HISTÓRIA
DA IGREJA (BASEADA EM H JEDIN) – VI
Agradeço
aos amigos do Brasil, Estados Unidos, França, Uruguai, Espanha, Alemanha,
Portugal, pelo acompanhamento neste blog, e espero que lhes seja sempre útil.
Prof
Eduardo Simões
Fastio
e Dúvidas entre os Politeístas
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/e/e4/Amo_te%2C_ama_me%2C_by_Lawrence_Alma-Tadema.jpg/1024px-Amo_te%2C_ama_me%2C_by_Lawrence_Alma-Tadema.jpg
Wikipedia
Um borrão multicor, uma colcha de
retalhos, assim poderia ser definido, no aspecto religioso, a compacta unidade
política a que fora reduzida toda a bacia do Mediterrâneo sob a ação de Roma,
que, no plano religioso, primava pela tolerância – os romanos eram práticos o
bastante para não comprometerem as vantagens políticas e econômicas de seu
império por uma questão de foro tão íntimo. Tenha-se presente o caráter marcadamente
doméstico, familiar, da primitiva religião romana.
Diz Jedin: “Não se deve perder de
vista, no final do primeiro século antes de Cristo, o desaparecimento tanto do
politeísmo grego, como da antiga religião romana, e as causas dessa
evanescência seriam diferentes para ambos os casos”... (1966; p 149). Na Grécia
a situação teria evoluído ao influxo das seguintes novidades:
Primeiro: as críticas contínuas dos
filósofos ao “irracionalismo” aos deuses homéricos acabaram por favorecer o
esfriamento da piedade politeísta grega. A princípio essas críticas ganharam os
setores mais cultos da sociedade, em geral membros da elite econômica e
política, mas com o passar dos anos alcançou os outros estratos sociais – na
verdade as críticas desses filósofos como que trocavam seis por meia dúzia, uma
vez que trocavam os deuses da mitologia tradicional por uma força criadora e
ordenadora, o logos, sujeita a uma força irracional: o destino (1). Na sua formulação teórica, o pião
da filosofia arreligiosa girava em falso, por lhe faltar a Revelação, e
acentuava o impasse religioso da época.
Segundo: a mistura de elementos
religiosos gregos e orientais mudou a percepção religiosa de muitos gregos, que
passaram a ver a mensagem e a postura ritual exigida pela religião tradicional
como um tanto rígidas ou ultrapassadas, fazendo com que elas perdessem muito do
seu caráter mobilizatório original, criando uma sensação de vazio e uma crítica
ácida aos atos da religião oficial.
Terceiro: com a dissolução do império
de Alexandre e a fusão natural das civilizações grega e orientais, o resultado
foi o desaparecimento do projeto que deu origem e forma à cidade-estado grega:
a Pólis. Ora, era justamente nesse espaço geográfico, político, social e
econômico que criou raiz e vicejou o politeísmo grego e que, na falta desses
elementos de sustentação, colapsou, deixando um vácuo preenchido pelas
religiões orientais, embora também deva-se registrar, nesse mesmo momento, a
presença de elementos religiosos gregos se espalhando pelo Oriente. As
religiões asiáticas, entretanto, tinham a vantagem de apresentar mensagens mais
universalistas, mais adaptadas a um ambiente imperial.
A derrocada da religião grega arrastou
consigo a tradicional religião romana, que desde a conquista da Magna Grécia,
ao sul da Itália, e da Grécia Continental, a partir de 146 a.C., não cessara de
assimilar elementos da tradicional religião grega, mudando inclusive a natureza
e o aspecto de algumas de suas mais importantes divindades. A religião
tradicional romana foi resvalando para um ritualismo burocrático e estéril, que
não convencia mais a esmagadora maioria das elites dirigentes, como no passado.
Junto com certa indiferença religiosa grassava, momentaneamente, um desalento
generalizado e uma decadência dos costumes, causada em grande parte pela
exacerbação do escravismo de guerra, decadência essa, vinculada ao colapso da
forma de governo republicana, que aflorou de uma maneira impressionante na
incrível brutalidade e sanguinolência, que marcaram as guerras civis do final desse
regime.
O
Culto Imperial
Quando Otávio Augusto subiu ao poder em
27 a.C., ele certamente percebeu a imensa diversidade religiosa dentro das
fronteiras do império, ao mesmo tempo que intuiu uma alternativa que
favoreceria ao mesmo tempo o seu poder pessoal e a unidade do império. Essa
alternativa nasceu, decerto, de sua experiência oriental, principalmente quando
de seu combate vitorioso contra as pretensões dinásticas de Antônio e
Cleópatra, onde ele pode observar a notável pujança econômica das províncias
orientais e ao mesmo tempo a profunda piedade das nações locais, muito
vinculada a submissão incondicional aos deuses, que poderia ser muito útil,
como um fator de unidade, se dirigida ao governante. Formas desse culto ao
governante divinizado, ainda em vida, já eram utilizadas pelos diádocos,
generais sucessores de Alexandre Magno, que conseguiram se tornar reis,
retalhando o império macedônico e, talvez pudesse funcionar no âmbito do
império romano. Conhecedor da mentalidade um tanto oposta a essas iniciativas, da
cultura greco-romana clássica, Otávio Augusto avançou com prudência e tato.
No Oriente, onde havia mais
receptividade a essa orientação, multiplicaram-se os templos e as festividades
dedicadas ao imperador, enquanto no Ocidente a sua reforma religiosa avançou na
direção de aspectos práticos do culto tradicional, no combate a impiedade, que
nesse caso seria o descumprimento ou o desinteresse pela liturgia tradicional,
aparentemente tudo de acordo com o figurino dos antepassados, exceto pelo fato
de ele, Otávio, ocupar cada vez mais os cargos religiosos mais importantes que
antes eram vedados aos governantes, e interferir cada vez mais nesse assunto. A
partir daí a coisa foi avançando, pela simples força da gravidade. A reforma
religiosa de Otávio Augusto, com o seu contraditório culto imperial, porém,
permaneceram na superfície: “Augusto... iniciou uma reconstrução profunda da
religião oficial... se reorganizaram os antigos colégios sacerdotais, se
restauraram templos, se retomaram festas de deuses que haviam caído no
esquecimento; os membros das principais famílias assumiram outra vez cargos e
funções religiosas; mas a substância interna [espiritual] de um culto assim
renovado era por demais escassa para satisfazer uma alma inquieta [que,
decerto, não era a maioria]” (idem, p 152). Essas reformas, entretanto, tocavam
no coração da gente mais simples, impressionada pelas manifestações grandiosas
dessa liturgia, que pareciam coroar a grandeza político-militar de Roma,
cercando-a de uma áurea de riqueza, prosperidade e invencibilidade, um sinal palpável
do poderio de Roma, fonte de um orgulho pessoal inexcedível.
Cultos
de Mistério
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/b/b0/1871_Alma-Tadema_Das_Fest_der_Weinlese_anagoria.JPG/1024px-1871_Alma-Tadema_Das_Fest_der_Weinlese_anagoria.JPG
Wikipedia
Para o homem quase comum, de classe
média, a quem não interessava ou não podia gozar das benesses reservadas aos próximos
dos poderosos, as respostas mais prementes às suas angústias existenciais
vieram no rastro das legiões e comerciantes que voltavam das últimas campanhas
no Oriente, trazendo os ensinamentos ou a nova moda religiosa do mundo
helenístico: os cultos de mistério (2),
com seu tesouro maravilhoso e “infalível”: a chave segura para a ressurreição e/ou
a felicidade após a morte, algo que, até aquele momento não perturbara a
existência do homem ocidental que, mesmo sabendo do ambiente terrível que
envolvia as almas dos mortos, no Hades (3)
– até ali esse homem se apegara ao dever e à satisfação de morrer com bravura
no campo de batalha, pela sua cidade, destemor que o legionário romano da
república exalou como poucos na história, em um tributo cívico impressionante,
mas que, por alguma razão, que alguns podem até chamar de “plenitude dos
tempos”, agora não satisfazia mais, e a questão da morte começou a angustiar o
homem ocidental.
Cornell-Matthews diz: “[os cultos de
mistério] ofereciam ao indivíduo diversos atrativos: esperança na salvação da
sua alma... exóticos rituais de iniciação para os membros de uma elite
purificada. Por vezes na sua concepção da alma humana descendente de um reino
divino e presa a um mundo de matéria ou num campo de batalha entre o bem e o
mal, ofereciam explicações para o sofrimento e para a maldade. Os antigos
cultos públicos dos Gregos e dos Romanos não estavam interessados em nenhuma
dessas questões” (2003; p 176). Havia enfim, um desejo, em alguns, de
diferenciação, de individualização, sem ser ainda “individualismo”, em meio a
uma sociedade que se massificava, agregando elementos das mais diversas
origens.
Os principais cultos de mistério foram:
O da deusa egípcia Ísis, que “era considerada a inventora da agricultura
e da escrita, senhora da navegação, fundadora do direito e da ordem social,
protetora dos perseguidos e libertadora de todas as necessidades” (J, p 155). O
seu culto, celebrado em lugares fechado, está ligado ao culto de seu marido, o
deus Osíris, que, segundo a mitologia, foi morto de ressuscitado, fazendo em um
sentido mais amplo uma metáfora sobre a morte da semente, enterrada no solo, no
momento do plantio, renascida e recolhida outra vez na colheita a seguir. Um
típico rito agrário. O culto de Ísis remetia o crente a revelações do outro
mundo, obtidas por meio dos sonhos, e se prestava a ruidosas procissões acompanhadas
de coros e instrumentos musicais, feitas para tocar os sentidos e impressionar as
personalidades mais sugestionáveis. A cerimônia de admissão do novo membro e
consagração à deusa é também impressionante.
O culto
de Serápis, criado pelo faraó grego Ptolomeu I, lá por volta do fim do
século IV a.C., fundindo elementos religiosos gregos e egípcios, numa tentativa
de harmonizar as duas culturas e reduzir a resistência dos egípcios à sua
dinastia. “Sua imagem cultual [de Serápis], de helenística beleza, exala
majestosa dignidade e suavidade humana [um homem de meia idade, com expressão
firme, mas serena, com longas barbas e abundante cabeleira; feita por alguém
que entendia muito de psicologia de massas!]... sua natureza faz dele... o mais
venerado protetor de toda necessidade do corpo e da alma, além de senhor do
destino, que dirige com segurança a alma para as regiões superiores. Uma
fervorosa propaganda difundiu o seu culto, desde o seu santuário central, o
Serapeon, em Alexandria, por todo o mundo Meidterrâneo” (idem; p 156).
O culto da deusa Cibeles é antiquíssimo, talvez pré-histórico, natural da Ásia
Menor. Mais tarde foi assimilado e modificado pelos frígios, e por meio deles
chegou aos gregos, sendo, por meio destes, introduzido em Roma, lá pelo ano de
204 a.C. A deusa frígia Cibeles, em geral, é representada por uma mulher
madura, guiando uma carruagem puxada por leões, com uma coroa na forma de
muralha. Era considerada a deusa da proteção e da destruição das cidades. Ela
estava também associada à natureza selvagem, simbolizada pelos leões na sua
carruagem, que tinha o poder de enviar e curar doenças, além de proteger os
seus devotos na guerra. Dizia-se ainda que ela guardava as chaves das riquezas
terrenas, e por isso era apresentada com uma cornucópia. Poder, riqueza e
prazer selvagem estão próximos e costumam ser muito desejados, por isso não é
de estranhar que esse culto tenha feito muito sucesso nas classes mais
elevadas, apesar das enormes restrições que lhe foram impostas pelas
autoridades, pelos motivos que se seguem.
“Este mito se converte na base de um
culto de mistério estranho e selvagem, a cujo serviço está um sacerdócio
específico, os “galli”. Entre danças extáticas, acompanhadas de sangrenta
autoflagelação, os galos provocavam a sua própria fúria, deixando-se arrastar
até a mutilação... o iniciante de Attis (4)
passava pelo mesmo processo de morte e ressurreição do seu deus, sendo untado
com sangue de um touro, entrando numa câmara nupcial, da qual se retira como
renascido” (idem). Esses exageros, porém, não eram de modo a causar simpatia à
grande massa de gregos e romanos, mas ainda assim muitos, inclusive gente
importante, assumiram esse culto, a ponto de obrigar o imperador Cláudio a
levantar uma antiga proibição que impedia a um cidadão romano se tornar
sacerdote de Cibeles: a emasculação.
Em todos esses três mitos há um ponto
em comum com o cristianismo que é a ressurreição de um personagem divino ou
semidivino. O conceito de ressurreição é relativamente recente e estranho,
tanto aos judeus do Primeiro Testamento quanto aos pagãos da Antiguidade, que
pode induzir tanto a um entendimento linear desse fenômeno, a teoria de que ressurreição
do cristianismo derivou dessas outras, mais antigas, ou à percepção de uma
evolução não linear, autônoma e concomitante, a partir do amadurecimento da
sociedade humana como um todo, uma “plenitude dos tempos”, que nos remete ao
conceito de “maturação”, que levou culturas e religiões muito diferentes, por
caminhos e razões diversos, a chegar à mesma conclusão ou a um padrão
semelhante de compreensão sobre o que acontece após a morte.
Porém, o culto de mistério mais
impactante contra o qual o cristianismo se bateu, por sorte quando este já
estava razoavelmente sólido, foi fruto de uma religião oriunda do centro da
Ásia, do planalto iraniano, que lá por volta da segunda metade do século I, fez
a sua entrada triunfal em Roma, graças à “contaminação” cultural dos soldados
recém-chegados das fronteiras orientais, transformando-se, graças a um bem
estudado sincretismo, outra forte característica dos cultos de mistério, numa
força quase irresistível. Refiro-me ao mitraísmo ou mistérios mitraicos, que
será visto com mais detalhes adiante.
A
Religiosidade Popular
Sobre o culto do imperador, no seio da população rural,
a maioria no Império, diz Jedin: “O culto imperial não lhes chegou, porque suas
manifestações eram relativamente raras e sobretudo porque tinha muito pouco
contato com a população campesina [era uma manifestação de religiosidade
predominantemente urbana, pelo menos no século I]; tampouco os cultos de
mistério, porque o seu caráter esotérico dificultava a muitos o acesso. Daí que
a grande massa do povo mais simples se voltara para a mais baixa superstição,
que justamente no helenismo achou grande difusão” (1966; p 159).
A grande estrela do Oriente, na cultura
religiosa romana, era a astrologia, importada da Babilônia. Na área do
Mediterrâneo o primeiro centro difusor da astrologia foi na ilha de Kos, junto
à Turquia atual, graças a uma escola astrológica fundada pelo sacerdote babilônico
Berosso, no século III a.C. A astrologia veio a ganhar muito status graças ao
patrocínio de importantes filósofos estoicos. “A filosofia estoica adotou uma
postura favorável diante da astrologia, pois via nela confirmada sua doutrina
da fatalidade de todo acontecimento no curso natural das coisas... [o filósofo]
Posidônio... deu à fé astrológica um status de sistema científico, garantiu-lhe
com isso um tal prestígio, que imperadores romanos, como Tibério, tinham um
séquito de astrólogos cortesãos, enquanto outros, como Marco Aurélio e Sétimo
Severo, mandaram erigir ao sete deuses planetários [os sete planetas então
conhecidos, incluindo o sol e a lua], o Septizodium... todo mundo consultada os
astros” (idem). Nós sabemos como é isso não? (5)
“A ele [ao mago astrólogo] se dirigia
[o homem comum], principalmente, para indagar a posição dos astros no momento
do nascimento, porque isso determinaria todo o curso da vida do recém-nato, o
êxito ou o fracasso, a enfermidade ou a saúde, e, sobretudo, uma vida longa ou
a morte precoce” (idem, p 160). Decerto que é uma visão muito fatalista da
realidade, e pouco afeita a uma cultura normalmente tão voluntariosa como a de
gregos e romanos, mas havia uma saída para isso, e esta passou a ser tão
valorizada quanto utilizada: a magia, mas antes de falarmos dela seria bom marcamos
bem a posição da cultura greco-romana em relação aos deuses.
http://charrisgreek8th.weebly.com/uploads/2/3/0/8/2308648/6829640_orig.jpg
http://charrisgreek8th.weebly.com/
A maioria conhece, por meio da piedade
judaica, que é apresentada na Bíblia, o quanto o homem oriental se sente
pequeno, humilde e devedor a seus deuses ou deus. Para o homem oriental a
submissão incondicional à vontade de Deus ou dos deuses é incontestável, mesmo
dentro de um quadro de pensamento que interpreta a vida pós-morte como uma
espécie escravidão eterna aos desejos de deuses caprichosos, donde aquele
desejo premente de uma vida longa, perceptível, também, na tradição hebraica,
embora esta fosse guiada por um Deus revelado, não construído por mitologias,
com supremos atributos morais, ainda que nem sempre bem compreendidos, e que
exigia de seus fieis disposições morais semelhantes (6), enquanto os outros povos tentavam aplacar seus deuses
imprevisíveis com esconjuros e magia. Certamente que os apóstolos e os
discípulos cristãos palestinenses, quando chegaram a Roma e às outras cidades
do Ocidente pela primeira vez devem ter estranhado muito o quê viram.
Tanto para gregos como romanos, a
relação com os deuses era tipicamente burocrática, afinal eles jamais criariam
um deus ou um conjunto de deuses grande ou sublime o bastante para que se tornar
imprevisível! Diz Giordani: “o romano, quer na intimidade do lar como nas
solenidades públicas, tratava seus deuses como se com eles tivesse estabelecido
um contrato. À divindade agrada determinados ritos cumpridos escrupulosa e
rigorosamente... Cumprida as formalidades legais, processava-se [da parte dos
deuses] a assistência necessária. Como num contrato onde cada parte cumpre as
cláusulas que lhe dizem respeito e cada um recebe o que é devido... o êxito do
ritual independe da atitude moral do suplicante: o culto romano carece de
sentido moral, é essencialmente formalista” (1987; p 296). Nesse aspecto, o
conforto moral do crente diante das divindades era ajudado pela crônica dos
desatinos morais destas constantes na mitologia clássica, onde tudo o que nós
consideramos, até hoje, perversão ou aberração, não seria menos ou mais que
“natural”. Podemos até dizer que se um deus daqueles aparecesse para repreender
um grego ou romano sobre algum crime, este bem que lhe podia jogar na cara um
“não me venha com lições de moral que eu conheço os teus crimes!”. “Igualmente
a divindade não é forçada, pelo ritual, a atender a prece [ou pedido]: seria errôneo
atribuir às cerimônias do culto romano um poder mágico de dobrar seres
superiores. Estes ouvem as orações porque são justas, não no sentido moral, mas
no sentido jurídico, isto é, cumprem o contrato” (idem; 296-297).
O avanço no uso de encantamentos e
magia, assim como a proliferação de hábitos supersticiosos são tanto fruto da
evolução natural do politeísmo greco-romano como influência avassaladora de
hábitos orientais, expressa numa frase irônica do poeta Juvenal, que fez
história: “os esgotos do Orontes [rio da Síria] deságuam no Tibre [o rio de
Roma]” – talvez seja mesmo impossível dizer o que há de romano e oriental, por
exemplo, no costume do famoso general Mário, tio de Júlio César, de sempre
consultar uma profetisa síria; no de seu arqui-inimigo, o ditador Sila, de, nas
horas de crise, invocar e beijar uma efígie do deus Apolo, do templo de Delfos,
de onde ele a roubara; ou ainda em Júlio César, que rezava uma fórmula mágica
ou religiosa para protegê-lo de acidente, sempre que ele tomava um transporte!
Seja como for há uma mudança no sentido
de descontratualizar a religião romana, e torná-la mais mística, pessoal, moral
e, inclusive, mágica, pelo influxo de ideias, hábitos e costumes vindos do
Oriente, perceptível no grande número de restos ou textos inteiros de livros e
papiros mágicos, desse período, descobertos pela arqueologia contemporânea,
“que exploram, sem controle, instintos humanos primários, como o temor pelo
estranho e o desconhecido na natureza e no espaço sideral, a repulsa do outro,
o gosto pelo espetacular, o espanto pelo horroroso. A fé na magia provoca e
resulta naquele forte temor aos demônios que, a partir do século IV [a.C.], se
propagou, com a crescente fantasia, no âmbito do helenismo. Segundo essa
demonologia, o mundo inteiro está repleto de [demônios]... estranhos seres
intermediários entre os homens e os deuses. O número desses demônios maus, que
podem e querem prejudicar aos homens, é cada vez maior, mas o seu poder pode
ser esconjurado pela força da magia. Para essa magia ser bem-sucedida,
entretanto, é necessário que se saiba o nome oculto do demônio ou do deus, e
empregar da maneira mais exata a fórmula prevista” (idem; p 160-161). Há algum
tempo atrás, determinados grupos dentro da Igreja, da minha região, forcejavam
e tentavam induzir outros a forcejar, para saber o nome do seu “anjo da guarda”...
http://gnosticwarrior.com/wp-content/uploads/2014/09/Temple-of-Asclepius.jpg
http://gnosticwarrior.com/
A atividade oracular também continuava
intensa. É verdade que os grandes centros de oráculos do passado, como o de
Delfos (7), na Grécia, e o de Amon,
no Egito, estavam “démodés” e decadentes nessa época, mas outros centros
oraculares tomaram o seu lugar, enquanto a busca pelo significado dos sonhos
alcançava “assinaladamente êxito no Egito, onde livros oníricos especiais
instruíam seus crédulos leitores sobre o sentido e o alcance das imagens vistas
nos sonhos” (idem; p 161).
Para a cura de seus males físicos o
povo recorria aos templos de Asclépio, um deus tão bondoso e hábil na arte de
curar, que começou até a ressuscitar mortos! Nesse momento o deus dos mortos,
Hades, se dirige ao seu irmão, Zeus, para dizer que, se Asclépio continuasse
agindo assim, teria que cerrar as portas do seu reino! Essa não é uma das grandes
propostas do cristianismo? Mas não foi assim que Zeus pensou e, furioso com tal
procedimento sem a sua autorização, fulminou Asclépio com um raio... Mais tarde
ele teria feito um acordo com esse deus, para que só ressuscitasse gente com a
sua autorização.
Seja como for, a ideia de um deus que
se preocupa com o sofrimento dos seres humanos, empolgou aquela gente de tal
modo que, com o passar dos anos e para a conveniência econômica dos centros de
culto, foram-lhe atribuídas qualidades e virtudes cada vez mais elevadas de
divindade salvadora, daqueles que se lhe devotavam. A orla do Mediterrâneo se
cercou de centenas de templos a ele dedicados, que alcançaram as regiões mais
remotas para onde iam milhares de doentes procuravam cura, graças aos remédios
oferecidos por seus sacerdotes, após uma noite de sono no templo, e a ação
benigna do Deus. Muitos, em sinal de agradecimento, deixaram milhares de
ex-votos pendurados nas paredes. O culto de Esculápio foi um dos que mais resistiu
ao avanço do cristianismo.
Entretanto, ao longo dos primeiros
séculos, a maior resistência ao Evangelho foi oferecida pelo culto imperial
“primeiramente porque a mensagem de um redentor executado numa cruz, como um
malfeitor, não podia impor-se sem dificuldades em um mundo que prezava muito pela
exterioridade da figura sagrada, rodeada de esplendor, que se sentava sobre o
trono imperial” (Jedin; 1966; p 163). Isso, inclusive, desqualificava os cristãos
para levantar a voz contra um culto tão majestoso. “Outro fator negativo era
oferecido pela espantosa falta de sentido moral nos cultos de mistério
orientais, cujas características orgiásticas induziam com frequência ás mais
espantosas degenerações. Além do mais, a tendência desses cultos ao
exibicionismo, destinados primordialmente a impressionar os sentidos, era amiúde
frutos de uma religiosidade superficial, própria do helenismo... O mesmo efeito
negativo se encontrava na crítica aos deuses, desrespeitosa e desavergonhada,
que, com o desprezo pelas antigas crenças, ajudou a sepultar muito da
reverência devida ao religioso simplesmente” (idem).
Era, enfim, no que tange ao sentimento
religioso e a outros fatores sociais, uma época de transição repleta de
perguntas, como toda época de transição, com poucas certezas; venceria aqueles
que fossem capazes de dar as respostas mais adequadas e convincentes às dúvidas
que se levantavam: os cristãos se apresentaram para respondê-las.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/1/19/ReligRomae.jpg/1024px-ReligRomae.jpg
Wikipedia
Nesse mapa pode-se ver a enorme
penetração dos cultos de mistério e do judaísmo no Império Romano, durante os
primeiro séculos da era cristã. Eram forças consideráveis, ora concorrentes ora
hostis ao cristianismo.
Nota
(1) “A doutrina monista da Stoa [do estoicismo], que substituiu
aquela fé [nos deuses homéricos] por uma providência divina (prónoia) e um logos como razão cósmica
que o penetra [ao cosmo] e ordena tudo, não conduziu à crença em um deus
pessoal transcendente, pois também a razão cósmica... está sob o jugo da férrea
lei da heimarmene, o destino, que
vela sobre o curso dos acontecimentos universais... e tira ao logos toda a
liberdade de ação. Epicuro, por seu lado, rejeita decididamente a existência de
uma lei tão fatal, mas sua interpretação cósmica, que se fundamentava na teoria
de Demócrito... só conduzia à imagem de um mundo fisicamente determinado”
(Jedin; 1966; p. 149). Outra teoria que alcançou certa proeminência foi a de
Evêmero, que sustentava que os deuses não passavam de personalidades
importantes do passado, cujo sentimento de perda, provocado por suas mortes,
induziu a contemporâneos e pósteros o desejo de eternizá-los, de divinizá-los –
a semelhança desse pensamento com Sb 14,15-21 é curiosa.
(2) Toda religião, cedo ou tarde, em
maior ou menor grau, esbarra em um mistério inalcançável à mente humana. Aliás,
a própria existência das religiões só se justifica justamente pela presença
desse mistério maior, que para uns é Deus, para outros a morte, a própria vida,
etc. Algumas religiões ou seguimentos dentro de certas religiões vão mais além
e se propõem a desvendar esse mistério maior, sob certas condições. Segundo a
Wikipedia em espanhol, “mais do que uma religião, [o culto de mistério] é um
modo de viver uma religião... O secretismo e o exclusivismo de algumas dessas
religiões de mistério acarreta uma série de ritos iniciáticos e,
frequentemente, um período de preparação e provas, antes de aceitar um novo
membro. Esses ritos também são chamados de mistério” (traduzido de Religión mistérica), decerto porque
eles, de uma forma desconhecida, modificam a natureza humana-mortal-limitada do
iniciado, deixando-o apto para atingir a plena compreensão do mistério maior
que se quer participar. Continuando no mesmo verbete, “uma pessoa que seguisse
tal “Mistério” era um mystes, “um
iniciado”... já que só aos iniciados era permitido observar e participar desses
rituais. Os mistérios são, amiúde, suplementares à religião civil, por isso se
fala em cultos de mistérios e não de religiões de mistério”. Diz ainda: “Se
chamam mistérios ao conjunto de provas e ritos que a que iniciante deveria se
submeter, para ser aceito como membro da comunidade, Os mistérios são formas de
pedagogia primitiva que partem da premissa de que o verdadeiro conhecimento... é
resultado da assimilação da informação através da totalidade do ser humano.
Nessa representação de mistério [por meio do rito], o iniciado recebe informação
simultaneamente por meio físico, cognitivo e emocional [afetivo], ao ser
personagem ativo do dito drama [revivido pelo rito], e assim se converte em um
deus ou herói” (idem).
Aqui
nós vemos outra faceta desses cultos. O seu caráter oculto aos não iniciados. Havia
uma regra geral: toda pessoa não iniciada que assistisse a uma dessas
cerimônias ou uma pessoa iniciada que as revelasse ao público deveria ser morta.
Dessa regra tão fatal quanto imperiosa adveio um enorme prejuízo para a
história das religiões e para a sobrevivência desses próprios cultos: não se
sabe quase nada sobre eles; nem dos cultos antigos nem dos modernos. Um notável
exemplo da fidelidade com que os antigos guardavam esses segredos é o do famoso
oráculo de Delfos, frequentado por dezenas de milhares de pessoas ao longo dos
séculos, e não temos, hoje, nenhuma informação segura sobre o que acontecia na
câmara da pitonisa!
O
sucesso dos cultos de mistérios na Grécia e em Roma, particularmente, foi
enorme, de nada adiantando a ação dos imperadores, inclusive do grande Otávio
augusto, no sentido de reprimi-las. O seu sucessor, Tibério, teve que se render
e autorizar a sua realização. “Alguns autores opinam que o êxito e a expansão
das religiões de mistério se deviam a que a mitologia oficial greco-romana
clássica não considerava o indivíduo em suas crenças [era uma religião
coletiva, burocrática], enquanto que as religiões de mistério acolhiam o
crente, proporcionando-lhe acolhimento, proteção e promessa de felicidade”
(idem).
A
Wikipedia em francês traz informações mais detalhadas a esse respeito: “Os
cultos de mistério se diferenciavam dos cultos oficiais nos seguintes pontos:
os participantes eram promovidos em iniciações sucessivas, apreendendo cada vez
mais sobre os segredos da divindade [como se fora uma patente militar, essa
sistemática ajudava a dar, ao fiel, uma noção de posse ativa, por mérito
próprio, do mistério da divindade, superando a passividade do culto oficial]; a
cada etapa de seu percurso, o iniciado devia fazer um juramento. Esse juramento
era uma prova do seu status de homem livre, visto que o escravo não podia jurar
[e também dava a pessoa uma sensação de como tudo aquilo e ela, inclusive, eram
muito importantes!]; esses cultos traziam, ao contrário do culto oficial [mais
voltado para a prosperidade econômica, política ou cultural da cidade],
promessas de felicidade numa vida pós-morte... para os que mais merecessem: os
heróis [os iniciados!]”.
(3) No canto XI da Odisseia, Ulisses
desce até uma entrada que dá para o mundo dos mortos e os atrai com sangue de
um animal sacrificado, que as almas vêm lamber com sofreguidão, entre as pedras
e a areia, inclusive a alma da mãe do herói, recém-falecida. O grande Aquiles,
que fizera de tudo para ir à Troia, mesmo sabendo que lá encontraria a morte,
agora, morto, diz a Ulisses: “Não me consoles da morte, Ilustre Ulisses!
Preferiria, sendo um lavrador, alugar meus serviços a um outro, a um homem sem
lote, que não tem muitos recursos, do que reinar entre todos os mortos”. Que
enorme mudança naquele homem orgulhoso que partira para a guerra! http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2003000100008 . Podemos citar ainda a Epopeia de Gilgamesh, no mundo
oriental-mesopotâmico, que mostra as almas dos falecidos, independente de seus
méritos ou de suas ações em vida, deformadas, todas cobertas de penas, como as
corujas, morando em um lugar escuro e frio, comendo a poeira e bebendo a lama
do chão, sendo maltratadas, como a escravos, por deuses cruéis e indiferentes.
(4) Segundo uma das versões da
mitologia, Cibeles tinha um amante de rara beleza, Attis, que a traiu ou foi
induzido a desposar a filha de um rei. Cibeles, enfurecida, lançou sobre ele
uma moléstia, uma loucura furiosa, que, no caso de Attis, derivava de um torturante
sentimento de culpa, que o arrastou para longe dos homens, para o cume de um
monte isolado, onde ele teria se emasculado e morrido. Cibeles, arrependida pelo
terrível efeito de seu ciúme, teria preservado milagrosamente o corpo do
infeliz amante ou o seu sêmen, de forma que ele renasceu como um pinheiro
sempre verde. Isso era suficiente para que, durante as cerimônias sacerdotes e
praticantes se entregassem a excessos e descontroles, recriando a loucura de
Attis, revolvendo-se no sangue de touros (o taurobolio) flagelando-se
desapiedadamente e, no caso dos sacerdotes, se automutilando.
(5) Não quero com essa expressão dizer
que a história avança em ciclos e que a nossa sociedade repete, sem mais, a
sociedade do Império Romano, mas antes que existem ou subsistem, sob a capa das
mudanças macro-históricas, anseios, medos e desejos primitivos que teimam em se
repetir, em que pese o triunfo da ingênua racionalidade burguesa que move o
mundo moderno, e que nos revelam tanto a existência de uma “natureza humana”
como de certos condicionamentos irracionais ao processo maior de mudança
histórica, e que podem, em um limite, condicionar esse mesmo processo. Nessa
frase, remeto o leitor para o seu entorno, familiarizando-o mais com o tema
tratado.
(6) Um exemplo do fatalismo e da
submissão incondicional à vontade dos deuses, por parte dos orientais, é o
final do famoso poema sumeriano a Epopeia
de Gilgamesh, onde o rei Gilgamesh, lendário herói sumeriano, após ouvir do
espectro de seu amigo Enkidu, que os “espíritos não têm descanso no mundo dos
mortos”, morre algum tempo depois, após uma penosa busca pela fonte da vida
eterna. Sobre o sua tumba se escreve o seguinte epitáfio: “Ó Gilgamesh, foi-te
dada a realeza segundo o teu destino, mas a vida eterna não era o teu destino.
Quando os deuses criaram o homem, deram-lhe a morte como quinhão. Mas a vida, a
vida eterna, eles guardaram só para eles” (http://www.deldebbio.com.br/2009/02/14/a-historia-de-gilgamesh/).
(7) O segredo da pitonisa de Delfos,
foi supostamente descoberto por expedições arqueológicas e geológicas no local
do templo, quando se descobriu no espaço que ficava o adito, o aposento onde a pitonisa recebia os consulentes, o
vestígio de uma antiga fenda geológica, a Falha de Delfos, que, no passado,
exalava, vindos do interior da terra, vapores de eteno, um hidrocarboneto, e
vapor d’água. Ora, o eteno é um gás de sabor doce e de efeito narcótico,
inebriante, que dava o “barato” que “turbinava” a pitonisa. Essa é a tese
defendida por importantes pesquisadores em revistas e mídias como Cientific
American, National Geographic e Revista Historia Viva. Ver http://news.nationalgeographic.com/news/2001/08/0814_delphioracle.html
e http://www.historia.templodeapolo.net/textos_ver.asp?Cod_textos=37&value=O%20g%C3%A1s%20do%20Or%C3%A1culo%20de%20Delfos&civ=Civiliza%C3%A7%C3%A3o%20Grega
Bibliografia
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho;
Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado
de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia
Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da
Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes;
Petrópolis; 1987.
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los
comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz
Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus;
São Paulo; 2003.
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)
Reale, Giovanni – Antiseri, Dario;
História da Filosofia – Patrística e
Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário