MALINCHE OU A SÍNDROME DA ÍNDIA COLABORACIONISTA
Prof Eduardo Simões
Prof Eduardo Simões
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Um dos personagens mais controvertidos da história do México foi a índia mexica,
ou asteca, Malinalli Tenépatl, ou Malintzi ou ainda Malinche, que desempenhou
um papel fundamental para a conquista espanhola da área geográfica dominada por
seus antepassados. Sua história é uma grande tragédia, aliás, uma típica
tragédia latino-americana.
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Primogênita de uma família nobre mexica, Malinche, ainda adolescente, vê seu
mundo “cair” com a morte de seu pai. Sua mãe casou-se novamente e teve um filho
homem, cujos direitos de herança, conforme os costumes mexicas, se encontravam
ameaçados pela presença da irmã mais velha. Dizem os relatos que a mãe,
preocupada com o desfecho de sua herança, resolveu vendê-la a um grupo de
mercadores de escravos da cidade de Xicalango, e considerá-la oficialmente
morta. Esses mercadores, por sua vez, a cederam ao cacique Tabscoob, de
Tabasco, uma comunidade de fala maia-iucateca, a guisa de tributo.
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No seu cativeiro, a escrava adolescente mostrou rara habilidade para aprender
língua, e rapidamente dominou o idioma de seu dono, enquanto era preparada,
junto com outras índias na sua situação, para ser uma espécie de cortesã, uma amante,
à disposição de seu amo ou de quem seu amo quisesse agradar. Essa oportunidade
aconteceu quando o cacique de Tabasco, após ser derrotado na batalha de Centla
(14/03/1519), ofereceu-a, com outras dezenove índias ao chefe dos “bárbaros”
recém-chegados, Hernan Cortez, para o seu regalo e o de seus homens.
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A chegada daquelas mulheres era fundamental, para Cortez estabelecer laços com
as tribos locais, ajudado pelo fato de a sua expedição ser exclusivamente masculina, e,
depois de batizadas, foram entregues como esposas a alguns de seus soldados:
Malinche, então com 17/18 anos, recebeu o nome de Marina, e foi dada como
esposa a um de seus mais leais seguidores: Alonso Hernandez Portocarrero. Um
casamento breve, pois em abril daquele ano, Alonso foi mandado em uma missão à
Espanha, de onde nunca voltou, morrendo na prisão quatro anos depois. Nesse
meio tempo ela chamou a atenção de Cortez, pela rapidez aprendera o espanhol.
Agora ele tinha uma intérprete eficiente, confiável, que conhecia tudo sobre a
cultura local, para lidar com os índios – havia outro intérprete especializado
na língua maia, o náufrago espanhol Jeronimo de Aguillar, adicionado à
expedição logo depois do desembarque.
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Foi Marina quem intermediou todos os encontros entre Cortez e o imperador
Montezuma, que era inacessível ao homem comum, mas logo demonstrou que suas
habilidades e o seu conhecimento a possibilitariam ser muito mais que uma
intérprete: ela foi uma conselheira valiosa, à disposição do espanhol,
orientando-o quanto a melhor forma de lidar com os inúmeros povos indígenas. O
papel dessa mulher foi tão importante que os espanhóis só a chamavam de Dona
Marina, como a uma senhora da nobreza, e um conquistador espanhol Rodriguez de
Ocaña dirá, que depois de Deus, é a Dona Marina que os espanhóis devem creditar
o sucesso da conquista.
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A morta-viva, a adolescente escrava treinada para ser prostituta de luxo, torna-se
amante do homem mais poderoso das Américas, com quem teve um filho, Martin
Cortez, chamado O Mestiço, entre 1523 e 1524, logo depois retirado dela e
enviado a um parente de Cortez para ser educado, e nunca mais verá a mãe.
Cortez nunca se casou com a Malinche-Marina – seus dois únicos casamentos foram
com damas espanholas, enquanto adestrava suas qualidades de conquistador em aventuras
extraconjugais, que lhe renderam onze filhos – mas usará de seus serviços até o
fim, como quando estourou uma revolta indígena em Honduras, entre 1524 e 1526,
data em que Malinche desaparece da história – Cortez que a obrigou a ser
cristã, não a tratou de uma forma cristã!
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Morta a pessoa nasce o mito. Ao longo do período colonial e início da história
independente do México, Marina era tratada ora como uma benfeitora, uma sábia
heroína, ora como o símbolo da mestiçagem hispano-americana, altamente
desejável. Porém, quando a república se consolida, e principalmente a partir do
governo de Benito Juarez (1858-1872), sua imagem vai se esmaecendo à medida que
se intensificam os sentimentos e as ações de ruptura de antigos laços que ainda
unem o México à Espanha. E a fama dela começa a ser obscurecida pelo fato de
ter tido tanta participação no sucesso dos espanhóis
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Com a chegada ao México das vertentes de pensamento dito de “esquerda”, como o
anarquismo e o marxismo, a repulsa a Malinche se torna avassaladora e
incondicional, inclusive ligado ao seu nome nasce um substantivo comum muito
pejorativo: o “malinchismo”, como um sentimento que é próprio de uma pessoa que
adere a uma cultura estrangeira, rejeitando a sua própria e a de seus
antepassados. Enfim, uma pessoa que se envergonha de sua própria cultura e vive
comparando-a, de forma depreciativa, com culturas estrangeiras, definidas a
priori e superficialmente como “melhores”; e no contexto da história de
Malinche a coisa foi mais longe ainda, sendo ela socialmente tratada como “La
Chingada”, que em bom português quer dizer “a pu..”, sendo inclusive associada ao
mito mexica da “Llorona”, a “Chorona”, um fantasma de mulher que, em determinadas
situações ou datas, aparece no meio da madrugada a chorar abundantemente os
filhos a quem, supostamente, teria morto afogados. Um pouco de tudo isso
aparece no trecho do mural do pintor mexicano Diego Rivera, onde ela, provocativamente, levanta o vestido, enquanto membros de seu povo, que a cercam,
lhe mostram os restos daqueles que tombaram vítimas da conquista espanhola.
Aqui ela é uma prostituta sanguinária.
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No início dos anos 1960, com o florescimento do movimento feminista, que foi
muito forte nos Estados Unidos e influenciou a cultura mexicana, algumas
pesquisadoras americanas e mexicanas começaram a se levantar contra esse
julgamento tão fácil, colocando argumentos que não podem ser ignorados, como...
a)
Quem foi rejeitada em primeiro lugar, a cultura mexica ou a índia Malinche,
vendida pela mãe e dada como morta? Quem traiu quem nessa história?
b)
Como mulher e escrava ela tinha outra opção? Não seria mais óbvio esperar que
os índios ficassem escandalizados se ela, sendo uma escrava, não servisse
fielmente o seu senhor?
c)
Ela é considerada como a traidora do seu povo, sua nação, seu país, sua pátria,
ou da sua cultura, enfim do México, etc., mas havia entre os astecas e as
outras populações ameríndias essa consciência? Não é verdade que esses
conceitos nasceram numa Europa burguesa, de maneira a criar dificuldades à
integração do estrangeiro, visto como um concorrente comercial? Dá para aplicar
esse conceito a uma cultura ameríndia do século XVI? Isso não seria um
grosseiro anacronismo?
d)
Nunca foi encontrado nenhum testemunho de índios mexicas ou de outros, em sua
época, condenando a sua atitude. Aqueles que a condenam nos dias de hoje não
são, em sua maioria, hispano-mexicanos e índios aculturados e seguidores de
ideologias europeias (positivismo, anarquismo, marxismo, etc.), não indígenas?
e)
Será que a presença de Marina, inclusive revelando os pontos mais sensíveis da
cultura dos povos indígenas, que os espanhóis poderiam explorar a seu favor,
principalmente nos momentos de paz ou na realização de acordos, não reduziu as
situações potencialmente críticas e estressantes que poderiam acarretar tanto
uma resistência maior, por parte dos índios, com mais ira dos espanhóis, o que
fatalmente acarretariam muito mais mortes e sofrimento?
f)
Não é notável que a condenação de Malinche, reproduza na história do México, um
padrão de análise, já observado na história da Espanha, que atribui os piores
desastres a ação de uma mulher, como foi o caso de Florinda “La Cava”, cujo
pai, inconformado pelo ultraje sofrido por Dona Florinda nas mãos do rei
Rodrigo, do qual ela não teve a menor culpa, convida os árabes para invadir a
Espanha, em 711, embora pelos costumes da época elas (Malinche e Florinda) não
passassem de peões no jogo de tabuleiro das grandes famílias, dominadas por
homens?
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A isso eu acrescentaria o seguinte: até que ponto ela podia prever que o início
daqueles contatos iria levar à hecatombe que se seguiu? Talvez nem Cortez
soubesse! Não é verdade que ele, no final, também foi uma vítima desse sistema
colonial, que ele ajudou a criar, mas que conhecia só de uma maneira muito
periférica, em vagos sonhos de riqueza, poder e mundo novo, como fazem todos os
seres humanos na sua adolescência? Não foi ele também instrumento de uma classe
poderosa e de uma corte a que não tinha livre acesso?
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Aos poucos, timidamente, os modernos pensadores mexicanos refazem esse erro
histórico e recuperam a imagem da Malinche, ao mesmo tempo em que recuperam a
própria identidade nacional híbrida, numa busca incessante por autoaceitação e por
vencer antigos sentimentos de inferioridade. Nesse novo contexto
Marina-Malinche se apresenta como uma mulher, tornada objeto, num mundo
dominado por homens ambiciosos e implacáveis, que teve se esforçar muito para
se tornar indispensável, e assim sobreviver. Por sinal, não é essa a obrigação
de quem quer se tornar adulto? Sua culpa foi ter sido muito competente nisso.
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