quinta-feira, 30 de junho de 2016

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Artigo sobre Paulo Freire é alterado por rede do governo federal e critica pedagogo

Leandro Melito | Portal EBC | São Paulo - 29/06/2016 - 16h59
A edição incluiu no texto parágrafos que atribuem ao educador a origem de “doutrinação marxista” no Brasil
  

Um grupo que monitora alterações feitas em páginas da Wikipedia a partir de redes governamentais identificou edições e alterações no artigo sobre o educador Paulo Freire na Wikipedia realizadas na tarde de ontem (28/6) a partir de da rede do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados).

'Paulo Freire' editada a partir da rede do Serpro (@SERPRO) -https://pt.wikipedia.org/w/index.php?diff=46027321&oldid=45890921&rcid=67177898 …
1:51 PM - 28 Jun 2016

O Serpro, empresa de TI do governo federal, administra a rede que provê acesso à internet em instalações do Serpro e também para órgãos públicos em todo o país. Em nota a instituição afirma que a alteração não partiu de suas instalações mas de um órgão público federal que não pode ser divulgado por questões contratuais.
"A alteração realizada não partiu das instalações do Serpro, mas, sim, de um órgão público, cujo acesso à internet é administrado pela empresa. Entretanto, o Serpro não está autorizado, por questões contratuais, a divulgar informações de acesso de seus clientes à rede", diz a nota.
A edição incluiu no texto parágrafos que atribuem a Freire a origem de “doutrinação marxista” nas escolas e universidades e diz que o educador participou da última grande reforma da legislação educacional que resultou em uma educação "atrasada, doutrinária e fraca". 
Os parágrafos inseridos no artigo foram retirados de um texto publicado no site do Instituto Liberal com o título “Paulo Freire e o Assassinato do Conhecimento” e assinado por um integrante da rede Estudantes Pela Liberdade e do Movimento Universidade Livre. Os "ataques" aos ideais de Paulo Freire têm sido comuns nos recentes debates do movimento "Escola sem Partido" que questiona as diretrizes curriculares e o debate político dentro das instituições de ensino, acusadas de
“Aí está uma das origens da nossa já conhecida doutrinação marxista nas escolas e universidades, que em vez de formar cidadãos e profissionais para o crescimento do país, forma soldados dispostos a defender com unhas e dentes o marxismo no meio acadêmico”, diz o trecho de um dos parágrafos inseridos no artigo.

MINHA OPINIÃO

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos de Brasil, França, EUA, Alemanha, Portugal, China e Romênia. Deus os abençoe.

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__ Sou professor, sou liberal e sou piagetiano, mas não consigo imaginar, senão como uma aberração, um professor use de seu saber e da sua posição em sala de aula para “doutrinar” um aluno; um liberal, que apoie e conviva com uma ditadura militar, como houve no Brasil; e uma pessoa minimamente inteligente e informada que acolha a ideia de que Paulo Freira seja o responsável pelas mazelas de nossa educação, e menos ainda que possa ser qualificado como “assassino do conhecimento”, como o disse, açodadamente, um audacioso jovem dos movimentos citados na matéria, como é típico só dessa fase da vida, ou deveria sê-lo.
__ É verdade que Paulo Freire é um tanto, e eu não temeria dizê-lo: demasiado, etéreo, repetitivo, nebuloso, muito especulativo, na forma de desenvolver as suas ideias, mas negar que essas ideias tenham valor, e que, adequadamente valoradas, constituam um tesouro da educação e do pensamento brasileiro é muito estreito, e quase antiliberal; e falo assim porque, no meu entendimento, a essência do pensamento político liberal é a liberdade de expressão e em especial, dentro desta, a liberdade de crítica; e essa liberdade de expressão e crítica só existe de fato no momento em que é exercida. E foi isso que Paulo Freire o fez, chamando a atenção para a situação dos estratos mais pobres e injustificadamente vulneráveis da nação.
__ “Mas o fez a partir de uma equivocada ótica marxista!” Concordo, mas se ele, e muitos outros, adotaram essa vertente de análise não seria também correto notar que a justificativa para isso encontra na ausência dessa saudável preocupação no campo oposto? A maior parte, a maioria esmagadora, dos liberais brasileiros conviveu tranquilamente com a escravidão africana, e a ela se apegou até o extremo de se fazer queimar pilhas de documentos históricos, para que o afã pecuniário dos liberais não dificultasse ainda mais a recuperação financeira do país e a integração de ex-escravos, que seriam responsabilizados pelo agravamento da situação econômica da República, devido ao pagamento das indenizações requeridas por aqueles... “liberais”. O liberalismo em nossa terra não nasce da luta pela liberdade política, pela valorização do trabalho e contra as tiranias, mas da defesa da propriedade de quem já as tinha de sobra, e que não se pejava de requerer propriedade sobre outros seres humanos.
__ A ideologização dentro das escolas é um mal? É. Paulo Freire é o responsável por isso? Não. Creio que ele foi e é usado por pessoas que não têm a capacidade de entender o alcance de suas ideias, a esquerda podre, retrógrada, brasileira, da mesma forma que bárbaros escravocratas, no Brasil, se apoderaram de ideias liberais para defender a posse de escravos, e os liberais portugueses, de 1820, para exigir a recolonização do Brasil.
__ Muito pior, para a educação, que uma ideologia que mostra a cada dia a sua fragilidade diante dos desafios contemporâneos, defendida por um grupo cambaleia de podre, defendido por oligarquias sindicais e militantes profissionais, cujo único argumento diante das graves acusações que se lhes assacam é o aumento volume de voz, denunciando o seu conhecimento e consentimento nos crimes imputados, é a visão compartilhada tanto pela “direita” como pela “esquerda”, por “liberais” e por “socialistas”, por “especialistas” e “leigos”, de que não existe uma natureza humana e de que a personalidade e o caráter de cada um, para não dizer até as variações comportamentais ligadas ao sexo, são historicamente definidas e aprendidas da vida em sociedade, acentuando o ponto de encontro entre o axioma clássico do conceito marxista de ideologia e das práticas políticas ocultas dos liberais brasileiros: “não existe ideologia neutra!” e “tudo é política!”, o que justificaria a ideologização de menores por um lado e o uso da força contra a livres manifestação de discordância, como é tradição na nossa história.
__ O resultado disso é a eliminação da psicologia, no trato com os educandos, e do conceito de “indivíduo”, na política, o que justificaria, em nome do bem coletivo, injustiças graves cometidas contra uns e outros, em nome do bem comum. É a mentalidade do formigueiro. Nossos liberais, que por séculos ignoraram os direitos mais básicos de grande massa da população, agora investem pesado em educação, mas não para promover uma melhoria geral da sociedade, consciência social cidadã (o indivíduo, com necessidades específicas, como membro consciente e compromissado de uma comunidade), mas para torná-lo uma máquina de trabalhar, conforme nos mostra claramente a obsessão do governo de São Paulo com a melhora de desempenho em provas e testes contínuos, e no seu mais novo projeto: a escola de tempo integral, que isolará definitivamente a criança de seu mundo familiar social, indispensável para a sua maturação afetiva, cuja segurança e prosperidade é dever o obrigação do Estado.
__ Essa escola, supostamente neutra, transforma o ser humano, desde a mais tenra infância, numa máquina de trabalho, e para isso dar certo, o governo lotou o tempo livre dos professores no estudo e aprimoramento de mecanismos de controle, como se estivesse a transformar a educação numa ciência exata, e como se isso fosse possível. A escola de tempo integral tem uma ideologia clara: o behaviorismo americano do início do século XX, que, transformava seres humanos em extensões de bestas, de ratos de laboratório, controlados por difusos ideais de democracia e identidade americana, que colava nos que pensavam diferente, marxistas, socialistas, rooseveltianos, intelectuais, a etiqueta de “antiamericano”, como se só houvesse uma forma, uma maneira, de se ser um autêntico americano; era a versão totalitária do liberalismo estadounidense. A criança paulista, hoje, é tratada como uma “tábula rasa”, sem sentimentos nem ideais, uma máquina de trabalho, como o eram os antigos escravos, e os professores, no seu frenesi de avaliações, em feitores capazes de garantir, com 100% de acerto, que os escravos serão exatamente aquilo que os senhores esperam deles.
__ Paremos, pois, de combater fantasmas, e nos concentremos no que é essencial e mais benéfico para as crianças, e não duvidem que nesta luta teremos que enfrentar tanto a esquerda como a direita, tanto os “liberais” como os marxistas.

__ Mas a causa é ótima! 

sábado, 25 de junho de 2016

AGORA BRIGUEM ENTRE SI!

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__ Nenhum homem é uma ilha, exceto os ingleses ou, pelo menos, a maioria deles; e o irônico é que o autor dessa frase, fortemente desmentida pelos adeptos do Brexit, em nome da mais genuína herança inglesa, seja o poeta elisabetano John Donne.
__ Os ingleses deixaram a Europa em nome de sua autonomia, de sua tradição, de seu conforto, e, para espanto da esquerda ingênua, a grande massa dos votos veio justamente da zona rural e dos extratos mais pobres da população, reconhecidos por qualquer um que não seja marxista, como foco histórico de conservadorismo, desde que os camponeses no antigo império romano resistiram tão fortemente às mudanças trazidas pelo cristianismo, que o nome em latim de sua função, paganus, tornou-se sinônimo do mundo ultrapassado pela nova religião.
__ Deixando isso de lado, e olhando para a evolução histórica da nação inglesa, havemos de convir que ela sempre se colocou contra qualquer iniciativa de união europeia, desde que aparece nos registros históricos conhecidos, como quando forneceu todo tipo de ajuda e abrigo aos combatentes tribais belgas do continente, que resistiam fortemente ao pan-europeísmo do Império Romano, embora depois de derrotados pelos romanos rapidamente tenham se aculturado e se beneficiado muito dessa convivência, chegando inclusive a dar uma contribuição considerável ao projeto europeu empreendido pelos francos de Carlos Magno e ao da Cristandade Ocidental, liderado pela Igreja Católica na Idade Média.
__ Com o advento da burguesia e as mudanças gerais na sociedade europeia, que “degeneraram” nos modernos estados nacionais, ficou patente, principalmente depois da Guerra dos Cem Anos, que os ingleses não teriam chance contra estados europeus continentais grandes e fortes, estando condenados, inclusive pela geografia de seu país, uma ilha, a serem eternos coadjuvantes nas grandes disputas europeias, inclusive, na expansão europeia a partir das Grandes Navegações. A estratégia aplicada pelos próximos cinco séculos será a de manter a Europa dividida, não permitindo que nenhum país europeu alcance claramente a hegemonia.
__ O equilíbrio geopolítico do continente, alcançado à custas de guerras, que enfraqueciam os outros estados, interessava aos ingleses, que já haviam feito a sua fusão com Escócia, Gales e Irlanda – isso não podia acontecer de forma alguma no continente – a começar pela Espanha, que unida ao império dos Habsburgo, ameaçava engolfar toda a Europa. Os ingleses não sossegaram enquanto não conseguiram derrotar a Espanha e a sua Invencível Armada, prestando um apoio incondicional aos insurretos holandeses, dividindo a Holanda da Bélgica, forçando o envio da dita Armada para o desastre.
__ Bem pouco proveito tiraram os holandeses dessa aliança, pois Cromwell respondeu com o Ato da Navegação à proposta holandesa de unir os países, e, com as respectivas e as forças militares, dobrar os países católicos na Europa. Depois de quatro guerras, os holandeses estavam prostrados, e os ingleses dominavam os mares que antes eram daqueles. Por falar em religião, note-se que o cristianismo inglês é bem específico, e fabricado sob medida para atender a interesses estratégicos, uma vez que une elementos tanto do catolicismo como protestantismo, permitindo-lhes se aproximar de qualquer um dos lados, quando convier uma aliança.
__ Quando a França ameaçou tornar-se uma potência hegemônica e pan-europeia com Luis XIV e Napoleão Bonaparte, os ingleses arrostaram todas as dificuldades para derrotá-los, unindo-se, inclusive, aos espanhóis, que antes combateram – generais ingleses, como Wellington, além de tropas inglesas, secundaram a portugueses e espanhóis no intento de expulsar o caudilho francês da Península Ibérica. Por falar em portugueses não se esquecer da presença de arqueiros ingleses, ajudando aos portugueses a se separarem da Espanha, em Aljubarrota.
__ As lutas seculares com a França seriam logo esquecidas, à medida que novas potências despontavam no horizonte. A primeira foi a Rússia, que teve que enfrentar na Guerra da Crimeia uma coligação formada por ingleses, franceses, turcos e piemonteses. Mais tarde a Rússia foi derrotada por uma coligação informal entre a Inglaterra e o Japão, na chamada Guerra Russo-japonesa. Uma grande coligação, com os ingleses na ponta, dobrou definitivamente a China na guerra dos Boxers, quando os interesses comerciais ingleses contornaram o mundo.
__ Aliada estreita à França e à Rússia, inclusive quando já era a encarnação do mal com o comunismo, a Inglaterra destruiu os sonhos hegemônicos e confusos do colosso alemão, para depois se unir aos Estados Unidos clamando o enfrentamento da União Soviética e sua “Cortina de Ferro”. Isso tudo enquanto passava para o mundo ideias de liberdade, justiça, paz, bom governo, etc.

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http://veja.abril.com.br/

__ Essa manipulação teria durado indefinidamente se os europeus, engrossados por duas guerras mundiais, não tivesse aberto os olhos e iniciado uma ousada construção política que traria prosperidade e paz permanente à Europa, inclusive com a participação inglesa, que de forma alguma poderia ser a hegemônica, uma vez que o Reino Unido não reúne condições nem vocação para impor sua hegemonia (o inglês comum tende a se fechar num estrito chauvinismo, um tanto racista). Não esquecer que a Inglaterra é o berço da mais radical forma de racismo: a Eugenia de Sir Francis Galton. É à velha Europa, eternamente dependente do apoio inglês, como fiel da balança em guerras tão intermináveis quanto danosas, que foi o voto desses 52% pró Brexit, que acreditam ser bastante a relação de dependência com suas ex-colônias, em especial os EUA, racialmente mais confortável, mas só o futuro dirá se a divisão que eles esperam semear no continente não se dará dentro de sua própria casa (acima). Esperemos que a Europa, unida, resista a mais essa tentativa de voltar às antigas disputas bélicas, e que o nacionalismo belicoso, racista e xenófobo dos partidos da extrema direita, eternos troféus do maquiavelismo ilhéu, não vingue sobre essa iniciativa tão benéfica ao mundo.
__ É claro que esse artigo é uma abordagem muito generalista, que, por força das limitações da linguagem usa termos como “ingleses”, sem querer com isso dizer que aqueles que estão abrigados sob essa designação representam um todo uniforme, agindo de forma sempre consciente, “maquiavélica”, aos desafios de seu tempo, embora também não dê para negar que existe, e é um padrão que não deixa muito a orgulhar a quem nele se enquadra conscientemente. Esperemos que seja só uma opinião.

__ Bem, amigos, acho que agora só nos falta torcer para que Donald Trump não consiga se eleger presidente dos EUA, pois nesse caso, quem ainda não sabe, é melhor aprender a rezar. 

sexta-feira, 24 de junho de 2016

CANUDOS (1896-1897): PEQUENA HISTÓRIA DE UM GRANDE MASSACRE - 2

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos de Brasil, Alemanha França, EUA, Coreia do Sul, Holanda, Romênia, Israel, Portugal, China e Ucrânia. Deus os abençoe

A guerra da república

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__ Um fato inesperado veio a unir, circunstancialmente, o profeta do sertão à Igreja: a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, e a expulsão da família real do Brasil. Antonio conselheiro se colocou imediatamente contra essa mudança, lançando veementes sermões contra a nova forma de governo. Coisa “do diabo”. Segundo alguns testemunhos, em seu discurso ele acusava os antigos senhores de escravos de proclamarem a república para se vingar da Família Real, em especial a querida Princesa Isabel, que assinara a Lei Áurea no ano anterior, que foi muito elogiada por ele – há notícias bem fundadas de que ele não só acolhia ex-escravos entre os seus, como os ajudava muito. Seus maiores inimigos, como o Barão de Jeremoabo (acima), atestam isso, ao tentar desmerecer os adeptos daquele (1). Conselheiro repudiou, violenta e publicamente, o regime como um todo e as novas medidas tomadas como o casamento civil, a secularização dos demitérios, etc.
__ Nesse momento, vários padres do interior, cevados pela mentalidade oficialista e saudosos do Padroado Régio, começaram a aproximar-se de Conselheiro, pondo mais lenha na sua ira antirrepublicana. Na capital, as lideranças republicanas, assim que se recompuseram do susto, tão repentinoa e inesperada fora a deposição do monarca, agiram rápido, pedindo providências ao arcebispo contra os padres “refratários”. Este, por sua vez, mandou uma circular aos párocos, nos sertões, pedindo que afinassem seus discursos com o da arquidiocese, e aceitassem o fato consumado. Diante disso as igrejas e capelas oficiais fecharam novamente suas portas a Conselheiro, deixando-o novamente isolado, e, talvez por isso, ainda mais convicto de sua repulsa ao novo regime.
__ O sertanejo é um homem prático, que não se move fácil por ideias, filosofias, ideologias ou coisa que o valha, mas antes por fatos, por acontecimentos concretos, e o fato veio na forma de leis que, a partir de uma visão laicista de Estado, vinham aprimorar o departamento de estatística, melhorar o censo e normatizar, um pouco, a arrecadação de impostos, para evitar a evasão e mobilizar a maior quantidade possível de recursos para a tarefa de modernizar um país estagnado por 77 anos! Incluiu-se até uma lei que impunha a aplicação do sistema métrico decimal, que ficou, durante um bom tempo, icompreensível ao homem do sertão, a quem se negara, por quatro séculos, a mais elementar educação formal. Nas sedes dos municípios começou-se a estabelecer novas formas de organização e impostos para a realização das feiras livres, o grande momento de alegria e socialização do sertanejo, à semelhança do servo medieval, mas que atingiam principalmente aos mais pobres e confusos (“ignorantes”), que ficaram em grande aperto.

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Por Angelo Agostini - in: BrHistória, nº 4, junho/2007., Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2388859

__ Não havia como Antonio Conselheiro ficar alheio, e não repercutir, do seu jeito, contra aquela situação que confundia o homem rural, agravado pelo fato de ele estar em guerra declarada, por ele mesmo, contra o novo regime. O pretexto foi o edital de cobrança de impostos, afixados na porta da Câmara Municipal de Bom Conselho, que o Conselheiro, num acesso de “fúria santa” os queimou em meio a impropérios e maldições antirrepublicanas (2). Ante a reação das autoridades, ele e seu grupo se retiram do lugar, mas uma força pública, composta de uns trinta homens da polícia baiana, comandada pelo um alferes de nome Virgílio, saiu-lhes ao encalço, encontrando-os no dia 26 de maio de 1893, no distrito de Maceté.
__ O pequeno destacamento, menosprezando o valor daquela gente, quase todos “13 de maio”, a típica arraia miúda, que o policial sertanejo, ele mesmo originario dessa gente, pisa com sadismo, que Graciliano apresentou tão bem no “soldado amarelo” de Vidas secas, como que para compensar um profundo sentimento de inferioridade, nascido de sua convivência estreita e assimétrica com as elites políticas e econômicas, partiu para o ataque. O comandante da força decerto pensou: “quando virem as fardas, vão se borrar tudinho, e botar o rabo entre as pernas!” Mas após uma curta e renhida batalha, a força policial, sentindo a forte resistência, “meteu o pé na carreira”, com o seu comandante correndo à frente.
__ Após o confronto, os conselheiristas deixaram de frequentar as sedes dos municípios e as vilas, e se embrenharam no alto sertão baiano. O governo estadual, desmoralizado, pediu ajuda ao governo federal, que, lotado de problemas como a Revolta da Armada e a Revolta Federalista, liberou uma pequena tropa de 80 homens do exército para dar cabo do grupo. Essa força chegou a entrar em contato com os conselheiristas, mas percebendo a diferença entre as forças e a disposição do adversário, o seu comandante, e oficiais, preferiram evitar o combate, e retirou-se para a capital, no dia 9 de junho. Esses foram os únicos que agiram com o juízo.
__ O incidente em Bom Conselho pode ter sido fatal, pois a ele se seguiu o vexame da polícia em Maceté, que, com certeza deve ter propiciado ocasião para muitos versos e quadrinhas engraçadas, principalmente entre os repentistas de feira, que não perdem uma oportunidade, deixando em má situação a “moral” da autoridade que expedira aquela força, o juiz Arlindo Batista Leoni, que não esqueceria a desfeita (3).
__ Vagando pelo alto sertão da Bahia, em 13 de junho de 1893, Conselheiro e sua gente chegaram a um local recôndito, mas de seu conhecimento. Uma pequena fazenda, chamada Canudos, já há algum tempo abandonada, constando apenas de uma pequena casa de vaqueiro e uma capela, ambas em ruínas (4). A capelinha foi imediatamente reformada pelos conselheiristas, sendo mais tarde dedicada oficialmente, com a presença do vigário de Cumbe, a Santo Antonio – mais tarde eles ergueriam uma capela nova e mais imponente, a do Bom Jesus, que não chegou a ser concluída –  enquanto o local foi rebatizado como Arraial do Belo Monte, onde o Conselheiro e sua gente supunham ter encontrado definitivamente o seu lugar de descando, isolados da “maldita” república.

A fortaleza de Belo Monte

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Canudos em 1897. Em destaque a Igreja Nova, do Bom Jesus, à esquerda, e a Igreja Velha, Santo Antonio, à direita. Na verdade as duas eram, oficialmente, apenas capelas.

__ Como o Conselheiro e sua gente foram dar naquele lugar, ou, como diria Vargas Llosa, naquele “fim de mundo”? Decerto que a existência daquela fazenda abandonada não era desconhecida por muita gente da região nem pelos conselheiristas, em geral, acostumados a bater aqueles sertões em busca de assistência para suas prédicas, igrejas e cemitérios para obras de manutenção, sem falar da espetacular memória ancestral, praticamente já incorporada ao DNA daquela gente. Sertanejo tem “memória de elefante”.
__ Não temos muitos dados sobre o que motivou a escolha de Canudos como lugar de fixação dos conselheiristas, além da necessidade de evitar toda convivência possível com comunidades republicanas, principalmente por causa da completa destruição do arraial, antes que se fizesse um estudo mais detalhado. Há, entretanto, um estudo muito bem fundamentado, assinado por Cunha-Blaj (1974), que mostra o quão oportuna foi a escolha do lugar, para a eventualidade de uma guerra defensiva, fazendo supor que desde a sua fundação Belo Monte aspirava por uma posição militar defensiva, ou preventiva, consciente e muito bem estruturada.
__ Um relevo em torno, muito irregular e pedregoso, cheio de serras (5), de onde descortinam vastas paisagens (pontos de observação), penhascos, que limitam as manobras, estreitas passagens e abundância de pedregulho, que dificultam o uso da cavalaria, carroções de transporte, e mesmo o avanço de uma tropa, além de facilitar a armação de emboscadas e pontos de tiro.

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__ Alguém poderia questionar que essa dificuldade de deslocamento também prejudicaria aos moradores e defensores em seus contatos com outras comunidades ou no seu enfrentamento com prováveis inimigos, mas não é bem assim; havia, e ainda deve haver, caminhos secretos, rotas alternativas, conhecidas apenas pelos moradores da região, sem falar que, da mesma forma que o caboclo amazônico não se perde nem se atrasa por entre os meandros naturais formados pelo rio Amazonas em suas cheias, o matuto, da mesma forma, não se perde nem se atrasa quando se desloca em meio ao cipoal de galhos e árvores crestadas, que se espalha pela caatinga nordestina. Ele sabe o melhor caminho de memória.
__ As condições básicas de vida estavam garantidas pelo curso do rio Vaza-Barris, com seus 450 km de extensão, que em seu curso intermitente, fornecia água suficiente para a manutenção de numerosa população. O fornecimento de água foi complementado pela existência de várias aguadas, dentro dos limites da cidade, e por cacimbas (6).
__ Em caso de guerra, a provisão de munição básica estava garantida, graças ás minas de salitre, que abundavam na região, sem falar da infinita provisão de cascalhos duríssimos, no leito do rio, que serviam de bala, causando um ferimento muito doloroso. Mas quem pensar que os canudenses dependiam apenas de armas rústicas e munição improvisada, pode estar enganado, e aí vem a mais importante característica dessa incrível comunidade: a sua localização.
__ Graças aos caminhos, conhecidos e obscuros, Belo Monte integrava uma rede de comunicação e transporte complexa, devido à sua relativa proximidade com vários municípios e distritos, com os quais os conselheiristas mantinham um intenso a animado comércio de manufaturados, produtos naturais e ideias. Entre eles Cunha-Blaj citam: Rodelas, Várzea da Ema, Vargem do Rio São Francisco Pambú, Capim Grosso, Canabrava, Bom Conselho, Cumbe, Fortaleza, Tucano, Massaracá, Rosário, etc.

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__ A própria cidade do Belo Monte foi urbanizada de um jeito que favorecia muito a defesa, uma vez que não havia grandes avenidas nem ruas retilíneas. A cidade era, para quem chegava, um tormentoso emaranhado de becos e vielas que acabavam abruptamente numa casa “mal localizada”, obrigando por vezes, a quem não era morador, a ter que sair dos limites do casario para poder ir de um extremo a outro do povoado. As casas eram de taipa e, durante o conflito, os matutos escavaram facilmente pequenos buracos, à guisa de seteiras, de onde podiam fazer fogo farto e certeiro sobre os assaltantes – o fato incomum dessas casas não terem janelas é um forte indicativo de um plano prévio de defesa. A cidade reproduzia, dessa forma, a confusa disposição natural da vegetação do entorno, e assim como esta, era excelente para deter o ataque de uma forte força invasora, como o experimentou, de uma maneira terrível, a expedição Moreira César.
__ Por fim, embora a questão dos recursos estivesse bem equacionada, ela não era suficiente para garantir o sucesso de um projeto como aquele; eram necessários uma ideia e ações relacionadas a essa ideia, para que Belo Monte alcançasse seu pleno poder mobilizador. A ideia foi a versão popular do catolicismo sertanejo, encarnada na pessoa de Antonio Conselheiro, que, apesar da sua “monomania” religiosa, continuava sendo um homem culto, e com tirocínio para certas coisas práticas. Mais tarde teve a ideia de levantar uma igreja mais imponente, a chamada igreja nova, dedicada ao Bom Jesus, defronte à capela de Santo Antonio, dois fortes baluartes interligados por túneis.
__ Essas medidas foram complementadas por outras, de caráter administrativo, que deram a Canudos aquela solidez, de curto prazo, das organizações centralizadas, além de outras vantagens, tornado-se um grande atrativo para a sofrida gente do sertão, como se vê abaixo:
a) Qualquer um que chegasse e fosse aceito pelo Conselheiro, uma condição indispensável, podia levantar sua casa, (onde quisesse?) sem ter que pagar nada a ninguém ou imposto público.
b) Não havia uma igualdade perfeita; o tamanho variável das casas mostrava o contrário, mas no geral todos convergiam para o mesmo objetivo e a desigualdade era bem menos notável que alhures. Ouso dizer que o principal fator de igualdade de Canudos era o entendimento do Conselheiro sobre o que decidir em cada situação, e a coerência dessas medidas, por mais “primitivas” que fossem, de tal sorte que suas determinações eram acolhidas como “lei” por todos, acabando com a aplicação indiscriminada da justiça familiar, típica dos sertões onde não havia estado, e que permitiam aos mais ricos e poderosos tripudiar sem peias sobre os mais humildes.
c) Roupas, alimentos e abrigo eram distribuídos gratuitamente entre os mais pobres.
d) Conselheiros cercou-se de elementos fieis e devotados, que lhe garantiam suporte e força física contra qualquer desafio ao seu poder, a começar pela Guarda Católica, que tinha uniforme, armamento e munição, soldo regular, e era responsável pela guarda dos símbolos máximos da comunidade, as duas igrejas e o Conselheiro; após eles havia a Companhia do Bom Jesus ou Companhia Santa, com umas mil pessoas; e um grupo de beatas, comandadas pela mordoma do Conselheiro, tia Benta, que cuidava diretamente do seu bem estar.
__ Havia ainda vários outros personagens, gente de confiança, que ajudavam-no a organizar e administrar a comunidade, mostrando que Belo Monte não foi um projeto improvisado ou fruto de uma mente desvairada e de fanáticos incultos, antes algo pensado para ser permanente e estável. A mente diretora de tudo aquilo podia até ser um pouco desvairada, mas também era, com certeza, muito inteligente (ardilosa?) e sabia conseguir de seus colaboradores o máximo que eles podiam dar, inclusive a vida. Só os gênios das relações humanas conseguem isso, para o bem ou para o mal.

A ruptura definitiva com a Igreja

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__ No início de 1895, o governador da Bahia, Rodrigues Lima (acima), preocupado com as inúmeras notícias que circulavam constantemente nos jornais da capital, com base em relatos de um correspondente anônimo em Monte Santo, que descreviam a prática dos maiores despropósitos e atropelos pela gente do Conselheiro, resolveu entrar em contato com o arcebispo de Salvador, D. Jerônimo Tomé da Silva, nascido cearense, em Sobral, para que enviasse emissários e tentasse, por meios pacíficos, a solução da situação, de preferência pela dispersão da comunidade conselheirista.

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Wikipedia

__ D. Jerônimo (acima) buscou numa congregação famosa pela sua rusticidade e disposição a tarefas particularmente espinhosas, a Ordem dos Frades Capuchinhos (OFM-Cap), fundada na Contrarreforma, e que se tornara, o “pau para toda obra” da igreja no Brasil. Os frades dessa ordem gozavam de um especial prestígio entre os sertanejo devido a frequência com que seus membros faziam missões pelo interior do semiárido, nas quais granjearam popularidade e respeito da parte dos sertanejos. Entre os capuchinhos ele escolheu um frade italiano já conhecido naquelas paragens: frei João Evangelista do Monte Marciano.
__ Segundo Calasans (4), frei João tinha contra si o fato de ser um italiano que, embora naturalizado, ainda não dominava bem a língua portuguesa, e que, portanto, podia não ser bem entendido pelos sertanejos, sem falar de seu temperamento mais próximo do pavio curto. Seja como for, não havia muito que o arcebispo pudesse fazer,  porque os padres brasileiros, mais próximos culturalmente dos sertanejos, eram, em geral, produtos da antiga igreja católica imperial, oficialista e palaciana, e não estavam muito motivados a enfrentar as agruras do sertão, sem falar não era em qualquer lugar que se podia encontrar um Padre Ibiapina, morto 12 anos antes. Creio que foi o melhor que D. Tomé conseguiu

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__ Cheio de ânimo e um tanto temeroso, isso ele o confessa no seu Relatório, Frei João chama outro frade recém-chegado da Itália, para ir junto consigo a Canudos: frei Caetano de São Leo, e partem na direção de Cumbe, do qual, eclesiasticamente, Belo Montre era dependente (frei João e frei Caetano são os dois padres sentados no meio da foto). Em Cumbe eles se encontraram com o vigário local, padre Vicente Sabino dos Santos, que se ajuntaou à missão – há mais de ano que o padre Vicente não a Canudos-Belo Monte, por ter sido desacatado a última vez que lá fora.
__ No Relatório, frei João começa se queixando da dificuldade para chegar até Cumbe, e daí para Canudos-Belo Monte, que fez a viagem se arrastar por quase um mês, abril-maio, tanto por falta de condução como por falta de gente disposto a guia-los até lá. Receio da gente do Conselheiro? A três léguas de Cumbe, eles se defrontaram com um grupo de homens, mulheres e crianças, que, ao vê-los acorreram para suas armas, e, hostis, se recusaram a dar informação sobre com chegar a Cumbe. Eram, segundo o frade, “guarda avançada do Antonio Conselheiro” (Calasans, (4)).
__ Ao chegar a Canudos, no dia 13 de maio de 1895, ele notou a pobreza das casas (abaixo) : “construídas de barro, cobertas de palha, sem janelas... O interior é imundo, e os moradores... quase nus... atestam no aspecto esquálido e quase cadavérico as privações de toda espécie que curtiam...” (idem) Logo adiante, numa praça, à porta da “capela”, os missionários dão com uma multidão de “perto de mil homens armados de bacamarte, garrucha, facão, etc. dando aos Canudos a semelhança de uma praça d’armas”.

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__ Aí os missionários tem contato com a Guarda Católica, com seu uniforme e gorro todo azul, à semelhança do uniforme do exército imperial brasileiro, e da roupa do Conselheiro, sendo então levados para a casa paroquial, onde o vigário de Cumbe costumava ficar. De lá frei João observa uma coisa preocupante; séquitos de gente acompanhando vários funerais; “oito cadáveres, conduzidos por homens armados, sem o mínimo sinal religioso”. Ele ouve dizer que aquela taxa de mortalidade faz parte do cotidiano do arraial e deduz que é “devido às moléstias contraídas pela extrema falta de asseio e penúria” (idem). O Conselheiro mesmo era um exemplo dessa penúria e falta de asseio.
__ No dia seguinte foram ao encontro do Conselheiro na “capela”, e lá o encontraram em plena obra, mas cercado por gente armada, que comprimentaram os padres com o tradicional, “louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo”. Conselheiro foi assim descrito pelo frei: “vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão: os cabelos crescidos, sem nenhum trato, os olhos fundos, raramente levantados para fitar alguém, o rosto cumprido e de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e penitente” (idem). Que devia impressionar! O frade acrescenta ainda que ele era de “cor branca, tostada pelo sol” e dado a “frequentes e violentos acessos de tosse”. De caráter orgânico ou emocional? E que “ninguém pode falar-lhe a sós, porque seus pretorianos não deixam”.
__ Conselheiro andou com eles pelas obras e, uma vez na sacristia, frei João aproveita para falar-lhe da situação de miséria do povo e da presença de gente armada, numa comunidade que se presumia religiosa e cristã, ao mesmo tempo em que alertou que um dos objetivos de sua missão, de acordo com a ordem do arcebispo, era aconselhar o povo a se dispersar. Nesse momento um grupo de gente, entrando na sala, põe-se a clamar: “nós queremos acompanhar o nosso Conselheiro!” Este os fez calar e disse: “é para minha defesa que tenho comigo esses homens armados, porque v.rvma há de saber que a polícia atacou-me e quis matar-me no lugar chamado Maceté... No tempo da monarquia deixei-me prender, por que reconhecia o governo; hoje não, porque não reconheço a república” (idem).
__ O frei tentou argumentar que, sendo católico, não convinha ao Conselheiro o apelo a uma saída armada, e que, se a própria Igreja havia se submetido ao novo governo, ele também deveria se submeter, e concluiu dizendo-lhe temerariamente “é uma doutrina errada a vossa”. Um grupo recém-chegado cortou-lhe, excitado, a palavra: “v. rvma é que tem uma doutrina falsa, e não o nosso Conselheiro”. Este os fez silenciar e completou dizendo que não desarmaria os seus, mas também não impediria a missão. O grupo então levou os padres até em casa, e uma vez nela os visitantes ouviram gritos estrondosos, dando vivas “à Santíssima Trindade, ao Bom Jesus, ao Espírito Santo e ao Antonio Conselheiro”.
__ “Os aliciadores da seita, continua o frei, se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que quiser se salvar precisa vir para Canudos... nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite, e são de cuscuz de milho os barrancos”. Algo análogo às passagens de Ex 33,3; Is 51,1-2. Entre outras coisas o frade lembra-se de ter visto dois malfeitores, sempre presentes no séquito do Conselheiro: João Abade, da mais alta hierarquia, acusado de dois homicídios, e José Venâncio, com 18 acusações análogas às costas, embora também reconheça que “Antonio Conselheiro não se arroga nenhuma função sacerdotal”. Nesse sentido ele permaneceu dependente da Igreja, embora o frei também note que ele não faz muita questão de receber e incentivar os sacramentos. Enquanto os frades estiveram em Canudos-Belo Monte, Conselheiro se absteve de falar aos seus em público.
__ No dia 14 de maio abriu-se a missão, com a presença de umas “quatro mil pessoas”, inclusive de gente próxima ao Conselheiro, e este também compareceu, com o seu bordão, olhando atento para tudo e para todos, embora calado. Os de seu estado-maior, presentes, armados até os dentes. Nesse dia o frei falou sobre como deve ser o jejum correto, adequado a cada temperamento e à capacidade física do fiel, procurando um objetivo mais espiritual que físico. Ao recomendar um jejum mais moderado – carne de noite e uma chávena de chá pela manhã – “o Conselheiro estendeu o lábio inferior e sacudiu negativamente a cabeça, e os seus principais asseclas romperam logo em apartes... “Ora, isso não é jejum, é comer a fartar””.
__ No quarto dia da missão, o frei pregou sobre “o dever de obediência à autoridade”, citando a república como “governo constituído do Brasil”, citando inclusive a recomendação, nesse sentido, do “Sumo Pontífice” (7). “Estas minhas palavras, irritaram o ânimo de muitos... começaram a fazer propaganda contra a missão... arredando o povo de vir assistir... um padre protestante, maçon e republicano, e dirigindo-me quando passavam e até ao pé do púlpito, ameaças de castigo e até de morte. Espalharam que eu era emissário do governo... E, passando de palavra a atos, ocuparam com gente armada todas as estradas do povoado, pondo-o em estado de sítio” (idem).
__ Como o frade continuasse com seu látego firme, denunciando as mazelas, no seu entender, da comunidade, no dia 20, pelas 11 horas da manhã, os principais da cidade, tendo à frente João Abade, saíram pelas praças e vielas apitando e arregimentando povo, para uma estrepitosa passeata, engalanada com muitos fogos de artifício e gritos de ‘vivas’ “ao Bom Jesus, ao Divino Espírito Santo e a Antonio Conselheiro e de lá vieram até a nossa casa, dando ‘foras’ aos republicanos, maços e protestantes, e gritando que não precisavam de padres para se salvar, porque tinham o seu Conselheiro”. E aí ficaram por quase duas horas em grande reboliço. Assuntando os padres.

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__ À tardinha, na hora de começar a missão,o frade denunciou a manifestação, que ele considerava como um “desacato” à sua pessoa, e, ato contínuo, declarou encerrada ali mesmo a missão, e, ainda cumpriu o preceito evangélico de sacudir o pó das sandálias contra as comunidades rebeldes, na frente deles. Segundo o frade o seu gesto causou grande impacto e descontentamento, de sorte que muitos que começaram a mostrar publicamente a sua discordância com o tratamento dado aos missionários, e ainda, por causa disso, várias famílias recém-chegadas começaram a abandonar o povoado. Uma comissão, na qual tomaram parte alguns dos “mais exaltados”, tentaram demover o frade de seu intento, mas ele permaneceu inarredável.
__ No dia seguinte, quando deveriam partir, o frade foi chamado para ministrar a confissão a um moribundo, sendo acompanhado por um bando armado. Uma vez na casa, o padre pediu que o bando saísse, para ele poder escutar a confissão, e eles então lhe disseram: “’custe o que custar, não sairemos’. Observei entã ao doente, que nem eu podia ouvir a sua confissão, nem ele estava obrigado a fazê-la naquelas circunstâncias”. Segue-se um bate boca, onde o frade vocifera contra aquele desrespeito às mais elementares normas da Igreja, e os conselheiristas, por sua vez, renovam insultos e ameaças.
__ O frade une-se aos seus companheiros, já com os animais arreados, e parte dali, sem olhar para trás, mas lembrando-se das palavras terríveis, que Jesus proferiu quando olhou para Jerusalém, do alto de uma colina, e que se cumpriram literalmente, num caso e no outro.

Balanço da missão
__ Calasans (4) é muito severo com frei João Evangelista do Monte Marciano, atribuindo a ele a responsabilidade pelo fracasso da missão de paz e, de uma maneira indireta, pelo desembocar da guerra: “O frade italiano não tinha as qualidades essenciais para levar a bom termo ação religiosa tão importante. Após uns poucos dias... a trindade missioneira teve de abandonar o local, agravando assim o relacionamento dos canudenses com o poder público... O chefe da missão... falava de maneira desabrida, misturando a língua materna com o idioma da terra de adoção. Suas pregações, segundo a tradição, eram repletas de ameaças anunciadoras de tremendos castigos celestiais... inábil no encaminhamento de problema tão significativo”.
__ Calasans divaga! É óbvio que o incidente propagador de tudo deve ser procurado em Maceté, onde o juiz local tentou fazer cumprir a lei, afinal o Conselheiro depredara patrimônio público e incentivava, de uma maneira ostensiva, o descumprimento da lei – ainda recentemente um juiz proibiu a publicação, no Rio de Janeiro, do livro Minha Luta, de Hitler, que estimula, ainda que de forma exclusivamente intelectual, a descumprir as leis contra o racismo e a violência em território nacional. O que há para notar a esse respeito é que o juiz agiu correto ao mandar um destacamento prender o Conselheiro, ao mesmo tempo em que chama a atenção o argumento que este usa, quando justifica a presença de um séquito armado: “a polícia atacou-me e quis matar-me”, como se o objetivo da polícia fosse matá-lo, e não prendê-lo, e como se não houvesse nenhuma razão para isso (prendê-lo). Havia, na cabeça dele, uma sentença republicana de morte contra ele, típico de maníacos e megalômanos.
__ Ele colocava à República um problema incontornável, pois ao mesmo tempo em que não queria deixar o Brasil, recusava-se a cumprir às leis da nossa república, comparadas à “lei do cão”, e as descumpria publicamente, fazendo-se cercar de gente armada para sua garantia. Ao demonizar a república fecha-se à possibilidade de diálogo. No ponto em que as coisas estavam será que o Barão do Rio Branco se sairia melhor? Talvez até houvesse menos bate-boca e estresse, mas e o resultado seriam diferente? Há mais um detalhe importante: essa gente armada não saáa de perto do Conselheiro, a sua mania de perseguição e o medo da repetição de 1876, contagiava a seu entourage, de sorte que já era muito difícil saber quem controlava quem. O mais certo é que a coisa já saíra de controle. O Conselheiro, a esse respeito, passa sinais ambíguos. Creio que mesmo que ele quisesse por fim à tudo aquilo, seus seguidores não o permitririam, pois eles já haviam perdido ou doado tudo o que tinham para seguir o Conselheiro e o seu projeto.
__ Ao acusar o padre de fazer sermões apocalípticos, muito severos, de um penitencialismo exacerbado, Calasans comete o erro de anacronismo e julga o conteúdo de sermões feitos no final do século XIX, tendo como parâmetro os que eram feitos na segunda metade do século XX, noutra circunstânca histórica, infensa aos excesos de retórica típicos de antanho. Ora, pelos testemunhos da época sabemos que esse gosto pelo excesso retórico e pelo apocalíptico era o que diferençava o “homem santo” dos outros, inclusive Antonio Conselheiro, apontado pelo arcebispo de pregar penitências imoderadas, numa carta já citada (ver parte 1). Era justamente nesse “excesso” que os ocnselheiristas e frei João Evangelista podiam construir uma ponte comum, mas nem isso foi possível, uma vez que aquilo que Calasans julga excessivo os conselheiristas viram como coisa de criança, de quem não leva penitência a sério. Para eles, frei João, em matéria de penitência, era frouxo, e por isso “maçon” e “protestante”.
__ O relatório do frade foi certeiro: a situação já está perdida, e a melhor alternativa é intervir logo, enquanto não cresce mais e fica mais difícil de resolver. O futuro lhe dará inteira razão. E o que fizeram nossos políticos do século XIX? O mesmo que os do século XXI: empurraram com a barriga, transferindo o abacaxi para o sucessor, no caso Luiz Vianna, eleito em 1896, cujos correligionários tentaram, inclusive, viver em paz com os conselheiristas, uma vez que estes criavam problemas para o seu maior desafeto político na região: o barão de Jeremoabo.
__ A violência e a hipocrisia sufocantes do sistema político crepublicano, acabarão por engolfar toda aquela gente e o país inteiro, num dos mais infames e absurdos conflitos de nossa história.

Notas
(1) Jeremoabo chamava os conselheiristas de “gente do 13 de maio”. Calasans (1) recolheu as seguintes palavras, em um manuscrito do Conselheiro, chamado Tempestades que se levantam no coração da Virgem Maria por ocasião da Anunciação: “Quantos morriam debaixo de açoites por faltas que cometiam, alguns quase nus, oprimidos de fome e de pesado trabalho... Chegou enfim o dia em que Deus tinha de por termo a tanta crueldade, movido de compaixão em favor do seu povo,ordena para que se liberte de tão penosa escravidão”. Não nos enganemos, as palavras são cristalinas; não estamos diante de um abolicionista convicto, seu discurso é neutro, excessivamente “espiritual”, como se estivesse falando para interlocutores extraterrenos, mas ele pelo menos fez algo por aquela gente, enquanto o resto da nação lavava as mãos quanto ao destino de milhares de ex-escravos.
(2) Eis o que diz Facó (p 87) “em 1893, os municípios são autorizados pelo Governo Central a efetuar a cobrança de impostos no interior. Para fazê-lo, à falta de imprensa e outros meios de difusão... afixavam as autoridades municipais às portas das Casas da Câmara, uma tábua em que se pregava um edital de cobrança. Era uma novidade...
... em Bom conselho, num movimentado dia de feira... O Conselheiro manda arrancar os editais de cobrança de impostos e com eles faz uma fogueira em praça pública”
(3) Ao mesmo tempo inventaram uma história, de que um conselheirista, a exemplo do mestre, teria dado uma sova pública numa “despudorada” local, que seria a amante do juiz, o qual mandou prender o beatão, sendo este, posteriormente, libertado “na marra” pelo Conselheiro em pessoa. Era uma dupla desmoralização para o juiz, que o povo devia ter “pelo gogó”, por causa dos impostos e por representar o poder público local, que só se lembra do povo na hora de arrancar dinheiro.
(4) A falência gradual e inexorável da economia nordestina, em especial no semiárido, na segunda metade do século XIX, vez que baseada principalmente na pecuária periclitante e na mão de obra servil, que, para salvar seus donos da insolvência, foi vendida a mancheias aos ricos cafeicultores do Sudeste, antes da abolição, reduzirá em muito a oferta de mão de obra local, causando a forte decadência da economia nordestina, como um todo, daí a facilidade de encontrar antigas fazendas, grandes senhorios, abandonados pelo interior. Sobre o proprietário dessa fazenda abandonada não encontrei dados seguros. Uma fonte fala de uma casa grande em ruínas, propriedadede gente ligada ao Barão de Jeremoabo (Calasans), outra fala de apenas uma pequena casa de vaqueiro (Cunha-Blaj) e outra ainda de uma casa grande, de um tal de Dr Fiel, incendiada em junho de 1897, com um conjunto de três fazendas, com várias casinhas, todas de propriedade do dito doutor, cujo herdeiro, Dr Paulo Fontes, abandonou o lugar com a chegada do Conselheiro (Benício). Raríssimos dados sobre Canudos e o Conselheiro são estáveis ou não passíveis de forte contradição.
(5) Cunha-Blaj, baseadas em Euclides da Cunha, citam as seguintes serras e elevações: Canabrava, Poço de Cima, Cocorobó, Caypan. Euclides, numa matéria para o Estado de São Paulo (17/7/1897), fala de que havia “em torno de Canudos um círculo de cumiadas”, cortadas pelo Vaza-Barris, em Cocorobó.
(6) A Wikipedia em francês, detalhando mais Cunha-Blaj diz: “às margens do rio foram plantadas leguminosas, milho, feijão melancia, cana-de-açúcar, batata, abóbora, etc. Mandioca era cultivada nas áreas mais úmidas adjacentes. Em Canudos havia um abatedouro e os suprimentos eram estocados em armazéns. Em cada casa, carne e frutos secos eram mantidos dentro de tigelas de barro. Havia horticultura nos arrabaldes e criação de ovelhas e cabras, em pequeno número, além de gado bovino.
A venda de pele de cabra fornecia boa parte dos recursos necessários à aquisição de bens no exterior. Os emissários de Antonio Conselheiro faziam negócio diretamente com os comerciantes de Juazeiro [nesse sentido convém firmar aqui a declaração de Cunha-Blaj, de que Conselheiro pagava bem pelo que adquiria, assim como, por vezes, pagava adiantado, logo quase todos, inclusive vários fazendeiros, queriam negociar com os conselheiristas]...
A venda de pele, entretanto, não propiciava grande receita, de sorte que Conselheiro se viu obrigado a flexibilizar um pouco o seu ideal de isolamento, autorizando os canudenses a trabalhar em fazendas próximas... Mas esse isolamento nunca foi absoluto, uma vez que o comércio nunca foi interrompido, tanto que, mesmo durante o conflito, os correligionários de Vianna [governador Luiz Vianna, da Bahia, enquanto que na região de Canudos a oposição a Vianna era encabeçada pelo Barão de Jeremoabo, que era do grupo dos gonçalvistas, de José Gonçalves da Silva, ex-governador], no Partido Republicano da Bahia, continuaram a mandar suprimentos para a cidade [algo veementemente negado por Vianna].
Conselheiro não só exigia que os seus seguidores praticassem trabalhos de agricultura em Belo Monte, como contratou, por jornada, trabalhadores de fazendas vizinhas. Em caso de necessidade ou de algum novo empreendimento, como o levantamento da igreja nova, ele enviou vários de seus seguidores a pedir ajuda financeira às famílias [fora de Belo Monte] que eram simpatizantes de sua causa...” (verbete Guerre de Canudos). É importante ressaltar que os dados apresentados no verbete da Wikipedia francesa são baseados no livro do autor americano Robert M. Levine: Vale of Tears, Revisiting the Canudos Massacre in Northeastern Brazil, construído a partir da tese, que eu não acredito, de que Canudos foi uma guerra pela identidade nacional, uma expressão mortal de uma política de branqueamento ou antimiscigenação, como havia nos EUA, que, se houve por aqui, aconteceu apenas nos círculos acadêmicos, constituídos, literalmente, de meia dúzia de gatos pingados, em meio a um oceano de analfabetos, para sorte destes, vivendo a partir de suas tradições e costumes integrativos e das necessidades de sobrevivência, que, normalmente, não acolhem esse tipo de estupidez (o racismo). O que estava em jogo, em Canudos, não era a identidade nacional - o deboche quanto ao fanatismo dos jagunços foi apenas uma diversão da imprensa e uma justificativa para os excessos; o que estava em jogo, em primeiro lugar, era a honra do exército, e em segundo lugar a autoridade de alguns coronéis, e aquele a lavou com sangue, com muito sangue. A prosperidade de Canudo, vista por Levine, é fortemente negada por uma testemunha ocular, frei João Evangelista do Monte Marciano, em seu relatório ao arcebispo, corroborado tanto pelas precárias condições locais de clima, relevo e solo, como pelo aspecto mesmo das casas que aparecem nas fotografias de Flavio de Barros.
(7) Leão XIII

Bibliografia
Benício, Manuel; O rei dos jagunços – Chronica historica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos; Jornal do Commercio; 1899; Rio de Janeiro. PDF
Calasans, José; Antonio conselheiro e os escravos; PDF (1)
_____    ; A vida de Antonio Vicente Mendes Maciel (1830-1897); PDF (2)
_____    ; No tempo de Antonio Conselheiro: figuras e fatos da campanha de Canudos – coletânea de textos do autor; PDF (3)
_______ ; Relatório de Frei João Evangelista; PDF (4)
Câmara, Fernando; Conselheiro e o Centenário de Canudos – palestra pronunciada na Federação das Associações Comunitárias de Quixeramobim, no dia 22 de outubro de 1993, durante a 1ª semana comunitária em homenagem à instalação de Canudos; 1993; PDF
Cunha, Cândida P. da – Blaj, Ilana; A urbanização em Canudos ocmo decorrência da necessidade de defesa; Anais do VII Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História – A cidade e a história; vol I; Revista de História; São Paulo; 1974; PDF
_____  ; Carta Mensal do Colegio Brasileiro de Genealogia, Genealogia de Antonio Conselheiro, ano VIII, Nº 46, out-dez de 1997; PDF
Dobroruka, Vicente; Antonio Conselheiro o profeta do sertão; PDF
Facó, Rui; Cangaceiros e fanáticos – gênese e lutas; PDF
Galvão, Walnice N.; Viver e morrer em Belo Monte; Revista de História da Biblioteca Nacional; 1/12/2014; online

Nobre, Edianne S. – Alexandre, Jucieldo F.; Missão abreviada: práticas e lugares do bem morrer na literatura espiritual portuguesa da segunda metade do século XIX; Revista Brasileira de História das Religiões, ANPHU; Ano IV; Nº 10; maio 2011. PDF

sábado, 18 de junho de 2016

A DONZELA DE ORLEANS E A MOURA TORTA

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos de BR, EUA, França, Ucrânia e Rússia. Deus os abençoe.

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__ Sou contra a privatização do Ensino Superior, e de qualquer outro nível, no Brasil, ainda que parcial, quando os ricos pagariam para os pobres estudarem de graça, como é a proposta, por exemplo, do PSDB, porque acho que a pesquisa universitária é tão estratégica que compensa cada centavo gasto em seus alunos, desde que se faça um sistema seletivo que realmente acolha os mais capazes, indiferente à classe social, ao estúpido sistema de cotas e à coloração política. Para mim o estado brasileiro ganha muito investindo em um Oscar Niemeyer, mesmo este provindo de uma família “podre” de rica, que a um aluno pobre que sonha, como me disse um, ser outro Fernandinho Beira Mar...
__ Entretanto, vislumbro grandes perigos a pairar sobre a qualidade de nosso Ensino Superior, tanto no discurso supostamente pragmático da direita brasileira: “universidade gratuita é para os pobres” (traduzindo: “precisamos gastar menos em educação, para sobrar mais para as propinas”), e pelo aparelhamento desse nível de ensino pela esquerda, que transforma grandes centros de pesquisas em igrejas do obscurantismo. Um exemplo disso eu constatei, com grande surpresa, num artigo recente do, até agora para mim, grande físico brasileiro Rogério Cézar de Cerqueira Leite, da Unicamp, intitulado A donzela de Orleans e as pedaladas, que eu quero crer escrito após uma dose de remédio muito forte ou um impacto físico análogo.
__ Nesse artigo Cerqueira Leite comete o desplante de comparar Dilma Rousseff a Joana D’Arc, e o inquérito, aberto, conforme regras democráticas e republicanas, a uma perseguição inquisitorial, e à prisão infame da Donzela da Lorena, conspurcando a sua provecta e respeitosa idade: 84 anos. Como dá para comparar uma jovem de 19 anos que larga tudo para servir o seu país, e aos 21 preferiu ir até às últimas consequências, inclusive a morte, completamente só, por seus ideais, deixando o seu país maior e mais engrandecido do que quando ela começou sua missão, com uma macaca velha, que subiu ao poder nas costas de seu patrono, pegando um país enxuto e em acelerado processo de crescimento, que fez toda concessão possível a toda sorte de pilantra e no final entrega o país completamente arrasado, enquanto se agarrava, como uma craca ao poder, apoiada por uma taluda claque de obstinados?! Trazer a inquisição para esse debate! Será que ele não sabe que o inimigo mais encarniçado de Dilma é Eduardo Cunha, cuja religião é evangélica, derivada do protestantismo arqui-inimigo da inquisição?!
__ A saraiva de sandices continua, infelizmente. Ele, sozinho, detectou uma pedalada de 100 bilhões de reais do governo Temer, a revelia da PGR, da imprensa e dos próprios deputados e senadores do PT e aliados, que devem estar dormindo... Para tornar a situação ainda mais estarrecedora, ele pretende denunciar a hipocrisia dos “inquisidores” destacando as pedaladas de Fernando Henrique Cardoso, omitindo sintomaticamente as de Lula, enquanto justifica as de Dilma, afinal ela “atrasou pagamento aos bancos do próprio governo”. Por favor, alguém diga a este homem que não existe “banco do governo”, porque o governo, nem os bancos privados, fazem dinheiro, o dinheiro dos bancos ou é do povo, a quem Cerqueira Leite diz defender, ou de ricos acionistas, e é por isso que eles quebram, e foi isso que Fernando Henrique evitou, quando pagou em dia os bancos oficiais, e qualquer economista, que não seja físico da Unicamp, nem fanático pelo PT, sabe que foi a higidez do sistema bancário deixada por Fernando Henrique, que tornou a crise de 2008 na “marolinha” que o Lula desprezou, antes de nos lançar o “tsunami” Dilma.
__ Ele gaba as 23 universidades que o Lula criou, sem fazer qualquer menção à qualidade suspeita dessas universidades nem ao dinheiro em caixa e a estrutura de estado enxuta que aquele recebeu de seu antecessor, que, infelizmente não restará ao sucessor da aventura petista. Será que ele já ouviu falar de Campos Sales e Rodrigues Alves, ou isso é pedir demais a um “polímata” da UNICAMP. Tampouco faz qualquer menção à destruição do sistema econômico brasileiro sob o governo da Joana D’Arc às avessas, que já fez milhões de desempregados, problema que, decerto, nunca atingirá Cerqueira Leite, e obriga o atual governo inúmeros cortes, inclusive em áreas sociais importantes, por total falta de recursos, e evitar que o Brasil entre em estado de calamidade pública, como o Rio de Janeiro, de onde vêm os aliados mais fiéis e as manifestações mais ruidosas em prol da “donzela” sem juízo, sem moral e sem vergonha, que tanto nos envergonhou perante o mundo.
__ Por fim, incapaz de sustentar qualquer argumentação minimamente factual, lógica ou digna de crédito, e como que a colocar uma cereja sobre a cobertura de um bolo de vento, Cerqueira Leite se arrisca na profecia, entregando a sua vocação a sacerdote petista: “podem caçar Lula, podem caçar Dilma [já o estamos fazendo com dois “esses”, e se necessário vamos colocá-los na cadeia para que paguem por seus crimes, como se fossem gente comum, e não os deuses de uma seita de fanáticos], podem desbaratar o PT [não precisa, ele fará isso sozinho], mas o futuro lhes fará justiça...” Bem, a única coisa que lhes está restando no presente é enfrentar a possibilidade de serem lançados, já, no mais tenebroso lixo da história, fosse o nosso povo mais educado, como já aconteceu a vários outros aventureiros populistas, nessa infeliz América Latina. Sua profecia é um fracasso mesmo antes de ser proferida, melhor seria ter-se calado.
__ Por último eu gostaria de entender como um homem provecto e consagrado na sua área de estudo, como Rogério Cézar Cerqueira Leite, abandona-a, numa hora tão delicada, para fazer análises temerárias e descabidas, por vezes desonestas, em área que não é, em absoluto, de sua competência. Ele podia ter lutado pela sua presidenta e o seu partido, com a elegância e o autoconhecimento de quem tem massa intelectual e prestígio de sobra para ficar no patamar superior de luta, como vários o fazem, sem precisar rolar até a lama, para atingir seus opositores, deixando para todos bem claro, que uma coisa é ser especialista e outra é ser sábio.

__ O quanto a sabedoria está a fazer falta na nossa academia, que deve continuar aberta e acessível a todos os brasileiros que tiverem vocação e competência para o nível superior de ensino, pelo menos enquanto ainda valer a pena.