segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

POCAHONTAS OU O RISCO DE SER DIFERENTE

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos de Brasil, Estados Unidos, Canadá e Alemanha. Que este blog vos seja útil. Deus os abençoe.

Novo verbete: Pilar de Déli - Tecno
Roza Shanina - Contemporânea

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“A índia mattaponi [da antiga federação dos powhatans], “Estrela da Manhã de Outono”, da Virgínia, olha para a estátua de Pocahontas, no pátio da igreja de São Jorge, em Gravesend, na Inglaterra, durante a cerimônia de boas-vindas do Comitê Britânico Jamestown 2007, em 14 de julho de 2006. Nativos americanos estão visitando a Inglaterra para marcar o 400º aniversário de fundação da primeira colônia de falantes de língua inglesa, na América do Norte, em Jamestown” (Richmond Times-Dispatch – tradução livre)

__ Pocahontas nasceu na aldeia de Werowocomoco (o “w” tem som de “u”), da tribo Pamunkei, filha do chefe supremo (mamanatowick), Wahunsenacawh Powhatan, chamado pelos ingleses de “Rei Powhatan” (King Powhatan), líder de uma confederação de uns 20 povos de fala algonquina, que existia entre os rios James e Potomac. Essa confederação se chamava, na língua nativa, Tsenacommacah. Esta era a “nacionalidade” de Pocahontas. Sua mãe foi Winaguske Powhatan, umas das muitas mulheres de Powhatan, oriunda de uma tribo vassala, e ofertada a ele pelo sistema do cunhadismo, também muito praticado pelos índios do Brasil e da América Espanhola. Ela, após o nascimento de Pocahontas, foi mandada de volta para a sua aldeia, sendo aí sustentada por Powhatan até conseguir outro marido.
__ Pocahontas, como é costume também entre os índios do Brasil, recebeu vários nomes, para evitar feitiçaria e ataque de maus espíritos. O mais solene, e conhecido por poucos, era Matoaka, que significa “riacho brilhante entre as colinas”, Amonute, de significado desconhecido, ficando, porém, famosa pelo nome de Pocahontas, adquirido quando já era criança, que em sua língua significa “menina travessa”, por causa de seu espírito irrequieto e brincalhão. Possuía, enfim, uma inteligência muito aguda e perspicaz, pronta a causar problemas em qualquer sistema estabelecido... e causou!
__ em 1607 ela foi atraída pela chegada de uma gente nunca vista, nas terras de seu povo, e mais ainda pelo exemplar de cabelos ruivos e olhos claros, que seu pai capturou numa de suas incursões. O capitão John Smith. Aqui a história ganha contornos indefinidos: segundo o livro que Smith escreveu, no qual foram encontradas várias imprecisões e exageros, típicos de quem está interessado em agradar mais aos leitores que à Verdade, ele narra que foi salvo da morte pela iniciativa de Pocahontas, que teria se colocado entre ele e o carrasco. Críticos modernos questionam afirmando que:
a) Isso não seria possível porque Pocahontas teria na ocasião apenas uns doze anos.
b) Ele pode ter confundido um ritual incruento de incorporação à tribo, por meio da execução simbólica do estrangeiro, do qual renasceria como membro da tribo. A própria intervenção de Pocahontas podia fazer parte desse rito.

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O atual “Rei Powhatan”: Kevin Brown, ao centro, com as mãos no bolso, é abençoado pelo toque de tambores cerimoniais, de um índio das planícies, com seu vistoso cocar, e outro, aparentemente um seminole, muito colorido, do sul dos EUA, numa demonstração em frente ao prédio do Capitólio, o Congresso americano, em sua luta pelo reconhecimento federal da tribo Pamunkei, o que aconteceu no início de julho de 2015, tornando-se a 567ª tribo reconhecida pelo governo do país. É o renascimento oficial do povo de Pocahontas.

__ Seja como for daí nasceu a ideia de um romance entre eles, rebatida pelos moralistas neoamericanos, devido ao fato de Pocahontas ser tão jovem, enquanto ele beirava os 38 anos, mas sem considerar que naquele tempo as jovens se casavam muito cedo, mesmo na adolescência, tanto entre os americanos como entre os europeus. Depois que Smith voltou para o forte James, um forte que os colonos ergueram ali perto, ela, e várias crianças, levavam continuamente alimentos para os estranhos, que estavam a passar fome. No ano seguinte ela avisa a Smith de uma armadilha que seu pai estava preparando para pegá-lo.
__ Em 1609, Smith se fere numa explosão de pólvora, e precisa voltar para a Inglaterra em tratamento, mas o que os ingleses dizem para Pocahontas é que ele fora capturado por piratas e que morrera! Por que essa mentira, se não havia nada entre ele e Pocahontas? Depois dessa notícia ela nunca mais vai ao forte e se miúda para outra aldeia da confederação, mais distante.
__ Em março de 1613, quando as relações entre os índios e os colonos ingleses se deterioraram, ela foi sequestrada por uma patrulha dos colonos, para ser usada como moeda de troca por outros colonos sequestrados pelos índios, nesse período ela morou noutro assentamento colonial chamado Henricus, atual Chesterfield, próximo a ao assentamento de Jamestown, que crescera ao redor do forte James. Nesse período, segundo uma tradição muito contestada, seu primeiro marido, o índio powhatan Cocoum, foi morto num confronto com os ingleses, talvez por causa dela – na verdade, segundo os costumes powhatans, quando uma mulher casada é capturada, o casamento cessa imediatamente, o que desobriga o marido a se arriscar numa briga por ela...
__ No dia aprazado para a troca dos prisioneiros, entretanto, o Rei Powhatan recusou o acordo, achando que os colonos haviam acrescentado poucas armas e utensílios, além de sua filha, para a realização do acordo, seguindo-se então um longo impasse. Nesse meio tempo ela, sob a orientação do ministro anglicano Alexander Withaker, se converte ao cristianismo e é batizada, com o nome de Rebeca. Em março de 1614, é levada a um encontro de chefes powhatans, e, dirigindo-se ao pai, recrimina-o por dar mais valor a espadas, moedas e machados velhos que a ela, e por causa disso rompe com o seu povo e vai morar com os ingleses – no cativeiro, Pocahontas tivera a oportunidade de conhecer os valores e o poderio dos recém-chegados, e optou claramente por estes, em detrimento do de seus antepassados, que, naquele contexto, apresentaram uma grande fragilidade. Não dá para dizer que ela foi tola, oportunista, não existe isso de “história das intenções”, senão como anti-história, como um anacronismo vil. Foi uma escolha pessoal, ditada por razões de sobrevivência, num contexto que ainda não atingira o nível de degradação do começo do século XX, por exemplo, quando, nessa região, negros e índios serão vítimas de formas cruéis de racismo.
__ De volta a Henricus, ela conhece um viúvo, John Rolfe, que perdera recentemente esposa e filha, e que se apaixona fortemente por ela, conforme expressa numa carta endereçada ao governador, pedindo licença para se casar com ela. O casório acontece em 5 de abril de 1614, e, em 30 de janeiro de 1615, nasce o único filho do casal, Thomas Rolfe.
__ Em termos econômicos, Rebeca-Pocahontas também acerta. Rolfe, de posse de umas sementes de tabaco espanhol, desenvolvera uma espécie de tabaco mais doce, com mais aceitação no mercado europeu, que o tabaco original da Vírgínia, muito ácido, e em pouco tempo se tornou um próspero plantador e exportador de tabaco. Graças à cultura desse tabaco, que existe até hoje, ficou viabilizada economicamente a colonização inglesa dessa região, e mais, como era previsto na mentalidade cunhadista dos indígenas americanos, com o casamento tem início, repentino, um período de paz na tensa relação índios-colonos. A chamada Paz de Pocahontas.

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Wikipedia

Retrato feito de acordo com o original de Simon van de Passe, criado em dezembro de 1616, e único retrato feito em vida de Pocahontas.

__ Em 1616, a família parte para a Inglaterra, para propagandear as maravilhas da colonização da América, ainda vista com desconfiança por muitos. Ao chegar lá, em 12 de junho, Rebeca tem uma surpresa: John Smith está vivo, e ganhando dinheiro à suas custas; ele, inclusive, tomou a iniciativa de escrever à rainha Anne, pedindo-lhe que Rebeca seja recebida da melhor forma possível, como se fora a filha de um rei. E ela foi recebida pelo rei e a rainha, em janeiro de 1717, para assistir a uma mascarada do grande dramaturgo inglês Ben Johnson. A corte usou de grande deferência para com ela, mas não foi tratada como uma princesa, antes como uma espécie de animal raro que suscita curiosidade. Foram então morar no subúrbio de Brentford, próximo a Londres.
__ A estreiteza mental de Rolfe era incapaz de perceber que a Inglaterra, que ele tanto apreciava, não era um ambiente adequado para a sua esposa, criada nos grandes espaços naturais da América e numa cultura tão diferente. Em Brentford ela recebe uma visita inesperada: John Smith. Segundo ele, foi uma visita tensa, confusa e muito formal, com direito a um intervalo de duas a três horas, logo após o cumprimento inicial, quando ela se mostrou visivelmente contrariada, e se retirou... Durante o resto da conversa, um tanto estranha e repleta de palavras subtendidas, ela fez questão de chamá-lo de “pai”, apesar dos protestos dele. A entrevista terminará com ela citando uma frase que já ouvira na América: “seus compatriotas mentem muito”.
__ Em março de 1617 ele embarca com a família de volta para a América, mas é obrigada a desembarcar, em Gravesend, às margens do rio Tâmisa, acometida por uma febre misteriosa, de fundo aparentemente psicológico – a visita de Smith abrira velhas feridas? Ao conhecer melhor os ingleses arrependeu-se da escolha que fizera? – mas que alguns alegam ter sido causada pelo ambiente poluído, úmido e muito frio da Inglaterra, onde ela teria contraído uma tuberculose ou uma pneumonia. Seja como for, suas últimas palavras serão as mesmas repetidas por muitos índios, durante os massacres que seus povos sofreram ao longo do século XVIII e XIX: “todo mundo deve morrer, basta que meu filho sobreviva”. Ela foi enterrada em Gravesend, em 21 de março, mas seu túmulo atualmente está perdido. Com a sua morte acaba também, na América, a Paz de Pocahontas, e a guerra recomeça.
__ Seu último desejo foi satisfeito. Seu filho sobreviveu e, por meio dele os seus genes se espalharam por várias e muito importantes famílias do leste dos Estados Unidos, que ainda prezam muito serem descendentes dela. Vários entre eles alcançaram uma grande importância na história dos Estados Unidos e até do mundo, como o advogado e político, George Wythe Randolph (1818-1867), Secretário de Estado dos Estados Confederados, na Guerra Civil; o astrônomo Percival Lowell (1855-1916), um dos que ajudou a descobrir o planeta Plutão; o almirante Richard Byrd Jr (1888-1857), o pioneiro da navegação aérea dos polos; as primeiras damas Edith Wilson (1913-1921) e Nancy Reagan (1981-1989); etc.
__ A mulher anglo-americana, assim como a latino-americana, pode até ser submissa, pode até reconhecer tacitamente a governadoria dos homens, mas foi culturalmente mais estimulada a ter mais iniciativa social, e nisso difere ainda um pouco de suas congêneres latinas, mas “recatadas” ou “intimidadas”, e por isso nunca prosperou qualquer inciativa de tentar jogar sobre Pocahontas a pecha de traidora de seu povo e colaboracionista do sistema colonial. Ela apenas foi uma mulher que fez uma opção. Por acaso as mulheres não têm esse direito? Afinal o seu povo não se via ainda como uma unidade político-nacional “moderna”, dessas que arrastam o mundo inteiro a guerras pelos interesses de poucos.
__ Ela negou o seu povo? Sim, e de uma maneira muito mais radical que Malinche. Mas enquanto a memória desta foi linchada, por não ter tomado o lado “certo”, por não ter pensado como um intelectual marxista do século XX ou por não ter adivinhado o caminho que tomaria a conquista espanhola, Pocahonta, foi aceita na sua condição socialmente precária de mulher da sua cultura e na sua época, e respeitada por sua decisão pessoal, que ela tinha direito, direito esse reconhecido, em primeiro lugar, pelo seu próprio povo. Por que não tirar partido disso, em nome da unidade nacional, ao invés de ficar abrindo cicatrizes do passado, criando barreiras e ressentimentos entre povos que, quer queiram quer não, têm que viver juntos?

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__ O mito é uma fermenta inteligente e legítima para mobilizar um povo em torno de objetivos nacionais; quando se tem um! Só um povo muito debochado e sem juízo negaria ou esqueceria seus mitos nacionais, a pretexto de estar “ocupado na luta pela sobrevivência” ou construindo uma história exclusivamente “científica”. Essas duas expressões sociais, a história com pretensões à ciência e o mito, podem e devem conviver. Aliás, eliminem-se os mitos de uma sociedade e a única coisa que sobrará serão as declarações pomposas, mentiras públicas e promessas continuamente quebradas, práticas em que nossos políticos são mestres, por não haver a trava do mito nacional a lhes dizer: “daqui você não passa”. Os anglo-americanos e a Disney nos dão uma lição nesse sentido, idealizando ainda mais a história-mito de Pocahonta, em primoroso desenho animado, com uma música belíssima, lançado em 1995, após o roteiro ter passado pelo crivo de uma comissão indígena. E assim, graças ao sucesso dessa produção, um mito tipicamente americano se transforma em um mito mundial, reforçando a presença da cultura americana, e ainda canaliza para eles um “rio” de dinheiro – uma bilheteria de quase 350 milhões de dólares para um orçamento de 55 milhões! Talvez exista uma forma “desenvolvida” de lidar com a história e os mitos dela decorrentes.

Contraponto

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A Pocahontas do século XXI. Segundo a edição online do Richmond Times-Dispatch, essa menina seria Jayne Cecil, de 6 anos, membro da tribo Mattaponi, uma das mais importantes da antiga confederação Powhatan, presente na entrega do 336º tributo anual das tribos Pamunkei e Mattaponi ao governador da Virgínia, em novembro de 2013. O tributo é um cervo caçado nas florestas do estado. Da mesma forma que os brancos enculturam os índios, os índios podem enculturar os brancos, desde que haja diálogo entre as comunidades.

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Anos atrás, menos de dez, um repórter foi entrevistar o cacique Raoni – o cacique xavante Raoni foi um símbolo de coragem e dignidade para a minha geração, para os que conhecem a história recente do Brasil – e perguntou-lhe como receberia os brancos que fossem até ele. O cacique respondeu: “Branco fica para lá, e índio fica para cá, não deve misturar. Branco e índio têm que ficar separados. Se branco vier para terra de índio vai ter guerra”, frisando bem, por diversas vezes, as palavras “separados” e “guerra”. Uma matéria jornalística, de dezembro de 2015, aponta que índios da etnia Enawenê-nawê, no Mato Grosso, estavam cobrando um pedágio de 50 reais, pela passagem numa estrada de terra, sem qualquer serviço de apoio! Nos estados Unidos é comum as diversas tribos e povos fazerem festivais, onde apresentam sua cultura, especialmente para não índios, atraídos com muita propaganda. Nesses festivais há números de dança, jogos, etc. além da venda de artesanato, livros sobre a sua cultura, workshops, onde se ensina àqueles como é a vida na aldeia, etc. E assim vão ganhando mais gente para a luta por sua cultura, além de tornar vários brancos membros honorários ou permanentes, como deve ser o caso do engravato da foto, com um vistoso cocar. Gente famosa, como o presidente da república, comparecem a esse eventos dando-lhes ainda mais visibilidade. Talvez exista uma forma desenvolvida de lidar com a questão indígena americana, que não passa pelo que nós já fizemos até hoje ou estamos fazendo.
__ Vamos pensar mais sobre isso?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

MALINCHE OU A SÍNDROME DA ÍNDIA COLABORACIONISTA

Prof Eduardo Simões

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__ Um dos personagens mais controvertidos da história do México foi a índia mexica, ou asteca, Malinalli Tenépatl, ou Malintzi ou ainda Malinche, que desempenhou um papel fundamental para a conquista espanhola da área geográfica dominada por seus antepassados. Sua história é uma grande tragédia, aliás, uma típica tragédia latino-americana.
__ Primogênita de uma família nobre mexica, Malinche, ainda adolescente, vê seu mundo “cair” com a morte de seu pai. Sua mãe casou-se novamente e teve um filho homem, cujos direitos de herança, conforme os costumes mexicas, se encontravam ameaçados pela presença da irmã mais velha. Dizem os relatos que a mãe, preocupada com o desfecho de sua herança, resolveu vendê-la a um grupo de mercadores de escravos da cidade de Xicalango, e considerá-la oficialmente morta. Esses mercadores, por sua vez, a cederam ao cacique Tabscoob, de Tabasco, uma comunidade de fala maia-iucateca, a guisa de tributo.
__ No seu cativeiro, a escrava adolescente mostrou rara habilidade para aprender língua, e rapidamente dominou o idioma de seu dono, enquanto era preparada, junto com outras índias na sua situação, para ser uma espécie de cortesã, uma amante, à disposição de seu amo ou de quem seu amo quisesse agradar. Essa oportunidade aconteceu quando o cacique de Tabasco, após ser derrotado na batalha de Centla (14/03/1519), ofereceu-a, com outras dezenove índias ao chefe dos “bárbaros” recém-chegados, Hernan Cortez, para o seu regalo e o de seus homens.

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__ A chegada daquelas mulheres era fundamental, para Cortez estabelecer laços com as tribos locais, ajudado pelo fato de a  sua expedição ser exclusivamente masculina, e, depois de batizadas, foram entregues como esposas a alguns de seus soldados: Malinche, então com 17/18 anos, recebeu o nome de Marina, e foi dada como esposa a um de seus mais leais seguidores: Alonso Hernandez Portocarrero. Um casamento breve, pois em abril daquele ano, Alonso foi mandado em uma missão à Espanha, de onde nunca voltou, morrendo na prisão quatro anos depois. Nesse meio tempo ela chamou a atenção de Cortez, pela rapidez aprendera o espanhol. Agora ele tinha uma intérprete eficiente, confiável, que conhecia tudo sobre a cultura local, para lidar com os índios – havia outro intérprete especializado na língua maia, o náufrago espanhol Jeronimo de Aguillar, adicionado à expedição logo depois do desembarque.

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__ Foi Marina quem intermediou todos os encontros entre Cortez e o imperador Montezuma, que era inacessível ao homem comum, mas logo demonstrou que suas habilidades e o seu conhecimento a possibilitariam ser muito mais que uma intérprete: ela foi uma conselheira valiosa, à disposição do espanhol, orientando-o quanto a melhor forma de lidar com os inúmeros povos indígenas. O papel dessa mulher foi tão importante que os espanhóis só a chamavam de Dona Marina, como a uma senhora da nobreza, e um conquistador espanhol Rodriguez de Ocaña dirá, que depois de Deus, é a Dona Marina que os espanhóis devem creditar o sucesso da conquista.
__ A morta-viva, a adolescente escrava treinada para ser prostituta de luxo, torna-se amante do homem mais poderoso das Américas, com quem teve um filho, Martin Cortez, chamado O Mestiço, entre 1523 e 1524, logo depois retirado dela e enviado a um parente de Cortez para ser educado, e nunca mais verá a mãe. Cortez nunca se casou com a Malinche-Marina – seus dois únicos casamentos foram com damas espanholas, enquanto adestrava suas qualidades de conquistador em aventuras extraconjugais, que lhe renderam onze filhos – mas usará de seus serviços até o fim, como quando estourou uma revolta indígena em Honduras, entre 1524 e 1526, data em que Malinche desaparece da história – Cortez que a obrigou a ser cristã, não a tratou de uma forma cristã!
__ Morta a pessoa nasce o mito. Ao longo do período colonial e início da história independente do México, Marina era tratada ora como uma benfeitora, uma sábia heroína, ora como o símbolo da mestiçagem hispano-americana, altamente desejável. Porém, quando a república se consolida, e principalmente a partir do governo de Benito Juarez (1858-1872), sua imagem vai se esmaecendo à medida que se intensificam os sentimentos e as ações de ruptura de antigos laços que ainda unem o México à Espanha. E a fama dela começa a ser obscurecida pelo fato de ter tido tanta participação no sucesso dos espanhóis

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__ Com a chegada ao México das vertentes de pensamento dito de “esquerda”, como o anarquismo e o marxismo, a repulsa a Malinche se torna avassaladora e incondicional, inclusive ligado ao seu nome nasce um substantivo comum muito pejorativo: o “malinchismo”, como um sentimento que é próprio de uma pessoa que adere a uma cultura estrangeira, rejeitando a sua própria e a de seus antepassados. Enfim, uma pessoa que se envergonha de sua própria cultura e vive comparando-a, de forma depreciativa, com culturas estrangeiras, definidas a priori e superficialmente como “melhores”; e no contexto da história de Malinche a coisa foi mais longe ainda, sendo ela socialmente tratada como “La Chingada”, que em bom português quer dizer “a pu..”, sendo inclusive associada ao mito mexica da “Llorona”, a “Chorona”, um fantasma de mulher que, em determinadas situações ou datas, aparece no meio da madrugada a chorar abundantemente os filhos a quem, supostamente, teria morto afogados. Um pouco de tudo isso aparece no trecho do mural do pintor mexicano Diego Rivera, onde ela, provocativamente, levanta o vestido, enquanto membros de seu povo, que a cercam, lhe mostram os restos daqueles que tombaram vítimas da conquista espanhola. Aqui ela é uma prostituta sanguinária.
__ No início dos anos 1960, com o florescimento do movimento feminista, que foi muito forte nos Estados Unidos e influenciou a cultura mexicana, algumas pesquisadoras americanas e mexicanas começaram a se levantar contra esse julgamento tão fácil, colocando argumentos que não podem ser ignorados, como...
a) Quem foi rejeitada em primeiro lugar, a cultura mexica ou a índia Malinche, vendida pela mãe e dada como morta? Quem traiu quem nessa história?
b) Como mulher e escrava ela tinha outra opção? Não seria mais óbvio esperar que os índios ficassem escandalizados se ela, sendo uma escrava, não servisse fielmente o seu senhor?
c) Ela é considerada como a traidora do seu povo, sua nação, seu país, sua pátria, ou da sua cultura, enfim do México, etc., mas havia entre os astecas e as outras populações ameríndias essa consciência? Não é verdade que esses conceitos nasceram numa Europa burguesa, de maneira a criar dificuldades à integração do estrangeiro, visto como um concorrente comercial? Dá para aplicar esse conceito a uma cultura ameríndia do século XVI? Isso não seria um grosseiro anacronismo?
d) Nunca foi encontrado nenhum testemunho de índios mexicas ou de outros, em sua época, condenando a sua atitude. Aqueles que a condenam nos dias de hoje não são, em sua maioria, hispano-mexicanos e índios aculturados e seguidores de ideologias europeias (positivismo, anarquismo, marxismo, etc.), não indígenas?
e) Será que a presença de Marina, inclusive revelando os pontos mais sensíveis da cultura dos povos indígenas, que os espanhóis poderiam explorar a seu favor, principalmente nos momentos de paz ou na realização de acordos, não reduziu as situações potencialmente críticas e estressantes que poderiam acarretar tanto uma resistência maior, por parte dos índios, com mais ira dos espanhóis, o que fatalmente acarretariam muito mais mortes e sofrimento?
f) Não é notável que a condenação de Malinche, reproduza na história do México, um padrão de análise, já observado na história da Espanha, que atribui os piores desastres a ação de uma mulher, como foi o caso de Florinda “La Cava”, cujo pai, inconformado pelo ultraje sofrido por Dona Florinda nas mãos do rei Rodrigo, do qual ela não teve a menor culpa, convida os árabes para invadir a Espanha, em 711, embora pelos costumes da época elas (Malinche e Florinda) não passassem de peões no jogo de tabuleiro das grandes famílias, dominadas por homens? 
__ A isso eu acrescentaria o seguinte: até que ponto ela podia prever que o início daqueles contatos iria levar à hecatombe que se seguiu? Talvez nem Cortez soubesse! Não é verdade que ele, no final, também foi uma vítima desse sistema colonial, que ele ajudou a criar, mas que conhecia só de uma maneira muito periférica, em vagos sonhos de riqueza, poder e mundo novo, como fazem todos os seres humanos na sua adolescência? Não foi ele também instrumento de uma classe poderosa e de uma corte a que não tinha livre acesso?

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__ Aos poucos, timidamente, os modernos pensadores mexicanos refazem esse erro histórico e recuperam a imagem da Malinche, ao mesmo tempo em que recuperam a própria identidade nacional híbrida, numa busca incessante por autoaceitação e por vencer antigos sentimentos de inferioridade. Nesse novo contexto Marina-Malinche se apresenta como uma mulher, tornada objeto, num mundo dominado por homens ambiciosos e implacáveis, que teve se esforçar muito para se tornar indispensável, e assim sobreviver. Por sinal, não é essa a obrigação de quem quer se tornar adulto? Sua culpa foi ter sido muito competente nisso. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

HISTORIA DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – XI

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Prof Eduardo Simões

O Apocalipse Judaico

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__ Na primeira metade do século I o judaísmo era uma religião ascendente na bacia do Mediterrâneo, o centro do mundo Ocidental. Era uma religião antiga, com uma doutrina minuciosa e consistente, um centro de culto famoso, situado numa região próspera, e, acima de tudo era uma religião que remetia a um mundo espiritual e a compromissos morais, que ultrapassavam ao infinito as alternativas similares das religiões mistéricas, que tanta gente atraíam, dentro do império. Essa dispersão ou conquista do judaísmo em diversas regiões do império romano, e até fora dele, é descrita com relativa minúcia em Atos (2,9-11), e parcialmente comprovada pelos achados arqueológicos apresentados no mapa acima. Essa auspiciosa tendência, porém, seria brutalmente encerrada, e posteriormente invertida, em pouco tempo.
__ Em 64, apadrinhado pela imperatriz Popeia Sabina, o “alpinista social” Gesio Floro assumiu o cargo de procurador da Judeia, com um apetite pelo enriquecimento fácil impressionante, sem falar de outras ações absurdas, que revelavam um desprezo completo pelo povo da região que iria administrar. Após uma série de incidentes escandalosos, a Judeia se encontrava em franco estado de conflagração, e Gesio não pensava em outra coisa que o aumento da repressão e de seus ganhos financeiros. Com um imperador tresloucado, remoendo a morte recente de Popeia, e um Senado enfraquecido, Roma demorou a tomar providências, e uma brutal guerra civil teve o seu início inexorável (1).

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__ Em Roma o Senado, afinal, reagiu, ordenando a deposição de Gesio e a nomeação de outro procurador, com ordem explícita de pacificar a região, mas já era tarde demais, os elementos mais radicais já haviam tomado a frente do conflito e a guerra tornou-se inevitável. Para complicar os judeus cometeram um erro terrível, logo no início da guerra: uma legião, a XII Fulminata, vinda da Síria, foi cercada por uma multidão de guerrilheiros, próximo a Beth-Horon, e completamente esmagada, tendo perdido, além de quase todo o seu efetivo, o distintivo de batalha da legião: a águia, o que era uma enorme desonra, não só para ela como para todo exército romano. Roma tinha um império grande e heterogêneo, onde nem todos viam com bons olhos a sua dominação, aquela derrota acachapante, seria um convite a todos os povos do império para a rebelião. Já não se tratava mais conter uma revolta, mas de aplicar uma derrota esmagadora aos judeus, que servisse de exemplo a todos os povos do império. Da parte dos judeus, os elementos radicais ficaram absolutamente convencidos de que poderiam derrotar romanos da mesma forma que os Macabeus derrotaram os selêucidas.
__ O comando foi entregue, bo começo de 67, a um general veterano, competente e duro chamado Vespasiano, um tanto desgastado por ter dormido durante uma apresentação artística de Nero, que equipado com três legiões veteranas, inclusive a temível a X Fretensis, e de um grande número de soldados de reinos aliados, esmagou rapidamente os focos de rebelião na Galileia (2), e assenhorou-se da região costeira, protegendo o fornecimento de trigo egípcio para Roma e isolando os rebeldes no interior da Judeia, enquanto se fortalecia para lançar o ataque final contra Jerusalém. Nesse meio tempo, Nero é assassinado e ele retorna às pressas a Roma, indicado que fora por importantes facções do exército ao cargo de imperador, deixando seu filho, Tito, para terminar a guerra na Judeia.

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__ Enquanto os romanos paralisavam o seu avanço, em virtude da guerra civil que se seguiu à morte de Nero, os judeus se dividiram em numerosas facções, uma mais radical que a outra, e iniciaram uma guerra civil entre eles, da qual saíram vitoriosos os elementos mais radicais, dando tempo ao exército romano se recompor e se fortalecer, ainda mais que Vespasiano se tornara imperador, em 1 de julho de 69.
__ Em março de 70 começou o cerco de Jerusalém, sob o comando de Tito, com quatro legiões, inclusive a XII Fulminata, reconstituída e sedenta por vingança, além das tropas auxiliares. Tito tenta negociar um acordo com os revoltosos. Não haveria negociação, mesmo porque, dentro de Jerusalém, havia grupos de radicais furiosos rondavam vigilantes, prontos para matar quem tentasse fugir, guardar alimentos ou sequer sugerisse a rendição!  Em 9 de setembro de 70 a cidade caiu, em um cerco que ficou famoso pelos massacres, pela destruição e as cenas dramáticas que produziu, relatadas minuciosamente por Flavio Josefo, uma testemunha ocular. No início de 73, cai o último bastião dos revoltosos, a fortaleza de Massada, em uma guerra que acarretou a morte de umas 350 mil pessoas, combatentes ou não, a grande maioria de judeus – Flavio Josefo fala em mais de um milhão, um número exagerado – além de uns 100 mil novos escravos no mercado. Os líderes da revolta, capturados vivos, foram levados a Roma exibidos e executados, em meio a grandes festejos públicos. O maravilhoso Templo de Herodes, infelizmente carbonizado, estava em ruínas.  

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__ Com a guerra houve um grande aumento das comunidades da diáspora, por conta de famílias que perderam tudo e foram morar com parentes em outros lugares fora da Judeia, ao mesmo tempo em que uma grande quantidade de escravos judeus foi espalhada pelas várias regiões do império. De princípio isso seria uma oportunidade para expandir ainda mais a sua religião, mas não o que ocorreu e, presos ao culto estrito do Templo, os judeus no exílio não pensavam em outra coisa que voltar à Judeia e, se possível, vingar a destruição do templo pelos romanos. Essa gente achou que essa oportunidade, finalmente, aparecera na segunda década do ano 100.
__ No ano 113, por causa de disputas envolvendo a Armênia, romanos e partos entram em guerra, e as legiões do imperador Nerva Trajano avançaram fortemente na Mesopotâmia, capturando as cidades de Babilônia e Susa, onde havia importantes centros de estudos hebraicos. Ora, em 115, enquanto as principais forças romanas ainda se defrontavam com a resistência parta, os judeus de diversas comunidades da Mesopotâmia, preocupados com o seu futuro e ressentidos pelo que ocorrera a Jerusalém, começaram a atacar e massacrar as pequenas guarnições romanas deixadas para trás, atacando em seguida aos civis gregos e romanos. Fazendo jus à fama de sua coesão, da organização em rede, sempre muito bem informadas, as comunidades judaicas de áreas mais ao ocidente do império, levantaram-se em armas para ajudar os irmãos da Mesopotâmia, Síria e Judeia. Por outro lado, enquanto diversas comunidades judaicas, no Mediterrâneo, foram atacadas por gregos e romanos, em virtude do apoio que seus confrades davam aos partos.
__ Em 115 estourou uma grande revolta, levantando quase ao mesmo tempo as comunidades judaicas da Cirenaica (leste da Líbia), na ilha de Chipre e no Egito, em especial Alexandria. Foi um frenesi sangrento! Conforme autores antigos como Eusebio de Cesareia, Paulo Orosio, Dion Cassio, o número de vítimas civis greco-romanas nessas regiões atingiu a centenas de milhares; templos de divindades pagãs e de culto imperial foram sistematicamente destruídos, assim como símbolos de sua cultura civil, como as basílicas os banhos públicos, que chocavam a repugnância hebraica pela nudez pública.
__ Superadas as dificuldades no Oriente, o general romano Lucio Quieto comandou a reação, que sufocou um após outro, com mão de ferro, todos os focos de rebelião, exterminando completamente as comunidades judaicas rebeladas de diversas cidades e regiões inteiras, em 117 (3). Os judeus, que até ali provocavam surpresa e até zombaria, por causa da “estranheza” de sua religião, na massa média da população politeísta, começou, por causa disso, a despertar sentimentos cada vez mais hostis, nas regiões mediterrâneas do império. Nesse levante, entretanto, começou a circular entre os judeus um conceito que andava meio abafado, e que ressurgiu para arrastá-los à perda completa mais adiante: o de “messias”, usado por alguns líderes da Revolta Judaica de 115.
__ Em 117 o imperador Trajano morre e é substituído por Publio Aelio Adriano Augusto, que, a princípio, parece agir com simpatia pelos judeus, tendo pensado, inclusive, na reconstrução do Templo. Porém, a partir de 130/131, após um giro na região, onde visita pessoalmente Jerusalém, ele resolve transformar a cidade numa típica cidade romana, inclusive com um templo dedicado a Júpiter, bem em cima das ruínas do templo de Herodes. Um escândalo! As lideranças judaicas começam a preparar uma nova revolta às ocultas, com o cuidado de não repetir os erros e divisões da revolta anterior, entregando o comando absoluto do movimento a Simão bar Kokhba, se apresentou dizendo ser o Messias, pronto para libertar os judeus. Ora, o nome dele em aramaico quer dizer “Simão filho da estrela”, o que impressionou muito a mais conceituada autoridade religiosa hebraica: o rabi Akiba ben Yosef, que, baseado em uma passagem da Bíblia, Nm 24,17, dá o seu aval ao novo messias.
__ Teve início uma guerra de guerrilhas, com a destruição sistemática de pequenas guarnições, e o uso de um intrincado sistema de túneis, acobertado pelo apoio irrestrito da população judia – a população cristã da Judeia recusou-se a reconhecer Simão como messias, não vendo, por conseguinte, qualquer sentido na sua participação nessa guerra, e por isso foi cruelmente perseguida. Incapazes de convencer a população a não prestar auxílio aos revoltosos, os romanos contra-atacaram, acumulando mais forças e vindo, de norte para sul, destruindo uma por uma, todas as cidades e vilas de população judia que encontravam, num total de 50 praças fortificadas e 985 aldeias. Todas arrasadas. O último foco de resistência foi na fortaleza de Betar, que caiu após um longo cerco, e todos os seus ocupantes massacrados. A guerra foi sangrenta, as baixas muito elevadas, cerca de uns 550 mil judeus morreram, e um número enorme deles foi aprisionado, expulso ou vendido como escravos. Adriano não permitiu que os corpos dos defensores de Betar, onde morreu Bar Kokhba, fossem sepultados, o que só ocorreu no reinado de seu sucessor, anos mais tarde – contra os romanos os judeus ainda tentariam duas revoltas militares: a de Diocesarea (351-352), contra o crescimento do cristianismo helenizado e a perda de direitos na Palestina, e contra o imperador Heráclio, de Bizâncio, entre 613 e 617, quando eles conseguiram tomar Jerusalém-Aelia Capitolina, e massacraram a população cristã local.

O Rescaldo

__ Do lado judeu as consequências foram terríveis:
a) O judaísmo deixa de ser uma religião ascendente na bacia do Mediterrâneo, a ponta de lança do monoteísmo, perdendo gradualmente este lugar para o cristianismo, que não terá rivais nessa região até a ascensão do islamismo. A população do império, antes receptiva, começa a hostilizá-lo.
b) As perdas em vidas humanas e o trauma das guerras foram enormes e algumas feridas nunca cicatrizarão. Dos dois lados.
c) Mesmo após os dois primeiros levantes os judeus continuaram gozando de todos os privilégios e isenções especiais que sempre gozaram durante a república e o império, e que nenhuma outra religião gozou, mas com o levante de 133-135 a coisa mudou, uma vez que Adriano “proibiu a aplicação da Lei, do calendário judeu e executou vários sábios judeus. No ápice do antigo templo ele instalou duas estátuas: uma de Júpiter outra de si mesmo. Tentou apagar a memória da Judeia e do antigo Israel, mudando o nome da região nos mapas para Síria-Palestina [nome com que é conhecida até hoje]... ele reconstruiu Jerusalém, mas como uma pólis romana pagã, chamada Aelia Capitolina (5), onde os judeus eram proibidos de entrar, exceto no dia de Tisha B’Av (Wikipedia em inglês – Bar Kokhba Revolt)(6).
d) A expulsão ou mesmo a escravização de inúmeros judeus espalhou-os pelo império, o que aparentemente facilitaria uma difusão maior de sua religião, mas isso não aconteceu, seja pela hostilidade geral que se criou contra eles, após tão sangrentos levantes, seja por conta de uma atitude de fechar-se sobre si, aferrando-se à memória do Templo e da Palestina. O isolamento dos judeus em guetos, ao longo da Idade Média e a seguir, na Europa Ocidental, é fruto de dois movimentos de repulsa simultâneos: dos judeus em relação aos cristãos, dos cristãos em relação aos judeus.
e) O abandono em massa da Judeia, numa tentativa de evitar perseguições, preconceitos e acertos de conta reduziu drasticamente o número de judeus residentes, talvez para algo em torno de 200 mil. Muitos rabinos tentaram deter a emigração, ameaçando tratar os emigrados como idólatras.
f) O fim do sacerdócio judaico. Uma função familiar passada de geração a geração, não havia mais como resgatar essa genealogia, sem falar que faltava o essencial: o Templo para eles oficiarem. A vida religiosa dos judeus na diáspora vai girar em torno da sinagoga, dirigida por lideranças laicas, até os dias de hoje (começo de 2016)
__ Do lado cristão também houve consequências:
a) As comunidades cristãs da Judeia, compostas esmagadoramente por judeus convertidos, ficaram entre dois fogos, durante a guerra de 66, uma vez que não eram aceitos pelos romanos, que não os distinguiam dos judeus, e eram por estes hostilizados, há décadas, e, por conseguinte, não viam a guerra como uma causa sua. Seja pela lembrança das palavras de Cristo (Lc 21,20-23; Mt 24,15-20; Mc 13,14-18), seja por conta de uma revelação, como diz uma tradição, os cristãos de Jerusalém e da Judeia fugiram para o outro lado do rio Jordão, para a cidade de Pella, na atual Jordânia, e outras, antes do cerco final de Jerusalém. Deus, aparentemente, escutou o pedido de Cristo e dos cristãos, e o cerco não se deu no inverno...
b) Na revolta de 132, o fanático messias Bar Kokhba, um homem obcecado, autoritário e visceral, que obrigava os seus recrutas a uma demonstração de lealdade, cortando a ponta do dedo mínimo, atacou ferozmente todos os judeus que recusassem se engajar na guerra, em especial os cristãos, que segundo alguns historiadores eclesiásticos antigos, foram torturados e até mortos por não reconhecer o messianismo de Bar Kokhba, sem falar que a mensagem de paz dos cristãos devia parecer uma forma de contemporização com os romanos. Ao mesmo tempo em que os cristãos também eram violentamente perseguidos em algumas regiões do Império Romano.
c) Os cristãos da Judeia se viram muito isolados da sede cristã de Roma. Com eles iriam acatar determinações que vinham de uma cidade, cujas tropas estavam arrasando o seu país? Por isso as comunidades judias-cristãs acabaram por se separar gradualmente da Igreja, formando, pequenas seitas cristãs, com uma doutrina própria, diferente do cristianismo “oficial”. Entre esses grupos podemos citar:
c.1 – Os nazarenos: que “seguem as crenças e os preceitos do judaísmo e da lei judaica, enquanto reconhecem a Jesus, que eles qualificam como “servidor de Deus”... foram progressivamente suspeitos de heterodoxia em torno da segunda metade do século IV, antes de se fundir à “grande Igreja”, em uma data indeterminada, no século V... trata-se de um movimento de cristãos de origem judia que tem a sua fonte em dois grupos cristãos anteriores à destruição do Templo, em 70, um ligado à pessoa de Tiago e outros à de Pedro” (Wikipedia em francês – Mouvements Baptistes Antiques).
Entre suas práticas se conta: utilizam-se do hebreu, pelo menos nas leituras do Primeiro Testamento; teriam fugido para Pella e Damasco (na Síria), vindos de Jerusalém, e foram também chamados “issenos” (no Corão, Jesus é chamado de Issa, e pode ter sido através deles que os muçulmanos entraram em contato pela primeira vez com o cristianismo, o que indicaria também sua presença missionária na Arábia e regiões circunvizinhas)); praticavam o mitzvot (os 613 mandamentos dos fariseus); foram alvo de perseguição dos judeus; criam na morte redentora de Jesus, mas se dirigem à sinagoga, e não à igreja, para as suas orações. Logo guardam o sábado e não o domingo.
c.2 – Os ebionitas: cujo nome quer dizer “pobres”, apresentam alguns costumes muito parecidos com os dos essênios ou os da comunidade Yahad. Entre seus costumes observa-se: guardar o sábado e a circuncisão; fazer várias abluções durante o dia, (baseando-se em supostas práticas do apóstolo Pedro); rejeição a qualquer tipo de carne (vegetarianos); recusam a praticar os sacrifícios prescritos na Torá, uma vez que Jesus teria vindo acabar com esses sacrifícios, e mesmo o sacrifício da eucaristia é celebrado apenas uma vez por ano; rejeitam o celibato, e antes proclamam a obrigatoriedade do casamento. Para eles Cristo é o Messias de Deus, dotado de poder divino pelo Espírito Santo, e o único homem que cumpriu perfeitamente a Lei.
A origem desse movimento é controvertida assim como suas manifestações, pelo que se sabe haveria, dentro desse movimento, uma corrente farisaica, uma essência, uma gnóstica. Uma linha de pesquisadores modernos acredita que eles se separaram dos nazarenos, entre a primeira e a terceira guerra judeu-romana. Expulsos do entorno palestino, pelos romanos, eles procuraram abrigo na Arábia e na Pérsia, onde subsistiram até o século X.
c.3 – Os elkasaítas: Uma seita judeu-cristã batista e gnóstica, fundada la pelo ano 100, por um profeta chamado Elkasai, a partir de certas “revelações” espirituais. Esta seita pregava que Jesus era uma espécie de anjo revelador, chamado de Filho de Deus (um ser, na verdade, gigantesco e poderoso, associado a um ser feminino, por eles chamado de Espírito Santo), e entre os seus preceitos estava o do crente poder, em caso de perseguição, renegar publicamente a sua fé, desde que a preservasse no coração, além de fazerem uso da adivinhação e da astrologia. No reinado de Constancio II, no século IV, apareceram entre eles duas mulheres que, dizendo-se descendentes de Elkai, foram muito cultuadas por esse grupo, a ponto de o pó de seus pés e a sua saliva serem usados como remédio (isso nos remete a trechos conhecidos dos evangelhos de Mc 8,23 e Jo 9,6). Como cristãos eles praticam o batismo e como judeus fazem numerosas abluções rituais. A existência do grupo está precariamente documentada entre os séculos III e X.
c.4 – Os mandeus, cujos fundamentos os remetem para o século II, embora eles se apresentam seguidores de imediatos de São João Batista, provavelmente discípulos de João Batista que se recusaram a seguir Jesus, e que teriam fugido da Judeia durante a repressão às revoltas judaicas. Eles ainda batizam seus adeptos em rios, onde eles entram vestidos de uma túnica branca, antes de serem imersos por um sacerdote;  para eles todos os rios onde praticam o ritual do batismo se chama “Jordão”. Cultuam Adão, Seth, Enoque, Noé, Sem e, especialmente, João Batista, o maior de todos. Para eles Abraão, Moisés, Jesus e Maomé são falsos profetas. Acreditam em dois mundos antagônicos: o “mundo de cima” e o “mundo de baixo”. No mundo de cima habita um deus misterioso que eles chamam de “Vida” ou “Senhor da Grandeza”, enquanto o mundo de baixo é feito de trevas. Esta visão bipolar do mundo e do universo espiritual aponta a influência de correntes filosóficas e religiosas persas.  
Eles voltaram ao foco da imprensa mundial, por causa da invasão americana ao Iraque, em 2003. Meste país, até esse ano, vivia a maior parte dos mandeus, entre 60 e 70 mil, concentrados principalmente na região do delta dos rios Tigre e Eufrates, mas com o colapso da ordem no país, provocado pela invasão, a maioria teve que fugir para países vizinhos, em especial o Iran. Estão muito dispersos.
__ Além desses grupos mais importantes contam-se outros, como os sabeus, os masboteus, os hemerobatistas, diversas correntes de ebionitas, etc., que ora se fundem ora se separam ficando muito difícil de delimitar doutrinalmente a uns e outros, sem falar na confusão doutrinária reinante, com as variações mais estranhas, mas sempre apontando numa direção: para Cristo, seja para enaltecê-lo seja para deformá-lo seja para combatê-lo, ao mesmo tempo em que preservam ritos centrais do judaísmo, como que querendo preservar o melhor de dois mundos, sem optar por nenhum deles. Agora nós sabemos aonde foram parar aquelas multidões que aparecem nos evangelhos a seguir a Cristo no Sermão do Monte, na multiplicação dos pães, na entrada triunfal em Jerusalém, e que desaparecem nos últimos capítulos dos evangelhos ou no início dos Atos dos Apóstolos. Infelizmente a Igreja não conseguiu cooptar a todos, confirmando a angustiante profecia de Cristo dos muitos convidados e poucos escolhidos, mostrando que a Igreja também perdeu, e muito, com os combates na Judeia (7).
__ É possível que, em paz, com tempo, com o trabalho dos missionários e a ação do Espírito Santo, essa gente acabasse por se aproximar da Igreja de Pedro e Paulo, assumindo o cristianismo como o entendemos, porém, havia também o oposto: a presença onipresente do Templo, uma construção monumental, e um testemunho concreto impressionante da espetacular história da salvação dos homens, escrita e guardada pelos judeus. O seu fim, em 70, agravado pela catástrofe de 135, causou um enorme baque na caminhada da humanidade para o monoteísmo e a saudável convivência entre as religiões, pois, embora os cristãos não tivessem culpa, tinham até boas razões para não crer na conveniência dos levantes na Judeia, não foi assim que os judeus consideraram, aumentando ainda mais seu ressentimento contra a nova religião. Esses acontecimentos, ao que parece, fecharam definitivamente o parco diálogo que havia, naquele tempo, entre judeus e cristãos, e as chances de conversão recíprocas. Os gentios ficaram na Igreja, mas os judeus se foram. Em pouco tempo não haverá mais um único bispo com nome judeu na Plalestina. Essa foi a maior perda da história da Igreja, depois da morte de Cristo, e que, inclusive, “atrasa” a segunda vinda de Cristo (Rm 11,25-26), segundo a interpretação mais comum.

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Um Martír do Monoteísmo
__ A revolta de 135 teve como uma de suas mais trágicas consequências a morte de uma figura legendária no judaísmo: o rabi Akiba ben Yosef. Segundo a tradição ele era um pastor pobre e ignorante que decidiu, já adulto, aprender a ler e se tornar um perito na Torá, o que conseguiu após 24 anos de estudos dedicados ininterruptos, o que o tornaram a mais acatada autoridade na Torá de seu tempo, cujos ditos e comentários são garimpados até hoje pelos estudiosos judeus.
__ Segundo a tradição, Akiba, que era um simpatizante da revolta de Bar Kokhba, preso por ordem do governador romano Quinto Tinneio Rufo, por estar ensinando ostensivamente a Torá, em algum momento do levante. Como Akiba se recusasse a parar com o seu ofício, segundo ele “o judeu sem a Lei era como um peixe sem água”, o governador romano ordenou que fosse torturado e morto; teria sido esfolado vivo com ferros incandescentes, inclusive com os cuidados de um médico para prolongar seu sofrimento, na esperança que repudiasse a sua crença. Dizem que, indagado de porque continuava calmo e orando, como se não sentisse dor, ele teria respondido: “eu não sou feiticeiro, antes regozijo-me com a oportunidade que me foi dada de amar a Deus ‘com toda a minha vida’, uma vez que até agora eu só fui capaz de amá-lo com ‘todo o meu entendimento’ e com ‘todas as minhas forças’”. Numa clara alusão a Shemá. Sua última palavra foi um prolongado “Uuuuno!” (Wikipedia em inglês – Akiva ben Joseph)
__ O fato de Akiba, para nós cristãos, ter escolhido um falso profeta, não esgota seus méritos de devotado estudioso da palavra de Deus e um exemplo vivo para as futuras gerações, tanto no seu comportamento cotidiano, doméstico, como no testemunho de sua fé, padecendo na Judeia aquilo que os cristãos vinham padecendo em várias partes do mundo romano, nem o valor dos seus ensinamentos, em especial aqueles que ressaltavam a necessidade de acolher e não criar constrangimentos, por falta de recursos, às pessoas mais pobres. De sua vida ficaram umas anedotas muito saborosas:
a) Vendo uma pedra furada pelos pingos de água que caíam de um balde ele disse: “se esses pingos, por uma ação contínua, podem furar essa pedra, quanto mais pode, a insistente Palavra de Deus, penetrar no maleável e flexível coração de carne do homem que a Ela se dedica com persistência” (idem).
b) “O mundo é julgado com benevolência [por Deus], mas tudo depende da maioria de nossas ações”. Não podemos nos fiar na bondade de Deus e nos eximirmos de fazer o bem (Wikipedia em espanhol).
c) “Tudo está previsto [por Deus], mas o homem tem o livre arbítrio” (idem).
d) “As brincadeiras e a frivolidade conduzem o homem à imoralidade. A tradição é como uma trincheira que protege a Torá, a caridade protege a riqueza, os votos conduzem a abstinência, enquanto o silêncio conduz à sabedoria” (idem)
e) Certa vez rabi Akiba deu uma bela joia à sua esposa. A esposa de rabi Gamaliel, quando a viu, ficou com inveja e cobrou do marido: “Por que tu não me dás uma joia como aquela?” Ao que Gamaliel respondeu: “Porque tu não fizeste por mim o que ela fez por ele, porque se o tivesses feito eu ti presentearia a joia”. Como Akiba era pobre, a sua esposa cortava o seu cabelo para vendê-lo e pagar o seu curso – considere-se que ela era de família rica e o quanto a mulher oriental antiga era apegada aos seus longos cabelos.
Etc.
__ A morte de rabi Akiba, nas condições em que ocorreu foi desnecessária, cruel e muito covarde, assim como o martírio dos cristãos, desonra a grande civilização romana. Mas a vida continuava e a Igreja de Cristo, envolvida por perseguições sangrentas, injustiças, calúnias e defecções, em vários lugares do império, se erguia, pouco a pouco, tijolo a tijolo, alicerçada na Pedra Fundamental, unida e animada pelo Espírito Santo, enquanto via ascender a primeira geração que se seguiu após os apóstolos. A mensagem de Jesus Cristo sobreviveria?

Notas
(1) Segundo a Jewish Encyclopedia e a Wikipedia (em espanhol e inglês), o incidente que deu início a essa guerra foi o seguinte: um grupo de judeus, em Cesareia, foi se queixar ao procurador de que alguns pagãos haviam feito o sacrifício de um animal em frente à sua sinagoga, tornando o local impuro. Gesio, que inclusive havia cobrado uma grande quantia (8 talentos) para receber os queixosos, não só não lhes deu ouvidos como mandou prendê-los. Quando a notícia chegou a Jerusalém, o filho do sumo sacerdote, Eleazar ben Hananias, reagiu de chofre e determinou o fim imediato dos sacrifícios e das orações pelo imperador, ao mesmo tempo em que grupos isolados de judeus começaram a atacar cidadãos gregos e romanos que lá estavam. A coorte romana, aquartelada na torre Antonia interviu, ocupando o templo, enquanto roubava 17 talentos do tesouro do templo, sob as ordens do procurador. A alegação de Gésio era que, já que os judeus não iriam rezar para o imperador, não mereciam ficar com o tesouro, que financiava a manutenção do templo, uma vez que este tesouro seria do imperador! Os jerosolimitanos reagiram com humor, fazendo passar um “chapeuzinho” pela cidade, para tirar o procurador da “miséria”. Este reagiu mal à brincadeira, mandando mais tropas a Jerusalém, para reprimir aquilo, mandando posteriormente prender, torturar e até crucificar vários judeus, inclusive alguns que eram cidadãos romanos, o que era ilegal, além de estimular elementos da comunidade greco-romana de Cesareia a atacar os judeus de lá, o que aquela fez com vontade, matando diversos deles. Ninguém conseguiu mais deter os ódios e os conflitos se generalizaram em Jerusalém, obrigando as autoridades judias pró-romanos, a abandonar a cidade às pressas. A guarnição romana de Jerusalém foi completamente massacrada, e logo após se seguiu um sangrento ajuste de contas contra gregos, romanos e simpatizantes.
(2) Entre junho e julho de 67, Vespasiano cercou a fortaleza de Yodfat, onde estava o comandante das forças rebeldes da Galileia, um jovem de família importante chamado Yosef ben Matityahu, que conseguiu escapar com vida da matança que os romanos promoveram com a queda da cidade – ele refugiou-se dentro do poço de água da fortaleza, onde os romanos o encontraram. Segundo Yosef, os romanos mataram todos os homens, dezenas de milhares, e escravizaram umas 1.200 mulheres e crianças. Feito prisioneiro dos romanos, Yosef ben Matityahu, consegui-lhes as graças após ter previsto que Vespasiano seria imperador em pouco tempo, o que de fato aconteceu, e acabou sendo adotado por Tito, que mudou o seu nome para Flavio (sobrenome da família de Tito) Josefo (latinização do primeiro nome de Iosef). Era uma adoção de pleno direito, inclusive sobre os bens do adotante. Flavio Josefo seria o responsável por escrever uma obra minuciosa sobre essa guerra, que felizmente chegou até nós, chamada Guerras Judaicas.
(3) Lucio Cassio Dion, escritor romano do final do século II, escreveu: “Os judeus da região de Cirene, encabeçados por um tal Andreas, partiram a exterminar tanto aos gregos como romanos. Eles cozinharam suas carnes, fizeram cintos para si próprios com as entranhas daqueles, ungiram-se com o seu sangue e vestiram-se com a pele deles. Alguns foram colocados de cabeça para baixo e serrados ao meio. Outros foram jogados às feras e obrigados a lutar como gladiadores. Ao todo pereceram umas 220 mil pessoas [na Cirenaica]. Praticaram ações semelhantes no Egito e em Chipre, sob o comando de Artemio. Aí cerca de 240 mil pessoas morreram. Por esse motivo nenhum judeu pode mais por os pés aí [em Chipre], e se ocorre de um deles vir para na ilha trazido pelos ventos [num naufrágio], é condenado à morte” (traduzido da Wikipedia em inglês – Kitos War).
Paulo Orosio, um escritor cristão do século IV, escreveu “Os judeus... fizeram guerra aos habitantes da Líbia da maneira mais selvagem e de tal forma extensa, que a região ficou desabitada, uma vez que seus agricultores foram massacrados; e essa terra teria ficado completamente despovoada se o imperador Adriano não tivesse mandado para lá colonos de outras regiões, para substituir os que haviam sido exterminados” (idem, idem).
A Jewish Encyclopedia, de 1906, reconhece que “para o conhecimento da Revolta Judaica sob Trajano e Adriano, Dion é a fonte mais importante... embora suas descrições sobre as crueldades perpetradas pelos judeus em Cirene e Chipre sejam, provavelmente, exageradas” (idem, idem).
Outros fatos foram: no Egito: a ocupação, e destruição pelo fogo, da cidade de Alexandria, destruição especialmente dirigida contra os templos egípcios e a tumba de Pompeu (um símbolo para a história romana); em Chipre o que marcou foi o massacre indiscriminado contra civis gregos e romanos; houveram ainda combates na Judeia, onde se destacou o duríssimo cerco de Lida, que acabou do mesmo jeito que os outros focos: sacrifícios e mortes desnecessárias.
(4) O verbete Hadrian, da Wikipedia em inglês diz o seguinte (sempre entre aspas): “segundo o oerudito moderno Giovanni Bazzana, a intenção original de Adriano sempre foi construir Jerusalém como uma colônia romana, como Vespasiano fez com Cesareia Marítima, com vários privilégios honoríficos e fiscais, com uma população majoritariamente pagã. Aceitar-se-ia, como em outras colônias semelhantes, que os judeus residentes ficassem isentos do culto oficial”. Essa regalia, como uma política oficial do estado romano, os cristãos nunca tiveram antes de Constantino. “É possível que nessa viagem [e nas suas declarações] ele apenas procurasse o apoio judeu à ordem imperial romana, como o atestado em inscrições de Cesareia, onde a epigrafia revelou o nome de vários elementos judeus que serviram no exército romano nas rebeliões de 66 e 132”.
“Tem-se especulado que Adriano pretendia assimilar o templo judeu à base de apoio cívico-religiosa ao seu reinado, como ele vinha fazendo nos lugares tradicionais de culto dos gregos e de outros povos. Também se aventou que Adriano tentou juntar todos os sistemas de crença do Império num todo coerente, que serviria de suporte para o seu projeto de uma autocracia imperial... Os vizinhos samaritanos já haviam se submetido a um processo semelhante de helenização e sincretismo religioso, integrando os seus ritos com os dos helenistas. Adriano provavelmente sancionou esse culto... ele construiu um templo para o helenístico, e possivelmente sincrético, Zeus Hypsisto (Zeus Altíssimo) no Monte Garizim”. Ou seja, estava em curso um processo de absolutização religiosa em favor do culto do imperador, distante da primitiva tolerância politeísta, e que, na melhor das hipóteses, transformaria os deuses de outros povos em divindades menores frente aos deuses romanos ou à figura do imperador, sinal privilegiado da unidade imperial, que não poderia mais subsistir diante da variedade multiforme e anárquica do politeísmo tradicional, sem falar que os povos orientais sempre sem mostraram muito receptivos a à divinização dos governantes, ao contrário dos ocidentais que resistiam. Porque com os judeus, que eram orientais, seria diferente? Deve ter pensado o imperador. Cristãos e judeus combateram essa tendência, que era contra a evolução que eles pregavam, de conversão ao monoteísmo. Os primeiros pelo enfrentamento pacífico, os segundos de armas nas mãos; venceram os primeiros, mas os segundos não perdoaram a Adriano, por isso, sempre que as antigas fontes judaicas citavam o seu nome, ele era imediatamente seguido da invocação: “que os seus ossos sejam quebrados!”
(5) Jerusalém, transformada numa cidade romana, foi chamada de Aelia Capitolina de 136 até 638, quando os árabes a tomaram, chamando-a de “Iliya”, forma arabizada de Aelia, e, posteriormente, Al-Quds (a Santa).
(6) É um dia de luto, lamentação e jejum (um jejum severo de 25 horas), considerado o mais triste do calendário litúrgico judeu, semelhante à nossa Sexta-feira Santa, que relembra os grandes desastres da história judaica. Até o final da antiguidade eram lamentados: o episódio dos doze espiões de Moisés (Nm 13;14); a destruição do Templo de Salomão pelos babilônios; a destruição do segundo Templo pelos romanos, em 70; a derrota da rebelião de Bar Kokhba; a aragem da área ao redor do Templo, em 135, pelos romanos. A essas calamidades, ao longo dos tempos, foram acrescentadas outras como: o episódio do bezerro de ouro da Bíblia; os massacres que se seguiram à Primeira Cruzada; a expulsão da Inglaterra, em 1290; a expulsão da Espanha, em 1492; a entrada da Alemanha na 1ª Guerra Mundial, que a levou, no momento seguinte a provocar a 2ª Guerra; o Holocausto da 2ª Guerra; o atentado em Buenos Aires (1994); a saída voluntária das colônias da Faixa de Gaza (2005). Nesse dia o judeu não pode comer ou beber, se lavar ou tomar banho, não usar perfumes e cremes para a pele, não usar algo em couro, não manter relações sexuais. Também ficava proibido o estudo da Torá, que traz alegria ao coração, exceto algumas partes que falam de castigos e desgraças, como nos livros de Jó e Jeremias, excluídas, é óbvio, as que falam em consolo. Existem vários grupos mais esclarecidos no judaísmo, propondo o fim dessa “celebração”, que já não é unânime.
(7) Para informações mais detalhadas, com muitas citações, notas de rodapé, abundante bibliografia, eu recomendo o verbete da Wikipedia em francês Mouvements Baptistes Antiques, e os links que dele derivam para os movimentos específicos.
(8) Essa ação de Tito é apresentada, em espanhol no seguinte endereço: http://www.gecoas.com/religion/historia/antigua/sigloI-Z.htm ; enquanto o texto de Flávio Josefo, que narra o episódio, pode ser encontrado, em francês, no endereço: http://remacle.org/bloodwolf/historiens/Flajose/guerre6.htm#_ftnref18

Bibliografia
Bíblia de Jerusalém; 3ª impressão; Paulus; São Paulo; 2004
Bíblia Sagrada; 144ª edição; Ave-Maria; São Paulo; 2001
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho; Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Feldman, Sergio A.; Entre o Imperium e a Ecclesia: os judeus no Baixo Império; Anais di XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão; ANPUH/SP-USP; São Paulo; 8-12 de setembro de 2008  
Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes; Petrópolis; 1987.
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
Jewish Encyclopedia; 1906 - www.jewishencyclopedia.com
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)

Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

HISTORIA DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – X

Obrigado aos amigos da Rússia, Brasil, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, e de outros países que acompanham esse blog. Que ele vos seja cada vez mais útil. Deus os abençoe.

Novos Verbetes: Rapto das Sabinas - Roma Bizâncio
Caramuru - Brasil Col

Prof Eduardo Simões

As Raízes de um Ódio RE-CÍ-PRO-CO

__ Tudo, na história, tem uma causa ou uma conjunto delas...
__ O cristianismo nasceu como uma proposta de ser uma evolução natural, mais flexível e abrangente, do judaísmo, mas não foi isso que aconteceu, por razões absolutamente justas para os dois lados, e ao longo dos séculos o que se experimentou foram movimentos de franca hostilidade e perseguição, dos dois lados. Creio mesmo que o maior foco de discórdia e ressentimento veio do costume dos missionários cristãos pregarem, em primeiro lugar, nas sinagogas das cidades onde chegavam (ver Atos).
__ Do lado cristão essa atitude era, mais que justificada, obrigatória, uma vez que eles reconheciam, e ainda reconhecem, a imensa dívida que têm para com os judeus e o Primeiro Testamento. Privilegiar a sinagoga na pregação de uma salvação tão maravilhosa, com havia disso a ressurreição de Cristo, era um dever sagrado, fosse por sentimento de gratidão fosse para obedecer àquilo que o Mestre mandara: pregar inicialmente aos judeus, eles seriam os privilegiados com a primazia mensagem cristã.
__ Ora, como sabemos não foi bem assim que o centro judaico, o Templo em Jerusalém, recebeu essa iniciativa, comprometido que estava com o desaparecimento do líder da nova seita. Portanto, as notícias que chegavam das comunidades da diáspora, notificando da ação dos missionários cristãos, deixaram-nos particularmente alvoroçados e criaram neles, e em outras lideranças judaicas, a impressão de que “os cristãos estão a nos sabotar, querem nos destruir de dentro para fora” – essa estratégia já fora identificada e exposta pelos chefes do Sinédrio em At 5,28. Daqui para frente seria ou eles ou o galileu.
__ A partir dessa compreensão dos fatos, a atitude cristã só poderia ser classificada como extremamente pérfida, enganadora, digna das piores represálias: “por que eles não vão pregar aos politeístas e não nos deixam em paz?” De Jerusalém partiram grupos de judeus letrados, gente, qualificada para visitar as comunidades da diáspora, alertando sobre os perigos da ação dos cristãos.
__ Do lado cristão, na Antiguidade, ocorrem denúncias repetidas e graves sobre a presença de judeus em postos chaves, em momentos cruciais, que, se não são provas são evidências fortíssimas de sua participação em ações anticristãs, a saber: Nero, quando começou a primeira perseguição aos cristãos, era casado com uma mulher simpatizante do judaísmo; as atas de martírio de alguns grandes santos do cristianismo dessa época aponta para a presença ativa de elementos da comunidade judaica, insuflando a multidão pagã, como na execução de Policarpo de Esmirna; sempre que missionários cristãos adentravam reinos que eram governados por reis judeus ou simpatizantes (houve sim, e nós falaremos sobre eles), sofriam uma perseguição sangrenta; nas guerras que envolveram o Império Bizantino contra os persas, elementos da comunidade judaica, que vivam em território bizantino, se posicionaram ativamente em favor dos persas, assim como há acusações de cristãos, na Espanha de que os judeus agiram em favor dos árabes, abrindo portas de grandes cidades, na invasão muçulmana de 711, etc. É claro, que sempre que houve oportunidade e força suficiente para isso, os cristãos deram uma resposta igualmente apaixonada, injusta e sangrenta, que chegou ao seu extremo na inquisição espanhola, da parte do cristianismo católico, além de massacres e pogroms, da parte de outras denominações cristãs, até desembocarmos na bizarria, no terror grotesco, dos nazistas, dirigido contra judeus, ciganos, eslavos e outros.
__ É claro que nesse processo houve, dos dois lados, um grande equívoco que tendia a prolongar ao infinito, ou até os campos de extermínio, a desavença entre os dois campos, que era o monopólio da vitimosidade que cada um queria tomar só para si, como se estivesse sempre sob o ataque absolutamente injustificado do outro. Os judeus alegavam que os cristãos tentaram implodir a sua religião de dentro para fora, numa atitude desonesta e gratuita, sem que eles tivessem feito nada que justificasse a isso – a responsabilidade pela morte de Jesus passou a ser responsabilidade exclusiva da autoridade romana, “a execução de Jesus foi política”, omitindo-se as desavenças religiosas. Pode-se dizer que essa é hoje a postura comum em muitos setores do judaísmo liberal, que ainda aceita algum tipo de diálogo com os cristãos. “As provocações de Jesus, quando de sua entrada em Jerusalém, acabaram por acarretar a sua morte, que foi decidida por uma autoridade romana por razões políticas”. Logo fica sem explicação o clima antijudaico, típico da sociedade ocidental cristã, que se intensificou ao longo da Idade Média, e que no último quartel do século XIX recebeu a tarja de “antissemitismo”. Mantém-se o monopólio da dor e do sofrimento.
__ Do lado cristão era muito dolorosa a lembrança da morte de Jesus, revivida anualmente no calendário litúrgico, uma vez que é fonte de salvação, independente de quem a tenha provocado, da qual não era possível desvincular a participação de membros importantes da comunidade judaica; havia as dificuldades e os sofrimentos porque passara o incansável apóstolo Paulo, nas mãos de judeus furiosos em várias localidades do Império, minuciosamente descritos nos Atos dos Apóstolos e nas suas cartas; havia a lembrança da participação ativa de elementos das comunidades judaicas, insuflando o martírio de cristãos, mas acima de tudo havia as citações desairosas contra Jesus, expressas nas histórias de um tal “Yeshu”, a encarnação de tudo que é ruim e desonroso, que para os cristãos, era um sacrfilégio, uma ver que Jesus é considerado como parte da essência de Deus. Acrescente-se a isso todo um rol de mentiras e ilações lançadas contra aquele povo: “os judeus usam crianças cristãs para fazerem magia”, “os judeus envenenam os poços de água potável, inclusive lançando animais infestados por doenças em poços que servem aos cristãos”, etc., pelos mais variados motivos, temos um perigoso sentimento de vitimosidade unilateral, cristão, focado só em si, que é o cerne tanto de pensamentos de inferioridade, “coitadinhos de nós que sofremos tanto nas mãos dos judeus”, como de medidas compensatórias extremas: “vamos exterminá-los!”.
__ Seria o caminho da vitimosidade eterna, criadora de novos conflitos e vendetas cada vez mais sangrentas, uma armadilha terrível, em que só o oposto como gratuitamente, essencialmente mau – o inferno é o outro – que justificaria inclusive episódios como o do garoto Edgardo Mortara, que em 1858 foi retirado, pela polícia papal, da casa de seus pais, uma vez que uma empregada o batizara secretamente. Esse absurdo, e muitos outros, só seriam evitados no futuro se a Igreja abandonasse a sua posição de vítima exclusiva frente aos judeus, a assumisse a verdade histórica de que, em alguns momentos, ao longo dos séculos, a Igreja foi vítima sim dos judeus, mas em outros ela foi carrasca, e deveria se desculpar e penitenciar por isso, se não quisesse mergulhar numa contradição intolerável ou se apresentar sem manchas ou rugas diante de quem a fundou. Foi isso que compreendeu o papa João XXIII, quando começou a dar uma guinada no sentido de assumir uma postura mais justa e madura em relação a esse tema, continuada por outros papas, como João Paulo II, que pediu oficialmente desculpas pelos excessos dos católicos contra os judeus, e outros, no passado.
__ No ano 2000, o Papa João Paulo II, falando por todos os católicos, disse em relação a isso: “Nós perdoamos e pedimos perdão”! Assunto encerrado. Daqui para frente é diálogo, para trás é história, e é isso que eu vou fazer sem nenhum temor às etiquetas e aos preconceitos de quem quer que seja.

O Confronto com o Estado Romano

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3e/Robert%2C_Hubert_-_Incendie_%C3%A0_Rome_-.jpg
Wikiédia

__ Na noite de 18 para 19 de julho de 64, teve início um enorme incêndio na cidade de Roma. Segundo os relatos, o sinistro começou junto às barracas de feirantes que ficavam próximas ao Circo Máximo, um gigantesco estádio para corridas de cavalos, que sempre atraía muita gente – sua capacidade era entre 150 e 200 mil espectadores – que devia atrair muitos vendedores ambulantes e barraqueiros para os seus eventos, inclusive os onipresentes vendedores de azeite, um combustível altamente inflamável. Foi um incêndio tremendo, que ardeu durante seis dias, cessando por um momento, e ardendo novamente por mais três dias. Esse incêndio destruiu três regiões (bairros) de Roma, arruinando parcialmente outras sete, poupando apenas três. Milhares de pessoas morreram e umas 200 mil ficaram desabrigadas.
__ Esse não era o primeiro grande incêndio, nem seria o último, na cidade, mas a sua magnitude, combinada com o momento delicado de perda de popularidade do imperador Nero Claudio Cesar Augusto Germânico, acabou gerando mais estresse do seria de esperar (1). Nero, que, parece, estava fora no momento do incêndio, voltou imediatamente para Roma e, do seu lado, fez o pode – organizou um plano de ajuda aos desabrigados com dinheiro do seu próprio bolso, abriu os jardins e as portas do seu palácio para abrigar as vítimas, forneceu recursos para a imediata doação de alimento aos famintos, além de aproveitar o momento para tomar algumas medidas urbanísticas, para evitar ou reduzir os impactos de futuros incêndios.
__ Os desabrigados eram numerosos e estavam muito frustrados com os últimos acontecimentos, como a crise de abastecimento e alta de preço do trigo, além dos escândalos que fluíam do palácio real, sem falar na mentalidade supersticiosa geral, que associava desastres e vitórias à qualidade da relação que o governante do momento mantinha com às divindades tutelares da cidade, em especial se os rituais religiosos públicos estavam sendo bem executados; e, por isso, começou a murmurar, insisitente, sobre a necessidade da punição exemplar dos responsáveis, ou do responsável, por aquilo, fosse a mão que ateou fogo fosse o governante que irritou tanto os deuses por seus maus costumes e desleixo com os rituais públicos – Nero estava longe de ser um homem piedoso, mesmo para a ritualística burocrática do politeísmo – a ponto de eles resolverem punir a cidade, com o incêndio. Era preciso achar um bode expiratório com urgência, pois havia uma multidão inconformada nos jardins e dependências do palácio (2).

http://blog.cancaonova.com/diarioespiritual/files/2013/07/Persegui%C3%A7%C3%A3o-antiga.jpg
http://blog.cancaonova.com/

__ A questão agora é saber de onde veio a ideia de culpar os cristão, uma seita tão pequena e insignificante, que, provavelmente, 99,99% dos romanos não saberia sequer distingui-la dos judeus e, ao que se sabe, não houve qualquer incidente prévio envolvendo Nero e os cristãos, que lhes desse alguma visibilidade. A esse respeito há três coisas a considerar.
a) Da parte dos cristãos não havia, nesse momento, nenhum espírito, desejo ou motivo de confrontação com a autoridade romana. O culto ao imperador, iniciado por Augusto, ainda engatinhava, e, de uma maneira geral, ainda causava um surda repulsa no lado ocidental do império, principalmente em Roma. Nero, embora valorizasse esse princípio, via-se como a encarnação de Apolo, não era muito sistemático nem zeloso a esse respeito. Ele seria mais um homem fraco, extravagante, manipulável, deslumbrado pelo poder, querendo aproveitá-lo ao máximo, sem muito tempo ou capacidade para gastar com “detalhes”. Por seu lado, São Paulo, no capítulo 13 da carta aos Romanos, mostra o quanto os cristãos deveriam ser bons cidadãos, obedientes às leis do Estado. Esta devia ser a posição dos demais apóstolos e refletia exatamente o ensinamento de Jesus: “dai a César o que é de César” (Mt 22,21).
b) Certamente que as querelas religiosas entre cristãos e judeus, descritas nos Atos durante a estadia de Paulo em Roma, não se limitaram apenas a Paulo e àquele período, assim como não ficaram apenas no âmbito da troca de ideias, podendo ter chegado inclusive a rumorosas via de fato. Suetionio, historiador romano, fala sobre tumultos entre judeus, gerados por um tal “Chrestos”, que redundou na expulsão de vários deles, de Roma, na época do Imperador Claudio, no início da década de 40. Mas tudo estava ainda muito indiferenciado para os romanos, que continuavam tendo para com os judeus um apreço incomum (Bloch; 1964. Feldman; 2088). Como eles, de repente, perceberam a diferença?
c) Em algum momento do ano 61, Nero conhece Popeia Sabina, a ambiciosa esposa do político e general romano Marcos Salvio Oton, e torna-se amante dela, com o consentimento do marido, até que ela se divorcia para se tornar esposa de Nero e imperatriz de Roma, após induzi-lo a separar-se da primeira esposa Claudia Otávia. Nero vai mais longe ainda, e manda matar a infeliz – quanto ao marido de Popeia, o imperador manda desterrá-lo com governador da Lusitânia, o equivalente ao “fim do mundo” naquele tempo. Oton não o perdoará. Psicopata, imaturo, o tirano, que já afastara de si a pessoa de quem ele era, emocionalmente, mais dependente – a sua mãe Agripina, assassinada sob suas ordens por suspeita de conspiração – e se entrega incondicionalmente aos desejos e caprichos de Popeia. Popeia era oriunda de uma rica e influente família romana, seu pai tinha uma grande olaria e sua mãe era famosa pela beleza, mas se tornara, em algum momento da sua vida adepta do judaísmouma adepta do judaísmo, conforme se depreende da leitura de Flavio Josefo, estando por trás de várias medidas favoráveis aos judeus tomadas por Nero (ver jewishencyclopedia.com – Nero; Poppaea Sabina, além dos verbetes similares na Wikipedia). Ora, pela leitura dos escritores da época se deduz que a elite romana era incapaz de diferenciar judeus de cristãos, e não tinha o menor interesse em se informar mais sobre isso. A diferenciação repentina, e o uso deles como “bodes expiatórios”, por Nero, é muito surpreendente...
__ Deu-se início à matança, que, a considerar os testemunhos de autores romanos hostis ao cristianismo, passou de tudo o que era razoável. Segundo Tácito, “Nero buscou rapidamente um culpado, e infringiu as mais estranhas torturas sobre um grupo odiado por suas abominações, que o populacho chama cristãos... esta danosa superstição, sufocada num primeiro momento [ele cita Cristo e Poncio Pilatos], ressurgiu no solo da Judeia, e também em Roma [o que corrobora Atos]... se prendeu imediatamente a todos que se declararam culpáveis [de ser cristãos]; então, com a informação que deram, uma imensa multidão foi presa, não tanto pelo crime de ter incendiado a cidade, mas por seu ódio contra a humanidade” (Wikiipedia em espanhol, italiano e francês – Gran incêndio de Roma)...

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1b/Siemiradski_Fackeln.jpg
Wikipedia
 
__ Essa última informação de Tácito é importante e explica porque ouvimos falar de adolescentes, mulheres e velhos, massacrados em eventos públicos, e que não podiam, em princípio estar envolvidos no incêndio. Como disse Tácito, textualmente, eles eram uma “grande multidão” (multitudo ingens). De onde veio essa má fama dos cristãos entre o povo romano que nem sequer os distinguiam dos judeus? Como uma informação tão terrível quanto mentirosa, sobre os cristãos, chegou à elite governante do Império? Quem tinha uma convivência assim próxima com o cristianismo, conhecia-o bem, e tinha interesse na extinção da comunidade cristã?... Uma coisa precisa, portanto ser refeita na versão tradicional desse evento: os cristãos não foram apenas bode expiatório do incêndio, mas também, e principalmente, foram perseguidos pelo fato de serem cristãos. Os métodos de execução foram os mais bárbaros, aparentemente nunca antes usados em crimes de opinião ou prática religiosa no Império Romano, nem abarcaram tal número de “condenados”. Segundo Tácito, alguns eram cobertos com peles de animais selvagens, e soltados no meio de uma matilha de cães de caça, sendo despedaçados aos poucos, muitos foram crucificados, outros foram amarrados na extremidade de um poste, envolvidos com material combustível e queimados ao anoitecer. Havia ainda o famoso método deixar os cristãos serem devorados por animais selvagens nas arenas, mas a mente doentia do imperador, que se julgava um grande ator, foi mais longe, fazendo encenar dramas sangrentos da mitologia greco-romana, usando cristãos como vítimas, como na encenação pública da morte de Dirce, a rainha muito “barra-pesada” de Tebas, na Grécia, morta por dilaceração, após ser amarrada a um touro, etc.  Entre as vítimas mais famosas dessa perseguição temos os dois apóstolos maiores: Pedro e Paulo
__ No ano seguinte ao incêndio e ao início dessa bárbara perseguição, Popeia Sabina morre, quando estava grávida, em circunstâncias controvertidas (3), deixando a Nero desolado. Cada vez mais isolado, em virtude de seu comportamento sanguinário e bizarro, o imperador foi vítima de várias tentativas simultâneas de golpe de estado, quando alguns generais se levantaram ao mesmo tempo para depô-lo, em março de 68. Muita gente que até ali o apoiava aproveitou para abandoná-lo, inclusive a sua guarda pessoal. Sozinho, ele foge para a casa de um amigo, a 6 km de Roma, aonde chegou acompanhado de apenas quatro libertos, que lhe deviam grandes favores, um dos quais era sua esposa (!). Incapaz de cometer suicídio, como era costume entre os romanos nessas circunstâncias, ele ordena que um de seus amigos o mate. Era o dia 6 de junho de 68, o mesmo dia em que ele mandara matar sua primeira esposa.
__ Mais uma guerra civil, mais uma tragédia para o Império, mas os cristãos, agora, podiam respirar em paz e refazer suas forças. Era hora de fazer um balanço da perseguição:
1º - Essa perseguição foi limitada apenas a Roma e aos arredores, não atrapalhando a evolução natural e firme da Igreja na parte oriental do Império.
2º - De uma maneira geral a comunidade reagiu com ânimo e firmeza às duras penas que lhe foram impostas, causando vívida impressão às multidões. A qualidade da catequese cristã passara por uma dura prova e saíra-se com louvor.
3º - A extrema brutalidade dos métodos de execução impressionou a massa popular, causando um efeito justo contrário do que esperavam os executores – pelo menos é o que se depreende de um trecho de Tácito – que começou a se interessar mais pelo cristianismo e a se compadecer dos condenados, abominando ainda mais a Nero.
4º - Como efeito colateral do parágrafo anterior, ao invés de toda essa selvageria levar à extinção do cristianismo, antes favoreceu à sua expansão e não ajudou a recuperar a popularidade de Nero. O excesso de foco sobre os cristãos ajudou na sua divulgação, ainda mais por ser odiado por um imperador que começava a ficar impopular. Sem a perseguição o cristianismo teria continuado a ser uma religião pequena, insignificante, crescendo a duras penas no meio da miscelânea religiosa do Império Romano. Um escritor cristão do século II, Tertuliano, dirá: “o sangue de mártires é sementeira de cristãos”.
5° - Assim como a dureza da perseguição, o ânimo dos perseguidos também impressionará, além dos pagãos, aos cristãos sobreviventes, induzindo-os a uma relação especial com essas pessoas tão valentes, dando início àquilo que se convencionou chamar de culto dos “mártires”, dos restos daquelas pessoas, chamados “relíquias”, como uma lembrança do seu incrível exemplo, que não podia, em absoluto, ser esquecido – “não há maior prova de amor em dar a vida pelos amigos” (Jo 15,13), e jamais esquecer isso. A preservação dos ossos de Pedro e Paulo é uma prova disso.
__ Sobre a forma como se deve encarar essa e as próximas perseguições que o Império abrirá contra os cristãos, Jedin adverte: “não há porque ver em cada imperador ou governador de províncias, sob cujo reinado ou administração os cristãos sofreram perseguições, como um monstro, que perseguia com fúria cega, sem mais, a sua fé. As justificativas para cada intervenção foram, amiúde, muito diferentes e têm que ser consideradas caso a caso. Além disso, as iniciativas contras os cristãos não partiam em primeiro lugar das autoridades públicas, pois contradiziam a política oficial de tolerância religiosa” (1966, p 206). E sempre que, ao longo da história, as autoridades romanas tomaram medidas repressivas contra um ou outro culto, “não se dirigiam contra as crenças dos adeptos do novo culto, mas antes contra os excessos morais [ou imorais] de que vinham acompanhados... Esta linha fundamental da política religiosa romana não foi abandonada no século I do Império. O culto imperial... realmente introduziu na religião romana um novo ingrediente essencial; mas sua forma externa, seu ritual, só foi se desenvolvendo muito lentamente, de sorte que só muito raramente se pode alegar a decidida repulsa a esse culto, por parte dos cristãos, no século I, como justificativa para as autoridades imperiais intervirem contra eles. Só isoladamente imperadores como Nero e Domiciano exageraram certas prerrogativas do culto imperial e provocaram conflitos que, por outro lado, não se relacionavam apenas com os cristãos... só por meio dos distúrbios que surgiram entre os cristãos e judeus ou a população gentia, veio a autoridade imperial se dar conta da peculiaridade da nova religião, e houve por bem intervir, em primeiro lugar para restabelecer a ordem e por fim aos tumultos [como foi o caso de Claudio]. Só lentamente foi se formando a crença de que os cristão vinham perturbar a paz religiosa reinante, e, por conseguinte, constituíam uma ameaça contra a política religiosa seguida tradicionalmente pelo império... Concluindo, ao enumerar os fatores que levaram às perseguições dos cristãos, só sob aspectos muito limitados pode-se incriminar o poder estatal romano. Logo, o que mais influiu [para as perseguições] foi antes a pretensão de absoluto dessa mesma religião cristã; e em segundo lugar a hostilidade da população pagã. Só no século III se transforma em questão de princípio a luta entre o cristianismo e o Estado romano” (idem, p 206-207) (4).
__ Em algum momento de ano de 65, porém, já estavam se acumulando os fatores de uma mudança terrível, com repercussão profunda para o cristianismo. Usando de sua influência junto ao imperador, a imperatriz Popeia Sabina induziu-o a aceitar a indicação de um seu protegido chamado Gesio Floro, um grego nascido em Clazómenas, na Ásia Menor, como procurador na Judeia. Nero, é claro, concedeu-lhe o favor.
__ E evidente, para mim, que Popeia Sabina não agiu nisso de má fé, sabendo de antemão todo o mal que esse homem iria fazer ao povo de sua fé – ele inclusive pediu, e foi atendida por Nero, para ter um funeral judaico, quando da sua morte, e por isso não foi incinerada. Popeia, como todos os que andam em más companhias, perdeu, com o tempo, a capacidade de avaliar objetivamente a realidade e as pessoas, e tomar a melhor decisão. É possível até que, ao ver a ambição e o carreirismo de Gesio, ela o tenha admirado, afinal seria o espelho dela, ou simplesmente seguiu a indicação de outrem sem mais. A Judeia era realmente uma região muito problemática, que resistia encarniçadamente a assimilação da cultura greco-romana, mas era também uma região onde circulava dinheiro, muito dinheiro.
__ E o dinheiro, ás vezes, perde os homens...

Notas
(1) Após um começo auspicioso, Nero, alçado ao poder com apenas 16 anos, demonstrou proverbial incapacidade para se acercar de bons conselheiros, inclusive de diferenciar os bons dos maus, sem falar numa afetividade pervertida, que o induziu a uma relação doentia, supostamente incestuosa, com a sua mãe, a ambiciosa Agripina, e outras não menos tormentosas. A facilidade com que ele começou a se livrar dos seus desafetos, opositores e parentes – mandou matar a mãe e a sua primeira esposa – além de um início de séria crise econômica no início de 63, por causa das despesas excessivas na guerra contra os partos e dificuldade no abastecimento de trigo, que provocou uma alta nos preços – acabaram por desgastar muito a sua fama inicial frente ao povo romano.
(2) Existem coisas misteriosas nesse incêndio! Gente famosa e escritora, que estava viva durante o incêndio, não fazem menção a ele, como Sêneca, filósofo e valido de Nero, que estava em Roma, e já tinha caído em desgraça diante do imperador (aparentemente teria interesse em ligar Nero ao incêndio); o historiador Flávio Josefo, que vivia na Palestina, mas passou para Roma em 71; o filósofo grego Dion Crisóstomo, que estava em Roma no início dos 70; o historiador grego Plutarco, que esteve em Roma pessoalmente umas três vezes. Para eles, aparentemente, o incêndio fora sem importância, um dos muitos que já ocorrera em Roma, e que, provavelmente, ocorreria depois. Um escritor da época, Plinio o Velho, se refere a umas árvores de sua casa, como estando vivas “até o incêndio de Nero” (Wikipedia em italiano – Nerone), sem ficar claro que o incêndio foi “no tempo de Nero” ou “causado por Nero”.
Há uma tendência atual a dizer que Nero não teria sido o causador do incêndio, uma vez que seus acusadores usam como argumento para incêndio criminoso o fato de este, em alguns locais, avançar mesmo contra o vento, e se propagava muito fácil em grandes residências de feitas de tijolos ou pedras, que seriam naturalmente imunes ao fogo, enquanto pesquisas recentes mostram que em determinados ambientes as chamas podem avançar contra o vento e que a abertura superior, no pátio interno das grandes residências, poderia servir de caminho para cinzas incandescentes, sem falar do apoio que ele deu aos desabrigados, embora também se possa argumentar que a primeira justificativa apenas apresente outra possibilidade para o incêndio, sem eliminar a tradição da culpa de Nero, e a sua conduta posterior pode ter sido ditada pelo fato de: a) o incêndio, premeditado, saiu de controle; b) a reação do povo foi mais agressiva que o esperado. Na perspectiva tradicional da culpa de Nero, exposta por alguns escritores não contemporâneos ao evento, como Tácito (que lhe faz referência) e Suetonio (que a abraça), abraçada pelo povo, com o detalhe de que ele estaria compondo ou querendo aperfeiçoar uma ode ao incêndio de Troia, enquanto Roma ardia, é compatível com o que se sabe da sua extravagante propensão ao histrionismo, sem falar que ele se aproveitou de uma área enorme, daquela que foi consumida pelas chamas, para construir um palácio gi-gan-tes-co, de um luxo que não havia semelhante no Império, chamado de Domus Aurea (Casa Dourada). Dizem que ao ver concluída a sua nova moradia ele teria exclamado: “agora posso viver como um ser humano”. Nero mostra com isso que era um interessado nesse incêndio e que foi o seu principal beneficiário.
(3) Os autores que se referem a esse episódio como Suetônio, Tácito, Dion Cassio, afirmam que Nero teve participação direta na morte de Popeia, para o primeiro ele teria chutado a barriga dela e para os outros dois ele a teria machucado, por acidente, causando sua morte. Autores modernos preferem crer que ela morreu por meras complicações no parto, sem explicar porque os autores antigos mentiram quanto a isso, inclusive porque dois deles disseram que foi um acidente. O comportamento posterior de Nero, entretanto, aponta na direção de um excruciante sentimento de culpa e um mecanismo de negação. Como ele tinha um jovem escravo, Sporus, que, em sua paranoia começou a achar muito parecido com Popeia, Nero abandonou sua terceira e última mulher, e casou-se com aquele, fazendo-o vestir-se como mulher, tratando-o como se fosse Popeia.
(4) Essa conclusão de Jedin começa de uma maneira muito correta esvaziando uma postura que foi muito comum no século XIX e início do século XX, que os de minha geração experimentaram nos seus livros de catecismo e primeira comunhão (material pré-Vaticano II), sempre a mostrar os mártires cristãos e a Igreja como vítimas gratuitas do Estado romano, governado por monstros malvados em todos os aspectos e circunstâncias. O alcance das perseguições era invariavelmente universal, abarcava todo o Império, e não foi bem assim. Entretanto o autor se equivoca, e muito ao atribuir a pretensão à verdade absoluta da fé cristã, de sorte que quem é cristão não pode ser também politeísta, a primeira causa das perseguições, antes ainda do século II, pelas seguintes razões:
a) Supõe que a população do Império, ou mesmo de Roma, estava muito inteirada do que era o cristianismo e as consequências do seu crescimento, mais ou menos como nós, que recebemos abundantes análise sobre qualquer assunto através dos meios de comunicação de massa. Isso não existia! Mesmo os homens mais cultos de Roma, cinquenta anos após a primeira perseguição, ainda eram incapazes de separar os cristãos dos judeus ou de terem uma ideia minimamente razoável do que era o cristianismo. A afirmação de que eles praticavam “abominações” mostram, pelo desdobramento dos textos e das ações das autoridades, que tinham um sentido puramente moral, “eles praticam o mal”, e não filosófico-teológico, “eles não admitem os nossos deuses”, são “ateus”. Isso só aparecia de forma secundária.
b) Outra prova da insuficiência dessa afirmação foi o tratamento tolerante dado aos judeus que, assim como os cristãos, tinham pretensão à verdade absoluta – não dava para ser judeu e politeísta ao mesmo tempo – e que, apesar de eles serem muito mais enfáticos e agressivos que os cristãos na defesa desse absoluto (legiões inteiras foram exterminadas nos levantes judaicos), nada mudou, até o decreto de Adriano em 135. Nunca, mesmo depois dos sangrentos levantes de 66-71, 115 e 133-135, os judeus padeceram de uma perseguição semelhante às várias que os cristãos padeceram sob o Império, seja na violência seja na gravidade das acusações. Contra os cristãos o que houve foram tentativas de extermínio, por delito de opinião.
c) A pretensa tolerância dos politeístas era fruto da percepção do homem antigo que imaginava o raio de ação da divindade favorita de sua comunidade circunscrita aos limites de sua cidade. Se assim era, o que importava o deus ou deuses de outra cidade? Essa era a essência ideológica da cidade-estado antiga, que estava se tornando incompatível com o nível interdependência a que estavam chegando as diversas e longínquas regiões agregadas ao império romano. Era necessária uma crença comum básica, da mesma forma que hoje se impõe a aceitação do sistema republicano e do regime democrático em muitos países do mundo – não é o medo de ver essas verdades “absolutas” (a democracia é absolutamente infensa à ditadura) fragilizadas que faz com quem os povos europeus resistam à entrada em massa de imigrantes vindas de áreas onde o conceito de república ou democracia são diferentes ou inexistem? Mais cedo ou mais tarde o culto imperial tentaria se impor como “absoluto”, inclusive por uma necessidade estrutural do império, e ele marchava para isso, quando se defrontou com o absoluto do cristianismo... e perdeu.
Quando se compara a “tolerância” do politeísmo, com a “intolerância” do cristianismo, principalmente quando se assume a defesa de uma corrente que excedeu à cristã na defesa de seu absoluto (Feldman; 2008), sem considerar a evolução histórica da comunidade antiga, comete-se erro de anacronismo, de parcialidade e, na pior das hipóteses, de hipocrisia ou de vitimosidade estéril.

Bibliografia
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Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Feldman, Sergio A.; Entre o Imperium e a Ecclesia: os judeus no Baixo Império; Anais di XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão; ANPUH/SP-USP; São Paulo; 8-12 de setembro de 2008  
Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes; Petrópolis; 1987.
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Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009