sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

HISTORIA DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – X

Obrigado aos amigos da Rússia, Brasil, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, e de outros países que acompanham esse blog. Que ele vos seja cada vez mais útil. Deus os abençoe.

Novos Verbetes: Rapto das Sabinas - Roma Bizâncio
Caramuru - Brasil Col

Prof Eduardo Simões

As Raízes de um Ódio RE-CÍ-PRO-CO

__ Tudo, na história, tem uma causa ou uma conjunto delas...
__ O cristianismo nasceu como uma proposta de ser uma evolução natural, mais flexível e abrangente, do judaísmo, mas não foi isso que aconteceu, por razões absolutamente justas para os dois lados, e ao longo dos séculos o que se experimentou foram movimentos de franca hostilidade e perseguição, dos dois lados. Creio mesmo que o maior foco de discórdia e ressentimento veio do costume dos missionários cristãos pregarem, em primeiro lugar, nas sinagogas das cidades onde chegavam (ver Atos).
__ Do lado cristão essa atitude era, mais que justificada, obrigatória, uma vez que eles reconheciam, e ainda reconhecem, a imensa dívida que têm para com os judeus e o Primeiro Testamento. Privilegiar a sinagoga na pregação de uma salvação tão maravilhosa, com havia disso a ressurreição de Cristo, era um dever sagrado, fosse por sentimento de gratidão fosse para obedecer àquilo que o Mestre mandara: pregar inicialmente aos judeus, eles seriam os privilegiados com a primazia mensagem cristã.
__ Ora, como sabemos não foi bem assim que o centro judaico, o Templo em Jerusalém, recebeu essa iniciativa, comprometido que estava com o desaparecimento do líder da nova seita. Portanto, as notícias que chegavam das comunidades da diáspora, notificando da ação dos missionários cristãos, deixaram-nos particularmente alvoroçados e criaram neles, e em outras lideranças judaicas, a impressão de que “os cristãos estão a nos sabotar, querem nos destruir de dentro para fora” – essa estratégia já fora identificada e exposta pelos chefes do Sinédrio em At 5,28. Daqui para frente seria ou eles ou o galileu.
__ A partir dessa compreensão dos fatos, a atitude cristã só poderia ser classificada como extremamente pérfida, enganadora, digna das piores represálias: “por que eles não vão pregar aos politeístas e não nos deixam em paz?” De Jerusalém partiram grupos de judeus letrados, gente, qualificada para visitar as comunidades da diáspora, alertando sobre os perigos da ação dos cristãos.
__ Do lado cristão, na Antiguidade, ocorrem denúncias repetidas e graves sobre a presença de judeus em postos chaves, em momentos cruciais, que, se não são provas são evidências fortíssimas de sua participação em ações anticristãs, a saber: Nero, quando começou a primeira perseguição aos cristãos, era casado com uma mulher simpatizante do judaísmo; as atas de martírio de alguns grandes santos do cristianismo dessa época aponta para a presença ativa de elementos da comunidade judaica, insuflando a multidão pagã, como na execução de Policarpo de Esmirna; sempre que missionários cristãos adentravam reinos que eram governados por reis judeus ou simpatizantes (houve sim, e nós falaremos sobre eles), sofriam uma perseguição sangrenta; nas guerras que envolveram o Império Bizantino contra os persas, elementos da comunidade judaica, que vivam em território bizantino, se posicionaram ativamente em favor dos persas, assim como há acusações de cristãos, na Espanha de que os judeus agiram em favor dos árabes, abrindo portas de grandes cidades, na invasão muçulmana de 711, etc. É claro, que sempre que houve oportunidade e força suficiente para isso, os cristãos deram uma resposta igualmente apaixonada, injusta e sangrenta, que chegou ao seu extremo na inquisição espanhola, da parte do cristianismo católico, além de massacres e pogroms, da parte de outras denominações cristãs, até desembocarmos na bizarria, no terror grotesco, dos nazistas, dirigido contra judeus, ciganos, eslavos e outros.
__ É claro que nesse processo houve, dos dois lados, um grande equívoco que tendia a prolongar ao infinito, ou até os campos de extermínio, a desavença entre os dois campos, que era o monopólio da vitimosidade que cada um queria tomar só para si, como se estivesse sempre sob o ataque absolutamente injustificado do outro. Os judeus alegavam que os cristãos tentaram implodir a sua religião de dentro para fora, numa atitude desonesta e gratuita, sem que eles tivessem feito nada que justificasse a isso – a responsabilidade pela morte de Jesus passou a ser responsabilidade exclusiva da autoridade romana, “a execução de Jesus foi política”, omitindo-se as desavenças religiosas. Pode-se dizer que essa é hoje a postura comum em muitos setores do judaísmo liberal, que ainda aceita algum tipo de diálogo com os cristãos. “As provocações de Jesus, quando de sua entrada em Jerusalém, acabaram por acarretar a sua morte, que foi decidida por uma autoridade romana por razões políticas”. Logo fica sem explicação o clima antijudaico, típico da sociedade ocidental cristã, que se intensificou ao longo da Idade Média, e que no último quartel do século XIX recebeu a tarja de “antissemitismo”. Mantém-se o monopólio da dor e do sofrimento.
__ Do lado cristão era muito dolorosa a lembrança da morte de Jesus, revivida anualmente no calendário litúrgico, uma vez que é fonte de salvação, independente de quem a tenha provocado, da qual não era possível desvincular a participação de membros importantes da comunidade judaica; havia as dificuldades e os sofrimentos porque passara o incansável apóstolo Paulo, nas mãos de judeus furiosos em várias localidades do Império, minuciosamente descritos nos Atos dos Apóstolos e nas suas cartas; havia a lembrança da participação ativa de elementos das comunidades judaicas, insuflando o martírio de cristãos, mas acima de tudo havia as citações desairosas contra Jesus, expressas nas histórias de um tal “Yeshu”, a encarnação de tudo que é ruim e desonroso, que para os cristãos, era um sacrfilégio, uma ver que Jesus é considerado como parte da essência de Deus. Acrescente-se a isso todo um rol de mentiras e ilações lançadas contra aquele povo: “os judeus usam crianças cristãs para fazerem magia”, “os judeus envenenam os poços de água potável, inclusive lançando animais infestados por doenças em poços que servem aos cristãos”, etc., pelos mais variados motivos, temos um perigoso sentimento de vitimosidade unilateral, cristão, focado só em si, que é o cerne tanto de pensamentos de inferioridade, “coitadinhos de nós que sofremos tanto nas mãos dos judeus”, como de medidas compensatórias extremas: “vamos exterminá-los!”.
__ Seria o caminho da vitimosidade eterna, criadora de novos conflitos e vendetas cada vez mais sangrentas, uma armadilha terrível, em que só o oposto como gratuitamente, essencialmente mau – o inferno é o outro – que justificaria inclusive episódios como o do garoto Edgardo Mortara, que em 1858 foi retirado, pela polícia papal, da casa de seus pais, uma vez que uma empregada o batizara secretamente. Esse absurdo, e muitos outros, só seriam evitados no futuro se a Igreja abandonasse a sua posição de vítima exclusiva frente aos judeus, a assumisse a verdade histórica de que, em alguns momentos, ao longo dos séculos, a Igreja foi vítima sim dos judeus, mas em outros ela foi carrasca, e deveria se desculpar e penitenciar por isso, se não quisesse mergulhar numa contradição intolerável ou se apresentar sem manchas ou rugas diante de quem a fundou. Foi isso que compreendeu o papa João XXIII, quando começou a dar uma guinada no sentido de assumir uma postura mais justa e madura em relação a esse tema, continuada por outros papas, como João Paulo II, que pediu oficialmente desculpas pelos excessos dos católicos contra os judeus, e outros, no passado.
__ No ano 2000, o Papa João Paulo II, falando por todos os católicos, disse em relação a isso: “Nós perdoamos e pedimos perdão”! Assunto encerrado. Daqui para frente é diálogo, para trás é história, e é isso que eu vou fazer sem nenhum temor às etiquetas e aos preconceitos de quem quer que seja.

O Confronto com o Estado Romano

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3e/Robert%2C_Hubert_-_Incendie_%C3%A0_Rome_-.jpg
Wikiédia

__ Na noite de 18 para 19 de julho de 64, teve início um enorme incêndio na cidade de Roma. Segundo os relatos, o sinistro começou junto às barracas de feirantes que ficavam próximas ao Circo Máximo, um gigantesco estádio para corridas de cavalos, que sempre atraía muita gente – sua capacidade era entre 150 e 200 mil espectadores – que devia atrair muitos vendedores ambulantes e barraqueiros para os seus eventos, inclusive os onipresentes vendedores de azeite, um combustível altamente inflamável. Foi um incêndio tremendo, que ardeu durante seis dias, cessando por um momento, e ardendo novamente por mais três dias. Esse incêndio destruiu três regiões (bairros) de Roma, arruinando parcialmente outras sete, poupando apenas três. Milhares de pessoas morreram e umas 200 mil ficaram desabrigadas.
__ Esse não era o primeiro grande incêndio, nem seria o último, na cidade, mas a sua magnitude, combinada com o momento delicado de perda de popularidade do imperador Nero Claudio Cesar Augusto Germânico, acabou gerando mais estresse do seria de esperar (1). Nero, que, parece, estava fora no momento do incêndio, voltou imediatamente para Roma e, do seu lado, fez o pode – organizou um plano de ajuda aos desabrigados com dinheiro do seu próprio bolso, abriu os jardins e as portas do seu palácio para abrigar as vítimas, forneceu recursos para a imediata doação de alimento aos famintos, além de aproveitar o momento para tomar algumas medidas urbanísticas, para evitar ou reduzir os impactos de futuros incêndios.
__ Os desabrigados eram numerosos e estavam muito frustrados com os últimos acontecimentos, como a crise de abastecimento e alta de preço do trigo, além dos escândalos que fluíam do palácio real, sem falar na mentalidade supersticiosa geral, que associava desastres e vitórias à qualidade da relação que o governante do momento mantinha com às divindades tutelares da cidade, em especial se os rituais religiosos públicos estavam sendo bem executados; e, por isso, começou a murmurar, insisitente, sobre a necessidade da punição exemplar dos responsáveis, ou do responsável, por aquilo, fosse a mão que ateou fogo fosse o governante que irritou tanto os deuses por seus maus costumes e desleixo com os rituais públicos – Nero estava longe de ser um homem piedoso, mesmo para a ritualística burocrática do politeísmo – a ponto de eles resolverem punir a cidade, com o incêndio. Era preciso achar um bode expiratório com urgência, pois havia uma multidão inconformada nos jardins e dependências do palácio (2).

http://blog.cancaonova.com/diarioespiritual/files/2013/07/Persegui%C3%A7%C3%A3o-antiga.jpg
http://blog.cancaonova.com/

__ A questão agora é saber de onde veio a ideia de culpar os cristão, uma seita tão pequena e insignificante, que, provavelmente, 99,99% dos romanos não saberia sequer distingui-la dos judeus e, ao que se sabe, não houve qualquer incidente prévio envolvendo Nero e os cristãos, que lhes desse alguma visibilidade. A esse respeito há três coisas a considerar.
a) Da parte dos cristãos não havia, nesse momento, nenhum espírito, desejo ou motivo de confrontação com a autoridade romana. O culto ao imperador, iniciado por Augusto, ainda engatinhava, e, de uma maneira geral, ainda causava um surda repulsa no lado ocidental do império, principalmente em Roma. Nero, embora valorizasse esse princípio, via-se como a encarnação de Apolo, não era muito sistemático nem zeloso a esse respeito. Ele seria mais um homem fraco, extravagante, manipulável, deslumbrado pelo poder, querendo aproveitá-lo ao máximo, sem muito tempo ou capacidade para gastar com “detalhes”. Por seu lado, São Paulo, no capítulo 13 da carta aos Romanos, mostra o quanto os cristãos deveriam ser bons cidadãos, obedientes às leis do Estado. Esta devia ser a posição dos demais apóstolos e refletia exatamente o ensinamento de Jesus: “dai a César o que é de César” (Mt 22,21).
b) Certamente que as querelas religiosas entre cristãos e judeus, descritas nos Atos durante a estadia de Paulo em Roma, não se limitaram apenas a Paulo e àquele período, assim como não ficaram apenas no âmbito da troca de ideias, podendo ter chegado inclusive a rumorosas via de fato. Suetionio, historiador romano, fala sobre tumultos entre judeus, gerados por um tal “Chrestos”, que redundou na expulsão de vários deles, de Roma, na época do Imperador Claudio, no início da década de 40. Mas tudo estava ainda muito indiferenciado para os romanos, que continuavam tendo para com os judeus um apreço incomum (Bloch; 1964. Feldman; 2088). Como eles, de repente, perceberam a diferença?
c) Em algum momento do ano 61, Nero conhece Popeia Sabina, a ambiciosa esposa do político e general romano Marcos Salvio Oton, e torna-se amante dela, com o consentimento do marido, até que ela se divorcia para se tornar esposa de Nero e imperatriz de Roma, após induzi-lo a separar-se da primeira esposa Claudia Otávia. Nero vai mais longe ainda, e manda matar a infeliz – quanto ao marido de Popeia, o imperador manda desterrá-lo com governador da Lusitânia, o equivalente ao “fim do mundo” naquele tempo. Oton não o perdoará. Psicopata, imaturo, o tirano, que já afastara de si a pessoa de quem ele era, emocionalmente, mais dependente – a sua mãe Agripina, assassinada sob suas ordens por suspeita de conspiração – e se entrega incondicionalmente aos desejos e caprichos de Popeia. Popeia era oriunda de uma rica e influente família romana, seu pai tinha uma grande olaria e sua mãe era famosa pela beleza, mas se tornara, em algum momento da sua vida adepta do judaísmouma adepta do judaísmo, conforme se depreende da leitura de Flavio Josefo, estando por trás de várias medidas favoráveis aos judeus tomadas por Nero (ver jewishencyclopedia.com – Nero; Poppaea Sabina, além dos verbetes similares na Wikipedia). Ora, pela leitura dos escritores da época se deduz que a elite romana era incapaz de diferenciar judeus de cristãos, e não tinha o menor interesse em se informar mais sobre isso. A diferenciação repentina, e o uso deles como “bodes expiatórios”, por Nero, é muito surpreendente...
__ Deu-se início à matança, que, a considerar os testemunhos de autores romanos hostis ao cristianismo, passou de tudo o que era razoável. Segundo Tácito, “Nero buscou rapidamente um culpado, e infringiu as mais estranhas torturas sobre um grupo odiado por suas abominações, que o populacho chama cristãos... esta danosa superstição, sufocada num primeiro momento [ele cita Cristo e Poncio Pilatos], ressurgiu no solo da Judeia, e também em Roma [o que corrobora Atos]... se prendeu imediatamente a todos que se declararam culpáveis [de ser cristãos]; então, com a informação que deram, uma imensa multidão foi presa, não tanto pelo crime de ter incendiado a cidade, mas por seu ódio contra a humanidade” (Wikiipedia em espanhol, italiano e francês – Gran incêndio de Roma)...

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1b/Siemiradski_Fackeln.jpg
Wikipedia
 
__ Essa última informação de Tácito é importante e explica porque ouvimos falar de adolescentes, mulheres e velhos, massacrados em eventos públicos, e que não podiam, em princípio estar envolvidos no incêndio. Como disse Tácito, textualmente, eles eram uma “grande multidão” (multitudo ingens). De onde veio essa má fama dos cristãos entre o povo romano que nem sequer os distinguiam dos judeus? Como uma informação tão terrível quanto mentirosa, sobre os cristãos, chegou à elite governante do Império? Quem tinha uma convivência assim próxima com o cristianismo, conhecia-o bem, e tinha interesse na extinção da comunidade cristã?... Uma coisa precisa, portanto ser refeita na versão tradicional desse evento: os cristãos não foram apenas bode expiatório do incêndio, mas também, e principalmente, foram perseguidos pelo fato de serem cristãos. Os métodos de execução foram os mais bárbaros, aparentemente nunca antes usados em crimes de opinião ou prática religiosa no Império Romano, nem abarcaram tal número de “condenados”. Segundo Tácito, alguns eram cobertos com peles de animais selvagens, e soltados no meio de uma matilha de cães de caça, sendo despedaçados aos poucos, muitos foram crucificados, outros foram amarrados na extremidade de um poste, envolvidos com material combustível e queimados ao anoitecer. Havia ainda o famoso método deixar os cristãos serem devorados por animais selvagens nas arenas, mas a mente doentia do imperador, que se julgava um grande ator, foi mais longe, fazendo encenar dramas sangrentos da mitologia greco-romana, usando cristãos como vítimas, como na encenação pública da morte de Dirce, a rainha muito “barra-pesada” de Tebas, na Grécia, morta por dilaceração, após ser amarrada a um touro, etc.  Entre as vítimas mais famosas dessa perseguição temos os dois apóstolos maiores: Pedro e Paulo
__ No ano seguinte ao incêndio e ao início dessa bárbara perseguição, Popeia Sabina morre, quando estava grávida, em circunstâncias controvertidas (3), deixando a Nero desolado. Cada vez mais isolado, em virtude de seu comportamento sanguinário e bizarro, o imperador foi vítima de várias tentativas simultâneas de golpe de estado, quando alguns generais se levantaram ao mesmo tempo para depô-lo, em março de 68. Muita gente que até ali o apoiava aproveitou para abandoná-lo, inclusive a sua guarda pessoal. Sozinho, ele foge para a casa de um amigo, a 6 km de Roma, aonde chegou acompanhado de apenas quatro libertos, que lhe deviam grandes favores, um dos quais era sua esposa (!). Incapaz de cometer suicídio, como era costume entre os romanos nessas circunstâncias, ele ordena que um de seus amigos o mate. Era o dia 6 de junho de 68, o mesmo dia em que ele mandara matar sua primeira esposa.
__ Mais uma guerra civil, mais uma tragédia para o Império, mas os cristãos, agora, podiam respirar em paz e refazer suas forças. Era hora de fazer um balanço da perseguição:
1º - Essa perseguição foi limitada apenas a Roma e aos arredores, não atrapalhando a evolução natural e firme da Igreja na parte oriental do Império.
2º - De uma maneira geral a comunidade reagiu com ânimo e firmeza às duras penas que lhe foram impostas, causando vívida impressão às multidões. A qualidade da catequese cristã passara por uma dura prova e saíra-se com louvor.
3º - A extrema brutalidade dos métodos de execução impressionou a massa popular, causando um efeito justo contrário do que esperavam os executores – pelo menos é o que se depreende de um trecho de Tácito – que começou a se interessar mais pelo cristianismo e a se compadecer dos condenados, abominando ainda mais a Nero.
4º - Como efeito colateral do parágrafo anterior, ao invés de toda essa selvageria levar à extinção do cristianismo, antes favoreceu à sua expansão e não ajudou a recuperar a popularidade de Nero. O excesso de foco sobre os cristãos ajudou na sua divulgação, ainda mais por ser odiado por um imperador que começava a ficar impopular. Sem a perseguição o cristianismo teria continuado a ser uma religião pequena, insignificante, crescendo a duras penas no meio da miscelânea religiosa do Império Romano. Um escritor cristão do século II, Tertuliano, dirá: “o sangue de mártires é sementeira de cristãos”.
5° - Assim como a dureza da perseguição, o ânimo dos perseguidos também impressionará, além dos pagãos, aos cristãos sobreviventes, induzindo-os a uma relação especial com essas pessoas tão valentes, dando início àquilo que se convencionou chamar de culto dos “mártires”, dos restos daquelas pessoas, chamados “relíquias”, como uma lembrança do seu incrível exemplo, que não podia, em absoluto, ser esquecido – “não há maior prova de amor em dar a vida pelos amigos” (Jo 15,13), e jamais esquecer isso. A preservação dos ossos de Pedro e Paulo é uma prova disso.
__ Sobre a forma como se deve encarar essa e as próximas perseguições que o Império abrirá contra os cristãos, Jedin adverte: “não há porque ver em cada imperador ou governador de províncias, sob cujo reinado ou administração os cristãos sofreram perseguições, como um monstro, que perseguia com fúria cega, sem mais, a sua fé. As justificativas para cada intervenção foram, amiúde, muito diferentes e têm que ser consideradas caso a caso. Além disso, as iniciativas contras os cristãos não partiam em primeiro lugar das autoridades públicas, pois contradiziam a política oficial de tolerância religiosa” (1966, p 206). E sempre que, ao longo da história, as autoridades romanas tomaram medidas repressivas contra um ou outro culto, “não se dirigiam contra as crenças dos adeptos do novo culto, mas antes contra os excessos morais [ou imorais] de que vinham acompanhados... Esta linha fundamental da política religiosa romana não foi abandonada no século I do Império. O culto imperial... realmente introduziu na religião romana um novo ingrediente essencial; mas sua forma externa, seu ritual, só foi se desenvolvendo muito lentamente, de sorte que só muito raramente se pode alegar a decidida repulsa a esse culto, por parte dos cristãos, no século I, como justificativa para as autoridades imperiais intervirem contra eles. Só isoladamente imperadores como Nero e Domiciano exageraram certas prerrogativas do culto imperial e provocaram conflitos que, por outro lado, não se relacionavam apenas com os cristãos... só por meio dos distúrbios que surgiram entre os cristãos e judeus ou a população gentia, veio a autoridade imperial se dar conta da peculiaridade da nova religião, e houve por bem intervir, em primeiro lugar para restabelecer a ordem e por fim aos tumultos [como foi o caso de Claudio]. Só lentamente foi se formando a crença de que os cristão vinham perturbar a paz religiosa reinante, e, por conseguinte, constituíam uma ameaça contra a política religiosa seguida tradicionalmente pelo império... Concluindo, ao enumerar os fatores que levaram às perseguições dos cristãos, só sob aspectos muito limitados pode-se incriminar o poder estatal romano. Logo, o que mais influiu [para as perseguições] foi antes a pretensão de absoluto dessa mesma religião cristã; e em segundo lugar a hostilidade da população pagã. Só no século III se transforma em questão de princípio a luta entre o cristianismo e o Estado romano” (idem, p 206-207) (4).
__ Em algum momento de ano de 65, porém, já estavam se acumulando os fatores de uma mudança terrível, com repercussão profunda para o cristianismo. Usando de sua influência junto ao imperador, a imperatriz Popeia Sabina induziu-o a aceitar a indicação de um seu protegido chamado Gesio Floro, um grego nascido em Clazómenas, na Ásia Menor, como procurador na Judeia. Nero, é claro, concedeu-lhe o favor.
__ E evidente, para mim, que Popeia Sabina não agiu nisso de má fé, sabendo de antemão todo o mal que esse homem iria fazer ao povo de sua fé – ele inclusive pediu, e foi atendida por Nero, para ter um funeral judaico, quando da sua morte, e por isso não foi incinerada. Popeia, como todos os que andam em más companhias, perdeu, com o tempo, a capacidade de avaliar objetivamente a realidade e as pessoas, e tomar a melhor decisão. É possível até que, ao ver a ambição e o carreirismo de Gesio, ela o tenha admirado, afinal seria o espelho dela, ou simplesmente seguiu a indicação de outrem sem mais. A Judeia era realmente uma região muito problemática, que resistia encarniçadamente a assimilação da cultura greco-romana, mas era também uma região onde circulava dinheiro, muito dinheiro.
__ E o dinheiro, ás vezes, perde os homens...

Notas
(1) Após um começo auspicioso, Nero, alçado ao poder com apenas 16 anos, demonstrou proverbial incapacidade para se acercar de bons conselheiros, inclusive de diferenciar os bons dos maus, sem falar numa afetividade pervertida, que o induziu a uma relação doentia, supostamente incestuosa, com a sua mãe, a ambiciosa Agripina, e outras não menos tormentosas. A facilidade com que ele começou a se livrar dos seus desafetos, opositores e parentes – mandou matar a mãe e a sua primeira esposa – além de um início de séria crise econômica no início de 63, por causa das despesas excessivas na guerra contra os partos e dificuldade no abastecimento de trigo, que provocou uma alta nos preços – acabaram por desgastar muito a sua fama inicial frente ao povo romano.
(2) Existem coisas misteriosas nesse incêndio! Gente famosa e escritora, que estava viva durante o incêndio, não fazem menção a ele, como Sêneca, filósofo e valido de Nero, que estava em Roma, e já tinha caído em desgraça diante do imperador (aparentemente teria interesse em ligar Nero ao incêndio); o historiador Flávio Josefo, que vivia na Palestina, mas passou para Roma em 71; o filósofo grego Dion Crisóstomo, que estava em Roma no início dos 70; o historiador grego Plutarco, que esteve em Roma pessoalmente umas três vezes. Para eles, aparentemente, o incêndio fora sem importância, um dos muitos que já ocorrera em Roma, e que, provavelmente, ocorreria depois. Um escritor da época, Plinio o Velho, se refere a umas árvores de sua casa, como estando vivas “até o incêndio de Nero” (Wikipedia em italiano – Nerone), sem ficar claro que o incêndio foi “no tempo de Nero” ou “causado por Nero”.
Há uma tendência atual a dizer que Nero não teria sido o causador do incêndio, uma vez que seus acusadores usam como argumento para incêndio criminoso o fato de este, em alguns locais, avançar mesmo contra o vento, e se propagava muito fácil em grandes residências de feitas de tijolos ou pedras, que seriam naturalmente imunes ao fogo, enquanto pesquisas recentes mostram que em determinados ambientes as chamas podem avançar contra o vento e que a abertura superior, no pátio interno das grandes residências, poderia servir de caminho para cinzas incandescentes, sem falar do apoio que ele deu aos desabrigados, embora também se possa argumentar que a primeira justificativa apenas apresente outra possibilidade para o incêndio, sem eliminar a tradição da culpa de Nero, e a sua conduta posterior pode ter sido ditada pelo fato de: a) o incêndio, premeditado, saiu de controle; b) a reação do povo foi mais agressiva que o esperado. Na perspectiva tradicional da culpa de Nero, exposta por alguns escritores não contemporâneos ao evento, como Tácito (que lhe faz referência) e Suetonio (que a abraça), abraçada pelo povo, com o detalhe de que ele estaria compondo ou querendo aperfeiçoar uma ode ao incêndio de Troia, enquanto Roma ardia, é compatível com o que se sabe da sua extravagante propensão ao histrionismo, sem falar que ele se aproveitou de uma área enorme, daquela que foi consumida pelas chamas, para construir um palácio gi-gan-tes-co, de um luxo que não havia semelhante no Império, chamado de Domus Aurea (Casa Dourada). Dizem que ao ver concluída a sua nova moradia ele teria exclamado: “agora posso viver como um ser humano”. Nero mostra com isso que era um interessado nesse incêndio e que foi o seu principal beneficiário.
(3) Os autores que se referem a esse episódio como Suetônio, Tácito, Dion Cassio, afirmam que Nero teve participação direta na morte de Popeia, para o primeiro ele teria chutado a barriga dela e para os outros dois ele a teria machucado, por acidente, causando sua morte. Autores modernos preferem crer que ela morreu por meras complicações no parto, sem explicar porque os autores antigos mentiram quanto a isso, inclusive porque dois deles disseram que foi um acidente. O comportamento posterior de Nero, entretanto, aponta na direção de um excruciante sentimento de culpa e um mecanismo de negação. Como ele tinha um jovem escravo, Sporus, que, em sua paranoia começou a achar muito parecido com Popeia, Nero abandonou sua terceira e última mulher, e casou-se com aquele, fazendo-o vestir-se como mulher, tratando-o como se fosse Popeia.
(4) Essa conclusão de Jedin começa de uma maneira muito correta esvaziando uma postura que foi muito comum no século XIX e início do século XX, que os de minha geração experimentaram nos seus livros de catecismo e primeira comunhão (material pré-Vaticano II), sempre a mostrar os mártires cristãos e a Igreja como vítimas gratuitas do Estado romano, governado por monstros malvados em todos os aspectos e circunstâncias. O alcance das perseguições era invariavelmente universal, abarcava todo o Império, e não foi bem assim. Entretanto o autor se equivoca, e muito ao atribuir a pretensão à verdade absoluta da fé cristã, de sorte que quem é cristão não pode ser também politeísta, a primeira causa das perseguições, antes ainda do século II, pelas seguintes razões:
a) Supõe que a população do Império, ou mesmo de Roma, estava muito inteirada do que era o cristianismo e as consequências do seu crescimento, mais ou menos como nós, que recebemos abundantes análise sobre qualquer assunto através dos meios de comunicação de massa. Isso não existia! Mesmo os homens mais cultos de Roma, cinquenta anos após a primeira perseguição, ainda eram incapazes de separar os cristãos dos judeus ou de terem uma ideia minimamente razoável do que era o cristianismo. A afirmação de que eles praticavam “abominações” mostram, pelo desdobramento dos textos e das ações das autoridades, que tinham um sentido puramente moral, “eles praticam o mal”, e não filosófico-teológico, “eles não admitem os nossos deuses”, são “ateus”. Isso só aparecia de forma secundária.
b) Outra prova da insuficiência dessa afirmação foi o tratamento tolerante dado aos judeus que, assim como os cristãos, tinham pretensão à verdade absoluta – não dava para ser judeu e politeísta ao mesmo tempo – e que, apesar de eles serem muito mais enfáticos e agressivos que os cristãos na defesa desse absoluto (legiões inteiras foram exterminadas nos levantes judaicos), nada mudou, até o decreto de Adriano em 135. Nunca, mesmo depois dos sangrentos levantes de 66-71, 115 e 133-135, os judeus padeceram de uma perseguição semelhante às várias que os cristãos padeceram sob o Império, seja na violência seja na gravidade das acusações. Contra os cristãos o que houve foram tentativas de extermínio, por delito de opinião.
c) A pretensa tolerância dos politeístas era fruto da percepção do homem antigo que imaginava o raio de ação da divindade favorita de sua comunidade circunscrita aos limites de sua cidade. Se assim era, o que importava o deus ou deuses de outra cidade? Essa era a essência ideológica da cidade-estado antiga, que estava se tornando incompatível com o nível interdependência a que estavam chegando as diversas e longínquas regiões agregadas ao império romano. Era necessária uma crença comum básica, da mesma forma que hoje se impõe a aceitação do sistema republicano e do regime democrático em muitos países do mundo – não é o medo de ver essas verdades “absolutas” (a democracia é absolutamente infensa à ditadura) fragilizadas que faz com quem os povos europeus resistam à entrada em massa de imigrantes vindas de áreas onde o conceito de república ou democracia são diferentes ou inexistem? Mais cedo ou mais tarde o culto imperial tentaria se impor como “absoluto”, inclusive por uma necessidade estrutural do império, e ele marchava para isso, quando se defrontou com o absoluto do cristianismo... e perdeu.
Quando se compara a “tolerância” do politeísmo, com a “intolerância” do cristianismo, principalmente quando se assume a defesa de uma corrente que excedeu à cristã na defesa de seu absoluto (Feldman; 2008), sem considerar a evolução histórica da comunidade antiga, comete-se erro de anacronismo, de parcialidade e, na pior das hipóteses, de hipocrisia ou de vitimosidade estéril.

Bibliografia
Bíblia de Jerusalém; 3ª impressão; Paulus; São Paulo; 2004
Bíblia Sagrada; 144ª edição; Ave-Maria; São Paulo; 2001
Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho; Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Feldman, Sergio A.; Entre o Imperium e a Ecclesia: os judeus no Baixo Império; Anais di XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão; ANPUH/SP-USP; São Paulo; 8-12 de setembro de 2008  
Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes; Petrópolis; 1987.
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966; (online)
Jewish Encyclopedia; 1906 - www.jewishencyclopedia.com
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)

Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário