quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

HISTORIA DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – XII

Obrigado aos amigos dos Estados Unidos, Brasil, Canadá, Alemanha, México, Reino Unido, Áustria, Polônia e de outros países que acompanham esse blog. Que ele vos seja cada vez mais útil. Deus os abençoe.

Prof Eduardo Simões

Sobrevivendo Perigosamente...

__ Na percepção de Jedin, não faz sentido falar em uma perseguição geral,ou sequer de um edito imperial, que valeria para todo império, sobre a necessidade de reprimir os cristãos, após o incêndio de Roma. A perseguição de Nero teria sido apenas regional pelos seguintes motivos:
a) Entre os autores cristãos antigos só Lactancio (séc IV) fala de uma perseguição geral, enquanto Tertuliano apenas se refere a um edito neroniano que proscrevia o nome cristão – a proscrição era um instituto legal que transformava inapelavelmente a pessoa ou um grupo em inimigos do Estado.
b) Se essa perseguição foi geral, porque não há nenhuma notícia dela nas províncias do Oriente?
c) “O fato que mais decididamente contradiz a existência de um edito neroniano de perseguição é que, posteriormente, nenhuma autoridade faz menção a semelhante instrumento antes de tomar uma atitude acerca do problema cristão. Em conclusão, quanto a esse ponto merece mais credibilidade o relato de Tácito [que não era cristão], segundo  o qual a atitude contra os cristãos não teve nenhum fundamento legal, senão que nasceu de um capricho do tirano, ansioso por livrar-se da suspeita de autoria do incêndio” (p 211).
__ No reinado de Domiciano (81-96), um organizador e gestor genial, mas uma com uma personalidade sombria e desconfiada, muito ciente dos benefícios de sua divinização, houve novamente um principio de perseguição, mas ainda muito dirigida e localizada, embora tenha sido Domiciano quem primeiro desconfiou do perigo que o cristianismo, além do judaísmo, representavam para a proposta unificadora e absoluta do culto imperial. A questão com os judeus foi resolvida, em geral, com o aumento do pagamento de tributos, já com os cristãos a solução foi mais “sangrenta”, embora não seja necessário também exagerar quanto a isso. Foi mais um aviso, digamos (1).

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Wikipedia

__ Jedin diz: “Menos abundantes [que os de Nero] são os relatos... de perseguição de cristãos sob Domiciano... em primeiro lugar temos a afirmação clara e inequívoca de Melitão de Sardes que... nomeia Domiciano, junto com Nero, inimigo do cristianismo. A observação de São Clemente (2), no começo de sua carta aos coríntios... Também indicações de autores não cristãos podem ser interpretadas nesse sentido. A censura que faz Epiteto [que viveu em Roma até 93] aos cristãos, que seguem indiferentes à morte, supõe medidas contra os seguidores do cristianismo... Chama atenção a notícia do historiador Cassio Dion, segundo o qual no reinado do imperador Domiciano, foram acusados e condenados por “ateísmo”... o cônsul Flavio Clemente e sua mulher Domitila (3), e com eles “muitos outros inclinados aos costumes judeus” ... A acusação de impiedade ou ateísmo nos dá a chave do motivo que inspira Domiciano: se trata da pretensão do imperador a respeito de sua pessoa, que se manifestou na exigência de um culto imperial desmesurado... A aspiração de Domiciano a honras divinas deveria pesar, principalmente, nas províncias da Ásia Menor, pois nessa parte do império já florescia o culto imperial [cristãos e judeus se lhe opunham]... o pretexto da perseguição aos cristãos nas províncias orientais foi, claramente, a acusação do crime de lesa majestade, que acompanhava a recusa daqueles em prestar culto ao imperador” (p 212-213) (4). 
__ De uma certa forma podia-se entender a preocupação e até a precipitação de alguns imperadores acerca da nova religião, afinal a perseguição de Nero revelara um dado impressionante aos donos do poder: a forte penetração do cristianismo na elite social romana, mais especificamente entre as famílias patrícias, que eram, afinal, quem ainda comandava cultural e politicamente o império. Como se deu isso? O que a doutrina cristã tinha que conseguiu na elite romana resultados que as outras religiões não conseguiram, apesar de serem mais antigas e consolidadas, como os cultos de mistério e o judaísmo? As atas de martírio dessa época nos dão a pista: a mulher, em especial a matrona romana.
__ A historiografia tradicional, e até a marxista, superdimensionaram o poder do pater famílias romano, isolando-o do conjunto da sociedade e dos seus paradigmas culturais, dando-nos uma imagem muito superficial do fenômeno maior e mais complexo que foi a família romana. E assim, sob o controle do pater famílias, o núcleo familiar romano foi sistematicamente apresentado como um sistema fortemente autoritário, patriarcal, que influenciava da mesma forma a grande sociedade e o Estado., perceptível na escravidão onipresente, nos jogos de gladiadores, etc.
__ Não estaria errado, decerto, quem afirmasse que o recém-nascido romano corria riscos nas mãos do pater. E que riscos! Mas, uma vez que fosse aceito oficialmente como filho, seria muito complicado ao pai se exceder, acima do razoável, com essa criança, sem falar que a cultura do ambiente e o enorme poder que a lei e o costume facultavam ao pai sobre os filhos, inclusive o de o matar – nos poucos casos casos claramente especificados na lei – tinha o efeito de preservar esse filho que, afinal, era o esteio e a prova física do seu poder, frente aos outros pais.

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__ Com relação à mulher a distorção pode ter sido ainda maior. Ao contrário do que acontece hoje, em que a relação entre um homem e uma mulher é um problema estritamente pessoal, em Roma isso era um assunto social e político, uma relação considerada sagrada e protegida pelo Estado –  Bloch-Cousin (1964) falam de um senador romano, portanto da elite do patriciado, que recebeu em sua casa a incômoda visita de censores, interessados em saber porque motivo ele estaria se separando da esposa! É claro que o casamento era dominado pelos interesses externos ao casal, e, de uma maneira geral, arranjados a revelia dos noivos, pelos pais dos interessados, pelos menos nas classes mais “elevadas”, mas nem por isso se dispensava o amor ou a simpatia mútua entre os cônjuges, e até o consentimento deles. Dos dois! O amor ou a simpatia mútua era uma meta do casal romano já na República, e isso pode ser visto em tocantes declarações de amor de viúvos e viúvas constante em túmulos e testemunhos escritos. A mulher romana foi uma das poucas mulheres da Antiguidade que tomava sua refeição na mesma mesa e ao mesmo tempo com seu marido, costume herdado já dos etruscos, uns dos fundadores da cidade. À medida que os romanos ampliavam o seu domínio sobre o mundo a residência do casal, passou a ser cada vez mais área sob o controle da mulher. O romano, o de classe social mais “alta”, valorizava tanto a família e o que ela representava para a sociedade, e era tão bom conhecedor da natureza humana, que, consciente de sua responsabilidade na longa ausência do lar, que as campanhas militares requeriam, acabou desenvolvendo uma indiferença cultural à infidelidade de sua mulher, uma vez que ele também estaria seria infiel do outro lado do mundo. A grande liberdade de iniciativa da mulher, garantida pela lei, desde os tempos mais remotos, fazia com que muito soldado ou general, ao voltar para casa, a encontrasse vazia, uma vez que a sua mulher pedira divórcio, que lhe fora concedido, e fora morar com outro – quem quiser conhecer mais sobre esse universo relacional recomento o primeiro capítulo de Ariès-Auby (1989).
__ Mesmo no domínio do sagrado, a mulher romana intervinha por meio das sacerdotisas vestais, encarregadas de manter aceso o fogo da cidade, com um prestígio e um poder social incomuns (4); mas com um colégio permanente de apenas seis vestais, isso devia parecer mais um prêmio de consolo, numa religião dominada pelos homens, inclusive no ambiente doméstico, onde o pater famílias, conduzia os rituais previstos pela tradição. As religiões mistéricas, com as suas esquisitices, tipicamente “masculinas”, coisa de garotos imaturos, estavam longe de ser um atrativo para essa mulher profundamente convencida da importância do seu papel social, que só na aparência se mostrava passiva, pelo menos quando vista do nosso tempo, incapaz de perceber o valor da família e da estabilidade do ambiente doméstico, como sustentáculo do coletivo, embora também seja verdade que a família romana, fundada em mitos tão poderosos quanto estáveis, começava nesse tempo a apresentar, por força da escravidão, significativos sinais de decadência. Quem a iria salvar? O judaísmo patriarcal, que poderia trazer um retrocesso à liberdade da mulher romana? Creio que foi dela que partiu, de uma maneira suave, doméstica, mas insidiosa e persistente, a maior resistência à propagação do judaísmo, antes dos grandes levantes na Palestina?
__ É nesse transe que aparece uma nova religião onde um deus, por sinal o único, para nascer e executar o seu plano de salvação precisa pedir licença a uma mulher! Não passou despercebido das antigas romanas, o caráter revolucionário, para a condição feminina de então, a mensagem de um deus nascido, cuidado e protegido por uma mulher, com a parca presença de seu silencioso companheiro, personagem “secundário”. A mulher romana, a matrona, a mulher da elite, culta e abastada, creio eu, sentiu como ninguém o quanto aquela mensagem satisfazia a seus anseios mais profundos de autonomia e respeito, tanto no plano legal, como no social e no psicológico, sem falar numa perspectiva de futuro! Era aquele o mundo, apresentado pelo deus-profeta galileu, que ela quis pros seus filhos e filhas, um mundo se paz, sem deuses precisando a cada momento fazer demonstração de força, encorajando os homens a fazer o mesmo, e ela então se engajou de corpo e alma na difusão do novo credo, educando os filhos, ganhando toda a criadagem e por fim o marido, e por meio destes a sua sociedade e o mundo, da mesma forma como ganhara, no passado, por meio deles, o direito de passear e comprar pelo mundo todo como se estivesse em Roma.
__ A matrona romana e, por extensão, as mulheres em geral, tiveram um papel decisivo na conquista de Roma para o cristianismo, graças à sua identificação com a Virgem Maria. Sem elas essa conquista seria muito mais difícil. Imagine-se o impacto, para o homem comum, de elite ou do povo, educado para ver nessas mulheres o esteio da família e o ápice da decência, presenciando alguma veneranda matrona ser punida em público de uma forma tão cruel! Eles deveriam pensar: “será possível que uma mulher tão honesta e correta, como esta, iria fazer parte de uma seita da qual se falam coisas tão horríveis?” Os horrores do seu suplício devia fazer muita gente, muito marmanjão, sentir vergonha de sua covardia ou de querer ser cristão só por causa disso! Na pior das hipóteses, iria querer conhecer a nova religião. A ferocidade da perseguição e a baixeza das acusações só aceleraram o crescimento do cristianismo, principalmente quando, sofrendo essas perseguições e acusações, estava uma respeitável matrona romana, que encarou o mais poderoso Estado do mundo de frente, e o derrotou, com as mãos desnudas. E os outros cristãos ainda não entendem porque os católicos veneram tanto Maria! (5).
__ A garra da mulher romana, na defesa do cristianismo, tradicionalmente esquecida pela historiografia especializada, foi um “grandioso sinal” (Ap 12,1)  

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... Mas ainda assim Prosperando 

__ Os cristãos, entretanto, não podiam parar, e ficar “lambendo” suas feridas, se lamentar por serem tão injustamente perseguidos. Para além do seu sofrimento, que era brutal, havia a missão premente de erguer e estruturar uma nova comunidade, que, mesmo em meio às dificuldades, não cessava de crescer e reclamar atenção. Havia, e ainda há, um mundo para salvar.
__ Após a morte dos apóstolos, surgiu um prolongamento, e ao mesmo tempo uma evolução, de seus ensinamentos, que se tratava antes de uma atualização da mensagem original, mantendo os mesmos princípios. Os princiapis autores, que com a sua doutrina ajudaram a explicar o cristianismo nos novos ambientes culturais por onde se infiltrava, com grande rapidez, trazendo à baila novos problemas, abordados a partir de uma compreensão muito literal dos Evangelhos e das Cartas, foram chamados de Padres Apostólicos, uma vez que são considerados discípulos diretos dos apóstolos, e serão abordados a seguir, de acordo com a sua antiguidade.
a) São Clemente Romano, Papa: já citado anteriormente, escreveu em data incerta, provavelmente no fim do reinado de Domiciano, uma Carta aos Coríntios, a respeito de uma querela que surgiu na igreja de Corinto, Grécia, onde vários presbíteros, contra os quais não pesava nehuma acusação de mau comportamento ou desvio teológico, foram destituídos a partir de manobras de bastidores, por leigos insatisfeitos. Nessa carta Clemente mostra, além de um certo domínio da “filosofia helenista, sobretudo de matiz estoica” (Jedin, p 223), Sinal de uma abertura intelectual, precoce, da Igreja para o mundo de sua época, um vasto domínio sobre o conteúdo do Primeiro Testamento, com muitas citações deste, e umas poucas do Segundo Testamento, mostrando que as raízes de sua argumentação e da sua fé estavam firmes no que havia de mais saudável no judaísmo.
Essa carta ressalta ainda a importância de temas-chaves na história da igreja, como a questão da unidade, a existência de uma hierarquia (presbíteros e bispos), superioridade dos presbíteros sobre os leigos em questões de liturgia, a importância da sucessão apostólica, e, quiçá, uma demonstração muito precoce do Primado de Roma sobre as outras igrejas, uma vez que, após o conflito estourar em Corinto, é a Roma que os Corintos se dirigem para a solução do problema, e de lá que o Papa lhes escreve, com a autoridade de quem possui um vasto conhecimento do conteúdo da fé, e uma assistência especial do Espírito Santo – o trecho sobre o primado diz o seguinte: “Vós nos dareis alegria e contentamento, se obedecerdes ao que escrevemos [que os amotinados se arrependam, peçam perdão e, doravante, obedeçam aos padres] por meio do Espírito Santo”, e ainda: “se alguns desobedecem ao que nós lhe dissemos da parte de Deus, saibam eles que estão incorrendo em falta e não pouco perigos” (6). (texto completo, em português: http://www.veritatis.com.br/patristica/obras/1411-primeira-carta-de-sao-clemente-aos-corintios). A carta de Clemente Romano aos coríntios é considerada a manifestação mais antiga do magistério da Igreja, depois dos Evangelhos e das cartas dos apóstolos. Ela foi escrita no final do Iº século e já mostra passagens explícitas do Segundo Testamento (1Cor 2,9; Mc 9,42; Mt 18,6; Lc 17,1-2).

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b) Inácio de Antioquia, bispo: em uma data incerta, possivelmente durante o reinado de Trajano, Inácio foi levado de Antioquia a Roma, para ser executado. Durante a viagem, feita em condições semelhantes a de Paulo descrita nos Atos, ele entrou em contato com a situação de diversas igrejas, por meio de delegações por elas enviadas, tanto para lhe prestar alguma solidariedade e conforto como para pedir orientações. Durante esse tempo, que deve ter sido de alguns meses, ele escreveu sete cartas, atualmente reconhecidas como autênticas pela grande maioria dos estudiosos: aos efésios, aos magnésios, aos trálios, aos romanos, aos filadélfios, aos esmirniotas e a Policarpo de Esmirna, onde desenvolve pontos importantes da teologia católica, adaptada aos novos problemas e desafios que lhes trazem os enviados dessas igrejas – uma mstra do seu imenso prestígio – e que serão temas de debates ao longo da história e até os dias de hoje (7).
A mais impressionante de suas cartas, porém, é a que foi dirigida aos romanos, onde ele faz uma ardente e sincera defesa de seu martírio, chegando a pedir encarecidamente aos romanos cristãos e influentes, que não intercedam por ele, embora saiba que vai enfrentar uma das mortes mais terríveis: ser devorado vivo pelas feras. Eis alguns trechos: “Não quereis favorecer-me, senão deixando imolar-me a Deus... Suplico-vos, não vos transformeis em benevolência inoportuna para mim. Deixai-me ser comida para as feras, pelas quais me é possível encontrar Deus. Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo, Acariciai antes as feras, para que se tornem o meu túmulo e não deixem sobrar nada de meu corpo, para que na minha morte eu não me torne peso para ninguém” (transcrito de http://www.veritatis.com.br/patristica/obras/1397-carta-de-santo-inacio-de-antioquia-aos-romanos). Isso pode, de chofre, parecer estranho, a nós  que estamos imersos numa cultura que valoriza o bem-estar do indivíduo acima de tudo, capazes de ver nisso apenas um fenômeno freudiano, uma tendência “suicida”. Não é isso! Leia a carta, no endereço acima, e veja o quanto o ideal deste homem é sublime e lúcido. Convém lembrar ainda que muitos cristãos, gente comum e pouco influente, já havia padecido os piores tormentos e morte por causa de sua fé; já imaginaram se os bispos e os cristãos ricos começassem a usar de suas amizades para escapar do suplício?

(continua)

Notas

(1) Um testemunho do ambiente anticristão nesse período é o Grafite de Alexámenos, que, embora desrespeitoso, é, supostamente, a mais antiga representação de Jesus Cristo já encontrada. Ele estava na parede interna de uma casa, chamada pelos arqueólogos de “domus Gelotiana”, mandada lacrar no reinado de Domiciano. Esta casa era uma espécie de internato de jovens pajens da corte – gente de pouco juízo, dada a muitas brincadeiras, como é normal nessa idade – e o grafite, certamente feito por um deles, mostra um homem de joelhos diante de outro, crucificado, mas com a cabeça de um burro, com a seguinte inscrição em grego: “Alexámenos a adorar o seu deus”. Embora alguns queiram ver aqui um exemplo de onolatria, o culto do asno, como havia no antigo Egito, e nesse caso Alexámenos poderia ser um egípcio devoto de tal culto, mas também há referências de que entre os romanos se espalhavam, desde muito tempo, boatos de que os judeus, no Templo de Jerusalém, e os cristãos, cultuavam a cabeça de um burro, mas como uma forma de gozação e ridículo. A possibilidade desse grafite se referir a um cristão é reforçada mais ainda pelo fato de ter sido encontrado no aposento ao lado o seguinte grafite em latim: “Alexámenos é fiel”.
(2) Pouco se sabe de sua história ou de sua pessoa, e isso serve até como uma demonstração da imensa dificuldade porque passavam os cristãos em Roma, pois ele foi o terceiro ou quarto bispo de Roma, portanto Papa. Segundo antiga tradição ele foi discípulo de São Pedro, e deixou uma carta escrita, chamada Carta aos Coríntios. Fora isso o que se tem é uma tradição, não muito consistente, de que ele foi martirizado  durante o reinado de Trajano, em 99. Segundo uma historieta, ele teria sido preso e levado para a colônia grega de Quersoneso, na Península da Crimeia. Lá, Clemente, apesar da idade, foi obrigado ao rude trabalho na escavação de minas, agravado pela ocorrência de uma grande seca na ocasião. Dizem que ele se ajoelhou, fez uma oração, e pouco depoisa chovia torrencialmente, causando grande estupor e desejo de conversão entre os politeístas locais. A autoridade romana, aborrecida com aquele prestígio repentino, resolveu punir-lhe de forma exemplar, associando a sua execução com o milagre que realizara: foi levado para o alto-mar, e arremessado às águas com uma âncora amarrada ao pescoço. Diz ainda a lenda que anos mais tarde apareceu, milagrosamente, desenterrado pela vazante do mar, um abrigo contendo os ossos do santo. Os ossos foram, depois, então levados a um mosteiro bizantino escavado numa grande rocha, o Mosteiro da Gruta de Inkerman, que existe até hoje, de onde vários deles foi levada pelo missionário Cirilo, em 869, para Roma, aonde foram sepultados na Basílica de São Clemente, ficando a cabeça guardada no Mosateiro da Gruta de Kiev. Russos e ucranianos levam isso tão a sério que a bandeira e o escudo da cidade de Inkerman têm a imagem de São Clemente. Entretanto há uma dificuldade: os dois autores mais antigos e abalizados sobre a biografia de Clemente, Eusébio e São Jerônimo, não falam de seu martírio.
(3) A situação do cônsul Tito Flavio Clemente, sobrinho do Imperador Vespasiano e primo dos imperadores Tito e do próprio Domiciano, e de sua esposa Flavia Domitila é extremamente curiosa e sintomática de um diálogo necessário, que poderia ter acontecido há muito mais tempo, e não houve: a sua perseguição e martírio é reivindicado tanto por cristãos como por judeus! A não ser que tudo não passe de uma grande confusão. Segundo o autor romano Cassio Dion o casal foi perseguido por Domiciano, porque eles eram “ateus, uma acusação pela qual muitos daqueles que cultivavam costumes judaicos, eram condenados”. O Talmude, que o chama de Kelómenos (de Clemente) afirma que a conversão do cônsul seria fruto dos esforços do próprio Rabi Akiba, que o teria doutrinado no judaísmo, assim como à sua esposa, após um encontro casual, durante uma viagem de barco, quando rabi Akiba teria aplacado uma tempestade com a sua oração. Diz ainda o Talmude da Babilônia, segundo a Wikipedia em francês, que cinco dias antes de Domiciano apresentar um suposto edito, ordenando o massacre de todos os judeus do império, sua esposa, Domitila Flavia, teria lhe sugerido que ele se suicidasse, dando mais tempo aos judeus, uma vez que a escolha de um novo cônsul levaria vários meses, e algo poderia acontecer nesse período. Clemente, entretanto, se apresenta ao imperador e lhe revela sua conversão ao judaísmo, o que faz com que Domiciano o leve imediatamente ao Senado, que o condena unanimemente à morte. Antes de morrer ele circuncidou-se, e passou a chamar-se Ketiah bar Shalom.
Do lado cristão católico o nome do cônsul consta do Martirológio Romano, sendo comemorado no dia 22 de junho, data em que suas relíquias foram sepultadas oficialmente, após serem descobertas em um nicho da basílica dedicada ao Papa Clemente I, em 1725 – isso se explicaria pelo fato de, ao que se sabe, Tito Flavio Clemente ser tio do referido Papa. O trecho do Martirológio Romano, segundo a Wikipedia em italiano, é o seguinte: “Em Roma a comemoração do santo Flavio Clemente, que o imperador Domiciano, de quem fora colaborador no consulado, mandou executar, sob a acusação de ateísmo, mas na verdade por causa de sua fé em Cristo”. Ele foi decapitado no ano 95.
Quanto a Domitila e situação é mais confusa, pois, aparentemente, envolve várias pessoas com o nome, Flavia Domitila, pelo menos umas quatro, como era comum acontecer nas antigas famílias romanas. Segundo a versão mais aceita, a Santa Domitila do Martirológio seria, antes, filha de Santa Plautila e sobrinha de Flavio Clemente, logo Plautila seria irmã deste, todos da gens Flavia, uma das mais importantes de Roma, atraída em massa para o cristianismo desde os anos 60.
A importância de Plautila para a história do cristianismo se mede pelo fato de ela, segundo uma tradição, ter sido batizada por São Pedro, junto com a filha, Flavia Domitila, e dois camareiros: Nereu e Aquileu, além de ter testemunhado a execução de São Paulo, junto com duas outras damas cristãs, Basilissa e Anastacia, que se encarregaram de dar sepultura ao apóstolo, o que lhes custou também a vida, sob o reinado de Nero.
Orientada por Nereu e Aquileu, Flávia Domitila havia feito um voto de consagração a Deus, como virgem de Cristo, voto feito inclusive perante o Papa Clemente, e nessa condição viveu até começar a ser assediada por Aureliano, um nobre romano politeísta, que não aceitava essa decisão. Durante o reinado de Domiciano, ele tenta, por meio de suborno, usar dos dois camareiros para atingir seu objetivo. Ante a recusa deles, tortura-os e os denuncia como cristãos às autoridades, que os executam. Ele ainda leva à execução três outros companheiros próximos de Domitila, procurando sempre isolá-la, até que ele morre, frustrado em suas tentativas. Seu irmão, Luxurius, resolve vingar o irmão, e consegue do Imperador Trajano autorização para perseguir e levar às autoridades todos os cristãos que se recusassem a sacrificar aos deuses, e assim ele conduz ao patíbulo dois amigos de seu irmão falecido e, investindo contra Flavia Domitila, põe fogo na sua casa, com ela e duas amigas dentro. A essa Domitila estão associadas às chamadas Catacumbas de Domitila.
(4) Se um homem, que caminhasse para a morte, por decisão de um tribunal, cruzasse com uma vestal, e ficasse provado que o encontro fora casual, eles era automaticamente perdoado; se uma vestal cruzasse com algum magistrado, este lhe cederia passagem, e aqueles que portavam os fascios (feixes de varas ao redor de um machado), símbolo da autoridade máxima, os baixavam em sinal de reverência; a intervenção de uma vestal podia suspender decisões de órgãos colegiados; podiam dispor de seus bens e legar em testamento com total liberdade; não precisavam prestar juramento antes de testemunhar num tribunal; em viagem eram sempre seguidas por um lictor (guarda de honra, semelhante aos nossos batedores), etc..
(5) É curioso e muito revelador considerar essa característica do cristianismo ocidental, quando comparado ao que aconteceu no Oriente. Neste predominou o elemento masculino, como seria de se esperar numa sociedade historicamente mais patriarcal, que a do Ocidente. Lá a perseguição estatal foi bem menos intensa, e quando houve predominou a execução de figuras masculinas; quase não se sabe de mártires mulheres nessa região. O cristianismo se espalhou mais rápido e teologicamente evoluiu muito e bem mais cedo, que no Ocidente. Os luminares da ciência teológica e da literatura cristã antiga, do Oriente e do Norte da África, são impressionantes. Entretanto, o cristianismo aí não vingou. No Ocidente, o ponto de apoio, o pivô da fé cristã foi a mulher, em especial a mães de família, a matrona romana, o centro estável de uma família, onde o marido quase sempre ausente, em longas guerras, precisava deixar tudo sob o controle dela. E ela não o decepcionou, inclusive quando optou pela nova religião, que o mantinha, o marido, mais perto de si e dos filhos e mais longe das guerras. Essa foi a grande revolução que o “pobre” Edward Gibbons (o historiador inglês do século XVIII, que associou a decadência de Roma à expansão do cristianismo) não conseguiu enxergar. Nascida numa base feminina, dentro das condições do feminino da época, o cristianismo no Ocidente demora a “pegar”, mas quando “pega” nada mais o derruba, e o Ocidente tornou-se cristão, feminino – a mulher ocidental conseguiu conquistas sociais, políticas e econômicas que nenhuma outra conseguiu, e que deixam desarvorados, sem entender, aqueles que vêm de outras sociedades, como aconteceu na virada do ano de 2016 em Munique, na Alemanha – pacífico, em que pese as intervenções desastradas da burguesia indiferente, e próspero, enquanto do outro lado... O cristianismo Oriental era mais intelectualizado, mais abstrato, enquanto o ocidental era mais intuitivo e vivencial, e dessa forma marcou indelevelmente, com a marca da natureza da mulher, a evolução, até aqui bem-sucedida, do Cristianismo Ocidental.
(6) A percepção de um primado para Roma, já definido ou suposto nesta carta é causa de muita controvérsia. Os adversários do primado alegam que por Clemente, por ser um discípulo de Paulo, e sendo Paulo tão importante para a comunidade de Corinto, a sua escolha como um mediador deve ser vista mais como uma deferência ao apóstolo; mas quanto a isso pode se levantar um questionamento: por que ir até Roma, buscar um mediador paulino? Não haveria em toda Grécia ou Ásia Menor, ali perto, um bispo ou autoridade cristã, ligada a Paulo, ou não, capaz de mediar o conflito? Pode-se alegar que o texto é tênue e indireto, não dá para concluir muita coisa, mas também podia ser que a resistência a esse primado, em virtude da aceitação geral da missão de Pedro em Roma, e a sua ascendência sobre os outros apóstolos, também fosse muito tênue e indireta. Uma árvore não brota toda formada da semente, mas cresce paulatinamente.
(7) O caso de Inácio de Antioquia é extraordinário: provavelmente, nunca um homem, de quem se sabe tão pouco, em tão pouco tempo e em condições tão angustiantes fez tanto bem à Igreja! A passagem desse “cometa” fulgurante, entre nós, se deu da seguinte maneira:
1º momento: nada sabemos de sua vida, fora o que está direta ou indiretamente revelado em suas cartas.
2º momento: ele é preso e condenado à morte, no reinado de Trajano, provavelmente na primeira década do século II, sem que saibamos o motivo. Deduz-se que, por ele falar muito em unidade em suas cartas, seja possível ter havido tumultos entre cristãos de sua diocese, que acabou chamando a atenção das autoridades. Outra fonte de estresse em suas cartas, são as suas referências aos judeus, dando a entender que os conflitos podem ter ultrapassado as divergências internas.
3º momento: por alguma razão desconhecida, ele, ao invés de ser executado em Antioquia, onde a sentença fora decretada, é levado para ser supliciado em Roma – muito provavelmente o imperador, já começara a detectar o caráter contraproducente de execuções exemplares de pessoas famosas, como Inácio devia ser em Antioquia, e para reduzir o impacto da sentença, numa região sensível à propaganda e ataques de potências estrangeiras, como a Partia, transferiu a execução para Roma, onde Inácio era menos conhecido e o trauma para a população de Antioquia seria menor. Convenhamos que a sentença era muito degradante: ser dado como comida a feras carnívoras
4º momento: enquanto ele viaja para Roma, num percurso que só pode ser conjecturado ou precariamente deduzido das cartas, ele recebeu a visita de delegações de várias igrejas, em geral com os respectivos bispos à frente, ansiosas por lhe prestar solidariedade e pedir conselhos sobre problemas disciplinares e teológicos sérios porque passavam. Ele então escreve várias cartas, das quais sete sobreviveram até nós.
5º momento: sua morte ocorrida em Roma. Não há nenhum testemunho sobre como foram os últimos dias dele em Roma, nem da execução em si, numa arena pública. Mas os animais não o devoraram completamente, como ele almejara, segundo um escrito muito posterior,o Martírio colbertino, que informa a sobra de alguns ossos mais duros, que foram recolhidos pelos discípulos e levados para Antioquia, fato este confirmado por São João Crisóstomo, segundo Daniel Ruiz Bueno em Padres Apostólicos (1979) (citado na Wikipedia em espanhol).
Os temas tratados nas cartas de Inácio são tão significativos e abrangentes, que um dos mais notáveis homens da Igreja do século XIX, o cardeal inglês John Newman, escreveu: “todo o sistema da doutrina católica se descobre, pelo menos em esboço, para não dizer íntegro, embora em partes, nas cartas de Inácio de Antioquia” (http://ec.aciprensa.com/wiki/San_Ignacio_de_Antioqu%C3%ADa) Os principais temas abordados em suas cartas foram:
a) Necessidade de pertença à Igreja: “ser alguém seguir a um cismático, não herdará o reino de Deus” (Aos filadelfos, cap III).
b) Unidade intrínseca da Igreja: “sede solícitos em tomar parte numa só eucaristia, porquanto uma só é a carne de Nosso Senhor Jesus Cristo, um o cálice para a união com o seu sangue; um o altar, assim como um é o Bispo, junto com o seu presbitério e diáconos” (idem, cap IV). “todos vós, porém, univos num só coração indiviso” (idem, cap V).
c) Hierarquia da Igreja instituída por Deus: “Saúdo-a [a igreja de Filadelfia] no sangue de Jesus Cristo... sobretudo se continuarem [os fieis] unidos ao Bispo, aos presbíteros e diáconos que estão com ele, instituídos, segundo o plano de Jesus Cristo” (idem, introd.). “E quando se vir um Bispo guardar silêncio, mais se deve reverenciá-lo, pois aquele a quem o senhor da casa envia para administrar sua casa, deve ser recebido como se fora aquele que o enviou. Então está claro que devemos ver o Bispo como o Senhor mesmo” (Aos efésios, cap VI, versão espanhola; aliás, a versão espanhola dessa carta constante em catholic.net, é significativamente diferente a versão que aparece no site brasileiro veritatis.com.br).    
d) Necessidade de se submeter à hierarquia e buscar a união: “assim como o senhor nada fez sem o Pai... seja por si mesmo ou por meio dos apóstolos, da mesma forma nada façais sem o Bispo e os presbíteros. Não imagineis nada que possa ser bom para vós, e não inclua aos demais: antes que haja sempre uma oração comum”. (Aos magnésios, cap VI, versão espanhola). “Sede obedientes ao Bispo e uns aos outros” (idem, cap XIII, idem).
e) Caráter monárquico dos Bispos: “com o vosso reverenciado Bispo, mais a guirlanda bem trançada do vosso presbitério, e diáconos que andam segundo Deus” (idem, idem, idem). “Segui todos o vosso Bispo, como Jesus Cristo seguiu ao Pai, e aos presbíteros como aos apóstolos, e respeitai aos diáconos, como determina o mandamento de Deus. Que ninguém faça nada referente à Igreja a revelia do Bispo. Considerai como válida apenas a eucaristia celebrada pelo Bispo ou por alguém recomendado pelo Bispo. Aonde estiver o Bispo, lá deve estar o povo [de Deus], tal como onde estiver Jesus Cristo lá deve estar a Igreja universal (katholikós, em grego)” (Aos Esmirnenses, cap VIII, mercaba.org). Nessa carta é documentado, pela primeira vez, o uso das palavras “católico”, se referindo à Igreja, e de “eucaristia”, no sentido que hoje tem.
f) Infalibilidade da Igreja: “Todos os que são de Deus estão com os Bispos... se alguém segue a outro, que promove um cisma, não herdará o Reino de Deus. Se alguém assimila uma doutrina estranha, não tem comunhão com a Paixão” (Aos filadélfios, cap VIII, idem).
g) virgindade de Maria: “ao príncipe destre mundo foi oculta a virgindade de Maria” (Aos efésios XVIII, idem)
h) Alto valor da virgindade e o caráter sagrado do matrimônio: “Se alguém pode manter-se na castidade, para honrar a carne do Senhor, que o faça sem gabar-se... É apropriado que todos os homens e mulheres, quando forem se casar, que o façam com o consentimento do Bispo, para que o casamento seja segundo o Senhor” (A Policarpo, cap V).
i) A guarda do domingo, ao invés do sábado: “os que andavam em práticas antigas alcançaram uma nova esperança, sem observar mais os sábados, antes modelando suas vidas pelo dia do Senhor, no qual nossa vida brotou por meio Dele [no domingo da ressurreição] e da sua morte que alguns negam” (Aos magnésios, cap VIII e IX).
j) Primazia de Roma: “Inácio... à Igreja que recebeu misericórdia pela grandeza do Pai altíssimo e de Jesus Cristo Seu Filho único, Igreja amada e iluminada pela vontade d’Aquele que escolheu todos os seres, isto é, segundo a fé e a caridade de Jesus Cristo nosso Deus, ela que também preside na região da terra dos romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada bem-aventurada, digna de louvor, digna de êxito, digna de pureza, e que preside à caridade na observância da lei de Cristo e que leva o nome do Pai. Saúdo-a também em nome de Jesus Cristo, filho do Pai. Aos que aderem a todos os seus mandamentos segundo a carne e o espírito, inabalavelmente cumulados e confirmados pela graça de Deus, purificados de todo colorido estranho, desejo todo o bem e irrepreensível alegria em Cristo Jesus nosso Deus.” (Aos romanos, prólogo; texto copiado de www.veritatis.com).
k) Jesus Cristo gerado no pensamento do pai, um tema que só será desenvolvido plenamente por São Tomás de Aquino, mil e cem anos depois: “Porque Jesus Cristo, nossa vida inseparável, é o pensamento do Pai, como também os bispos estabelecidos até os confins da terra, estão no pensamento de Jesus Cristo” (Aos efésios, cap III, mercaba.org).
l) A natureza da eucaristia: “que ninguém vos engane... porque eles [os hereges] não admitem que a eucaristia seja a carne de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Aos esmirnenses, cap VI).
m) natureza ímpar de Jesus Cristo: “Existe um só médico, carnal e espiritual, gerado e não gerado, Deus feito carne, filho de Maria e filho de Deus, na morte vida verdadeira, antes passível (mutável) agora impassível, Nosso Senhor Jesus Cristo” (Aos efésios, cap VII, idem). “Ficai surdos, portanto, quando ouvirdes alguém falar de outro Jesus Cristo, que não o da estirpe de Davi, filho da Virgem Maria, que verdadeiramente nasceu, comeu e bebeu, foi certamente perseguido por Poncio Pilatos, verdadeiramente crucificado e morreu, à vista de tudo que existe sobre a terra, no céu e debaixo da terra; o qual, além disso, ressuscitou dos mortos, de fato... da mesma maneira que levantará a nós todos... Mas se for como outras pessoas, que não são crentes, mas ímpias, e dizem que Ele sofreu só aparentemente... Por que eu estou em cadeias? Por que desejo enfrentar as feras? Se é assim [como eles dizem] morro em vão! Estarei mentindo verdadeiramente contra o Senhor” (Aos tralianos, cap IX e X, idem). Noutras palavras: seria burrice morrer de verdade por alguém que só morreu de mentira.
n) Malícia dos hereges: “Os exorto pois... que só tomeis alimentos cristãos, e vos abstenhais da forragem estranha, que são as heresias; porque esses homens, inclusive, mesclam veneno com Jesus Cristo, impondo-se aos outros com o aspecto de honradez e sinceridade, como pessoas que administram uma poção de letal com vinho e mel, para que ninguém o reconheça e tema” (Aos tralianos, cap VI, idem).
Sobre os textos de Inácio podemos dizer ainda que eles são uma prova viva da antiguidade dos Evangelhos e Cartas, uma vez que há muitas citações delas, embora sobre isso tenha nascido outra controvérsia: Antioquia ficava no raio de ação pastoral de Pedro e Paulo, e aparecem muitas citações de Paulo nas cartas de Inácio; porém, a sua teologia e a sua forma de se expressar são muito mais próximas de João, sem falar de alguns conceitos que ele cita e que só aparecem no quarto evangelho. Essa proximidade é tanta, que há uma viva disputa sobre se ele teria ou não sofrido uma influência direta do discípulo que Jesus amava. Reproduzo abaixo uma nota do verbete Ignacio de Antioquia, da Wikipedia em espanhol, que dá um resumo do debate a respeito, para que o leitor perceba a complexidade:
“Un botón de muestra sobre la discusión. La dependencia de las cartas de Ignacio fue señalada por Friedrich Bleek en 1862. En 1866, J. J. Van Oosterzee afirmó que Ignacio utilizaba expresiones que se encuentran sólo en el cuarto evangelio. En 1877, Holtzmann negó la dependencia respecto a Juan del Pastor de Hermas y la Epístola de Bernabé pero dejó abierta la posibilidad a Ignacio. En 1887, A. Plummer, alegó que la obra de Ignacio contiene alusiones del Evangelio que faltan en efecto en otros Padres Apostólicos. En 1889, Lightfoot dijo que si bien Ignacio participaba de las enseñanzas de Juan, su corazón mostraba apego hacia el ejemplo de Pablo. Al mismo tiempo, Wescoott apenas encontraba un puñado de coincidencias entre el lenguaje de Juan y el de Ignacio y limitaba las referencias al Nuevo Testamento a las cartas de Pablo. Decía también que los pasajes que se aducen demuestran que Ignacio estaba familiarizado con la forma de pensar de Juan, pero no necesariamente que conociese su evangelio. En 1889, Theodor Zahn escribió sobre este tema insistiendo en que Ignacio estaba familiarizado con el pensamiento de Juan. En 1894, Von der Goltz realizó un estudio exhaustivo. Primero estudió las afinidades espirituales entre ambos autores: concepción de la persona de Cristo, la vida cristiana afincada en la fe y el amor, su actitud hacia el judaísmo. Después planteó la cuestión de si Ignacio conocía el avanzado cristianismo que se practicaba en Asia Menor o si llegó a concepciones similares de manera independiente. Después estudió las dependencias literarias de Ignacio con los sinópticos y concluyó que no existe dependencia literaria. Un año después, el jesuíta Heinrich Boese y Alfred Resch concluyeron, cada uno por su lado, exactamente lo contrario: Ignacio conocía claramente el cuarto evangelio. En 1897, Adolf von Harnack consideró improbable pero no imposible que Ignacio lo conociese. También señaló la posibilidad de que Ignacio hubiese estado previamente en Asia. En 1898, Friedrich Loofs dijo que Ignacio conocía el evangelio y que estaba familiarizado con la misión de Juan en Asia. En 1899, Camerlynck criticó el requerimiento de identidad formal y, a partir de la conexión doctrinal, concluyó que era probable que Ignacio conociese y usase el cuarto evangelio, aunque fuese difícil estar seguros. En ese mismo año, H. R. Reynolds concluía que se encontraban trazas de este evangelio desde Éfeso hasta Antioquía. Con el nuevo siglo, apenas cambió el panorama y se siguió afirmando cada cosa y su contraria (Burghardt 1940)”.   

Bibliografia – Fontes Diversas
Ariès, Puilippe e Duby, Georges; História da vida privada – Do Império Romano ao ano mil; trad Hildegard Feist; 2ª edição; Companhia das Letras; São Paulo; 1989
Bíblia de Jerusalém; 3ª impressão; Paulus; São Paulo; 2004
Bíblia Sagrada; 144ª edição; Ave-Maria; São Paulo; 2001
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho; Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Feldman, Sergio A.; Entre o Imperium e a Ecclesia: os judeus no Baixo Império; Anais di XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão; ANPUH/SP-USP; São Paulo; 8-12 de setembro de 2008  
Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes; Petrópolis; 1987.
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
Jewish Encyclopedia; 1906 - www.jewishencyclopedia.com
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mercaba.org (um site completíssimo sobre tudo que diz respeito à fé católica, em espanhol)
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)
Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009.

Fontes Para Santo Inácio, entre muitas outras:
http://www.mercaba.org/TESORO/I-antioquia.htm (em espanhol)
http://ec.aciprensa.com/wiki/San_Ignacio_de_Antioqu%C3%ADa (em espanhol)
http://www.corazones.org/santos/ignacio_antioquia.htm (em espanhol)
https://studiumhagiographia.wordpress.com/tag/martir/page/6/ (em espanhol)

https://igrejamilitante.wordpress.com/2013/03/12/sobre-as-cartas-de-santo-inacio-de-antioquia/ (em português)

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