segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H JEDIN) – VI

Agradeço aos amigos do Brasil, Estados Unidos, França, Uruguai, Espanha, Alemanha, Portugal, pelo acompanhamento neste blog, e espero que lhes seja sempre útil.

Prof Eduardo Simões

         Fastio e Dúvidas entre os Politeístas

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         Wikipedia

    Um borrão multicor, uma colcha de retalhos, assim poderia ser definido, no aspecto religioso, a compacta unidade política a que fora reduzida toda a bacia do Mediterrâneo sob a ação de Roma, que, no plano religioso, primava pela tolerância – os romanos eram práticos o bastante para não comprometerem as vantagens políticas e econômicas de seu império por uma questão de foro tão íntimo. Tenha-se presente o caráter marcadamente doméstico, familiar, da primitiva religião romana.
         Diz Jedin: “Não se deve perder de vista, no final do primeiro século antes de Cristo, o desaparecimento tanto do politeísmo grego, como da antiga religião romana, e as causas dessa evanescência seriam diferentes para ambos os casos”... (1966; p 149). Na Grécia a situação teria evoluído ao influxo das seguintes novidades:
         Primeiro: as críticas contínuas dos filósofos ao “irracionalismo” aos deuses homéricos acabaram por favorecer o esfriamento da piedade politeísta grega. A princípio essas críticas ganharam os setores mais cultos da sociedade, em geral membros da elite econômica e política, mas com o passar dos anos alcançou os outros estratos sociais – na verdade as críticas desses filósofos como que trocavam seis por meia dúzia, uma vez que trocavam os deuses da mitologia tradicional por uma força criadora e ordenadora, o logos, sujeita a uma força irracional: o destino (1). Na sua formulação teórica, o pião da filosofia arreligiosa girava em falso, por lhe faltar a Revelação, e acentuava o impasse religioso da época.
         Segundo: a mistura de elementos religiosos gregos e orientais mudou a percepção religiosa de muitos gregos, que passaram a ver a mensagem e a postura ritual exigida pela religião tradicional como um tanto rígidas ou ultrapassadas, fazendo com que elas perdessem muito do seu caráter mobilizatório original, criando uma sensação de vazio e uma crítica ácida aos atos da religião oficial.
         Terceiro: com a dissolução do império de Alexandre e a fusão natural das civilizações grega e orientais, o resultado foi o desaparecimento do projeto que deu origem e forma à cidade-estado grega: a Pólis. Ora, era justamente nesse espaço geográfico, político, social e econômico que criou raiz e vicejou o politeísmo grego e que, na falta desses elementos de sustentação, colapsou, deixando um vácuo preenchido pelas religiões orientais, embora também deva-se registrar, nesse mesmo momento, a presença de elementos religiosos gregos se espalhando pelo Oriente. As religiões asiáticas, entretanto, tinham a vantagem de apresentar mensagens mais universalistas, mais adaptadas a um ambiente imperial.
         A derrocada da religião grega arrastou consigo a tradicional religião romana, que desde a conquista da Magna Grécia, ao sul da Itália, e da Grécia Continental, a partir de 146 a.C., não cessara de assimilar elementos da tradicional religião grega, mudando inclusive a natureza e o aspecto de algumas de suas mais importantes divindades. A religião tradicional romana foi resvalando para um ritualismo burocrático e estéril, que não convencia mais a esmagadora maioria das elites dirigentes, como no passado. Junto com certa indiferença religiosa grassava, momentaneamente, um desalento generalizado e uma decadência dos costumes, causada em grande parte pela exacerbação do escravismo de guerra, decadência essa, vinculada ao colapso da forma de governo republicana, que aflorou de uma maneira impressionante na incrível brutalidade e sanguinolência, que marcaram as guerras civis do final desse regime.

         O Culto Imperial

         Quando Otávio Augusto subiu ao poder em 27 a.C., ele certamente percebeu a imensa diversidade religiosa dentro das fronteiras do império, ao mesmo tempo que intuiu uma alternativa que favoreceria ao mesmo tempo o seu poder pessoal e a unidade do império. Essa alternativa nasceu, decerto, de sua experiência oriental, principalmente quando de seu combate vitorioso contra as pretensões dinásticas de Antônio e Cleópatra, onde ele pode observar a notável pujança econômica das províncias orientais e ao mesmo tempo a profunda piedade das nações locais, muito vinculada a submissão incondicional aos deuses, que poderia ser muito útil, como um fator de unidade, se dirigida ao governante. Formas desse culto ao governante divinizado, ainda em vida, já eram utilizadas pelos diádocos, generais sucessores de Alexandre Magno, que conseguiram se tornar reis, retalhando o império macedônico e, talvez pudesse funcionar no âmbito do império romano. Conhecedor da mentalidade um tanto oposta a essas iniciativas, da cultura greco-romana clássica, Otávio Augusto avançou com prudência e tato.
         No Oriente, onde havia mais receptividade a essa orientação, multiplicaram-se os templos e as festividades dedicadas ao imperador, enquanto no Ocidente a sua reforma religiosa avançou na direção de aspectos práticos do culto tradicional, no combate a impiedade, que nesse caso seria o descumprimento ou o desinteresse pela liturgia tradicional, aparentemente tudo de acordo com o figurino dos antepassados, exceto pelo fato de ele, Otávio, ocupar cada vez mais os cargos religiosos mais importantes que antes eram vedados aos governantes, e interferir cada vez mais nesse assunto. A partir daí a coisa foi avançando, pela simples força da gravidade. A reforma religiosa de Otávio Augusto, com o seu contraditório culto imperial, porém, permaneceram na superfície: “Augusto... iniciou uma reconstrução profunda da religião oficial... se reorganizaram os antigos colégios sacerdotais, se restauraram templos, se retomaram festas de deuses que haviam caído no esquecimento; os membros das principais famílias assumiram outra vez cargos e funções religiosas; mas a substância interna [espiritual] de um culto assim renovado era por demais escassa para satisfazer uma alma inquieta [que, decerto, não era a maioria]” (idem, p 152). Essas reformas, entretanto, tocavam no coração da gente mais simples, impressionada pelas manifestações grandiosas dessa liturgia, que pareciam coroar a grandeza político-militar de Roma, cercando-a de uma áurea de riqueza, prosperidade e invencibilidade, um sinal palpável do poderio de Roma, fonte de um orgulho pessoal inexcedível.

         Cultos de Mistério

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         Wikipedia

         Para o homem quase comum, de classe média, a quem não interessava ou não podia gozar das benesses reservadas aos próximos dos poderosos, as respostas mais prementes às suas angústias existenciais vieram no rastro das legiões e comerciantes que voltavam das últimas campanhas no Oriente, trazendo os ensinamentos ou a nova moda religiosa do mundo helenístico: os cultos de mistério (2), com seu tesouro maravilhoso e “infalível”: a chave segura para a ressurreição e/ou a felicidade após a morte, algo que, até aquele momento não perturbara a existência do homem ocidental que, mesmo sabendo do ambiente terrível que envolvia as almas dos mortos, no Hades (3) – até ali esse homem se apegara ao dever e à satisfação de morrer com bravura no campo de batalha, pela sua cidade, destemor que o legionário romano da república exalou como poucos na história, em um tributo cívico impressionante, mas que, por alguma razão, que alguns podem até chamar de “plenitude dos tempos”, agora não satisfazia mais, e a questão da morte começou a angustiar o homem ocidental.
         Cornell-Matthews diz: “[os cultos de mistério] ofereciam ao indivíduo diversos atrativos: esperança na salvação da sua alma... exóticos rituais de iniciação para os membros de uma elite purificada. Por vezes na sua concepção da alma humana descendente de um reino divino e presa a um mundo de matéria ou num campo de batalha entre o bem e o mal, ofereciam explicações para o sofrimento e para a maldade. Os antigos cultos públicos dos Gregos e dos Romanos não estavam interessados em nenhuma dessas questões” (2003; p 176). Havia enfim, um desejo, em alguns, de diferenciação, de individualização, sem ser ainda “individualismo”, em meio a uma sociedade que se massificava, agregando elementos das mais diversas origens.
         Os principais cultos de mistério foram:
        O da deusa egípcia Ísis, que “era considerada a inventora da agricultura e da escrita, senhora da navegação, fundadora do direito e da ordem social, protetora dos perseguidos e libertadora de todas as necessidades” (J, p 155). O seu culto, celebrado em lugares fechado, está ligado ao culto de seu marido, o deus Osíris, que, segundo a mitologia, foi morto de ressuscitado, fazendo em um sentido mais amplo uma metáfora sobre a morte da semente, enterrada no solo, no momento do plantio, renascida e recolhida outra vez na colheita a seguir. Um típico rito agrário. O culto de Ísis remetia o crente a revelações do outro mundo, obtidas por meio dos sonhos, e se prestava a ruidosas procissões acompanhadas de coros e instrumentos musicais, feitas para tocar os sentidos e impressionar as personalidades mais sugestionáveis. A cerimônia de admissão do novo membro e consagração à deusa é também impressionante.
         O culto de Serápis, criado pelo faraó grego Ptolomeu I, lá por volta do fim do século IV a.C., fundindo elementos religiosos gregos e egípcios, numa tentativa de harmonizar as duas culturas e reduzir a resistência dos egípcios à sua dinastia. “Sua imagem cultual [de Serápis], de helenística beleza, exala majestosa dignidade e suavidade humana [um homem de meia idade, com expressão firme, mas serena, com longas barbas e abundante cabeleira; feita por alguém que entendia muito de psicologia de massas!]... sua natureza faz dele... o mais venerado protetor de toda necessidade do corpo e da alma, além de senhor do destino, que dirige com segurança a alma para as regiões superiores. Uma fervorosa propaganda difundiu o seu culto, desde o seu santuário central, o Serapeon, em Alexandria, por todo o mundo Meidterrâneo” (idem; p 156).
         O culto da deusa Cibeles é antiquíssimo, talvez pré-histórico, natural da Ásia Menor. Mais tarde foi assimilado e modificado pelos frígios, e por meio deles chegou aos gregos, sendo, por meio destes, introduzido em Roma, lá pelo ano de 204 a.C. A deusa frígia Cibeles, em geral, é representada por uma mulher madura, guiando uma carruagem puxada por leões, com uma coroa na forma de muralha. Era considerada a deusa da proteção e da destruição das cidades. Ela estava também associada à natureza selvagem, simbolizada pelos leões na sua carruagem, que tinha o poder de enviar e curar doenças, além de proteger os seus devotos na guerra. Dizia-se ainda que ela guardava as chaves das riquezas terrenas, e por isso era apresentada com uma cornucópia. Poder, riqueza e prazer selvagem estão próximos e costumam ser muito desejados, por isso não é de estranhar que esse culto tenha feito muito sucesso nas classes mais elevadas, apesar das enormes restrições que lhe foram impostas pelas autoridades, pelos motivos que se seguem.
         “Este mito se converte na base de um culto de mistério estranho e selvagem, a cujo serviço está um sacerdócio específico, os “galli”. Entre danças extáticas, acompanhadas de sangrenta autoflagelação, os galos provocavam a sua própria fúria, deixando-se arrastar até a mutilação... o iniciante de Attis (4) passava pelo mesmo processo de morte e ressurreição do seu deus, sendo untado com sangue de um touro, entrando numa câmara nupcial, da qual se retira como renascido” (idem). Esses exageros, porém, não eram de modo a causar simpatia à grande massa de gregos e romanos, mas ainda assim muitos, inclusive gente importante, assumiram esse culto, a ponto de obrigar o imperador Cláudio a levantar uma antiga proibição que impedia a um cidadão romano se tornar sacerdote de Cibeles: a emasculação.
         Em todos esses três mitos há um ponto em comum com o cristianismo que é a ressurreição de um personagem divino ou semidivino. O conceito de ressurreição é relativamente recente e estranho, tanto aos judeus do Primeiro Testamento quanto aos pagãos da Antiguidade, que pode induzir tanto a um entendimento linear desse fenômeno, a teoria de que ressurreição do cristianismo derivou dessas outras, mais antigas, ou à percepção de uma evolução não linear, autônoma e concomitante, a partir do amadurecimento da sociedade humana como um todo, uma “plenitude dos tempos”, que nos remete ao conceito de “maturação”, que levou culturas e religiões muito diferentes, por caminhos e razões diversos, a chegar à mesma conclusão ou a um padrão semelhante de compreensão sobre o que acontece após a morte.
         Porém, o culto de mistério mais impactante contra o qual o cristianismo se bateu, por sorte quando este já estava razoavelmente sólido, foi fruto de uma religião oriunda do centro da Ásia, do planalto iraniano, que lá por volta da segunda metade do século I, fez a sua entrada triunfal em Roma, graças à “contaminação” cultural dos soldados recém-chegados das fronteiras orientais, transformando-se, graças a um bem estudado sincretismo, outra forte característica dos cultos de mistério, numa força quase irresistível. Refiro-me ao mitraísmo ou mistérios mitraicos, que será visto com mais detalhes adiante. 

         A Religiosidade Popular

      Sobre o culto do imperador, no seio da população rural, a maioria no Império, diz Jedin: “O culto imperial não lhes chegou, porque suas manifestações eram relativamente raras e sobretudo porque tinha muito pouco contato com a população campesina [era uma manifestação de religiosidade predominantemente urbana, pelo menos no século I]; tampouco os cultos de mistério, porque o seu caráter esotérico dificultava a muitos o acesso. Daí que a grande massa do povo mais simples se voltara para a mais baixa superstição, que justamente no helenismo achou grande difusão” (1966; p 159).
         A grande estrela do Oriente, na cultura religiosa romana, era a astrologia, importada da Babilônia. Na área do Mediterrâneo o primeiro centro difusor da astrologia foi na ilha de Kos, junto à Turquia atual, graças a uma escola astrológica fundada pelo sacerdote babilônico Berosso, no século III a.C. A astrologia veio a ganhar muito status graças ao patrocínio de importantes filósofos estoicos. “A filosofia estoica adotou uma postura favorável diante da astrologia, pois via nela confirmada sua doutrina da fatalidade de todo acontecimento no curso natural das coisas... [o filósofo] Posidônio... deu à fé astrológica um status de sistema científico, garantiu-lhe com isso um tal prestígio, que imperadores romanos, como Tibério, tinham um séquito de astrólogos cortesãos, enquanto outros, como Marco Aurélio e Sétimo Severo, mandaram erigir ao sete deuses planetários [os sete planetas então conhecidos, incluindo o sol e a lua], o Septizodium... todo mundo consultada os astros” (idem). Nós sabemos como é isso não? (5)
       “A ele [ao mago astrólogo] se dirigia [o homem comum], principalmente, para indagar a posição dos astros no momento do nascimento, porque isso determinaria todo o curso da vida do recém-nato, o êxito ou o fracasso, a enfermidade ou a saúde, e, sobretudo, uma vida longa ou a morte precoce” (idem, p 160). Decerto que é uma visão muito fatalista da realidade, e pouco afeita a uma cultura normalmente tão voluntariosa como a de gregos e romanos, mas havia uma saída para isso, e esta passou a ser tão valorizada quanto utilizada: a magia, mas antes de falarmos dela seria bom marcamos bem a posição da cultura greco-romana em relação aos deuses.

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       A maioria conhece, por meio da piedade judaica, que é apresentada na Bíblia, o quanto o homem oriental se sente pequeno, humilde e devedor a seus deuses ou deus. Para o homem oriental a submissão incondicional à vontade de Deus ou dos deuses é incontestável, mesmo dentro de um quadro de pensamento que interpreta a vida pós-morte como uma espécie escravidão eterna aos desejos de deuses caprichosos, donde aquele desejo premente de uma vida longa, perceptível, também, na tradição hebraica, embora esta fosse guiada por um Deus revelado, não construído por mitologias, com supremos atributos morais, ainda que nem sempre bem compreendidos, e que exigia de seus fieis disposições morais semelhantes (6), enquanto os outros povos tentavam aplacar seus deuses imprevisíveis com esconjuros e magia. Certamente que os apóstolos e os discípulos cristãos palestinenses, quando chegaram a Roma e às outras cidades do Ocidente pela primeira vez devem ter estranhado muito o quê viram.
         Tanto para gregos como romanos, a relação com os deuses era tipicamente burocrática, afinal eles jamais criariam um deus ou um conjunto de deuses grande ou sublime o bastante para que se tornar imprevisível! Diz Giordani: “o romano, quer na intimidade do lar como nas solenidades públicas, tratava seus deuses como se com eles tivesse estabelecido um contrato. À divindade agrada determinados ritos cumpridos escrupulosa e rigorosamente... Cumprida as formalidades legais, processava-se [da parte dos deuses] a assistência necessária. Como num contrato onde cada parte cumpre as cláusulas que lhe dizem respeito e cada um recebe o que é devido... o êxito do ritual independe da atitude moral do suplicante: o culto romano carece de sentido moral, é essencialmente formalista” (1987; p 296). Nesse aspecto, o conforto moral do crente diante das divindades era ajudado pela crônica dos desatinos morais destas constantes na mitologia clássica, onde tudo o que nós consideramos, até hoje, perversão ou aberração, não seria menos ou mais que “natural”. Podemos até dizer que se um deus daqueles aparecesse para repreender um grego ou romano sobre algum crime, este bem que lhe podia jogar na cara um “não me venha com lições de moral que eu conheço os teus crimes!”. “Igualmente a divindade não é forçada, pelo ritual, a atender a prece [ou pedido]: seria errôneo atribuir às cerimônias do culto romano um poder mágico de dobrar seres superiores. Estes ouvem as orações porque são justas, não no sentido moral, mas no sentido jurídico, isto é, cumprem o contrato” (idem; 296-297).
         O avanço no uso de encantamentos e magia, assim como a proliferação de hábitos supersticiosos são tanto fruto da evolução natural do politeísmo greco-romano como influência avassaladora de hábitos orientais, expressa numa frase irônica do poeta Juvenal, que fez história: “os esgotos do Orontes [rio da Síria] deságuam no Tibre [o rio de Roma]” – talvez seja mesmo impossível dizer o que há de romano e oriental, por exemplo, no costume do famoso general Mário, tio de Júlio César, de sempre consultar uma profetisa síria; no de seu arqui-inimigo, o ditador Sila, de, nas horas de crise, invocar e beijar uma efígie do deus Apolo, do templo de Delfos, de onde ele a roubara; ou ainda em Júlio César, que rezava uma fórmula mágica ou religiosa para protegê-lo de acidente, sempre que ele tomava um transporte!
         Seja como for há uma mudança no sentido de descontratualizar a religião romana, e torná-la mais mística, pessoal, moral e, inclusive, mágica, pelo influxo de ideias, hábitos e costumes vindos do Oriente, perceptível no grande número de restos ou textos inteiros de livros e papiros mágicos, desse período, descobertos pela arqueologia contemporânea, “que exploram, sem controle, instintos humanos primários, como o temor pelo estranho e o desconhecido na natureza e no espaço sideral, a repulsa do outro, o gosto pelo espetacular, o espanto pelo horroroso. A fé na magia provoca e resulta naquele forte temor aos demônios que, a partir do século IV [a.C.], se propagou, com a crescente fantasia, no âmbito do helenismo. Segundo essa demonologia, o mundo inteiro está repleto de [demônios]... estranhos seres intermediários entre os homens e os deuses. O número desses demônios maus, que podem e querem prejudicar aos homens, é cada vez maior, mas o seu poder pode ser esconjurado pela força da magia. Para essa magia ser bem-sucedida, entretanto, é necessário que se saiba o nome oculto do demônio ou do deus, e empregar da maneira mais exata a fórmula prevista” (idem; p 160-161). Há algum tempo atrás, determinados grupos dentro da Igreja, da minha região, forcejavam e tentavam induzir outros a forcejar, para saber o nome do seu “anjo da guarda”...


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         A atividade oracular também continuava intensa. É verdade que os grandes centros de oráculos do passado, como o de Delfos (7), na Grécia, e o de Amon, no Egito, estavam “démodés” e decadentes nessa época, mas outros centros oraculares tomaram o seu lugar, enquanto a busca pelo significado dos sonhos alcançava “assinaladamente êxito no Egito, onde livros oníricos especiais instruíam seus crédulos leitores sobre o sentido e o alcance das imagens vistas nos sonhos” (idem; p 161).
         Para a cura de seus males físicos o povo recorria aos templos de Asclépio, um deus tão bondoso e hábil na arte de curar, que começou até a ressuscitar mortos! Nesse momento o deus dos mortos, Hades, se dirige ao seu irmão, Zeus, para dizer que, se Asclépio continuasse agindo assim, teria que cerrar as portas do seu reino! Essa não é uma das grandes propostas do cristianismo? Mas não foi assim que Zeus pensou e, furioso com tal procedimento sem a sua autorização, fulminou Asclépio com um raio... Mais tarde ele teria feito um acordo com esse deus, para que só ressuscitasse gente com a sua autorização.
         Seja como for, a ideia de um deus que se preocupa com o sofrimento dos seres humanos, empolgou aquela gente de tal modo que, com o passar dos anos e para a conveniência econômica dos centros de culto, foram-lhe atribuídas qualidades e virtudes cada vez mais elevadas de divindade salvadora, daqueles que se lhe devotavam. A orla do Mediterrâneo se cercou de centenas de templos a ele dedicados, que alcançaram as regiões mais remotas para onde iam milhares de doentes procuravam cura, graças aos remédios oferecidos por seus sacerdotes, após uma noite de sono no templo, e a ação benigna do Deus. Muitos, em sinal de agradecimento, deixaram milhares de ex-votos pendurados nas paredes. O culto de Esculápio foi um dos que mais resistiu ao avanço do cristianismo.
         Entretanto, ao longo dos primeiros séculos, a maior resistência ao Evangelho foi oferecida pelo culto imperial “primeiramente porque a mensagem de um redentor executado numa cruz, como um malfeitor, não podia impor-se sem dificuldades em um mundo que prezava muito pela exterioridade da figura sagrada, rodeada de esplendor, que se sentava sobre o trono imperial” (Jedin; 1966; p 163). Isso, inclusive, desqualificava os cristãos para levantar a voz contra um culto tão majestoso. “Outro fator negativo era oferecido pela espantosa falta de sentido moral nos cultos de mistério orientais, cujas características orgiásticas induziam com frequência ás mais espantosas degenerações. Além do mais, a tendência desses cultos ao exibicionismo, destinados primordialmente a impressionar os sentidos, era amiúde frutos de uma religiosidade superficial, própria do helenismo... O mesmo efeito negativo se encontrava na crítica aos deuses, desrespeitosa e desavergonhada, que, com o desprezo pelas antigas crenças, ajudou a sepultar muito da reverência devida ao religioso simplesmente” (idem).
         Era, enfim, no que tange ao sentimento religioso e a outros fatores sociais, uma época de transição repleta de perguntas, como toda época de transição, com poucas certezas; venceria aqueles que fossem capazes de dar as respostas mais adequadas e convincentes às dúvidas que se levantavam: os cristãos se apresentaram para respondê-las.
        
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         Wikipedia

         Nesse mapa pode-se ver a enorme penetração dos cultos de mistério e do judaísmo no Império Romano, durante os primeiro séculos da era cristã. Eram forças consideráveis, ora concorrentes ora hostis ao cristianismo.

         Nota
         (1) “A doutrina monista da Stoa [do estoicismo], que substituiu aquela fé [nos deuses homéricos] por uma providência divina (prónoia) e um logos como razão cósmica que o penetra [ao cosmo] e ordena tudo, não conduziu à crença em um deus pessoal transcendente, pois também a razão cósmica... está sob o jugo da férrea lei da heimarmene, o destino, que vela sobre o curso dos acontecimentos universais... e tira ao logos toda a liberdade de ação. Epicuro, por seu lado, rejeita decididamente a existência de uma lei tão fatal, mas sua interpretação cósmica, que se fundamentava na teoria de Demócrito... só conduzia à imagem de um mundo fisicamente determinado” (Jedin; 1966; p. 149). Outra teoria que alcançou certa proeminência foi a de Evêmero, que sustentava que os deuses não passavam de personalidades importantes do passado, cujo sentimento de perda, provocado por suas mortes, induziu a contemporâneos e pósteros o desejo de eternizá-los, de divinizá-los – a semelhança desse pensamento com Sb 14,15-21 é curiosa.
         (2) Toda religião, cedo ou tarde, em maior ou menor grau, esbarra em um mistério inalcançável à mente humana. Aliás, a própria existência das religiões só se justifica justamente pela presença desse mistério maior, que para uns é Deus, para outros a morte, a própria vida, etc. Algumas religiões ou seguimentos dentro de certas religiões vão mais além e se propõem a desvendar esse mistério maior, sob certas condições. Segundo a Wikipedia em espanhol, “mais do que uma religião, [o culto de mistério] é um modo de viver uma religião... O secretismo e o exclusivismo de algumas dessas religiões de mistério acarreta uma série de ritos iniciáticos e, frequentemente, um período de preparação e provas, antes de aceitar um novo membro. Esses ritos também são chamados de mistério” (traduzido de Religión mistérica), decerto porque eles, de uma forma desconhecida, modificam a natureza humana-mortal-limitada do iniciado, deixando-o apto para atingir a plena compreensão do mistério maior que se quer participar. Continuando no mesmo verbete, “uma pessoa que seguisse tal “Mistério” era um mystes, “um iniciado”... já que só aos iniciados era permitido observar e participar desses rituais. Os mistérios são, amiúde, suplementares à religião civil, por isso se fala em cultos de mistérios e não de religiões de mistério”. Diz ainda: “Se chamam mistérios ao conjunto de provas e ritos que a que iniciante deveria se submeter, para ser aceito como membro da comunidade, Os mistérios são formas de pedagogia primitiva que partem da premissa de que o verdadeiro conhecimento... é resultado da assimilação da informação através da totalidade do ser humano. Nessa representação de mistério [por meio do rito], o iniciado recebe informação simultaneamente por meio físico, cognitivo e emocional [afetivo], ao ser personagem ativo do dito drama [revivido pelo rito], e assim se converte em um deus ou herói” (idem).
Aqui nós vemos outra faceta desses cultos. O seu caráter oculto aos não iniciados. Havia uma regra geral: toda pessoa não iniciada que assistisse a uma dessas cerimônias ou uma pessoa iniciada que as revelasse ao público deveria ser morta. Dessa regra tão fatal quanto imperiosa adveio um enorme prejuízo para a história das religiões e para a sobrevivência desses próprios cultos: não se sabe quase nada sobre eles; nem dos cultos antigos nem dos modernos. Um notável exemplo da fidelidade com que os antigos guardavam esses segredos é o do famoso oráculo de Delfos, frequentado por dezenas de milhares de pessoas ao longo dos séculos, e não temos, hoje, nenhuma informação segura sobre o que acontecia na câmara da pitonisa!
O sucesso dos cultos de mistérios na Grécia e em Roma, particularmente, foi enorme, de nada adiantando a ação dos imperadores, inclusive do grande Otávio augusto, no sentido de reprimi-las. O seu sucessor, Tibério, teve que se render e autorizar a sua realização. “Alguns autores opinam que o êxito e a expansão das religiões de mistério se deviam a que a mitologia oficial greco-romana clássica não considerava o indivíduo em suas crenças [era uma religião coletiva, burocrática], enquanto que as religiões de mistério acolhiam o crente, proporcionando-lhe acolhimento, proteção e promessa de felicidade” (idem).
A Wikipedia em francês traz informações mais detalhadas a esse respeito: “Os cultos de mistério se diferenciavam dos cultos oficiais nos seguintes pontos: os participantes eram promovidos em iniciações sucessivas, apreendendo cada vez mais sobre os segredos da divindade [como se fora uma patente militar, essa sistemática ajudava a dar, ao fiel, uma noção de posse ativa, por mérito próprio, do mistério da divindade, superando a passividade do culto oficial]; a cada etapa de seu percurso, o iniciado devia fazer um juramento. Esse juramento era uma prova do seu status de homem livre, visto que o escravo não podia jurar [e também dava a pessoa uma sensação de como tudo aquilo e ela, inclusive, eram muito importantes!]; esses cultos traziam, ao contrário do culto oficial [mais voltado para a prosperidade econômica, política ou cultural da cidade], promessas de felicidade numa vida pós-morte... para os que mais merecessem: os heróis [os iniciados!]”.
         (3) No canto XI da Odisseia, Ulisses desce até uma entrada que dá para o mundo dos mortos e os atrai com sangue de um animal sacrificado, que as almas vêm lamber com sofreguidão, entre as pedras e a areia, inclusive a alma da mãe do herói, recém-falecida. O grande Aquiles, que fizera de tudo para ir à Troia, mesmo sabendo que lá encontraria a morte, agora, morto, diz a Ulisses: “Não me consoles da morte, Ilustre Ulisses! Preferiria, sendo um lavrador, alugar meus serviços a um outro, a um homem sem lote, que não tem muitos recursos, do que reinar entre todos os mortos”. Que enorme mudança naquele homem orgulhoso que partira para a guerra! http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2003000100008 . Podemos citar ainda a Epopeia de Gilgamesh, no mundo oriental-mesopotâmico, que mostra as almas dos falecidos, independente de seus méritos ou de suas ações em vida, deformadas, todas cobertas de penas, como as corujas, morando em um lugar escuro e frio, comendo a poeira e bebendo a lama do chão, sendo maltratadas, como a escravos, por deuses cruéis e indiferentes.
         (4) Segundo uma das versões da mitologia, Cibeles tinha um amante de rara beleza, Attis, que a traiu ou foi induzido a desposar a filha de um rei. Cibeles, enfurecida, lançou sobre ele uma moléstia, uma loucura furiosa, que, no caso de Attis, derivava de um torturante sentimento de culpa, que o arrastou para longe dos homens, para o cume de um monte isolado, onde ele teria se emasculado e morrido. Cibeles, arrependida pelo terrível efeito de seu ciúme, teria preservado milagrosamente o corpo do infeliz amante ou o seu sêmen, de forma que ele renasceu como um pinheiro sempre verde. Isso era suficiente para que, durante as cerimônias sacerdotes e praticantes se entregassem a excessos e descontroles, recriando a loucura de Attis, revolvendo-se no sangue de touros (o taurobolio) flagelando-se desapiedadamente e, no caso dos sacerdotes, se automutilando.
         (5) Não quero com essa expressão dizer que a história avança em ciclos e que a nossa sociedade repete, sem mais, a sociedade do Império Romano, mas antes que existem ou subsistem, sob a capa das mudanças macro-históricas, anseios, medos e desejos primitivos que teimam em se repetir, em que pese o triunfo da ingênua racionalidade burguesa que move o mundo moderno, e que nos revelam tanto a existência de uma “natureza humana” como de certos condicionamentos irracionais ao processo maior de mudança histórica, e que podem, em um limite, condicionar esse mesmo processo. Nessa frase, remeto o leitor para o seu entorno, familiarizando-o mais com o tema tratado.
         (6) Um exemplo do fatalismo e da submissão incondicional à vontade dos deuses, por parte dos orientais, é o final do famoso poema sumeriano a Epopeia de Gilgamesh, onde o rei Gilgamesh, lendário herói sumeriano, após ouvir do espectro de seu amigo Enkidu, que os “espíritos não têm descanso no mundo dos mortos”, morre algum tempo depois, após uma penosa busca pela fonte da vida eterna. Sobre o sua tumba se escreve o seguinte epitáfio: “Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino, mas a vida eterna não era o teu destino. Quando os deuses criaram o homem, deram-lhe a morte como quinhão. Mas a vida, a vida eterna, eles guardaram só para eles” (http://www.deldebbio.com.br/2009/02/14/a-historia-de-gilgamesh/).
         (7) O segredo da pitonisa de Delfos, foi supostamente descoberto por expedições arqueológicas e geológicas no local do templo, quando se descobriu no espaço que ficava o adito, o aposento onde a pitonisa recebia os consulentes, o vestígio de uma antiga fenda geológica, a Falha de Delfos, que, no passado, exalava, vindos do interior da terra, vapores de eteno, um hidrocarboneto, e vapor d’água. Ora, o eteno é um gás de sabor doce e de efeito narcótico, inebriante, que dava o “barato” que “turbinava” a pitonisa. Essa é a tese defendida por importantes pesquisadores em revistas e mídias como Cientific American, National Geographic e Revista Historia Viva. Ver http://news.nationalgeographic.com/news/2001/08/0814_delphioracle.html e http://www.historia.templodeapolo.net/textos_ver.asp?Cod_textos=37&value=O%20g%C3%A1s%20do%20Or%C3%A1culo%20de%20Delfos&civ=Civiliza%C3%A7%C3%A3o%20Grega

         Bibliografia
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho; Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes; Petrópolis; 1987.
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)

Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009

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