CANUDOS
(1896-1897): PEQUENA HISTÓRIA DE UM GRANDE MASSACRE - 1
Prof Eduardo
Simões
Obrigado aos
amigos de Brasil, Alemanha França, EUA, Coreia do Sul, Holanda, Romênia, Angola e
Ucrânia. Deus os abençoe
Peço desculpa aos leitores por ter lutado em vão para reproduzir o português do final do século XIX, em algumas partes deste relato, mas a correção automática do computador me frustrou, mas ainda assim aparecem alguns erros clamorosos no meio da citação literal de documentos; além disso alguns erros de ortografia foram corrigidos (o autor).
Peço desculpa aos leitores por ter lutado em vão para reproduzir o português do final do século XIX, em algumas partes deste relato, mas a correção automática do computador me frustrou, mas ainda assim aparecem alguns erros clamorosos no meio da citação literal de documentos; além disso alguns erros de ortografia foram corrigidos (o autor).
__ Tudo começou
em outubro de 1896, segundo o governador da Bahia Luiz Vianna, com o
recebimento, por este, de um telegrama urgente, enviado pelo juiz da comarca de
Juazeiro, Arlindo Batista Leoni, pedindo o concurso da força pública estadual
para conter um ataque previsto à sua cidade, por uma malta de gente ligada a um
beato conhecido como Antonio Conselheiro, do vilarejo de Canudos. Mas antes
disso muita água e, principalmente, muita poeira, passará por baixo dessa
pinguela, e acima...
A influência do ambiente
http://tribunadoceara.uol.com.br/
__ Antonio
Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, nasceu no mais profundo semiárido
nordestino, na chamada mesorregião dos Sertões Cearenses, a mais árida das sete
microrregiões do estado, na cidadezinha então pobre e estagnada de Quixeramobim,
em 13 de março de 1830, pagando por assim dizer o preço de nascer numa área
fora do interesse do Estado e do grande capital, mas ainda assim
intrinsecamente ligada ao projeto colonial tanto português como nacional-imperial,
mas em virtude de sua pouca relevância política e econômica, para as atividades
exportadoras e a grande política nacional, o semiárido nordestino foi relegado
ao abandono e entregue à lei do mais forte, desde que não afetasse os interesses
estratégicos da elite estabelecida ora em Lisboa ora no Centro-Sul do país.
__ Os tênues
laços com a civilização do litoral e o abandono das autoridades fez com que
prosperasse nessa região, de uma maneira bastante singular, o conceito da
grande família e de fidelidade familiar, fornecedora de mão de obra e braço
armado, para o sustento e a segurança do núcleo gerador – as famílias mais
numerosas do semiárido, assim como os insetos, tinham mais chance de sobreviver
e se impor aos seus adversários que as pequenas; minha avó, gente de Nova
Russas, teve 17 irmãos. Mas isso também conspirou para criar um problema
crônico nessa região: o número de habitantes era sempre superior às
possibilidades da região em sustentá-los com conforto. A pobreza tornou-se
endêmica, e a luta pelos meios de sobrevivência brutal.
__ A principal
fonte de prosperidade no sertão eram os olhos d’água, emanações do espetacular
oceano de água doce que jaz sob o solo crestado da superfície, capaz de
garantir a sobrevivência das criações, principal fonte de sustento e a renda da
família proprietária desse tesouro. Mas, como dissemos antes, havia mais gente
que recursos prosperando, e esses outros também tinham o seu gado e também
queriam ou precisavam daquele olho d’água. Sem o Estado para mediar os conflitos,
ou o fazendo de forma muito precária, a solução era decidir “no braço”, por
meio do conflito armado, quem teria direito aos olhos d’água, ou apossar-se da
esparsa estrutura de estado existente, para usá-la em seu benefício, a
perseguir e exterminar os adversários. Quem logrou esse objetivo, saiu-se
melhor.
__ Afora e para
além disso, havia uma “mentalidade”, uma “cultura”, intangível, que povoava e
ainda povoa a mente dos nordestinos, incompreensível ou “irracional” para quem
não viveu o cotidiano dessa gente, que é o conceito de “honra”, de “ofensa
pessoal”, pelo qual o indivíduo pode, muitas vezes, por tudo a perder,
indiferente aos ganhos e perdas financeiras, se partisse para uma solução
negociada. Hoje, mesmo com a maior presença do Estado, é difícil fazer cessar o
anseio de vingança, de “lavar a honra no sangue”, que torna alguns estados
nordestinos campeões da violência nacional, em que pese o glamour e a
publicidade que recai sobre os traficantes nas grandes cidades. Imagine-se como
não era onipresente e desenfreada essa violência na primeira metade do século
XIX!
http://s2.glbimg.com/cqrdGYgAXdyMRZfgjLKkVcE_ieM=/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2014/03/19/bettini_17.jpg
http://g1.globo.com/
__ Em seu livro O rei dos jagunços, bem documentado,
embora confuso e fantasioso às vezes, mas bastante fiel a essa mentalidade
nordestina, o jornalista Manuel Benício relata entreveros memoráveis entre
famílias, que o adolescente Antonio Vicente Maciel conheceu em primeira mão,
quiçá contado por seus protagonistas, com todo aquele colorido emocional e
riqueza de detalhes que é comum sair da boca dos cearenses, quando começam a
contar seus “causos”, que causam eles serem repentistas imbatíveis e
extraordinários contadores de histórias. E o que aqueles contavam a Antonio era
a saga de uma guerras, brutalidade e violência sem limites e sem fim...
__ O período não
era muito favorável: início das Regências, tempo de indefinição e alternativas,
criado pela fuga tumultuária de D Pedro I, momento propício para a vazão e o
aumento de acertos de contas locais, aproveitando-se do agravamento da
corrupção local e da indiferença tradicionais das autoridades centrais,
agravadas pelas incertezas políticas e a emergência de novos atores na cena
política nacional.
__ Eram os
Maciel, a família de Antonio Vicente, uma gente de pequenos criadores, muito
numerosa, rústica e valente, que lutava a duras penas para sobreviver com os
poucos recursos que lhes dava o sertão entre Quixeramobim e Tamboril, no Ceará.
Disputando pelos mesmos recursos, embora mais abastados, estavam os Araújos e
seus aliados: os Veras, em um ambiente tão hostil e carregado bastava uma
palavra, um mal entendido, uma fofoca, para desencadear uma hecatombe de sangue,
como ocorreu, quando um roubo sofrido por Silvestre Rodrigues Veras foi precipitadamente
atribuído aos Maciel, e um deles, Miguel Carlos, tio do Conselheiro, lançou de
volta a suspeita sobre gente dos próprios Veras, e ainda aproveitou para mandar
um recado: quem chamasse um Maciel de ladrão, pagaria com a vida. Era o
longínquo ano de 1833.
__ Tem então início
uma guerra aberta entre os clãs, com fortes baixas de ambos os lados, e a muito
custo, chamando capitães do mato de fora, os Veras-Araújos conseguem prender,
sob garantia de vida, os principais chefes dos Maciel. Porém, sob o falso
pretexto de transferi-los a outra prisão, os Araújo, como era tradicional
acontecer nesses casos, montaram uma armadilha no meio do caminho e trucidaram
vários Maciel, conseguindo outros fugir, entre eles, ferido, Miguel Carlos – é
curioso que numa sociedade onde o conceito de honra era sempre evocado antes de
se tomar decisões tão fatais, se desse tão pouco valor à palavra dada, e a
emboscada, ao invés do duelo, fosse a forma tradicional de acerto de contas. Um
conceito de honra estranho, para padrões civilizados, mas não para uma
sociedade onde as pessoas eram consideradas essencialmente desiguais, e as
relações humanas muito assimétricas.
__ Miguel
ocultou-se na casa de uma irmã, mas, enquanto se tratava, um grupo de jagunço
dos Araújo atacou o lugar, no momento que um valentão assoma temerariamente o
umbral da porta é abatido por um tiro certeiro de Miguel, e cai. A irmã de
Miguel corre para afastar o corpo e fechar a porta, mas nesse momento é abatida
por um tiro do principal jagunço da volante, Pedro Martins Veiga, que, ao matá-la,
se expõe, e recebe um balaço certeiro e vingador do irmão da vítima. Os outros
recuam e esperam o anoitecer, quando se aproximam, sem ser vistos, e põem fogo
no lugar. Miguel, aproveitando-se da escuridão, foge pela caatinga, sem ser
visto, deixando para trás a sepultura incandescente da irmã. Haveria vingança.
__ A agressão
era tanto mais odiosa para os Maciel, porque a mulher assassinada morrera solteira,
por isso, quando souberam que Luciano Domingues de Araújo, filho de um
importante Araújo, de casamento marcado, estava de passagem, resolveram fazer o acerto de contas. Um tiro
de Estacio José da Gama, de um ramo colateral da família, jogou por terra os sonhos
futuros do quase casal. Luciano, no dia do casamento, chegou baleado à casa da
noiva, apenas a tempo de casar e morrer.
__ Estácio foi
preso, julgado e condenado à morte, pelo assassinato de Luciano, no dia 14 de
março de 1834, e morreu por fuzilamento no dia seguinte, às 16:00, sem entregar
ninguém dos envolvidos na trama. A execução imediata de Estácio, entretanto,
foi um escândalo jurídico, pois conforme a lei vigente o condenado tinha o
direito a um prazo de até oito dias para apelar ao Imperador – decretos de 11
de setembro de 1826 e 15 de novembro de 1827. O juiz do caso, Antonio Duarte de
Queiroz (juiz leigo), aparentado aos Araújo, simplesmente alegou, num ofício
datado de 21 de junho de 1834, que ignorava tais decretos! Queiroz foi levado a
julgamento, num tribunal suspeito, e inocentado (ver Benício, 1899).
__ Não havia
para onde correr, não havia de onde esperar justiça, nem havia como ficar
neutro. O homem do semiárido já sabia, desde crianças, que teria duas opções na
vida, ou se tornaria jagunço, a serviço irrestrito de um chefão local, em geral
um grande proprietário, quiçá, com título de nobreza, matando gente ou
falsificando papeis em cartórios, ou seria um cangaceiro, que é uma espécie de
jagunço independente, embora próximo ou aliado a este ou aquele chefão. Um
criminoso, como aquele, com mais liberdade para escolher suas vítimas. A única
opção para quem não queria se expor à violência era se tornar padre ou beato,
homem acreditado como próximo de Deus, ou do diabo, o bastante para fazer os
circunstantes, inclusive os mais destemidos e famigerados jagunços, tremerem de
medo só ao ver sua silhueta.
__ O assassinato
do noivo levou ao episódio mais dramático e icônico dessa guerra bestial.
Prostrado por uma bala, numa emboscada organizada pelos Araújos, Miguel Carlos
tomba gravemente ferido. Quando Manuel Araújo, irmão do noivo, aproxima-se e crava-lhe
a punhalada final, para poder, conforme manda a tradição dos “valentes”, gabar-se
de ter morto o desafeto com as próprias mãos, Miguel, juntando as últimas forças,
crava seu punhal no pescoço daquele. E assim ambos, inimigos incondicionais,
morrem, um sobre o outro, abraçados, como se irmãos fossem, unidos pelo ódio
recíproco, incontrolável, inconsciente e de origem, quiçá, indeterminada.
__ E assim por
diante, em vários outras regiões do Nordeste, em uma infinidade de famílias.
A influência familiar
__ Miguel Carlos
Maciel, o pai do Miguel Carlos acima, era avô de Antonio. Um homem destemido e
brigador, teve, ao contrário dos grandes patriarcas nos sertões, apenas um
filho ilegítimo: Vicente Mendes Maciel, assim descrito: “bonito, de tez
ligeiramente morena, vigoroso e intelligente, mas rethraido, taciturno, mal e
perigosamente desconfiado, bem que muito cortez, obsequioso e honrado. Tinha
momentos terriveis de colera, principalmente quando tocava no alcool. Era de
uma valentia indômita e meio surdo. Em um de seus momentos dera tantas facadas
na mulher, que esta esteve sacramentada [recebeu a extrema unção]” (Benício; p
15) (1). Depois desse episódio,
segundo Benício, ele fez as pazes com a mulher e abandonou a bebida.
__ E quem era
essa mulher? Segundo pode-se depreender do batistério de Antonio, ela seria
Maria Joaquina (2) com a qual
Vicente teve duas filhas, além de Antonio: Maria Francisca (9/6/1831) e
Francisca Maria (8/6/1833). Com a morte da primeira esposa ele se casa, em
fevereiro de 1836, com Francisca Maria Conceição ou Francisca Maciel, com quem
tem, segundo Fernando Câmara (1993), mais duas filhas Dorotea e Rufina –
Benício (1899) só faz menção a uma: Rufina.
__ A morte de
Maria Joaquina, segundo Benício, desestabilizou o psiquismo frágil do pai que,
abandonando definitivamente as atividades de vaqueiro, marca registrada dos
Macieis, resolveu se dedicar apenas ao comércio, e, apesar de ser completamente
analfabeto, graças à sua diciplina e inteligência vivaz conseguiu razoável
prosperidade, mas esta não lhe foi benéfica de todo, uma vez que começou a ser
possuído por uma compulsão a construir casas. “Nos últimos tempos, diz Benício,
Vicente era vítima de uma demência intermitente” (p 17), até morrer, em 1855,
deixando a família ainda com alguns recursos.
__ Quando
criança, Antonio era muito sério e compenetrado para a sua idade,
característica herdada tanto do modelo paterno como aguçada pelos destratos
insidiosos de sua madrasta, embora tenha crescido muito querido pelo povo da
cidade, em virtude de seu comportamento exemplar, sua inteligência, sua grande
religiosidade e sua paciência com as crianças. Teve, ainda assim, estudos onde
se destacou principalmente por sua aplicação e sua letra, muito bonita e
caprichosa. Gostava de se isolar e ler muito, em especial os livros piedosos da
época, cheios e histórias milagrosas e edificantes, em especial, histórias
românticas de cavalaria, a vida dos santos e conselhos de sabedoria bíblica sobre a
vida, às vezes tratados de forma muito idealizada (Fernando Câmara, 1993, 1997).
Câmara afirma que um livro que lhe causou mais impressão e o seguiu pelo resto
da vida foi Missão abreviada, do
padre Gonçalo Couto, de 1859 (cuidado com as datas eu aparecem em Câmara, várias
estão erradas!) (3). Com a morte do
pai, o adulto sonhador continua a aguentar o mau gênio da madrasta, agora inconformada
com a sua falta de iniciativa e de tino para as coisas práticas do rapaz, sem
falar de sua forte oposição, assim como a de amigos da família, quanto à
encantamento dele em relação à jovem Brasilina Lima.
__ Quando a
madrasta morreu, ele põe a mão numa bolada dinheiro razoável, mas a dilapida rapidamente
devido a sua incompetência comercial, ao mesmo tempo em que é assediado por uma
prima desmiolada, de costumes duvidosos, chamada Francisca Tereza de Lima, que
em uma de suas aventuras gerara uma filha de tão grande beleza quanto pouco
juízo e escrúpulos, de nome Brasilina Laurentina de Lima, de apenas 15 anos, que,
experimentada na arte da sedução, quiçá orientada pela mãe, ganha o coração do
ingênuo herdeiro. Antonio se apaixona e casa-se com ela às pressas, em janeiro
de 1857, e logo têm um filho. Era realmente uma pessoa ingênua, despreparada,
que age pelo impulso da paixão e da superficialidade.
__ Muda-se para
a cidade de Ipu, e aí tenta carreira como professor e como advogado leigo ou
rábula, dedicando-se à advocacia dos mais pobres, o que lhe rende tanta dor de
cabeça, com a parcialidade dos juízes, como mui escassos honorários. O casal se
empobrece, a vida familiar colapsa, no ano seguinte. Brasilina resolve recorrer
a um amante, um furriel (entre cabo e sargento) da polícia, João da Mata, de
quem ele era amigo. Segundo uma versão surpreende-os em pleno adultério e,
mostrando um sangue frio incomum para m sertanejo, ainda mais para m Maciel, se
despede dos dois abandonando a casa, mas outra versão diz que ela e o furriel
fugiram com os filhos de Antonio, dois, e que ele, inclusive, teria se tornado
cacheiro viajante, batendo todo o Ceará, em busca dos amantes, para acertar as
contas, o que explicaria uma lacuna na sua biografia ao longo da década de 1860.
Pressionado pela cobrança judicial de uma dívida, em 1871, e repleto de más
lembranças, ele abandona o Ceará, por volta de 1873.
__ Brasilina, segundo
Benício e Câmara, é, algum tempo depois, abandonada pelo furriel, prostitui-se, e termina
seus dias como mendiga, nas ruas de Sobral.
O beato dos sertões
Domínio público,
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2553462
__ Em algum
momento nesse período ele se incorporou às missões do célebre padre Ibiapina
(acima), que era o melhor dos mestres possíveis a um pretendente a beato ou
padre poderia ter.
__ José Maria
Antonio Ibiapina (1806-1883), nascido na cidade de Sobral, era um homem culto,
formado em direito e juiz de comarca, que marcara a sua atuação pelo desejo de
aplicar rigorosamente a justiça da forma mais correta, uma espécie de Sérgio
Moro do semiárido, sendo, entretanto, marcado pelo Judiciário com o desengano
causado pela parcialidade de seus colegas e as mazelas do sistema, o que o
levou a abandonar o direito e se dedicar à religião, em especial à catequese
dos mais pobres, e mais ainda àqueles que estavam esquecidos por todos,
inclusive por seus colegas de batina, no mais profundo semiárido.
__ Andando pelos
sertões a rezar missas, orando, dando conselhos, orientando, com um espírito
animoso e uma oratória vibrante, ele conseguiu mobilizar enormemente o espírito
daquela gente, e em pouco tempo começou a correr um boato generalizado de sua
santidade e de seus milagres, embora a sua principal marca seja a dos conselhos
práticos e os cuidados naturais, materiais, para com as necessidades do povo, a
ponto de ser reconhecido por alguns como um pioneiro da Teologia da Libertação.
Sua ação de orientando hábitos de higiene e medidas sanitárias adequadas à
população rural foi imitada tanto por Antonio Conselheiro como pelo famoso
padre Cícero, mas, diferente destes, soube evitar o encanto fácil do sucesso e
do voluntarismo.
__ No fundo dos
sertões, em busca de algo, que ele não sabe bem o que é, obrigado a enfrentar seus
medos e carências, na solidão e no silêncio atordoante da caatinga, sob um sol
abrasador, que queima os miolos e turva os sentidos e o juízo, estava Antonio
Vicente. As árvores ressecadas, na maior parte do ano, lembravam a viajantes e
moradores que ali é o território da morte, que pode vir pela insolação, por um
animal peçonhento, pela falta de água ou de comida, além de tiro ou golpe de
punhal, tudo de forma absolutamente natural. Lá, no meio da solidão e no
combate diuturno com o aniquilamento e a loucura, ele fez o seu rito final de
passagem, e deixou, pouco a pouco, de ser o Antonio Vicente Mendes Maciel, de
Quixeramobim, para se tornar o Antonio Conselheiro, o mais impactante personagem
da história dos sertões.
__ Como Antonio,
um homem educado, de cidade, cujas maiores dificuldades até ali se restringiam
à análise dos papeis impiedosos que traziam, mês a mês, a marca de sua
dificuldade em prover a família, conseguiu sobreviver á inclemência do sertão e
tornar-se quem se tornou? Ele, certamente, não se apartou completamente da
convivência humana, como um típico anacoreta medieval, mas apenas foi mais para
a periferia das vilas, junto às casinhas nas fazendas, onde mora o camponês e o
vaqueiro, gente pobre, muito pobre, em termos materiais, mas não miserável,
pois no seu meio se sente soberano, e é absolutamente incapaz de negar ajuda a
quem pede. No meio dessa gente ele percebeu o valor da solidariedade
desinteressada, para além dos laços de sangue, o desejo de paz e sossego, uma
teimosia temerária e uma versão do catolicismo que, certamente, foi muito
importante na preservação da sua sanidade mental e identidade; um objetivo para
a sua vida, ao mesmo tempo em que concluía, na sua infinita solidão, que tudo
que fizera para parecer bom aos outros teve como paga os maus tratos, da
madrasta, a indiferença do pai, a miséria, do professorado, a hipocrisia, da
justiça, e a traição, do amigo e da esposa.
__ Sempre
fugindo aos moldes, mesmo os do padre Ibiapina, que conservou-se até o fim
ligado à Igreja Católica – não que este fosse um acomodado ou incapaz de
detectar as falhas do sistema, mas aprendera, já na magistratura, que não se
pode ganhar todas e que é necessário dar tempo para o fruto amadurecer, antes
da colheita. Antonio Maciel não era assim, durante quase toda a sua existência
refugiara-se no mundo imaginário da literatura e da religão idealizada, onde
era soberano, e do qual fora expelido com tanta violência. Agora o mundo seria
do jeito que ele queria ou imaginava, e não haveria acordo. Aos poucos a sua
mente obstinadamente convencional se transmuta para obstinadamente rebelde, e
se afasta dos ideais do mestre Ibiapina. Em 1873 ele abandona o Ceará e se
interna nos sertões de Pernambuco e da Bahia, a se aprofundar cada vez mais nos
sertões geográficos do semiárido e nos sertão fantástico de seu psiquismo...
http://www.fatosdesconhecidos.com.br/
__ Em 22 de
novembro de 1874 saiu uma notícia sobre ele no jornal sergipano O Rabudo: "Há seis meses que por todo o centro desta Provincia e
da Provincia da Bahia, chegado, diz ele, do Ceará, infesta um aventureiro
santarrão que se apelida por Antônio dos Mares. O que, a vista dos aparentes e
mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o
trate por Santo Antônio dos Mares. Esse misterioso personagem, trajando uma enorme
camisa azul que lhe serve de hábito, à forma de um sacerdote,
pessimamente suja, cabelos mui espessos e sebosos entre os quais se vê
claramente uma espantosa multidão de bichos (piolhos), distingue-se pelo ar
misterioso, olhos baços, tez desbotada e de pés nus [outros citam uma rústica
alpercatas], o que tudo concorre para o tornar a figura mais degradante do
mundo." Outro detalhe descrito por Benício é que ele sempre trazia nas
mãos um exemplar da Missão abreviada,
do padre Couto.
__ Pelo teor
da matéria pode-se deduzir duas coisas: primeiro, o jornalista-editor publicava
algo de que ouvira falar por terceiros; segundo, há uma clara intenção de
acentuar os detalhes bizarros ou “nojentos”, embora perfeitamente dedutíveis
das condições em que Antonio vivia, as mais pobres entre os mais pobres, para
conduzir a uma conclusão necessária: esse homem ou não é normal ou não é bom.
__ Sabia-se
que já há algum tempo ele vagava pelos sertões sem moradia fixa, sem nunca se
deter muito tempo em um lugar, quase não comia nada, das refeições que lhes
eram ofertadas pelos sertanejos, dormia onde tivesse abrigo ou mesmo ao
relento, estirado diretamente no chão da caatinga, como os profetas mais
rústicos do Primeiro Testamento. Achegava-se aos vilarejos e casinhas abandonadas
nas fazendas a pregar as mensagens tradicionais de penitência do catolicismo,
adaptado à psicologia do povo, ansioso por sinais maravilhosos e bons exemplos.
Antonio podia falar do jejum penitencial e da pureza sexual com autoridade,
porque isso ele praticava até ao extremo. Quando lhe davam esmolas em dinheiro,
que ele achava excessivas, costumava devolver a maior parte.
__ A oração do
terço e o cantar das ladainhas, no final do dia, num ritmo dolente, arrastado,
monomelodioso, que, graças ao timbre das vozes femininas, que só quem escutou
consegue sentir, tinham um poder envolvente e uma sua força primitiva
irresistível, eram as suas práticas prediletas, como alguém torturado
pedindo a paz, que sabe ser impossível nesse mundo. Havia o trabalho manual,
gratuito, feito por ele e a multidão cada vez maior de sertanejos que o seguiam-no
em sua peregrinação interminável, na restauração de igrejas e cemitérios e
erguimento de capelas, talvez a reprodução inconsciente do modelo paterno, o
que, a princípio agradou muito aos padres da região.
__ Mas havia também
as pregações e os conselhos, conselhos bem tradicionais, dos quais ele não
abria mão, e que recomendavam a conversão dos costumes, conforme prega a
igreja, mas com uma ênfase quase “selvagem”, além da condenação peremptória de
todos os vícios, o que, deve ter começado a apertar o calo de alguns padres não
vocacionados, que devia ser comum numa época em que o catolicismo era religião
oficial e o padre um funcionário do estado. Esses foram os primeiros a sentir o
látego do profeta dos sertões e a refugar a pregação de Antonio Conselheiro.
__ Mas havia
também os padres vocacionados, que podem ter sido a maioria, que não
concordavam com os extremos a que Conselheiro se submetia, e incentivava o povo
a se submeter por seu exemplo e palavras. Conselheiro, aparentemente, era
“literal” demais; e se o literalismo em relação à Bíblia já não é indicado,
quanto mais com as Missões abreviadas
do padre Couto. Os conselhos e recomendações de Antonio, certamente extrapolavam
o razoável, embora não se tenha colhido dele, nem ninguém cite, um ensinamento
seu que se possa dizer teologicamente desviante ou “herético”. Embora possa até
ter havido.
Começa o calvário
__ Manuel
Benício (p 43) informa que ele foi preso, em 1876, numa localidade chamada
Missão de Saúde, no extremo da comarca de Itapicuru, na Bahia, e, contra a
vontade de seus seguidores, levado para Salvador, e de lá remetido em um navio
para o Ceará, começando a sua fama de mártir entre os sertanejos. Com ele seguiu
um ofício do Chefe de Polícia da Bahia, o Secretário de Segurança da época, João
Bernardo de Magalhães, datado de 6 de junho de 1876, e dirigido ao Chefe de
Polícia do Ceará, com as seguintes justificativas:
“... Faço
apresentar a V. S. O individuo que se diz chamar Antonio Vicente Mendes Maciel,
conhecido como Antonio Conselheiro, que suspeito
ser [meu destaque] algum dos criminosos dessa Provincia, que andam
foragidos.
Esse indivíduo
apareceu... no logar chamado “Missão da Saúde”, e ahi ente gente ignorante,
disse-se enviado de Christo, e começou a prégar, levando a superstição de tal
gente a ponto de um fanatismo perigoso.
Em suas
prédicas plantava o desrespeito ao vigário daquela freguesia...
Em virtude da
reclamação que recebi do Ex. vigário capitular, contra o abusivo procedimento
desse individuo... embolsando os dinheiros... enchendo as algibeiras...
mandei-o busca-lo á Capital, onde, obstinadamente, não quis responder ao
interrogatorio...
...
Entretanto, si por ventura não for elle ahi criminoso, peço em todo caso...
Para que não volte a esta Provincia para onde a sua volta trará certamente
resultados desagradaveis pela exaltação que ficaram os espiritos dos phanaticos
com a prisão do seu ídolo”.
__ Ou seja,
baseado apenas em suspeitas de crimes já acontecidos ou futuros, Antonio é
preso e deportado da Bahia. A Magna Carta, de 1215, ainda não chegara àquela
Província. E se ele não era um criminoso provado, então era uma pessoa
desequilibrada, que precisava atenção especializada, e isso a Bahia podia
oferecer, antes de supor que o Ceará todo fosse um imenso manicômio. Era o jogo
do “empurra”. Agora acusá-lo de simonia e amor ao dinheiro, a ele que vivia
como vivia, foi de uma maldade e de uma hipocrisia incomensurável. Autoridades
civis e eclesiásticas projetavam sobre o pobre homem os seus pecados mais
recônditos.
__ As coisas
ficaram pior ainda, segundo Benício (p 43), com tudo o que Antonio Conselheiro
sofreu de privações e humilhações nessa viagem: rasparam-lhe, inclusive, seu
volumoso cabelo e barba. De nada ele foi poupado pelos ‘civilizados’ ou
‘ajuizados’, que temiam a ‘loucura’ e o ‘fanatismo’ daquele. “Chegou a
Fortaleza já em adiantado estado de demencia [provavelmente em crise], faminto,
maltrapilho e açoitado” (idem). Enquanto passava por toda essa provação
medonha, ele se agarrava obstinadamente a uma caixa de flandres com a imagem de
Jesus crucificado, e graças a esta não perdeu de todo a sanidade...
__ Em 15 de
julho de 1876, o chefe de Polícia do Ceará oficia ao juiz da comarca de Quixeramobim,
avisando-o da remessa do prisioneiro para que seja feita investigação sobre o
seu envolvimento em possíveis crimes. Feita as diligências o juiz Alfredo Alves
Mateus, de Quixeramobim, oficia em 1 de agosto de 1876, avisando que em vista de
não se achar o nome do Conselheiro envolvido em qualquer crime, libertava-o.
Ele revê alguns amigos no Ceará e retorna à Bahia.
http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/wp-content/uploads/2011/02/DOM-LUIS-ANTONIO-DOS-SANTOS.jpg
http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/
__ A volta do
Conselheiro foi considerada pelos sertanejos como um fato miraculoso, e ele
recebido em triunfo. Dizia-se até que ele havia predito, com precisão absoluta,
no momento em que fora preso, o dia em que retornaria a Bahia. Não havia mais
dúvidas quanto a sua santidade e o seu poder perante Deus. As pregações dos
padres foram ficando completamente esvaziadas, gerando muita preocupação entre
as autoridades religiosas, que, fazendo valer o seu direito de representantes
da religião oficial, pedem providências às autoridades civis. D. Luis Antonio
dos Santos (acima), Arcebispo da Bahia, oficia ao presidente da província João
Capistrano Bandeira de Mello, em 11 de junho de 1887:
“Chegando ao
meu conhecimento... que o individuo de nome Antonio Vicente Mendes Maciel,
conhecido nas populações pelo nome de Antonio Conselheiro, tem pregado
doutrinas subversivas, fazendo grande mal á religião e ao estado, distrahindo o
povo... procurando convencer de que é o Espirito-Santo” (Benício, p 48-49).
__ Observe-se
o termo “doutrinas subversivas” e o lembrete de que elas podem fazer mal ao
“estado”, para pressionar uma ação civil, entretanto essa ação se dirige mais
ao atendimento especializado na área de saúde, como se depreende dos ofícios
abaixo, do que por uma percepção de que Maciel é um homem mal ou um inimigo da
Igreja. Em 15 de junho de 1887, o governador oficia ao arcebispo:
“A respeito do
individuo Antonio Vicente Mendes Maciel, conhecido vulgarmente como Antonio
Conselheiro, para quem solicito entrada no “Hospicio de Alienados”, da Côrte,
como atacado de monomania religiosa...” (idem, p 51)
__ Nesse mesmo
dia, 15 de junho, ele oficia ao Conselheiro do Império, Barão de Mamoré,
pedindo vaga para o “infeliz monomaniaco”, num hospício do Rio de Janeiro,
“para que cesse o estado de perturbação moral em que se acha grande parte do
povo do interior desta província...” (idem, p 53). Um pobre louco agitando uma
província do porte da Bahia! O que fazem as autoridades desta província nas
horas vagas? Em 6 de julho chegou a fatídica resposta do Barão, e é uma das
mais antigas e comuns no sistema de saúde pública do Brasil: “não há presentemente no Hospício Pedro II, lugar disponível para o alienado Antonio
Vicente Mendes Maciel... ele mais facilmente poderá ser recolhido ao Asilo de
Alienados, aí existente” (idem, p 53). Noutras palavras: “Te vira malandro!”
__ Antes mesmo
dessa proposta de internação, em circular datada de 16 de fevereiro de 1882, D.
Luiz fizera chegar aos párocos e vigários de sua diocese, a sua proibição explícita
às pregações de Antonio, sob o patrocínio da Igreja Católica: “... [o] individuo
denominado Antonio Conselheiro, pregando ao povo... doutrinas supersticiosas e
uma moral excessivamente rígida, com que esta perturbando as consciências e
enfraquecendo a autoridade dos párocos... ordenamos á V. revma. Que não
consinta e sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos paroquianos que lhes
proibimos, absolutamente, de se reunirem, para ouvir tal pregação...” Era o
rompimento oficial com a Igreja que sempre fora o centro de sua vida e de sua
confusa busca de “santidade”, tanto devido à fraqueza de seu entendimento, quanto
do mau comportamento de vários dos representantes daquela.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/3a/Bahia_Municip_Itapicuru.svg/800px-Bahia_Municip_Itapicuru.svg.png
Por Raphael Lorenzeto de Abreu - Image:Bahia MesoMicroMunicip.svg, own work, CC BY 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1132944
__ Conselheiro
também atrai, ainda em pleno Império, olhos desconfiados das autoridades
policiais, como se pode ver nos trechos do ofício abaixo, feito pelo delegado
de Itapicuru, de 10 de novembro de 1886, ao Chefe de Polícia em Salvador:
“... no
arraial do Bom Jesus existe uma súcia de fanatizados e malvados... Há 12
anos... com pequenas interrupções, fez residência nesse termo... Antonio
Conselheiro, que... tem abusado da credulidade dos ignorantes, arrastando-os ao
fanatismo...” Após fazer uma menção à prisão ilegal de Maciel em 1876, e o seu
retorno aos sertões da Bahia, ele prossegue dizendo: “está no referido arraial
construindo uma capella a expensas do povo... O fanatismo não tem mais
limites... sem medo de erros e firmado em factos posso afirmar que adoram-no
como um Deus vivo.
Nos dias e
sermões e terços o ajuntamento sobe a mil pessoas. Na construção dessa capela
[uma capela citada no início da carta], cuja feria semanal é de quase cem mil
réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses aos quais
Antonio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os
atentados que cometem...
Entre os
operários figura o cearense Feitosa, como chefe, que com os demais fanatizados
fizeram no referido arraial uma praça de armas, intimando os cidadãos – como o
negociante Miguel de Aguiar Mattos, para mudarem-se do lugar com sua família em
24 horas, sob pena de morte.
Havendo
desinteligência entre o grupo de Antonio Conselheiro e o vigário de Inhambupe,
está aquele municiado como se estivesse de ferir uma batalha campal, e consta
que estão a espera que o vigário vá ao lugar denominado Junco, para
assassina-lo. Faz medo... passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de
cacetes, facas, facões, clavinote; e ai daquele que for infenso a Antonio
Conselheiro.
Há pouco
mandando [o vigário de Itapicuru] chama-lo, para pôr termo a este estado de
cousas, a resposta que mandou-lhe Antonio Conselheiro, foi: que não tinha
negócios com ele, e não veio.
Consta que os
vigários das freguesias tem lido a pastoral do Exmo. Sr Arcebispo... nesta ainda
não foi lida, sem duvida pelo receio que tem o vigário de se revoltarem contra
ele os fanatizados.
....
Cumpre dizer
que Antonio Conselheiro que veste uma camisola de pauno azul, com barba e
cabelos longos, é malcriado, caprichoso e soberbo.
Não convindo
esta ameaça... solicito a V.S. um destacamento de linha para dispersar o grupo
de fanáticos”
__ Os documentos
parcialmente citados acima, em especial a carta do delegado de Itapicuru, são
muito esclarecedores pelas seguintes razões:
a) Datados de
antes de 1889, em pleno regime imperial, eles mostram que a incompatibilidade
de Antonio Maciel com as autoridades públicas, civis e religiosas, é anterior à
República, à qual não pode ser reputada, exclusivamente, como responsável pelo
desenlace final em Canudos, que fatalmente viria sob a monarquia, embora creio
eu, de forma bem menos sangrenta, como se verá posteriormente.
b) As
autoridades agiram de forma arbitrária, premeditada, violenta e preconceituosa
contra Antonio Conselheiro, quiçá agravando seus problemas mentais, e sua “monomania
religiosa”, senão o intenso sentimento de perseguição externa e injusta, que
lhe movia os atos. A religião e as obras pias impediram-no de transformar-se
num assassino psicopota, pistoleiro, como tantos no sertão, reproduzindo o
infeliz histórico de sua família, embora tenha assistido impassível, sem mover
uma palha em contrário, sem buscar qualquer negociação, o massacre final de
todos, que a ele se agregaram em busca de esperança.
c) As autoridades agiram de forma frontalmente arbitrária
e ilegal, ao prendê-lo sob a alegação de “fanatismo” e “superstição”, além de mera suspeita de prática de crime, que não
estavam previstos no código penal do império e feriam os mais elementares
normas de direito humano, mesmo para a época, sem falar da falha clamorosa falha
ou má vontade em conseguir para ele atendimento médico hospitalar, mesmo quando
a situação já se colocava ameaçadoramente fora de controle.
d) A carta do
delegado de Itapicuru é muito reveladora, pois nos esclarece, por meio de um
testemunho ocular, o quanto ele era benquisto pelo povo dos sertões, e o quanto
esse povo evitava a Igreja tradicional, cujos sacerdotes nem sempre eram modelo
de vida correta. Neste item Conselheiro batia de muito a muitos padres e para o
homem do sertão é isto que vale – Jesus Cristo disse: “façam o que eles dizem,
mas não façam o que eles fazem”. O homem do sertão segue aquele que faz, não
importando o que ele diga.
e) Que a sua
popularidade já era impressionante, chegando congregar sistematicamente até mil
pessoas, considere-se que, tomando como base a população de Salvador na época,
esse ajuntamento, equivaleria hoje a umas 15 mil pessoas. O padre Marcelo Rossi
do semiárido.
f) Que causava
apreensão entre as elites locais, pelas quais fala o delegado, o fato de o
Conselheiro pagar 10 vezes mais, que o preço de mercado, pela jornada dos
trabalhadores braçais – ficando a questão de saber se isso era uma forma
racional, adequada, de distribuição de renda ou uma forma de inserir uma
distorção na economia local, que, devido ao seu caráter local, levaria, mais
cedo ou mais tarde, a um processo inflacionário que prejudicaria a todos que
não fossem contratados do “profeta”. Isso poderia ser isso considerado uma
concorrência desleal, sobre a mão-de-obra, embora, pelo teor da carta, tal “graça”
só era dada aos trabalhadores cearenses que se agregavam ao projeto, o que, de
princípio não ameaçava a exploração tradicional de mão-de-obra, nem o seu
concurso necessário à grande economia, ou será que o delegado, proposital ou
inconscientemente superdimensionou a participação dos cearenses? Ele não cita o
esvaziamento de mão-de-obra alhures.
g) Não creio que
o delegado mentisse quando falou de atitudes agressivas, e mesmo criminosas, de
elementos ligados ao grupo de Antonio Maciel, mas também não acredito no seu
conhecimento sobre essas ações. Para mim são eventos que ocorriam na periferia
de um ajuntamento descomunal, e que sempre acontece nessas situações, afinal um
Judas prosperou entre apenas uma dúzia! Creio mesmo que, pelos testemunhos que
alguns dão de Conselheiro nessa época, sempre com o olhar distante, de quem
está em outro mundo, como que conversando com outros seres, um clássico sintoma
de alheamento mental, que o sertanejo, de forte ascendência cultural indígena,
via como sinal de uma possível interação com seres de outro mundo, ele
realmente não desse a mínima para o que estava acontecendo ao seu redor, no
mundo real, creio que nem o conseguia, absorvendo o mundo presente apenas pelos
informes que lhe davam os colaboradores mais próximos.
h) Decorrente do
parágrafo anterior, e também com base no ofício do delegado, longe de ser uma
comunidade pacífica os conselheiristas eram gente de guerra, e faziam questão
de demonstrar isso ostensivamente, talvez como uma decorrência da absurda
prisão sofrida por ele em 1876, que só serviu para ampliar ainda mais o frenesi
em torno da sua pessoa. Os sertanejos, ao considerá-lo uma pessoa um “ser
iluminado”, um “profeta” de Deus, senão uma encarnação do próprio Jesus Cristo,
estariam, de agora em diante, prontos para tirar, assim como para dar, tantas
vidas quantas fossem necessárias para mantê-lo ali, junto deles, sem sofrer
mais injustiça e maus tratos. A multidão agora protegia e dirigia o profeta,
até as últimas consequências.
__ Em breve eles
teriam a oportunidade para demonstrar isso...
Notas
(1) O texto
aparece assim em Antonio Benício, sem qualquer indicação de autoria, mas
Fernando Câmara, na Carta Mensal do Colégio Brasileiro de Genealogia, Genealogia de Antonio Conselheiro, ano
VIII, Nº 46, out-dez de 1997, põe exatamente essas mesmas palavras na pena de
João Brígido dos Santos, um conhecido jornalista e historiador cearense.
(2) O batistério
de Antonio traz apenas o nome Maria Joaquina, mas Fernando Câmara, sem explicar
a razão, diz que ela também era conhecida como Maria Joaquina de Jesus ou Maria
Joaquina do Nascimento, com a qual Vicente Maciel se casará apenas em 31 de
agosto de 1834, quando ela já estava muito doente.
(3) É um exemplo
típico da pesada espiritualidade católica do século XIX, marcada pelo extremo
penitencial e pelo ressentimento causado pelas derrotas nos embates contra as
forças do mundo moderno, lideradas pela burguesia, arreligiosa, nas quais a
Igreja só conseguia ver vícios. Esse penitencialismo pesado será ainda mais
agravado com a tomada de Roma pela monarquia liberal do Piemonte, em 1870. Os
padres, em grande número, só tinham condenações avisos fúnebres para ameaçar
aqueles que não faziam parte do “rebanho”. O livro Missão abreviada para despertar os descuidados, converter os pecadores,
e sustentar o fruto das missões, um calhamaço de quase mil folhas!, foi
escrito pelo padre português Manuel José Gonçalves do Couto, nascido em 1819, e
falecido em 17 de setembro de 1897, uns dezoito dias antes da queda de Canudos.
Esse livro foi o mais editado em Portugal no século XIX, com 140 mil cópias.
Eis alguns trechos copiados de Nobre e Alexandre (2011):
“Quando menos
pensares, a morte há de vir sobre ti. Talvez se cortará o fio de tua vida,
enquanto estás tecendo ou urdindo teia. Talvez fazendo planos para melhor viver
segundo a tua vontade...”
“Tu quando pecas
julgas que tens tempo para te confessares e para te emendares; mas, pergunto
eu, não podes enganar-te? Por ventura és tu o senhor do tempo?... Quantos
pecadores já estão ardendo e gritando no inferno, enganados por esse modo?”
“Considera
pecador... virá um dia em que hás de morrer, e apodrecer em uma sepultura, onde
serás comida dos bichos. Esse corpo, que agora tanto amas e regalas... As tuas
faces, os lábios, os cabelos hão de cair a pedaços. O teu corpo se tornará um
esqueleto o mais fétido e medonho. Os teus ossos hão de separar-se uns dos outros;
a tua cabeça há de apartar-se do tronco.” etc
quem tentasse viver, literalmente, aquilo que esse livro pregava,
poderia acabar com sérios problemas...
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