sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

MALINCHE OU A SÍNDROME DA ÍNDIA COLABORACIONISTA

Prof Eduardo Simões

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__ Um dos personagens mais controvertidos da história do México foi a índia mexica, ou asteca, Malinalli Tenépatl, ou Malintzi ou ainda Malinche, que desempenhou um papel fundamental para a conquista espanhola da área geográfica dominada por seus antepassados. Sua história é uma grande tragédia, aliás, uma típica tragédia latino-americana.
__ Primogênita de uma família nobre mexica, Malinche, ainda adolescente, vê seu mundo “cair” com a morte de seu pai. Sua mãe casou-se novamente e teve um filho homem, cujos direitos de herança, conforme os costumes mexicas, se encontravam ameaçados pela presença da irmã mais velha. Dizem os relatos que a mãe, preocupada com o desfecho de sua herança, resolveu vendê-la a um grupo de mercadores de escravos da cidade de Xicalango, e considerá-la oficialmente morta. Esses mercadores, por sua vez, a cederam ao cacique Tabscoob, de Tabasco, uma comunidade de fala maia-iucateca, a guisa de tributo.
__ No seu cativeiro, a escrava adolescente mostrou rara habilidade para aprender língua, e rapidamente dominou o idioma de seu dono, enquanto era preparada, junto com outras índias na sua situação, para ser uma espécie de cortesã, uma amante, à disposição de seu amo ou de quem seu amo quisesse agradar. Essa oportunidade aconteceu quando o cacique de Tabasco, após ser derrotado na batalha de Centla (14/03/1519), ofereceu-a, com outras dezenove índias ao chefe dos “bárbaros” recém-chegados, Hernan Cortez, para o seu regalo e o de seus homens.

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__ A chegada daquelas mulheres era fundamental, para Cortez estabelecer laços com as tribos locais, ajudado pelo fato de a  sua expedição ser exclusivamente masculina, e, depois de batizadas, foram entregues como esposas a alguns de seus soldados: Malinche, então com 17/18 anos, recebeu o nome de Marina, e foi dada como esposa a um de seus mais leais seguidores: Alonso Hernandez Portocarrero. Um casamento breve, pois em abril daquele ano, Alonso foi mandado em uma missão à Espanha, de onde nunca voltou, morrendo na prisão quatro anos depois. Nesse meio tempo ela chamou a atenção de Cortez, pela rapidez aprendera o espanhol. Agora ele tinha uma intérprete eficiente, confiável, que conhecia tudo sobre a cultura local, para lidar com os índios – havia outro intérprete especializado na língua maia, o náufrago espanhol Jeronimo de Aguillar, adicionado à expedição logo depois do desembarque.

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__ Foi Marina quem intermediou todos os encontros entre Cortez e o imperador Montezuma, que era inacessível ao homem comum, mas logo demonstrou que suas habilidades e o seu conhecimento a possibilitariam ser muito mais que uma intérprete: ela foi uma conselheira valiosa, à disposição do espanhol, orientando-o quanto a melhor forma de lidar com os inúmeros povos indígenas. O papel dessa mulher foi tão importante que os espanhóis só a chamavam de Dona Marina, como a uma senhora da nobreza, e um conquistador espanhol Rodriguez de Ocaña dirá, que depois de Deus, é a Dona Marina que os espanhóis devem creditar o sucesso da conquista.
__ A morta-viva, a adolescente escrava treinada para ser prostituta de luxo, torna-se amante do homem mais poderoso das Américas, com quem teve um filho, Martin Cortez, chamado O Mestiço, entre 1523 e 1524, logo depois retirado dela e enviado a um parente de Cortez para ser educado, e nunca mais verá a mãe. Cortez nunca se casou com a Malinche-Marina – seus dois únicos casamentos foram com damas espanholas, enquanto adestrava suas qualidades de conquistador em aventuras extraconjugais, que lhe renderam onze filhos – mas usará de seus serviços até o fim, como quando estourou uma revolta indígena em Honduras, entre 1524 e 1526, data em que Malinche desaparece da história – Cortez que a obrigou a ser cristã, não a tratou de uma forma cristã!
__ Morta a pessoa nasce o mito. Ao longo do período colonial e início da história independente do México, Marina era tratada ora como uma benfeitora, uma sábia heroína, ora como o símbolo da mestiçagem hispano-americana, altamente desejável. Porém, quando a república se consolida, e principalmente a partir do governo de Benito Juarez (1858-1872), sua imagem vai se esmaecendo à medida que se intensificam os sentimentos e as ações de ruptura de antigos laços que ainda unem o México à Espanha. E a fama dela começa a ser obscurecida pelo fato de ter tido tanta participação no sucesso dos espanhóis

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__ Com a chegada ao México das vertentes de pensamento dito de “esquerda”, como o anarquismo e o marxismo, a repulsa a Malinche se torna avassaladora e incondicional, inclusive ligado ao seu nome nasce um substantivo comum muito pejorativo: o “malinchismo”, como um sentimento que é próprio de uma pessoa que adere a uma cultura estrangeira, rejeitando a sua própria e a de seus antepassados. Enfim, uma pessoa que se envergonha de sua própria cultura e vive comparando-a, de forma depreciativa, com culturas estrangeiras, definidas a priori e superficialmente como “melhores”; e no contexto da história de Malinche a coisa foi mais longe ainda, sendo ela socialmente tratada como “La Chingada”, que em bom português quer dizer “a pu..”, sendo inclusive associada ao mito mexica da “Llorona”, a “Chorona”, um fantasma de mulher que, em determinadas situações ou datas, aparece no meio da madrugada a chorar abundantemente os filhos a quem, supostamente, teria morto afogados. Um pouco de tudo isso aparece no trecho do mural do pintor mexicano Diego Rivera, onde ela, provocativamente, levanta o vestido, enquanto membros de seu povo, que a cercam, lhe mostram os restos daqueles que tombaram vítimas da conquista espanhola. Aqui ela é uma prostituta sanguinária.
__ No início dos anos 1960, com o florescimento do movimento feminista, que foi muito forte nos Estados Unidos e influenciou a cultura mexicana, algumas pesquisadoras americanas e mexicanas começaram a se levantar contra esse julgamento tão fácil, colocando argumentos que não podem ser ignorados, como...
a) Quem foi rejeitada em primeiro lugar, a cultura mexica ou a índia Malinche, vendida pela mãe e dada como morta? Quem traiu quem nessa história?
b) Como mulher e escrava ela tinha outra opção? Não seria mais óbvio esperar que os índios ficassem escandalizados se ela, sendo uma escrava, não servisse fielmente o seu senhor?
c) Ela é considerada como a traidora do seu povo, sua nação, seu país, sua pátria, ou da sua cultura, enfim do México, etc., mas havia entre os astecas e as outras populações ameríndias essa consciência? Não é verdade que esses conceitos nasceram numa Europa burguesa, de maneira a criar dificuldades à integração do estrangeiro, visto como um concorrente comercial? Dá para aplicar esse conceito a uma cultura ameríndia do século XVI? Isso não seria um grosseiro anacronismo?
d) Nunca foi encontrado nenhum testemunho de índios mexicas ou de outros, em sua época, condenando a sua atitude. Aqueles que a condenam nos dias de hoje não são, em sua maioria, hispano-mexicanos e índios aculturados e seguidores de ideologias europeias (positivismo, anarquismo, marxismo, etc.), não indígenas?
e) Será que a presença de Marina, inclusive revelando os pontos mais sensíveis da cultura dos povos indígenas, que os espanhóis poderiam explorar a seu favor, principalmente nos momentos de paz ou na realização de acordos, não reduziu as situações potencialmente críticas e estressantes que poderiam acarretar tanto uma resistência maior, por parte dos índios, com mais ira dos espanhóis, o que fatalmente acarretariam muito mais mortes e sofrimento?
f) Não é notável que a condenação de Malinche, reproduza na história do México, um padrão de análise, já observado na história da Espanha, que atribui os piores desastres a ação de uma mulher, como foi o caso de Florinda “La Cava”, cujo pai, inconformado pelo ultraje sofrido por Dona Florinda nas mãos do rei Rodrigo, do qual ela não teve a menor culpa, convida os árabes para invadir a Espanha, em 711, embora pelos costumes da época elas (Malinche e Florinda) não passassem de peões no jogo de tabuleiro das grandes famílias, dominadas por homens? 
__ A isso eu acrescentaria o seguinte: até que ponto ela podia prever que o início daqueles contatos iria levar à hecatombe que se seguiu? Talvez nem Cortez soubesse! Não é verdade que ele, no final, também foi uma vítima desse sistema colonial, que ele ajudou a criar, mas que conhecia só de uma maneira muito periférica, em vagos sonhos de riqueza, poder e mundo novo, como fazem todos os seres humanos na sua adolescência? Não foi ele também instrumento de uma classe poderosa e de uma corte a que não tinha livre acesso?

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__ Aos poucos, timidamente, os modernos pensadores mexicanos refazem esse erro histórico e recuperam a imagem da Malinche, ao mesmo tempo em que recuperam a própria identidade nacional híbrida, numa busca incessante por autoaceitação e por vencer antigos sentimentos de inferioridade. Nesse novo contexto Marina-Malinche se apresenta como uma mulher, tornada objeto, num mundo dominado por homens ambiciosos e implacáveis, que teve se esforçar muito para se tornar indispensável, e assim sobreviver. Por sinal, não é essa a obrigação de quem quer se tornar adulto? Sua culpa foi ter sido muito competente nisso. 

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