucessos e fracassos, elas estão narradas em detalhes nos Atos dos Apóstolos e em inúmeros livros já escritos a respeito, sempre baseados em Atos, o único documento que conhecemos sobre esse assunto, e como não foi descoberta, até agora, outra fonte, remeto os leitores à sua leitura. Sobre Paulo, porém, eu ressaltaria o seguinte:
1º - O seu cuidado em procurar a colônia judaica local, antes de iniciar sua pregação em uma nova comunidade.
2º - A hostilidade habitual e violentíssima com que foi tratado pelos judeus.
3º - O caráter eclético e flexível da sua mensagem, sem deixar de conservar e frisar as tradições mais legítimas.
4º - O caráter apaixonado do seu temperamento e a expressão incondicional de sua fé não raro o levaram a graves conflitos, inclusive com importantes personalidades da Igreja, como Barnabé (At 15,39) e o próprio Pedro (Gl 2,11-14).
5º - A sua ação circunscrita à bacia oriental do Mar Mediterrâneo, principalmente na chamada Ásia Menor (Turquia) e na Grécia, pelo menos nos Atos dos Apóstolos.
__ Paulo volta a se encontrar com Tiago e a complexa comunidade de Jerusalém, num momento seguinte, lá por volta de 58 (At 21), Quando fora levar uma contribuição dos cristãos gentios à comunidade carente da Palestina. Nesse momento ocorre uma situação estranha, que talvez tenha sido o maior erro de Tiago ou, por decreto da Providência Divina, a militância de Paulo entre os judeus devia, definitivamente, chegar ao fim ou faltam detalhes à narrativa... o que é mais provável.
__ Aconteceu que, estando em Jerusalém, para entregar à Igreja-Mãe o resultado da sua coleta, após apresentar o relatório de suas bem-sucedidas viagens, Paulo é informado por Tiago que judeus e prosélitos, vindos de diversas partes da Ásia para a celebração de Pentecostes, não cessavam de espalhar os boatos maldosos sobre ele às multidões, de sorte que havia de se temer uma ação violenta por parte do populacho sugestionado. Ainda sob orientação de Tiago, Paulo se une a outros judeus-cristãos praticantes, que deveriam pagar uma promessa, e segue para o Templo, a fim de mostrar a todos que ele é sim, um judeu piedoso (21,17-26). Entretanto, alguns judeus da Ásia o reconheceram e começaram um motim, obrigando à intervenção da guarda do templo e da coorte romana, para evitar o linchamento de Paulo, gerando como consequência a sua prisão (21,27-36). Lucas não relata nada dos sentimentos da comunidade de Jerusalém acerca do fato nem de qualquer tentativa de sua parte em favor de Paulo, e assim ele é levado a juízo junto às principais autoridades judaicas e romanas da região, mas, aproveitando-se da sua condição de cidadão romano, apela para o julgamento do imperador, “César”, que o tiraria do meio daquele ambiente tão hostil. O seu recurso é aceito e Paulo abandona definitivamente a Palestina.
__ Levado preso para Roma, Paulo permanece numa casa alugada e, provavelmente, acorrentado a um soldado dia e noite, durante os dois anos – de 61 a 63. Mesmo nessa condição ele tenta converter, em vão, membros da comunidade judaica romana, mas ante a resistência deles Paulo dá por concluída a sua missão entre seus compatriotas e encerra sua presença em Atos dos Apóstolos, fazendo uma reprimenda, seguida de uma profecia, que se realizou milimetricamente: “... o coração desse povo se endureceu: eles tamparam os ouvidos e vendaram os olhos, para não verem com os olhos, nem ouvirem com os ouvidos, nem entenderem com o coração, para que não se convertam, e eu não os cure! Ficai, pois cientes: aos gentios é enviada esta salvação de Deus. E eles a ouvirão” (At 28,27-28).

O Sangrento Fim da Era Apostólica

__ Em alguns de seus inúmeros diálogos, preservados nos Evangelhos, Jesus prenuncia a morte violenta de seus discípulos mais próximos, assim como acontecerá com ele (Mt 10,24; 20,23; Mc 10,39; Lc 6,40; Jo 10,16), e nesse ponto ele foi particularmente minucioso com Pedro (Jo 21,18-19). Entretanto, a única fonte disponível sobre a história dos apóstolos, logo após a ascensão de Cristo, são os Atos dos Apóstolos, que embora sejam muito detalhados. Se concentram apenas em Pedro e Paulo, além de abarcarem só um curto período de tempo.
__ De Pedro, por exemplo, sabemos que continuou desempenhando um papel primordial no comando da Igreja, até o capítulo 15 dos Atos, quando, após breve alocução, desaparece definitivamente do relato, de sorte que se queremos saber alguma coisa dele temos que recorrer aos relatos de outros antigos autores cristãos que, invariavelmente, associam a sua morte com a de Paulo, e ambos com a comunidade de Roma, sem falar da saudação final em sua primeira epístola, quando ele diz: “A [igreja] que está em Babilônia eleita como vós, vos saúda” (5,13) (4).


http://www.mediterranees.net/histoire_romaine/empereurs_1siecle/neron/images/styka_quo_vadis.jpg
http://www.mediterranees.net/

__ O silencio sobre esse os dias em que Pedro ficou em Roma, podem muito bem ser explicados pela insignificância da comunidade cristã, frente a inúmeras outras comunidades religiosas, mais antigas e aceitas pelos romanos, assim como a imensa quantidade de documentos que se perderam durante as perseguições que se seguiram. É de se crer que mesmo em momentos de relativa tranquilidade, o apóstolo e os cristãos, escaldados pela experiência traumática de Jerusalém, preferissem agir com discrição, sem falar que sempre foi muito forte entre os católicos a noção de que a conversão das nações é tanto uma responsabilidade dos já convertidos como uma graça de Deus. É preciso ter calma e, às vezes, esperar Deus agir também, para não nos transformarmos em compulsivos camelôs da graça, a criar um “cristianismo” superficial e preconceituoso. Até onde a tradição nos informa, foi Pedro quem criou o bispado de Roma, tornando-se o primeiro bispo da cidade, embora não tenha sido ele quem pela primeira vez pregou o cristianismo em Roma. Quem foi? Não sabemos. É a invisível e misteriosa graça de Deus, fazendo o cristianismo brotar onde menos se espera (Mc 4,30-32).
__ A segunda tradição sobre Pedro, nesse período, informa-nos de que ele foi morto em Roma, na colina do Vaticano, entre 64 e 67, crucificado de cabeça para baixo, quando da perseguição de Nero (5), acrescida de uma lenda singela, relatada num livro apócrifo, chamado Atos de Pedro, segundo o qual o apóstolo, novamente aterrorizado ante a possibilidade de uma morte violenta, assombrado pelo fantasma da crucificação do Senhor, teria, a pretexto de preservar o depósito da fé e do conhecimento de Jesus, constante em sua pessoa, numa atitude que revela ao mesmo tempo um personalismo arrogante e uma descrença na providência, fugido de Roma, com a ajuda de um jovem secretário. Narra ainda o relato que quando ele chegou no cruzamento da via Appia com a via Ardeatina e parou para descansar, teve uma visão de Jesus, vindo em sentido contrário, carregando uma cruz. Nesse momento ele perguntou: “Quo vadis, domine?” (Aonde vais, Senhor?), ao que Jesus lhe respondeu: “Eo Romam iterum crucifigi” (Vou a Roma, ser de novo crucificado). Abalado, Pedro desiste de seu intento, retorna e sofre o seu destino.
__ Curiosa, a personalidade de Pedro, tão arrebatada e ao mesmo tempo tão hesitante! Quantos conflitos internos, sentimentos de culpa diários, não devia sofrer esse homem? E foi justamente a ele que o Espírito Santo escolheu para fundar e dirigir uma igreja do tamanho e complexidade da cristã, no coração do mais poderoso império do Ocidente. Sua morte, porém, foi heroica e, provavelmente, seguida pela de outro apóstolo que lhe está sempre associado e que, ao mesmo tempo, lhe é tão semelhante quanto diferente: Paulo.
__ Assim como Pedro, Paulo tem um temperamento arrebatado, mas, ao contrário do outro, uma vez posto em movimento não se detém até ter alcançado seu objetivo, sejam quais forem os obstáculos. A sua enorme cultura religiosa e humanista transforma-o num gigante intelectual diante do primeiro, a quem nunca contestou a autoridade, exceto em questões morais. Após a prisão relatada nos Atos perdemos o rastro dele. Aparentemente, Paulo foi solto e continuou sua missão apostólica. Por onde? Não sabemos. Ele fala, duas vezes em Romanos (15,24.28), sobre ir à Espanha, e conhecendo o temperamento e a energia inesgotável dele não é de duvidar que tenha ido mesmo, antes da perseguição de Nero, como exilado, em virtude do processo em que se envolveu (conferir http://www.zenit.org/pt/articles/especialistas-consideram-que-sao-paulo-esteve-na-espanha). Mais tarde, segundo uma das tradições mais aceitas, ele teria voltado prisioneiro a Roma, e, devido a sua condição de cidadão romano e cristão, foi decapitado.
__ André, irmão de Pedro, de temperamento atento e prestativo (Jo 6,8; 12,22), o primeiro dar testemunho de Jesus Cristo (Jo 1,41), segundo Eusébio de Cesareia, repetindo antigas tradições, pregou o Evangelho nas margens do Mar Negro para partos e citas, na Bitínia, na Macedônia e na Acaia. Teria sido crucificado em Patras, na Península do Peloponeso, na Grécia, amarrada a uma cruz em forma de X, a cruz de Santo André, que aparece na bandeira de vários países.
__ Tiago, irmão de João, que junto com o irmão e Pedro estava entre os mais íntimos de Jesus, digno de assistir à sua transfiguração e à sua terrível agonia em Getsêmani, segundo uma tradição não muito antiga, andou a pregar o Evangelho na Espanha, após o que voltou á Palestina e foi morto a espada por Herodes Agripa, lá por volta do ano 40 (6).
__ Tomé, o apóstolo ambíguo, muito presente no relato de João. A confusão já começa pelo seu nome “Tomé”, que em aramaico quer dizer gêmeo, sendo possível que o seu nome verdadeiro não tenha sido preservado. No episódio de Lázaro, ele incita os companheiros ao seguimento heroico de Jesus: “vamos também nós para morrermos com ele!” (Jo 11,16), a não ser que estivesse sendo irônico. Espírito realista, pragmático, acaba provocando uma revelação maravilhosa, quando pede uma indicação do caminho (14,5) – note-se o tom irônico da sua colocação. Por fim, fica historicamente famoso por sua demonstração de incredulidade (20,24-29), embora esteja entre os premiados com a visão de Jesus no final de João (21,2). Tomé tem o seu nome ligado à pregação do Evangelho no centro da Ásia, em Edessa, na Turquia atual, além de, segundo uma tradição, ter pregado o Evangelho na Índia, onde fdoi martirizado, lá por volta de 57, na cidade de Mylapore, lancetado por quatro soldados. Os modernos portugueses ficaram impressionados ao chegarem à Índia e encontrarem núcleos de antigas comunidades cristãs; mas a origem destas pode ser outra.
__ Filipe, o simplório, capaz de dizer a Jesus, “mostra-nos o pai e isso nos basta!” Que merece uma resposta estupefata de Jesus (Jo14,8-9). Segundo uma tradição ele teria pregado o evangelho no oeste da Turquia, antiga Ásia Menor, na cidade de Hierápolis, onde foi crucificado ou decapitado pelas autoridades romanas. Em fins de Julho de 2011, uma equipe de arqueólogos, chefiados pelo pesquisador italiano Francesco D’Andria, descobriu, perto da cidade turca de Denizli, uma tumba identificada como sendo do apóstolo Filipe.
__ Mateus, de profissão publicano e o evangelista dos judeus. Ante o fracasso da missão entre os judeus teria ido à Etiópia, onde morreu apunhalado.
__ Bartolomeu ou Natanael, o verdadeiro. Foi o único apóstolo a receber Jesus com descrença e a ser recebido por Jesus com um elogio (Jo 1,46-47). Segundo uma tradição teria pregado na Armênia, onde converteu o próprio rei, Polymius. Entretanto, Astíages, irmão do rei, insuflado por sacerdotes pagãos, mandou prender a Bartolomeu e, em seguida, esfolá-lo vivo, a não ser que se submetesse aos deuses. Em seguida ele foi decapitado e pregado a uma cruz.
__ Simão o Zelote. Sua imagem é sempre apresentada com uma enorme serra, como referência a uma tradição que diz que ele foi serrado ao meio pelos persas.
__ Judas Tadeu, companheiro de Simão, foi martirizado com este, a golpes de machado, por uma multidão persa, insuflada pelos sacerdotes zoroastristas.
__ Matias, sorteado para tomar o lugar de Judas Iscariotes, que se suicidara, diz-se que também pregou na Etiópia, mas há dúvidas sobre como se deu a sua morte (decapitado, apedrejado, crucificado).
__ Barnabé, o companheiro de Paulo, que, após se desentender com este, desaparece dos Atos, mas, segundo a tradição, continuou pregando na Ásia Menor, até ser linchado por uma multidão de judeus furiosos, ao pregar o cristianismo numa sinagoga em Salamina, no Chipre, sua terra natal.
__ João, filho de Zebedeu. O discípulo “que Jesus amava”, místico, evangelista e o único apóstolo que ficou ao lado do Senhor na sua morte, adotando e sendo adotado pela mãe do Jesus. A misteriosa abertura de seu Evangelho é uma revelação espetacular, assim como espetacular, principalmente naquela época, é a síntese genial de 1Jo 4,16: “Deus é amor; e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele”. Até parece que João era diferente e foi tratado diferente. Diz a tradição que ele, aos 94 anos, foi exilado para a ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse, um texto misterioso, de alguém que também recebera do Ressuscitado uma promessa igualmente misteriosa (Jo 21,22-23). O mistério de João, porém, não termina aí. Diz-se que o imperador Constantino, querendo erguer uma imponente basílica sobre a sua sepultura, em Éfeso, mandou abrir a sua tumba e, surpresa, nada foi encontrado, de sorte que ele é o único dos apóstolos sobre o qual não há um culto de relíquia, nem relatos de relíquias pessoais existindo aqui ou acolá. Da mesma forma que Maria...       

Notas
(1) Transfigurar é quando algo ou alguém muda de conteúdo e/ou de forma, de modo a revelar a sua verdadeira natureza. No contexto dos Evangelhos (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10 e Lc 9,28-36) significa a revelação aos sentidos dos três apóstolos escolhidos da verdadeira natureza de Jesus, oculta sob a sua forma humana.
(2) Quem seriam esses anciãos, aparentemente tão importantes e apartados dos apóstolos? O Conselho de Anciãos ou presbiteroi, em grego, era uma assembleia de antigos e respeitados rabinos, que oferecia conselho, assessoria, além de tomar parte em algumas decisões, às autoridades religiosas judaicas e que os primeiros cristãos aparentemente copiaram, como era de se esperar naquele momento – provavelmente era composto pelos discípulos mais próximos, mais bem preparados e fieis a Jesus, durante a sua breve missão. Seriam eles o equivalente aos atuais bispos? A primeira menção acontece em At 11,30.
(3) Eis um mistério até agora insolúvel. Quem seria esse Tiago, “irmão do Senhor”, o provável escritor da Epístola de Tiago? Se era Tiago, filho de Alfeu, apóstolo nomeado em Mt 10,3, porque só ele carrega esse cognome tão especial? Se era irmão de sangue de Jesus, junto com outros (Mt 12,46; Mc 3, 31; Lc 8,9; Jo 2,12; At 1,14; 1Cor 9,5; Gl 1,19; etc.), porque Jesus entregaria sua mãe aos cuidados de João, de uma forma tão taxativa, de modo a não deixar dúvidas (Jo 19,26-27)? Seria, por ventura, um parente próximo, que o exclui do círculo dos apóstolos, mas que talvez por causa disso, alcançou um grande prestígio na comunidade de Jerusalém? Mas como explicar então, que uma personalidade tão importante tenha tido tanta dificuldade ter a sua epístola aceita entre os livros canônicos? Segundo a Bíblia de Jerusalém, ela “só se impõe ao conjunto das igrejas do Oriente e do Ocidente pelo fim do séc. IV” (2004; p 2102), e, “além disso, foi escrita diretamente em grego, com elegância, riqueza de vocabulário, e senso de retórica (diatribe [uma forma de argumentação crítica, sarcástica, muito usada pelos antigos comentaristas gregos]), que surpreendem bastante em um galileu”, embora ao mesmo tempo também mostre muita familiaridade com temas judaicos.
(4) Nessa passagem é claro que Pedro usa o termo “Babilônia” de modo figurado, uma vez que a Babilônia verdadeira, sob o domínio do reino parto, estava sendo abandonada progressivamente por sua população, já em vias de se transformar numa cidade fantasma, no primeiro século da era cristã. O sentido de “Babilônia” nessa carta é-nos dado pelo capítulo 17 do Apocalipse. Outras fontes também confirmam a suposição de que Pedro realmente esteve em Roma:
1º - O terceiro bispo de Roma, portanto, Papa, Clemente I, escrevendo para os fieis de Corinto, em 96, num momento particularmente difícil, quando os cristãos sofriam constrangimentos nas mãos dos imperadores romanos, diz: “Todavia, deixando os exemplos antigos, examinemos os atletas que viveram mais próximos de nós” (Wikipedia em português – São Pedro), citando em seguida a Pedro e a Paulo. Ora, Paulo esteve em Corinto, mas não há notícias de Pedro nesta cidade...
2° - Em 107, na sua epístola aos Romanos, Inácio de Antioquia, que estava sendo levado a Roma para o martírio, escreveu aos cristãos romanos da seguinte maneira: “eu não vos dou ordens como Pedro e Paulo” (idem, idem).
3º - Eusébio de Cesareia (260/265-339/340) escreve: “Clemente de Alexandria [+/- 150-215], no sexto livro do Hypotyposeis, cita a história, e o bispo Hierápolis, chamado Papias [+/-69-150], se une a ele para testificar que Pedro menciona a Marcos na primeira epístola, que, dizem eles, foi escrita em Roma, e ele mesmo o indica, quando chama a cidade, figurativamente, Babilônia... (1Pd 5,13)” (tradução da Wikipedia em espanhol – Simón Pedro).
4º - O bispo Dionísio de Corinto escreveu, lá por volta do ano 170, uma carta aos romanos, da qual Eusébio de Cesareia reproduz alguns trechos, entre os quais se destaca: “tendo vindo ambos a Corinto, os dois apóstolos Pedro e Paulo nos formaram na doutrina do Evangelho. A seguir, indo para a Itália, eles vos transmitiram os mesmos ensinamentos e, por fim, sofreram o martírio simultaneamente” (Wikipedia em português – idem).
5º - Gaio, um presbítero romano, escreveu lá por volta de 199: “Nós aqui em Roma... Possuímos os troféus dos apóstolos fundadores desta igreja local. Ide à via Ostiense, e lá encontrareis o troféu de Paulo; ide ao Vaticano e lá tereis o troféu de Pedro” (idem, idem).
6º - Irineu (130-202), bispo de Lion, na França, escreverá: “Os bem-aventurados apóstolos [Pedro e Paulo], portanto, fundando e instituindo a igreja, entregaram a Lino o cargo de administrá-la; a este sucedeu Anacleto; depois dele, em terceiro lugar, a partir dos Apóstolos, Clemente recebeu o episcopado” (idem, idem).
7º - Doroteu de Tiro (+/- 255-362, viveu 107 anos) escreveu: “Lino foi bispo de Roma após o seu primeiro guia, Pedro”.
8º - Eusébio de Cesareia (260/265-339/340) escreve: “Pedro, de nacionalidade galileia, o primeiro pontífice dos cristãos, tendo inicialmente fundado a igreja de Antioquia, se dirige a Roma, onde, pregando o Evangelho, continua vinte e cinco anos bispo da mesma cidade” (idem, idem)
Etc.
Como se pode ver pelos exemplos acima, trata-se de uma tradição muito antiga, muito repetida e muito espalhada, sem falar que nenhuma outra igreja ou cidade, desde a época mais remota, reivindica para si a honra de ser o local de descanso do apóstolo, o que, na Idade Antiga ou Média, lhe daria um grande status, nem o fato de tê-lo tido, algum dia, como bispo. Sequer Jerusalém!
Quanto ao fato de tratar Roma como “Babilônia”, que alguns protestantes históricos quiseram associar à prostituta do Apocalipse, convém ressaltar que:
a) Pedro chama a igreja que está em “Babilônia” de “eleita como vós”; supondo que a Igreja de Jesus Cristo não é uma igreja de prostituição...
b) O autor de Apocalipse é bem claro ao dizer em 17,18 que “a mulher que viste, enfim, é a Grande Cidade que reina sobre os reis da terra”. É a cidade, e não a igreja que está nela. Ora, aquela cidade que existia sobre o território da atual Roma e que dominava sobre o mundo inteiro acabou-se para sempre, desde 476... alerto que, neste item, estou apenas seguindo, com lógica, a linha de raciocínio literalista e distorcida de alguns protestantes!
c) A antiga cidade de Roma estava situada sobre sete montes, a saber: Célio, Esquilino, Palatino, Viminal, Aventino, Capitolino e Quirinal. Ora, o monte do Vaticano, onde está a sede da Igreja Católica, situa-se no lado oposto a esses montes. O Vaticano não tem nada a ver com a fundação original de Roma.
d) Outros, rebatendo a falsa informação de que Roma é a única cidade do mundo que está sobre sete clinas, lembram que esta também é uma característica de Jerusalém, agravada pelas fortes denúncias de profetas, dirigidas tanto contra Jerusalém como contra Israel, e assim temos Isaías (1,21; 57,3-10; ), Jeremias (2,20; 3,1-10); Oseias (quase todo); principalmente o capítulo 16 de Ezequiel; etc. Podemos lembrar também que a lamentação de Jesus foi sobre Jerusalém (Mt 23,37) e não sobre Roma. Historicamente falando nós podemos dizer que quem sofreu, e ainda sofre, o destino dos condenados foi/é Jerusalém, da qual a guerra não se aparta. No mais, se Roma é, ou foi, uma prostituta, então aquela profecia de Jesus, “as prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (Mt 21,31), tem o seu acabamento perfeito.
(5) Existem antigos relatos de que Pedro foi realmente morto em Roma, por crucificação, a saber:
1º - Orígenes (+/-185-253),um dos maiores escritores cristãos, escreve em um de seus comentários que “Pedro, ao ser martirizado em Roma, pediu e obteve que fosse crucificado de cabeça para baixo”. Esse testemunho é repetido por Eusébio de Cesareia em seu História Eclesiástica.
2º - Pedro de Alexandria (morto em 311), bispo desta cidade, numa de suas homilias escreveu que “Pedro, o primeiro dos apóstolos, tendo sido preso e arrojado à prisão, foi tratado com grande desrespeito e, finalmente, crucificado em Roma” (tradução da Wikipedia em espanhol – Simón Pedro).
2º - “Lactancio, em sua obra Sobre a morte dos perseguidores (318 d.C.), nos relata o seguinte: E enquanto Nero reinava (58-64), o Apóstolo Pedro veio a Roma... obrou alguns milagres e converteu muitos à verdadeira religião... Quando Nero ouviu falar dessas coisas... ele foi o primeiro a perseguir aos servos de Deus. Ele crucificou a Pedro e mandou matar a Paulo” (tradução da Wikipedia em espanhol – Simón Pedro).
4º - São Jerônimo (340-420) repercute em seu livro De Viris Illustribus uma antiga tradição que afirma que “Simão Pedro, filho de Jonas, da aldeia de Betsaida, irmão do apóstolo André. Ele mesmo, que fora líder dos apóstolos, após ser bispo de Antioquia, mudou-se para Roma, no segundo ano do reinado de Cláudio... Pedro recebeu o martírio das mãos de Nero, sendo cravado numa cruz com a cabeça para o chão e seus pés para cima, afirmando que ele não era digno de ser crucificado da mesma forma que o Senhor” (tradução da Wikipedia em italiano – Pietro apostolo).


https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/79/Cruc_pet.jpg
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Do que foi dito acima, nasceu a tradição da cruz invertida, a Cruz de Pedro, símbolo da mais extrema humildade, a virtude por excelência de quem quer seguir a Cristo, e assim foi representada ao longo dos séculos, nos edifícios religiosos e na arte secular, até que uma mistura maciça de ignorância e de má fé, carreadas por sentimentos anticristãos do final do século XIX e início do XX, a associaram ao satanismo ou ao mercantilismo barato das bandas de “rock pesado” – como prova mostramos, acima, o quadro de Filippino Lippi, pintado entre 1482 e 1485
(6) Diz uma tradição que, após sua morte, o seu corpo foi recuperado pelos discípulos e levado para fora da Palestina, até que no ano de 813, a pretexto de estar enxergando umas luzes num monte ermo e desabitado, um eremita espanhol de nome Pelayo, alerta ao bispo Teodomiro, de Iria Flavia, Espanha, que, investigando o local, afirmou ter encontrado o corpo de um homem decapitado, imediatamente identificado como o apóstolo Tiago, além de outros dois que corresponderiam aos de seus discípulos tradicionais: Atanásio e Teodoro. Nesse local nasce o famoso santuário de Santiago de Campostela, ponto final do famoso Caminho de Santiago, uma dos mais importantes rotas de peregrinação do mundo. E a ciência, o que diz? As evidências são desconcertantes, mas tudo fica como que em suspenso, uma vez que a igreja da Galícia ainda não concordou em expor os ossos aos modernos testes de datação. Alguns afirmam que são os restos do bispo herege Prisciliano de Ávila, decapitado no século V, mas Prisciliano foi sepultado junto com sete companheiros, um deles mulher. Em Campostela só foram encontrados três homens. Em 1955, foi encontrada, próximo ao local, a tumba do bispo Teodomiro, o descobridor da tumba. Por que razão o bispo iria se deixar sepultar em um lugar tão ermo? (ver Santiago el Mayor, na Wikipedia em espanhol; http://www.preguntasantoral.es/2013/07/tumba-de-santiago-apostol/; http://www.lasprovincias.es/20130610/mas-actualidad/sociedad/santiago-apostol-tumba-verdadera-201306102021.html; http://www.udel.edu/leipzig/060299/elb310599.htm

Bibliografia
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Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes; Petrópolis; 1987.
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)

Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009