POCAHONTAS
OU O RISCO DE SER DIFERENTE
Prof
Eduardo Simões
Obrigado
aos amigos de Brasil, Estados Unidos, Canadá e Alemanha. Que este blog vos seja
útil. Deus os abençoe.
Novo verbete: Pilar de Déli - Tecno
Roza Shanina - Contemporânea
Novo verbete: Pilar de Déli - Tecno
Roza Shanina - Contemporânea
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http://www.richmond.com/
“A
índia mattaponi [da antiga federação dos powhatans], “Estrela da Manhã de Outono”, da Virgínia, olha para a estátua
de Pocahontas, no pátio da igreja de São Jorge, em Gravesend, na Inglaterra,
durante a cerimônia de boas-vindas do Comitê Britânico Jamestown 2007, em 14 de
julho de 2006. Nativos americanos estão visitando a Inglaterra para marcar o
400º aniversário de fundação da primeira colônia de falantes de língua inglesa,
na América do Norte, em Jamestown” (Richmond Times-Dispatch – tradução livre)
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Pocahontas nasceu na aldeia de Werowocomoco (o “w” tem som de “u”), da tribo Pamunkei,
filha do chefe supremo (mamanatowick), Wahunsenacawh Powhatan, chamado pelos
ingleses de “Rei Powhatan” (King Powhatan), líder de uma confederação de uns 20
povos de fala algonquina, que existia entre os rios James e Potomac. Essa
confederação se chamava, na língua nativa, Tsenacommacah. Esta era a
“nacionalidade” de Pocahontas. Sua mãe foi Winaguske Powhatan, umas das muitas
mulheres de Powhatan, oriunda de uma tribo vassala, e ofertada a ele pelo sistema
do cunhadismo, também muito praticado pelos índios do Brasil e da América Espanhola.
Ela, após o nascimento de Pocahontas, foi mandada de volta para a sua aldeia,
sendo aí sustentada por Powhatan até conseguir outro marido.
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Pocahontas, como é costume também entre os índios do Brasil, recebeu vários
nomes, para evitar feitiçaria e ataque de maus espíritos. O mais solene, e
conhecido por poucos, era Matoaka, que significa “riacho brilhante entre as
colinas”, Amonute, de significado desconhecido, ficando, porém, famosa pelo
nome de Pocahontas, adquirido quando já era criança, que em sua língua
significa “menina travessa”, por causa de seu espírito irrequieto e brincalhão.
Possuía, enfim, uma inteligência muito aguda e perspicaz, pronta a causar
problemas em qualquer sistema estabelecido... e causou!
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em 1607 ela foi atraída pela chegada de uma gente nunca vista, nas terras de seu
povo, e mais ainda pelo exemplar de cabelos ruivos e olhos claros, que seu pai
capturou numa de suas incursões. O capitão John Smith. Aqui a história ganha
contornos indefinidos: segundo o livro que Smith escreveu, no qual foram
encontradas várias imprecisões e exageros, típicos de quem está interessado em
agradar mais aos leitores que à Verdade, ele narra que foi salvo da morte pela
iniciativa de Pocahontas, que teria se colocado entre ele e o carrasco.
Críticos modernos questionam afirmando que:
a)
Isso não seria possível porque Pocahontas teria na ocasião apenas uns doze anos.
b)
Ele pode ter confundido um ritual incruento de incorporação à tribo, por meio
da execução simbólica do estrangeiro, do qual renasceria como membro da tribo.
A própria intervenção de Pocahontas podia fazer parte desse rito.
http://www.indianz.com/News/2015/07/01/kevinbrown.jpg
http://www.indianz.com/
O
atual “Rei Powhatan”: Kevin Brown, ao centro, com as mãos no bolso, é abençoado
pelo toque de tambores cerimoniais, de um índio das planícies, com seu vistoso
cocar, e outro, aparentemente um seminole, muito colorido, do sul dos EUA, numa
demonstração em frente ao prédio do Capitólio, o Congresso americano, em sua
luta pelo reconhecimento federal da tribo Pamunkei, o que aconteceu no início
de julho de 2015, tornando-se a 567ª tribo reconhecida pelo governo do país. É o
renascimento oficial do povo de Pocahontas.
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Seja como for daí nasceu a ideia de um romance entre eles, rebatida pelos
moralistas neoamericanos, devido ao fato de Pocahontas ser tão jovem, enquanto
ele beirava os 38 anos, mas sem considerar que naquele tempo as jovens se
casavam muito cedo, mesmo na adolescência, tanto entre os americanos como entre
os europeus. Depois que Smith voltou para o forte James, um forte que os
colonos ergueram ali perto, ela, e várias crianças, levavam continuamente
alimentos para os estranhos, que estavam a passar fome. No ano seguinte ela
avisa a Smith de uma armadilha que seu pai estava preparando para pegá-lo.
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Em 1609, Smith se fere numa explosão de pólvora, e precisa voltar para a
Inglaterra em tratamento, mas o que os ingleses dizem para Pocahontas é que ele
fora capturado por piratas e que morrera! Por que essa mentira, se não havia
nada entre ele e Pocahontas? Depois dessa notícia ela nunca mais vai ao forte e
se miúda para outra aldeia da confederação, mais distante.
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Em março de 1613, quando as relações entre os índios e os colonos ingleses se
deterioraram, ela foi sequestrada por uma patrulha dos colonos, para ser usada
como moeda de troca por outros colonos sequestrados pelos índios, nesse período
ela morou noutro assentamento colonial chamado Henricus, atual Chesterfield,
próximo a ao assentamento de Jamestown, que crescera ao redor do forte James. Nesse
período, segundo uma tradição muito contestada, seu primeiro marido, o índio
powhatan Cocoum, foi morto num confronto com os ingleses, talvez por causa dela
– na verdade, segundo os costumes powhatans, quando uma mulher casada é
capturada, o casamento cessa imediatamente, o que desobriga o marido a se
arriscar numa briga por ela...
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No dia aprazado para a troca dos prisioneiros, entretanto, o Rei Powhatan
recusou o acordo, achando que os colonos haviam acrescentado poucas armas e
utensílios, além de sua filha, para a realização do acordo, seguindo-se então
um longo impasse. Nesse meio tempo ela, sob a orientação do ministro anglicano
Alexander Withaker, se converte ao cristianismo e é batizada, com o nome de
Rebeca. Em março de 1614, é levada a um encontro de chefes powhatans, e,
dirigindo-se ao pai, recrimina-o por dar mais valor a espadas, moedas e
machados velhos que a ela, e por causa disso rompe com o seu povo e vai morar
com os ingleses – no cativeiro, Pocahontas tivera a oportunidade de conhecer os
valores e o poderio dos recém-chegados, e optou claramente por estes, em
detrimento do de seus antepassados, que, naquele contexto, apresentaram uma
grande fragilidade. Não dá para dizer que ela foi tola, oportunista, não existe
isso de “história das intenções”, senão como anti-história, como um anacronismo
vil. Foi uma escolha pessoal, ditada por razões de sobrevivência, num contexto
que ainda não atingira o nível de degradação do começo do século XX, por
exemplo, quando, nessa região, negros e índios serão vítimas de formas cruéis de
racismo.
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De volta a Henricus, ela conhece um viúvo, John Rolfe, que perdera recentemente
esposa e filha, e que se apaixona fortemente por ela, conforme expressa numa carta
endereçada ao governador, pedindo licença para se casar com ela. O casório acontece
em 5 de abril de 1614, e, em 30 de janeiro de 1615, nasce o único filho do
casal, Thomas Rolfe.
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Em termos econômicos, Rebeca-Pocahontas também acerta. Rolfe, de posse de umas
sementes de tabaco espanhol, desenvolvera uma espécie de tabaco mais doce, com
mais aceitação no mercado europeu, que o tabaco original da Vírgínia, muito
ácido, e em pouco tempo se tornou um próspero plantador e exportador de tabaco.
Graças à cultura desse tabaco, que existe até hoje, ficou viabilizada
economicamente a colonização inglesa dessa região, e mais, como era previsto na
mentalidade cunhadista dos indígenas americanos, com o casamento tem início,
repentino, um período de paz na tensa relação índios-colonos. A chamada Paz de
Pocahontas.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/e/ef/Pocahontas_by_Unknown%2C_after_the_1616_engraving_by_Simon_van_de_Passe.jpg/500px-Pocahontas_by_Unknown%2C_after_the_1616_engraving_by_Simon_van_de_Passe.jpg
Wikipedia
Retrato
feito de acordo com o original de Simon van de Passe, criado em dezembro de
1616, e único retrato feito em vida de Pocahontas.
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Em 1616, a família parte para a Inglaterra, para propagandear as maravilhas da
colonização da América, ainda vista com desconfiança por muitos. Ao chegar lá,
em 12 de junho, Rebeca tem uma surpresa: John Smith está vivo, e ganhando
dinheiro à suas custas; ele, inclusive, tomou a iniciativa de escrever à rainha
Anne, pedindo-lhe que Rebeca seja recebida da melhor forma possível, como se
fora a filha de um rei. E ela foi recebida pelo rei e a rainha, em janeiro de
1717, para assistir a uma mascarada do grande dramaturgo inglês Ben Johnson. A
corte usou de grande deferência para com ela, mas não foi tratada como uma
princesa, antes como uma espécie de animal raro que suscita curiosidade. Foram
então morar no subúrbio de Brentford, próximo a Londres.
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A estreiteza mental de Rolfe era incapaz de perceber que a Inglaterra, que ele
tanto apreciava, não era um ambiente adequado para a sua esposa, criada nos
grandes espaços naturais da América e numa cultura tão diferente. Em Brentford
ela recebe uma visita inesperada: John Smith. Segundo ele, foi uma visita
tensa, confusa e muito formal, com direito a um intervalo de duas a três horas,
logo após o cumprimento inicial, quando ela se mostrou visivelmente contrariada,
e se retirou... Durante o resto da conversa, um tanto estranha e repleta de
palavras subtendidas, ela fez questão de chamá-lo de “pai”, apesar dos
protestos dele. A entrevista terminará com ela citando uma frase que já ouvira
na América: “seus compatriotas mentem muito”.
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Em março de 1617 ele embarca com a família de volta para a América, mas é
obrigada a desembarcar, em Gravesend, às margens do rio Tâmisa, acometida por
uma febre misteriosa, de fundo aparentemente psicológico – a visita de Smith
abrira velhas feridas? Ao conhecer melhor os ingleses arrependeu-se da escolha
que fizera? – mas que alguns alegam ter sido causada pelo ambiente poluído,
úmido e muito frio da Inglaterra, onde ela teria contraído uma tuberculose ou
uma pneumonia. Seja como for, suas últimas palavras serão as mesmas repetidas
por muitos índios, durante os massacres que seus povos sofreram ao longo do
século XVIII e XIX: “todo mundo deve morrer, basta que meu filho sobreviva”. Ela
foi enterrada em Gravesend, em 21 de março, mas seu túmulo atualmente está
perdido. Com a sua morte acaba também, na América, a Paz de Pocahontas, e a
guerra recomeça.
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Seu último desejo foi satisfeito. Seu filho sobreviveu e, por meio dele os seus
genes se espalharam por várias e muito importantes famílias do leste dos
Estados Unidos, que ainda prezam muito serem descendentes dela. Vários entre
eles alcançaram uma grande importância na história dos Estados Unidos e até do
mundo, como o advogado e político, George Wythe Randolph (1818-1867),
Secretário de Estado dos Estados Confederados, na Guerra Civil; o astrônomo
Percival Lowell (1855-1916), um dos que ajudou a descobrir o planeta Plutão; o
almirante Richard Byrd Jr (1888-1857), o pioneiro da navegação aérea dos polos;
as primeiras damas Edith Wilson (1913-1921) e Nancy Reagan (1981-1989); etc.
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A mulher anglo-americana, assim como a latino-americana, pode até ser submissa,
pode até reconhecer tacitamente a governadoria dos homens, mas foi
culturalmente mais estimulada a ter mais iniciativa social, e nisso difere
ainda um pouco de suas congêneres latinas, mas “recatadas” ou “intimidadas”, e
por isso nunca prosperou qualquer inciativa de tentar jogar sobre Pocahontas a
pecha de traidora de seu povo e colaboracionista do sistema colonial. Ela
apenas foi uma mulher que fez uma opção. Por acaso as mulheres não têm esse
direito? Afinal o seu povo não se via ainda como uma unidade político-nacional
“moderna”, dessas que arrastam o mundo inteiro a guerras pelos interesses de
poucos.
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Ela negou o seu povo? Sim, e de uma maneira muito mais radical que Malinche.
Mas enquanto a memória desta foi linchada, por não ter tomado o lado “certo”,
por não ter pensado como um intelectual marxista do século XX ou por não ter
adivinhado o caminho que tomaria a conquista espanhola, Pocahonta, foi aceita
na sua condição socialmente precária de mulher da sua cultura e na sua época, e
respeitada por sua decisão pessoal, que ela tinha direito, direito esse
reconhecido, em primeiro lugar, pelo seu próprio povo. Por que não tirar
partido disso, em nome da unidade nacional, ao invés de ficar abrindo
cicatrizes do passado, criando barreiras e ressentimentos entre povos que, quer
queiram quer não, têm que viver juntos?
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http://videos.disney.com.br/
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O mito é uma fermenta inteligente e legítima para mobilizar um povo em torno de
objetivos nacionais; quando se tem um! Só um povo muito debochado e sem juízo
negaria ou esqueceria seus mitos nacionais, a pretexto de estar “ocupado na
luta pela sobrevivência” ou construindo uma história exclusivamente
“científica”. Essas duas expressões sociais, a história com pretensões à
ciência e o mito, podem e devem conviver. Aliás, eliminem-se os mitos de uma
sociedade e a única coisa que sobrará serão as declarações pomposas, mentiras
públicas e promessas continuamente quebradas, práticas em que nossos políticos
são mestres, por não haver a trava do mito nacional a lhes dizer: “daqui você
não passa”. Os anglo-americanos e a Disney nos dão uma lição nesse sentido,
idealizando ainda mais a história-mito de Pocahonta, em primoroso desenho
animado, com uma música belíssima, lançado em 1995, após o roteiro ter passado
pelo crivo de uma comissão indígena. E assim, graças ao sucesso dessa produção,
um mito tipicamente americano se transforma em um mito mundial, reforçando a
presença da cultura americana, e ainda canaliza para eles um “rio” de dinheiro
– uma bilheteria de quase 350 milhões de dólares para um orçamento de 55
milhões! Talvez exista uma forma “desenvolvida” de lidar com a história e os
mitos dela decorrentes.
Contraponto
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A
Pocahontas do século XXI. Segundo a edição online do Richmond Times-Dispatch,
essa menina seria Jayne Cecil, de 6 anos, membro da tribo Mattaponi, uma das
mais importantes da antiga confederação Powhatan, presente na entrega do 336º
tributo anual das tribos Pamunkei e Mattaponi ao governador da Virgínia, em
novembro de 2013. O tributo é um cervo caçado nas florestas do estado. Da mesma
forma que os brancos enculturam os índios, os índios podem enculturar os
brancos, desde que haja diálogo entre as comunidades.
http://www.mcclatchydc.com/news/politics-government/white-house/x894r1/picture26818234/ALTERNATES/FREE_960/obamatribe
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Anos atrás, menos de dez, um repórter foi entrevistar
o cacique Raoni – o cacique xavante Raoni foi um símbolo de coragem e dignidade para a
minha geração, para os que conhecem a história recente do Brasil – e
perguntou-lhe como receberia os brancos que fossem até ele. O cacique
respondeu: “Branco fica para lá, e índio fica para cá, não deve misturar. Branco e índio têm que ficar separados. Se
branco vier para terra de índio vai ter guerra”, frisando bem, por diversas
vezes, as palavras “separados” e “guerra”. Uma
matéria jornalística, de dezembro de 2015, aponta que índios da etnia Enawenê-nawê, no Mato Grosso, estavam cobrando um pedágio de 50 reais, pela passagem numa estrada de terra, sem qualquer serviço de apoio! Nos estados
Unidos é comum as diversas tribos e povos fazerem festivais, onde apresentam
sua cultura, especialmente para não índios, atraídos com muita propaganda.
Nesses festivais há números de dança, jogos, etc. além da venda de artesanato,
livros sobre a sua cultura, workshops, onde se ensina àqueles como é a vida na
aldeia, etc. E assim vão ganhando mais gente para a luta por sua cultura, além
de tornar vários brancos membros honorários ou permanentes, como deve ser o
caso do engravato da foto, com um vistoso cocar. Gente famosa, como o
presidente da república, comparecem a esse eventos dando-lhes ainda mais
visibilidade. Talvez exista uma forma desenvolvida de lidar com a questão indígena
americana, que não passa pelo que nós já fizemos até hoje ou estamos fazendo.
__ Vamos pensar mais sobre
isso?
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