sexta-feira, 10 de junho de 2016

CANUDOS (1896-1897): PEQUENA HISTÓRIA DE UM GRANDE MASSACRE - 1

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos de Brasil, Alemanha França, EUA, Coreia do Sul, Holanda, Romênia, Angola e Ucrânia. Deus os abençoe

Peço desculpa aos leitores por ter lutado em vão para reproduzir o português do final do século XIX, em algumas partes deste relato, mas a correção automática do computador me frustrou, mas ainda assim aparecem alguns erros clamorosos no meio da citação literal de documentos; além disso alguns erros de ortografia foram corrigidos (o autor).  

__ Tudo começou em outubro de 1896, segundo o governador da Bahia Luiz Vianna, com o recebimento, por este, de um telegrama urgente, enviado pelo juiz da comarca de Juazeiro, Arlindo Batista Leoni, pedindo o concurso da força pública estadual para conter um ataque previsto à sua cidade, por uma malta de gente ligada a um beato conhecido como Antonio Conselheiro, do vilarejo de Canudos. Mas antes disso muita água e, principalmente, muita poeira, passará por baixo dessa pinguela, e acima...

A influência do ambiente

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__ Antonio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, nasceu no mais profundo semiárido nordestino, na chamada mesorregião dos Sertões Cearenses, a mais árida das sete microrregiões do estado, na cidadezinha então pobre e estagnada de Quixeramobim, em 13 de março de 1830, pagando por assim dizer o preço de nascer numa área fora do interesse do Estado e do grande capital, mas ainda assim intrinsecamente ligada ao projeto colonial tanto português como nacional-imperial, mas em virtude de sua pouca relevância política e econômica, para as atividades exportadoras e a grande política nacional, o semiárido nordestino foi relegado ao abandono e entregue à lei do mais forte, desde que não afetasse os interesses estratégicos da elite estabelecida ora em Lisboa ora no Centro-Sul do país.
__ Os tênues laços com a civilização do litoral e o abandono das autoridades fez com que prosperasse nessa região, de uma maneira bastante singular, o conceito da grande família e de fidelidade familiar, fornecedora de mão de obra e braço armado, para o sustento e a segurança do núcleo gerador – as famílias mais numerosas do semiárido, assim como os insetos, tinham mais chance de sobreviver e se impor aos seus adversários que as pequenas; minha avó, gente de Nova Russas, teve 17 irmãos. Mas isso também conspirou para criar um problema crônico nessa região: o número de habitantes era sempre superior às possibilidades da região em sustentá-los com conforto. A pobreza tornou-se endêmica, e a luta pelos meios de sobrevivência brutal.
__ A principal fonte de prosperidade no sertão eram os olhos d’água, emanações do espetacular oceano de água doce que jaz sob o solo crestado da superfície, capaz de garantir a sobrevivência das criações, principal fonte de sustento e a renda da família proprietária desse tesouro. Mas, como dissemos antes, havia mais gente que recursos prosperando, e esses outros também tinham o seu gado e também queriam ou precisavam daquele olho d’água. Sem o Estado para mediar os conflitos, ou o fazendo de forma muito precária, a solução era decidir “no braço”, por meio do conflito armado, quem teria direito aos olhos d’água, ou apossar-se da esparsa estrutura de estado existente, para usá-la em seu benefício, a perseguir e exterminar os adversários. Quem logrou esse objetivo, saiu-se melhor.
__ Afora e para além disso, havia uma “mentalidade”, uma “cultura”, intangível, que povoava e ainda povoa a mente dos nordestinos, incompreensível ou “irracional” para quem não viveu o cotidiano dessa gente, que é o conceito de “honra”, de “ofensa pessoal”, pelo qual o indivíduo pode, muitas vezes, por tudo a perder, indiferente aos ganhos e perdas financeiras, se partisse para uma solução negociada. Hoje, mesmo com a maior presença do Estado, é difícil fazer cessar o anseio de vingança, de “lavar a honra no sangue”, que torna alguns estados nordestinos campeões da violência nacional, em que pese o glamour e a publicidade que recai sobre os traficantes nas grandes cidades. Imagine-se como não era onipresente e desenfreada essa violência na primeira metade do século XIX!

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__ Em seu livro O rei dos jagunços, bem documentado, embora confuso e fantasioso às vezes, mas bastante fiel a essa mentalidade nordestina, o jornalista Manuel Benício relata entreveros memoráveis entre famílias, que o adolescente Antonio Vicente Maciel conheceu em primeira mão, quiçá contado por seus protagonistas, com todo aquele colorido emocional e riqueza de detalhes que é comum sair da boca dos cearenses, quando começam a contar seus “causos”, que causam eles serem repentistas imbatíveis e extraordinários contadores de histórias. E o que aqueles contavam a Antonio era a saga de uma guerras, brutalidade e violência sem limites e sem fim...
__ O período não era muito favorável: início das Regências, tempo de indefinição e alternativas, criado pela fuga tumultuária de D Pedro I, momento propício para a vazão e o aumento de acertos de contas locais, aproveitando-se do agravamento da corrupção local e da indiferença tradicionais das autoridades centrais, agravadas pelas incertezas políticas e a emergência de novos atores na cena política nacional.
__ Eram os Maciel, a família de Antonio Vicente, uma gente de pequenos criadores, muito numerosa, rústica e valente, que lutava a duras penas para sobreviver com os poucos recursos que lhes dava o sertão entre Quixeramobim e Tamboril, no Ceará. Disputando pelos mesmos recursos, embora mais abastados, estavam os Araújos e seus aliados: os Veras, em um ambiente tão hostil e carregado bastava uma palavra, um mal entendido, uma fofoca, para desencadear uma hecatombe de sangue, como ocorreu, quando um roubo sofrido por Silvestre Rodrigues Veras foi precipitadamente atribuído aos Maciel, e um deles, Miguel Carlos, tio do Conselheiro, lançou de volta a suspeita sobre gente dos próprios Veras, e ainda aproveitou para mandar um recado: quem chamasse um Maciel de ladrão, pagaria com a vida. Era o longínquo ano de 1833.
__ Tem então início uma guerra aberta entre os clãs, com fortes baixas de ambos os lados, e a muito custo, chamando capitães do mato de fora, os Veras-Araújos conseguem prender, sob garantia de vida, os principais chefes dos Maciel. Porém, sob o falso pretexto de transferi-los a outra prisão, os Araújo, como era tradicional acontecer nesses casos, montaram uma armadilha no meio do caminho e trucidaram vários Maciel, conseguindo outros fugir, entre eles, ferido, Miguel Carlos – é curioso que numa sociedade onde o conceito de honra era sempre evocado antes de se tomar decisões tão fatais, se desse tão pouco valor à palavra dada, e a emboscada, ao invés do duelo, fosse a forma tradicional de acerto de contas. Um conceito de honra estranho, para padrões civilizados, mas não para uma sociedade onde as pessoas eram consideradas essencialmente desiguais, e as relações humanas muito assimétricas.
__ Miguel ocultou-se na casa de uma irmã, mas, enquanto se tratava, um grupo de jagunço dos Araújo atacou o lugar, no momento que um valentão assoma temerariamente o umbral da porta é abatido por um tiro certeiro de Miguel, e cai. A irmã de Miguel corre para afastar o corpo e fechar a porta, mas nesse momento é abatida por um tiro do principal jagunço da volante, Pedro Martins Veiga, que, ao matá-la, se expõe, e recebe um balaço certeiro e vingador do irmão da vítima. Os outros recuam e esperam o anoitecer, quando se aproximam, sem ser vistos, e põem fogo no lugar. Miguel, aproveitando-se da escuridão, foge pela caatinga, sem ser visto, deixando para trás a sepultura incandescente da irmã. Haveria vingança.
__ A agressão era tanto mais odiosa para os Maciel, porque a mulher assassinada morrera solteira, por isso, quando souberam que Luciano Domingues de Araújo, filho de um importante Araújo, de casamento marcado, estava de passagem,  resolveram fazer o acerto de contas. Um tiro de Estacio José da Gama, de um ramo colateral da família, jogou por terra os sonhos futuros do quase casal. Luciano, no dia do casamento, chegou baleado à casa da noiva, apenas a tempo de casar e morrer.
__ Estácio foi preso, julgado e condenado à morte, pelo assassinato de Luciano, no dia 14 de março de 1834, e morreu por fuzilamento no dia seguinte, às 16:00, sem entregar ninguém dos envolvidos na trama. A execução imediata de Estácio, entretanto, foi um escândalo jurídico, pois conforme a lei vigente o condenado tinha o direito a um prazo de até oito dias para apelar ao Imperador – decretos de 11 de setembro de 1826 e 15 de novembro de 1827. O juiz do caso, Antonio Duarte de Queiroz (juiz leigo), aparentado aos Araújo, simplesmente alegou, num ofício datado de 21 de junho de 1834, que ignorava tais decretos! Queiroz foi levado a julgamento, num tribunal suspeito, e inocentado (ver Benício, 1899).
__ Não havia para onde correr, não havia de onde esperar justiça, nem havia como ficar neutro. O homem do semiárido já sabia, desde crianças, que teria duas opções na vida, ou se tornaria jagunço, a serviço irrestrito de um chefão local, em geral um grande proprietário, quiçá, com título de nobreza, matando gente ou falsificando papeis em cartórios, ou seria um cangaceiro, que é uma espécie de jagunço independente, embora próximo ou aliado a este ou aquele chefão. Um criminoso, como aquele, com mais liberdade para escolher suas vítimas. A única opção para quem não queria se expor à violência era se tornar padre ou beato, homem acreditado como próximo de Deus, ou do diabo, o bastante para fazer os circunstantes, inclusive os mais destemidos e famigerados jagunços, tremerem de medo só ao ver sua silhueta.
__ O assassinato do noivo levou ao episódio mais dramático e icônico dessa guerra bestial. Prostrado por uma bala, numa emboscada organizada pelos Araújos, Miguel Carlos tomba gravemente ferido. Quando Manuel Araújo, irmão do noivo, aproxima-se e crava-lhe a punhalada final, para poder, conforme manda a tradição dos “valentes”, gabar-se de ter morto o desafeto com as próprias mãos, Miguel, juntando as últimas forças, crava seu punhal no pescoço daquele. E assim ambos, inimigos incondicionais, morrem, um sobre o outro, abraçados, como se irmãos fossem, unidos pelo ódio recíproco, incontrolável, inconsciente e de origem, quiçá, indeterminada.
__ E assim por diante, em vários outras regiões do Nordeste, em uma infinidade de famílias.

A influência familiar

__ Miguel Carlos Maciel, o pai do Miguel Carlos acima, era avô de Antonio. Um homem destemido e brigador, teve, ao contrário dos grandes patriarcas nos sertões, apenas um filho ilegítimo: Vicente Mendes Maciel, assim descrito: “bonito, de tez ligeiramente morena, vigoroso e intelligente, mas rethraido, taciturno, mal e perigosamente desconfiado, bem que muito cortez, obsequioso e honrado. Tinha momentos terriveis de colera, principalmente quando tocava no alcool. Era de uma valentia indômita e meio surdo. Em um de seus momentos dera tantas facadas na mulher, que esta esteve sacramentada [recebeu a extrema unção]” (Benício; p 15) (1). Depois desse episódio, segundo Benício, ele fez as pazes com a mulher e abandonou a bebida.
__ E quem era essa mulher? Segundo pode-se depreender do batistério de Antonio, ela seria Maria Joaquina (2) com a qual Vicente teve duas filhas, além de Antonio: Maria Francisca (9/6/1831) e Francisca Maria (8/6/1833). Com a morte da primeira esposa ele se casa, em fevereiro de 1836, com Francisca Maria Conceição ou Francisca Maciel, com quem tem, segundo Fernando Câmara (1993), mais duas filhas Dorotea e Rufina – Benício (1899) só faz menção a uma: Rufina.
__ A morte de Maria Joaquina, segundo Benício, desestabilizou o psiquismo frágil do pai que, abandonando definitivamente as atividades de vaqueiro, marca registrada dos Macieis, resolveu se dedicar apenas ao comércio, e, apesar de ser completamente analfabeto, graças à sua diciplina e inteligência vivaz conseguiu razoável prosperidade, mas esta não lhe foi benéfica de todo, uma vez que começou a ser possuído por uma compulsão a construir casas. “Nos últimos tempos, diz Benício, Vicente era vítima de uma demência intermitente” (p 17), até morrer, em 1855, deixando a família ainda com alguns recursos.
__ Quando criança, Antonio era muito sério e compenetrado para a sua idade, característica herdada tanto do modelo paterno como aguçada pelos destratos insidiosos de sua madrasta, embora tenha crescido muito querido pelo povo da cidade, em virtude de seu comportamento exemplar, sua inteligência, sua grande religiosidade e sua paciência com as crianças. Teve, ainda assim, estudos onde se destacou principalmente por sua aplicação e sua letra, muito bonita e caprichosa. Gostava de se isolar e ler muito, em especial os livros piedosos da época, cheios e histórias milagrosas e edificantes, em especial, histórias românticas de cavalaria, a vida dos santos e conselhos de sabedoria bíblica sobre a vida, às vezes tratados de forma muito idealizada (Fernando Câmara, 1993, 1997). Câmara afirma que um livro que lhe causou mais impressão e o seguiu pelo resto da vida foi Missão abreviada, do padre Gonçalo Couto, de 1859 (cuidado com as datas eu aparecem em Câmara, várias estão erradas!) (3). Com a morte do pai, o adulto sonhador continua a aguentar o mau gênio da madrasta, agora inconformada com a sua falta de iniciativa e de tino para as coisas práticas do rapaz, sem falar de sua forte oposição, assim como a de amigos da família, quanto à encantamento dele em relação à jovem Brasilina Lima.
__ Quando a madrasta morreu, ele põe a mão numa bolada dinheiro razoável, mas a dilapida rapidamente devido a sua incompetência comercial, ao mesmo tempo em que é assediado por uma prima desmiolada, de costumes duvidosos, chamada Francisca Tereza de Lima, que em uma de suas aventuras gerara uma filha de tão grande beleza quanto pouco juízo e escrúpulos, de nome Brasilina Laurentina de Lima, de apenas 15 anos, que, experimentada na arte da sedução, quiçá orientada pela mãe, ganha o coração do ingênuo herdeiro. Antonio se apaixona e casa-se com ela às pressas, em janeiro de 1857, e logo têm um filho. Era realmente uma pessoa ingênua, despreparada, que age pelo impulso da paixão e da superficialidade.
__ Muda-se para a cidade de Ipu, e aí tenta carreira como professor e como advogado leigo ou rábula, dedicando-se à advocacia dos mais pobres, o que lhe rende tanta dor de cabeça, com a parcialidade dos juízes, como mui escassos honorários. O casal se empobrece, a vida familiar colapsa, no ano seguinte. Brasilina resolve recorrer a um amante, um furriel (entre cabo e sargento) da polícia, João da Mata, de quem ele era amigo. Segundo uma versão surpreende-os em pleno adultério e, mostrando um sangue frio incomum para m sertanejo, ainda mais para m Maciel, se despede dos dois abandonando a casa, mas outra versão diz que ela e o furriel fugiram com os filhos de Antonio, dois, e que ele, inclusive, teria se tornado cacheiro viajante, batendo todo o Ceará, em busca dos amantes, para acertar as contas, o que explicaria uma lacuna na sua biografia ao longo da década de 1860. Pressionado pela cobrança judicial de uma dívida, em 1871, e repleto de más lembranças, ele abandona o Ceará, por volta de 1873.
__ Brasilina, segundo Benício e Câmara, é, algum tempo depois, abandonada pelo furriel, prostitui-se, e termina seus dias como mendiga, nas ruas de Sobral.

O beato dos sertões

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Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2553462

__ Em algum momento nesse período ele se incorporou às missões do célebre padre Ibiapina (acima), que era o melhor dos mestres possíveis a um pretendente a beato ou padre poderia ter.
__ José Maria Antonio Ibiapina (1806-1883), nascido na cidade de Sobral, era um homem culto, formado em direito e juiz de comarca, que marcara a sua atuação pelo desejo de aplicar rigorosamente a justiça da forma mais correta, uma espécie de Sérgio Moro do semiárido, sendo, entretanto, marcado pelo Judiciário com o desengano causado pela parcialidade de seus colegas e as mazelas do sistema, o que o levou a abandonar o direito e se dedicar à religião, em especial à catequese dos mais pobres, e mais ainda àqueles que estavam esquecidos por todos, inclusive por seus colegas de batina, no mais profundo semiárido.
__ Andando pelos sertões a rezar missas, orando, dando conselhos, orientando, com um espírito animoso e uma oratória vibrante, ele conseguiu mobilizar enormemente o espírito daquela gente, e em pouco tempo começou a correr um boato generalizado de sua santidade e de seus milagres, embora a sua principal marca seja a dos conselhos práticos e os cuidados naturais, materiais, para com as necessidades do povo, a ponto de ser reconhecido por alguns como um pioneiro da Teologia da Libertação. Sua ação de orientando hábitos de higiene e medidas sanitárias adequadas à população rural foi imitada tanto por Antonio Conselheiro como pelo famoso padre Cícero, mas, diferente destes, soube evitar o encanto fácil do sucesso e do voluntarismo.
__ No fundo dos sertões, em busca de algo, que ele não sabe bem o que é, obrigado a enfrentar seus medos e carências, na solidão e no silêncio atordoante da caatinga, sob um sol abrasador, que queima os miolos e turva os sentidos e o juízo, estava Antonio Vicente. As árvores ressecadas, na maior parte do ano, lembravam a viajantes e moradores que ali é o território da morte, que pode vir pela insolação, por um animal peçonhento, pela falta de água ou de comida, além de tiro ou golpe de punhal, tudo de forma absolutamente natural. Lá, no meio da solidão e no combate diuturno com o aniquilamento e a loucura, ele fez o seu rito final de passagem, e deixou, pouco a pouco, de ser o Antonio Vicente Mendes Maciel, de Quixeramobim, para se tornar o Antonio Conselheiro, o mais impactante personagem da história dos sertões.
__ Como Antonio, um homem educado, de cidade, cujas maiores dificuldades até ali se restringiam à análise dos papeis impiedosos que traziam, mês a mês, a marca de sua dificuldade em prover a família, conseguiu sobreviver á inclemência do sertão e tornar-se quem se tornou? Ele, certamente, não se apartou completamente da convivência humana, como um típico anacoreta medieval, mas apenas foi mais para a periferia das vilas, junto às casinhas nas fazendas, onde mora o camponês e o vaqueiro, gente pobre, muito pobre, em termos materiais, mas não miserável, pois no seu meio se sente soberano, e é absolutamente incapaz de negar ajuda a quem pede. No meio dessa gente ele percebeu o valor da solidariedade desinteressada, para além dos laços de sangue, o desejo de paz e sossego, uma teimosia temerária e uma versão do catolicismo que, certamente, foi muito importante na preservação da sua sanidade mental e identidade; um objetivo para a sua vida, ao mesmo tempo em que concluía, na sua infinita solidão, que tudo que fizera para parecer bom aos outros teve como paga os maus tratos, da madrasta, a indiferença do pai, a miséria, do professorado, a hipocrisia, da justiça, e a traição, do amigo e da esposa.
__ Sempre fugindo aos moldes, mesmo os do padre Ibiapina, que conservou-se até o fim ligado à Igreja Católica – não que este fosse um acomodado ou incapaz de detectar as falhas do sistema, mas aprendera, já na magistratura, que não se pode ganhar todas e que é necessário dar tempo para o fruto amadurecer, antes da colheita. Antonio Maciel não era assim, durante quase toda a sua existência refugiara-se no mundo imaginário da literatura e da religão idealizada, onde era soberano, e do qual fora expelido com tanta violência. Agora o mundo seria do jeito que ele queria ou imaginava, e não haveria acordo. Aos poucos a sua mente obstinadamente convencional se transmuta para obstinadamente rebelde, e se afasta dos ideais do mestre Ibiapina. Em 1873 ele abandona o Ceará e se interna nos sertões de Pernambuco e da Bahia, a se aprofundar cada vez mais nos sertões geográficos do semiárido e nos sertão fantástico de seu psiquismo...

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__ Em 22 de novembro de 1874 saiu uma notícia sobre ele no jornal sergipano O Rabudo: "Há seis meses que por todo o centro desta Provincia e da Provincia da Bahia, chegado, diz ele, do Ceará, infesta um aventureiro santarrão que se apelida por Antônio dos Mares. O que, a vista dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o trate por Santo Antônio dos Mares. Esse misterioso personagem, trajando uma enorme camisa azul que lhe serve de hábito, à  forma de um sacerdote, pessimamente suja, cabelos mui espessos e sebosos entre os quais se vê claramente uma espantosa multidão de bichos (piolhos), distingue-se pelo ar misterioso, olhos baços, tez desbotada e de pés nus [outros citam uma rústica alpercatas], o que tudo concorre para o tornar a figura mais degradante do mundo." Outro detalhe descrito por Benício é que ele sempre trazia nas mãos um exemplar da Missão abreviada, do padre Couto.
__ Pelo teor da matéria pode-se deduzir duas coisas: primeiro, o jornalista-editor publicava algo de que ouvira falar por terceiros; segundo, há uma clara intenção de acentuar os detalhes bizarros ou “nojentos”, embora perfeitamente dedutíveis das condições em que Antonio vivia, as mais pobres entre os mais pobres, para conduzir a uma conclusão necessária: esse homem ou não é normal ou não é bom.
__ Sabia-se que já há algum tempo ele vagava pelos sertões sem moradia fixa, sem nunca se deter muito tempo em um lugar, quase não comia nada, das refeições que lhes eram ofertadas pelos sertanejos, dormia onde tivesse abrigo ou mesmo ao relento, estirado diretamente no chão da caatinga, como os profetas mais rústicos do Primeiro Testamento. Achegava-se aos vilarejos e casinhas abandonadas nas fazendas a pregar as mensagens tradicionais de penitência do catolicismo, adaptado à psicologia do povo, ansioso por sinais maravilhosos e bons exemplos. Antonio podia falar do jejum penitencial e da pureza sexual com autoridade, porque isso ele praticava até ao extremo. Quando lhe davam esmolas em dinheiro, que ele achava excessivas, costumava devolver a maior parte.
__ A oração do terço e o cantar das ladainhas, no final do dia, num ritmo dolente, arrastado, monomelodioso, que, graças ao timbre das vozes femininas, que só quem escutou consegue sentir, tinham um poder envolvente e uma sua força primitiva irresistível, eram as suas práticas prediletas, como alguém torturado pedindo a paz, que sabe ser impossível nesse mundo. Havia o trabalho manual, gratuito, feito por ele e a multidão cada vez maior de sertanejos que o seguiam-no em sua peregrinação interminável, na restauração de igrejas e cemitérios e erguimento de capelas, talvez a reprodução inconsciente do modelo paterno, o que, a princípio agradou muito aos padres da região.
__ Mas havia também as pregações e os conselhos, conselhos bem tradicionais, dos quais ele não abria mão, e que recomendavam a conversão dos costumes, conforme prega a igreja, mas com uma ênfase quase “selvagem”, além da condenação peremptória de todos os vícios, o que, deve ter começado a apertar o calo de alguns padres não vocacionados, que devia ser comum numa época em que o catolicismo era religião oficial e o padre um funcionário do estado. Esses foram os primeiros a sentir o látego do profeta dos sertões e a refugar a pregação de Antonio Conselheiro.
__ Mas havia também os padres vocacionados, que podem ter sido a maioria, que não concordavam com os extremos a que Conselheiro se submetia, e incentivava o povo a se submeter por seu exemplo e palavras. Conselheiro, aparentemente, era “literal” demais; e se o literalismo em relação à Bíblia já não é indicado, quanto mais com as Missões abreviadas do padre Couto. Os conselhos e recomendações de Antonio, certamente extrapolavam o razoável, embora não se tenha colhido dele, nem ninguém cite, um ensinamento seu que se possa dizer teologicamente desviante ou “herético”. Embora possa até ter havido.

Começa o calvário

__ Manuel Benício (p 43) informa que ele foi preso, em 1876, numa localidade chamada Missão de Saúde, no extremo da comarca de Itapicuru, na Bahia, e, contra a vontade de seus seguidores, levado para Salvador, e de lá remetido em um navio para o Ceará, começando a sua fama de mártir entre os sertanejos. Com ele seguiu um ofício do Chefe de Polícia da Bahia, o Secretário de Segurança da época, João Bernardo de Magalhães, datado de 6 de junho de 1876, e dirigido ao Chefe de Polícia do Ceará, com as seguintes justificativas:
“... Faço apresentar a V. S. O individuo que se diz chamar Antonio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antonio Conselheiro, que suspeito ser [meu destaque] algum dos criminosos dessa Provincia, que andam foragidos.
Esse indivíduo apareceu... no logar chamado “Missão da Saúde”, e ahi ente gente ignorante, disse-se enviado de Christo, e começou a prégar, levando a superstição de tal gente a ponto de um fanatismo perigoso.
Em suas prédicas plantava o desrespeito ao vigário daquela freguesia...
Em virtude da reclamação que recebi do Ex. vigário capitular, contra o abusivo procedimento desse individuo... embolsando os dinheiros... enchendo as algibeiras... mandei-o busca-lo á Capital, onde, obstinadamente, não quis responder ao interrogatorio...
... Entretanto, si por ventura não for elle ahi criminoso, peço em todo caso... Para que não volte a esta Provincia para onde a sua volta trará certamente resultados desagradaveis pela exaltação que ficaram os espiritos dos phanaticos com a prisão do seu ídolo”.
__ Ou seja, baseado apenas em suspeitas de crimes já acontecidos ou futuros, Antonio é preso e deportado da Bahia. A Magna Carta, de 1215, ainda não chegara àquela Província. E se ele não era um criminoso provado, então era uma pessoa desequilibrada, que precisava atenção especializada, e isso a Bahia podia oferecer, antes de supor que o Ceará todo fosse um imenso manicômio. Era o jogo do “empurra”. Agora acusá-lo de simonia e amor ao dinheiro, a ele que vivia como vivia, foi de uma maldade e de uma hipocrisia incomensurável. Autoridades civis e eclesiásticas projetavam sobre o pobre homem os seus pecados mais recônditos.
__ As coisas ficaram pior ainda, segundo Benício (p 43), com tudo o que Antonio Conselheiro sofreu de privações e humilhações nessa viagem: rasparam-lhe, inclusive, seu volumoso cabelo e barba. De nada ele foi poupado pelos ‘civilizados’ ou ‘ajuizados’, que temiam a ‘loucura’ e o ‘fanatismo’ daquele. “Chegou a Fortaleza já em adiantado estado de demencia [provavelmente em crise], faminto, maltrapilho e açoitado” (idem). Enquanto passava por toda essa provação medonha, ele se agarrava obstinadamente a uma caixa de flandres com a imagem de Jesus crucificado, e graças a esta não perdeu de todo a sanidade...
__ Em 15 de julho de 1876, o chefe de Polícia do Ceará oficia ao juiz da comarca de Quixeramobim, avisando-o da remessa do prisioneiro para que seja feita investigação sobre o seu envolvimento em possíveis crimes. Feita as diligências o juiz Alfredo Alves Mateus, de Quixeramobim, oficia em 1 de agosto de 1876, avisando que em vista de não se achar o nome do Conselheiro envolvido em qualquer crime, libertava-o. Ele revê alguns amigos no Ceará e retorna à Bahia.

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__ A volta do Conselheiro foi considerada pelos sertanejos como um fato miraculoso, e ele recebido em triunfo. Dizia-se até que ele havia predito, com precisão absoluta, no momento em que fora preso, o dia em que retornaria a Bahia. Não havia mais dúvidas quanto a sua santidade e o seu poder perante Deus. As pregações dos padres foram ficando completamente esvaziadas, gerando muita preocupação entre as autoridades religiosas, que, fazendo valer o seu direito de representantes da religião oficial, pedem providências às autoridades civis. D. Luis Antonio dos Santos (acima), Arcebispo da Bahia, oficia ao presidente da província João Capistrano Bandeira de Mello, em 11 de junho de 1887:
“Chegando ao meu conhecimento... que o individuo de nome Antonio Vicente Mendes Maciel, conhecido nas populações pelo nome de Antonio Conselheiro, tem pregado doutrinas subversivas, fazendo grande mal á religião e ao estado, distrahindo o povo... procurando convencer de que é o Espirito-Santo” (Benício, p 48-49).
__ Observe-se o termo “doutrinas subversivas” e o lembrete de que elas podem fazer mal ao “estado”, para pressionar uma ação civil, entretanto essa ação se dirige mais ao atendimento especializado na área de saúde, como se depreende dos ofícios abaixo, do que por uma percepção de que Maciel é um homem mal ou um inimigo da Igreja. Em 15 de junho de 1887, o governador oficia ao arcebispo:
“A respeito do individuo Antonio Vicente Mendes Maciel, conhecido vulgarmente como Antonio Conselheiro, para quem solicito entrada no “Hospicio de Alienados”, da Côrte, como atacado de monomania religiosa...” (idem, p 51)
__ Nesse mesmo dia, 15 de junho, ele oficia ao Conselheiro do Império, Barão de Mamoré, pedindo vaga para o “infeliz monomaniaco”, num hospício do Rio de Janeiro, “para que cesse o estado de perturbação moral em que se acha grande parte do povo do interior desta província...” (idem, p 53). Um pobre louco agitando uma província do porte da Bahia! O que fazem as autoridades desta província nas horas vagas? Em 6 de julho chegou a fatídica resposta do Barão, e é uma das mais antigas e comuns no sistema de saúde pública do Brasil: “não há presentemente no Hospício Pedro II, lugar disponível para o alienado Antonio Vicente Mendes Maciel... ele mais facilmente poderá ser recolhido ao Asilo de Alienados, aí existente” (idem, p 53). Noutras palavras: “Te vira malandro!”
__ Antes mesmo dessa proposta de internação, em circular datada de 16 de fevereiro de 1882, D. Luiz fizera chegar aos párocos e vigários de sua diocese, a sua proibição explícita às pregações de Antonio, sob o patrocínio da Igreja Católica: “... [o] individuo denominado Antonio Conselheiro, pregando ao povo... doutrinas supersticiosas e uma moral excessivamente rígida, com que esta perturbando as consciências e enfraquecendo a autoridade dos párocos... ordenamos á V. revma. Que não consinta e sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos paroquianos que lhes proibimos, absolutamente, de se reunirem, para ouvir tal pregação...” Era o rompimento oficial com a Igreja que sempre fora o centro de sua vida e de sua confusa busca de “santidade”, tanto devido à fraqueza de seu entendimento, quanto do mau comportamento de vários dos representantes daquela.

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Por Raphael Lorenzeto de Abreu - Image:Bahia MesoMicroMunicip.svg, own work, CC BY 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1132944


__ Conselheiro também atrai, ainda em pleno Império, olhos desconfiados das autoridades policiais, como se pode ver nos trechos do ofício abaixo, feito pelo delegado de Itapicuru, de 10 de novembro de 1886, ao Chefe de Polícia em Salvador:
“... no arraial do Bom Jesus existe uma súcia de fanatizados e malvados... Há 12 anos... com pequenas interrupções, fez residência nesse termo... Antonio Conselheiro, que... tem abusado da credulidade dos ignorantes, arrastando-os ao fanatismo...” Após fazer uma menção à prisão ilegal de Maciel em 1876, e o seu retorno aos sertões da Bahia, ele prossegue dizendo: “está no referido arraial construindo uma capella a expensas do povo... O fanatismo não tem mais limites... sem medo de erros e firmado em factos posso afirmar que adoram-no como um Deus vivo.
Nos dias e sermões e terços o ajuntamento sobe a mil pessoas. Na construção dessa capela [uma capela citada no início da carta], cuja feria semanal é de quase cem mil réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses aos quais Antonio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os atentados que cometem...
Entre os operários figura o cearense Feitosa, como chefe, que com os demais fanatizados fizeram no referido arraial uma praça de armas, intimando os cidadãos – como o negociante Miguel de Aguiar Mattos, para mudarem-se do lugar com sua família em 24 horas, sob pena de morte.
Havendo desinteligência entre o grupo de Antonio Conselheiro e o vigário de Inhambupe, está aquele municiado como se estivesse de ferir uma batalha campal, e consta que estão a espera que o vigário vá ao lugar denominado Junco, para assassina-lo. Faz medo... passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de cacetes, facas, facões, clavinote; e ai daquele que for infenso a Antonio Conselheiro.
Há pouco mandando [o vigário de Itapicuru] chama-lo, para pôr termo a este estado de cousas, a resposta que mandou-lhe Antonio Conselheiro, foi: que não tinha negócios com ele, e não veio.
Consta que os vigários das freguesias tem lido a pastoral do Exmo. Sr Arcebispo... nesta ainda não foi lida, sem duvida pelo receio que tem o vigário de se revoltarem contra ele os fanatizados.
....
Cumpre dizer que Antonio Conselheiro que veste uma camisola de pauno azul, com barba e cabelos longos, é malcriado, caprichoso e soberbo.
Não convindo esta ameaça... solicito a V.S. um destacamento de linha para dispersar o grupo de fanáticos”  
__ Os documentos parcialmente citados acima, em especial a carta do delegado de Itapicuru, são muito esclarecedores pelas seguintes razões:
a) Datados de antes de 1889, em pleno regime imperial, eles mostram que a incompatibilidade de Antonio Maciel com as autoridades públicas, civis e religiosas, é anterior à República, à qual não pode ser reputada, exclusivamente, como responsável pelo desenlace final em Canudos, que fatalmente viria sob a monarquia, embora creio eu, de forma bem menos sangrenta, como se verá posteriormente.
b) As autoridades agiram de forma arbitrária, premeditada, violenta e preconceituosa contra Antonio Conselheiro, quiçá agravando seus problemas mentais, e sua “monomania religiosa”, senão o intenso sentimento de perseguição externa e injusta, que lhe movia os atos. A religião e as obras pias impediram-no de transformar-se num assassino psicopota, pistoleiro, como tantos no sertão, reproduzindo o infeliz histórico de sua família, embora tenha assistido impassível, sem mover uma palha em contrário, sem buscar qualquer negociação, o massacre final de todos, que a ele se agregaram em busca de esperança.
c) As autoridades agiram de forma frontalmente arbitrária e ilegal, ao prendê-lo sob a alegação de “fanatismo” e “superstição”, além de mera suspeita de prática de crime, que não estavam previstos no código penal do império e feriam os mais elementares normas de direito humano, mesmo para a época, sem falar da falha clamorosa falha ou má vontade em conseguir para ele atendimento médico hospitalar, mesmo quando a situação já se colocava ameaçadoramente fora de controle.
d) A carta do delegado de Itapicuru é muito reveladora, pois nos esclarece, por meio de um testemunho ocular, o quanto ele era benquisto pelo povo dos sertões, e o quanto esse povo evitava a Igreja tradicional, cujos sacerdotes nem sempre eram modelo de vida correta. Neste item Conselheiro batia de muito a muitos padres e para o homem do sertão é isto que vale – Jesus Cristo disse: “façam o que eles dizem, mas não façam o que eles fazem”. O homem do sertão segue aquele que faz, não importando o que ele diga.
e) Que a sua popularidade já era impressionante, chegando congregar sistematicamente até mil pessoas, considere-se que, tomando como base a população de Salvador na época, esse ajuntamento, equivaleria hoje a umas 15 mil pessoas. O padre Marcelo Rossi do semiárido.
f) Que causava apreensão entre as elites locais, pelas quais fala o delegado, o fato de o Conselheiro pagar 10 vezes mais, que o preço de mercado, pela jornada dos trabalhadores braçais – ficando a questão de saber se isso era uma forma racional, adequada, de distribuição de renda ou uma forma de inserir uma distorção na economia local, que, devido ao seu caráter local, levaria, mais cedo ou mais tarde, a um processo inflacionário que prejudicaria a todos que não fossem contratados do “profeta”. Isso poderia ser isso considerado uma concorrência desleal, sobre a mão-de-obra, embora, pelo teor da carta, tal “graça” só era dada aos trabalhadores cearenses que se agregavam ao projeto, o que, de princípio não ameaçava a exploração tradicional de mão-de-obra, nem o seu concurso necessário à grande economia, ou será que o delegado, proposital ou inconscientemente superdimensionou a participação dos cearenses? Ele não cita o esvaziamento de mão-de-obra alhures.
g) Não creio que o delegado mentisse quando falou de atitudes agressivas, e mesmo criminosas, de elementos ligados ao grupo de Antonio Maciel, mas também não acredito no seu conhecimento sobre essas ações. Para mim são eventos que ocorriam na periferia de um ajuntamento descomunal, e que sempre acontece nessas situações, afinal um Judas prosperou entre apenas uma dúzia! Creio mesmo que, pelos testemunhos que alguns dão de Conselheiro nessa época, sempre com o olhar distante, de quem está em outro mundo, como que conversando com outros seres, um clássico sintoma de alheamento mental, que o sertanejo, de forte ascendência cultural indígena, via como sinal de uma possível interação com seres de outro mundo, ele realmente não desse a mínima para o que estava acontecendo ao seu redor, no mundo real, creio que nem o conseguia, absorvendo o mundo presente apenas pelos informes que lhe davam os colaboradores mais próximos.
h) Decorrente do parágrafo anterior, e também com base no ofício do delegado, longe de ser uma comunidade pacífica os conselheiristas eram gente de guerra, e faziam questão de demonstrar isso ostensivamente, talvez como uma decorrência da absurda prisão sofrida por ele em 1876, que só serviu para ampliar ainda mais o frenesi em torno da sua pessoa. Os sertanejos, ao considerá-lo uma pessoa um “ser iluminado”, um “profeta” de Deus, senão uma encarnação do próprio Jesus Cristo, estariam, de agora em diante, prontos para tirar, assim como para dar, tantas vidas quantas fossem necessárias para mantê-lo ali, junto deles, sem sofrer mais injustiça e maus tratos. A multidão agora protegia e dirigia o profeta, até as últimas consequências.
__ Em breve eles teriam a oportunidade para demonstrar isso...

Notas
(1) O texto aparece assim em Antonio Benício, sem qualquer indicação de autoria, mas Fernando Câmara, na Carta Mensal do Colégio Brasileiro de Genealogia, Genealogia de Antonio Conselheiro, ano VIII, Nº 46, out-dez de 1997, põe exatamente essas mesmas palavras na pena de João Brígido dos Santos, um conhecido jornalista e historiador cearense.
(2) O batistério de Antonio traz apenas o nome Maria Joaquina, mas Fernando Câmara, sem explicar a razão, diz que ela também era conhecida como Maria Joaquina de Jesus ou Maria Joaquina do Nascimento, com a qual Vicente Maciel se casará apenas em 31 de agosto de 1834, quando ela já estava muito doente.
(3) É um exemplo típico da pesada espiritualidade católica do século XIX, marcada pelo extremo penitencial e pelo ressentimento causado pelas derrotas nos embates contra as forças do mundo moderno, lideradas pela burguesia, arreligiosa, nas quais a Igreja só conseguia ver vícios. Esse penitencialismo pesado será ainda mais agravado com a tomada de Roma pela monarquia liberal do Piemonte, em 1870. Os padres, em grande número, só tinham condenações avisos fúnebres para ameaçar aqueles que não faziam parte do “rebanho”. O livro Missão abreviada para despertar os descuidados, converter os pecadores, e sustentar o fruto das missões, um calhamaço de quase mil folhas!, foi escrito pelo padre português Manuel José Gonçalves do Couto, nascido em 1819, e falecido em 17 de setembro de 1897, uns dezoito dias antes da queda de Canudos. Esse livro foi o mais editado em Portugal no século XIX, com 140 mil cópias. Eis alguns trechos copiados de Nobre e Alexandre (2011):
“Quando menos pensares, a morte há de vir sobre ti. Talvez se cortará o fio de tua vida, enquanto estás tecendo ou urdindo teia. Talvez fazendo planos para melhor viver segundo a tua vontade...”
“Tu quando pecas julgas que tens tempo para te confessares e para te emendares; mas, pergunto eu, não podes enganar-te? Por ventura és tu o senhor do tempo?... Quantos pecadores já estão ardendo e gritando no inferno, enganados por esse modo?”


“Considera pecador... virá um dia em que hás de morrer, e apodrecer em uma sepultura, onde serás comida dos bichos. Esse corpo, que agora tanto amas e regalas... As tuas faces, os lábios, os cabelos hão de cair a pedaços. O teu corpo se tornará um esqueleto o mais fétido e medonho. Os teus ossos hão de separar-se uns dos outros; a tua cabeça há de apartar-se do tronco.” etc  quem tentasse viver, literalmente, aquilo que esse livro pregava, poderia acabar com sérios problemas...  

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