sábado, 6 de fevereiro de 2016

MEIN KAMPF E NOSSA LUTA

Prof Eduardo Simões

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__ Nenhum brasileiro minimamente culto e conhecedor da história e da cultura nacional ignora a tragédia que foi, para a formação nacional, a política colonial portuguesa de proibir durante 300 anos a impressão e livre circulação de material impresso. Não havia impressoras no Brasil, até a chegada de D João VI, em 1808, de tal sorte que o primeiro jornal a circular por aqui, a Gazeta Brasiliense, era editada em Londres, por Hipólito José da Costa, fazendo vicejar nós a crença de que manter o povo propositalmente na ignorância é a melhor forma de tê-lo submisso e dominado. Entretanto não devemos ser tão duros com os portugueses, afinal, diz a história, que se faltava para nós faltava também para eles. A censura que houve aqui foi a mesma que houve lá, e, inclusive deve-se levar em conta a pequenez e a pobreza material do reino, empenhado numa empresa muito acima de suas possibilidades – eu não conseguiria dizer, nem sei se alguém pode, se a elite portuguesa era mais tacanha que a espanhola, que permitiu a impressão de livros e até fundou universidades em suas colônias americanas. Convém lembrar que mesmo José Saramago, o único português a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura, mudou-se para a Espanha, por não conseguir encontrar ambiente em seu próprio país! (1)
__ Outra herança colonial maldita, e essa intencional, foi o pisoteio sistemático de nossa autoestima por funcionários e cidadãos portugueses aqui radicados, que faziam questão de se diferenciar da população local, por meio de alcunhas depreciativas ligadas à cor da pele. Para eles os brasileiros, todos eles, eram a “negrada”. Os brasileiros revidavam chamando-os de “paredes caiadas”. Havia decerto aqui, como nas colônias espanholas, uma política consistente e constante de usar de todos os recursos para diminuir a resistência psíquica dos nativos à colonização, urgindo quebrantar-lhes o espírito, pela descrença em si mesmos, fazendo-os se sentir impotentes e inferiores àqueles que os exploravam.
__ Essa mesma mentalidade foi incorporada pelas elites nacionais, que, ansiosas por não parecerem tão “brasileiras”, procuraram preservar e dar continuidade aos elementos do sistema antigo sistema colonial que as beneficiavam, enquanto afastava o povo do poder, entre eles a escravidão (que abusava do próximo), a monarquia elitista (voto censitário), a dependência cultural da Europa (desvalorização da educação e da cultura local), extrema concentração de riqueza, etc. Como a grande massa do povo era analfabeta, essa elite luso-brasileira se deu ao luxo de autorizar a liberdade de expressão, como aconteceu no Império e no início da República, afinal uma meia dúzia de gatos pingados leriam, e menos ainda entenderiam, as opiniões da oposição.
__ Porém, quando o acesso à escola aumentou e o povo começou a se alfabetizar, essas elites, antes tão cordiais, aplicaram a mais truculenta censura (Getúlio Vargas, Oligarquia Militar), e assim quase todos os grandes intelectuais e pensadores brasileiros do século XX, acabaram tendo problemas com as autoridades policiais por questões de opinião. Nossa elite sempre encheu a boca para dizer que mantinha o povo afastado do poder por causa de sua ignorância, ignorância que essa mesma elite cultivava por meio da censura e da repressão. Na primeira República, o desvalor do povo atingiu seu ápice e a sua melhor expressão na rude sinceridade de brutos coronéis, antigos barões do Império, em aforismos que se tornaram célebres: “o povo é um cheque sem fundos”; “o povo é uma massa falida”. Um terrível testemunho contra eles mesmos.
__ Essa trágica herança voltou a lume, recentemente, numa sentença dada pelo juiz Alberto Salomão Junior, numa ação movida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, assinada pelo promotor Alexandre Themístocles, que proibiu em todo o Estado do Rio de Janeiro a comercialização, exposição e divulgação do livro Mein Kampf, escrito em 1925 pelo conhecido nazista Adolfo Hitler, a pretexto de que esse livro prega ideias “discriminatórias e incentivadoras do ódio e da violência”, chegando ao ponto de se justificar como uma iniciativa para dar “proteção dos direitos humanos de pessoas que possam vir a ser vítimas do nazismo!!!!!!”
___ Questiono:
a) Quem com idade, cultura e “saco” para ler esse livro, não sabe que o conteúdo do livro é discriminatório? Se não sabe, é um completo ignorante, e aí está na hora, senão já passou, de o Judiciário Brasileiro se ocupar de impedir o sucateamento e as aventuras na educação brasileira.
b) Se “incentivar o ódio e a violência” é motivo para censurar um livro, então é preciso, com urgência, proibir muitas partes da Bíblia, salmos inteiros, que incentivam a uma violência inominável. É preciso proibir o Corão, afinal ele não é a base doutrinal do genocida do Exército Islâmico? Aonde vamos parar?
c) O magistrado desatina ao tomar uma medida para evitar danos futuros!!!! Quem compra uma faca de cozinha, hoje, pode usá-la, no futuro para matar alguém! Aonde nós fomos parar?
d) Quem imporia a uma pessoa, já adulta, mas capaz ser induzida por um amontoado de ideias antigas e desmoralizadas a cometer um crime, a revelia da realidade, a obrigação de votar nas autoridades políticas de um país?!
__ Pobre povo brasileiro! Lutou tanto para escapar da censura indiscriminada do Executivo e do Legislativo, para cair justo na censura do Judiciário, o único poder que, até agora, não está desmoronando ao peso da corrupção generalizada! Mein Kampf é um livro histórico, infelizmente, no nosso país, apenas para uma muito seleta minoria, com disposição, dinheiro, tempo e cultura para lê-lo e entendê-lo no contexto em que foi criado, sendo que foi justamente esse contexto que permitiu-lhe ter o poder que teve e deflagrar as desgraças que causou, e que não existe mais agora, sem falar que os neonazistas não precisam mais deste livro para desatar seus instintos assassinos: basta alguns milhões de pobres refugiados ou outro motivo qualquer.
__ Essas ilustres autoridades mostram, por conseguinte, tão parco conhecimento sobre a natureza, sobre as razões do comportamento humano, uma vez que se deixaram dirigir, nessa questão, pelo mais canhestro behaviorismo – o “estímulo” provoca, inevitavelmente, o comportamento ou a “resposta”, semelhante ao argumento de que a roupa usada por uma mulher, se curta, justifica ou explica a violência do agressor – que nos faz temer pelas pessoas que terão suas causas encaminhadas e julgadas por elas.
__ Talvez esteja na hora desse juiz ousar um pouco mais e proibir a veiculação de notícias e imagens sobre a política nacional, em especial Brasília e proximidades, fonte inevitável de futuros rancores, ressentimentos, frustrações, agressões, etc., que só Deus e, talvez, o judiciário carioca sabem aonde vão parar.
      

Nota

(1) “poeta Manuel Alegre... declarou: "Isto é uma história portuguesa cheia de preconceitos e fantasmas. Em primeiro lugar é preciso ler o livro de José Saramago. Ele é um grande escritor, mas parece que não se perdoa a Saramago, ser um grande escritor da língua portuguesa, ser um Prémio Nobel e não ser um homem religioso". "Ele escreveu um livro, mas não vejo ninguém discutir o livro. Só vejo discutir as opiniões que com todo o direito ele expressou sobre a Bíblia".. Finalizando, disse que "ao Saramago não se perdoa ser um português que se atreveu a ganhar o Prémio Nobel da Literatura e que diz que não acredita em Deus"” (Wikipedia em português – José Saramago). A hostilidade sufocante, e até certo ponto mútua, entre Saramago e o mundo intelectual português aparece nitidamente no documentário “José e Pilar” (2010), do diretor português Miguel Gonçalves. Portugal tem outro Prêmio Nobel, o de Medicina, ganho pelo doutor Antonio Caetano de Abreu Egas Moniz, tristemente associado à operação de lobotomia.  

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