GINÁSIO
VOCACIONAL: UMA EXCELENTE ESCOLA COMPREENSIVA BRASILEIRA
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Aprender a aprender
Os
ginásios vocacionais, criados no início da década de 1960 no estado de São
Paulo, foram uma experiência de escola pública tão bem-sucedida que irritou até
o regime militar
por Xandra
Stefanel, Revista do Brasil publicado , última modificação 21/12/2010
17h25
Jornais
da época anunciavam a instalação em caráter experimental de uma escola ginasial
pública com características bem diferentes das tradicionais. Atraídos pelo
anúncio, os pais de Claudia Alencar, hoje atriz da TV Record, pintora e
escritora, a matricularam, mas não sabiam que ela estrearia uma nova pedagogia.
Um ano antes de suas aulas começarem, em 1961, foi criado por decreto, em São
Paulo, o Serviço do Ensino Vocacional (SEV), subordinado ao gabinete do
secretário estadual de Educação, Luciano Vasconcellos de Carvalho, que
coordenava as unidades dos novatos ginásios vocacionais.
Numa
viagem pela Europa, Carvalho descobriu os métodos de Sèvres (francês) e da
Escola Compreensiva inglesa, segundo os quais a formação deveria incentivar a
participação ativa e consciente dos alunos numa sociedade democrática. Assim
que voltou, o secretário formou uma comissão de educadores e especialistas do
ensino secundário e industrial para desenvolver uma escola que atendesse ao que
considerava os novos apelos da sociedade. O que ele não sabia é que na cidade
de Socorro, no interior do estado, Maria Nilde Mascelani e Olga Bechara já
estavam à frente de um projeto chamado Classes Experimentais, bem próximo dos
moldes de Sèvres. Assim nasceu o SEV, que não era nem escola ginasial –
correspondente às quatro últimas séries do ensino fundamental de hoje – nem
industrial, mas um ambiente de descoberta que dava ferramentas para os alunos
conhecerem as áreas que poderiam escolher no futuro.
Claudia Alencar, admitida na unidade do
bairro paulistano do Brooklin, ajudou, com outros alunos, a preparar a escola
para o início das aulas. “O prédio não estava pronto. A gente envernizou as
carteiras, limpou tudo, foi muito divertido. Lá fazíamos e aprendíamos coisas
que não se viam em nenhum lugar”, afirma a atriz.
Olga Bechara participou de todo o
processo de implementação das escolas, foi supervisora de orientação pedagógica
e professora. “O que é vocação para uma criança de 12 anos? O que fazíamos era
explorar suas aptidões – hoje chamadas de competências – e seus interesses.
Para isso, oferecíamos vários campos para eles conhecerem.”
Esméria Rovai, então professora de
recursos audiovisuais, explica que a proposta surgiu em um momento histórico em
que era revista a concepção de ciências sociais. “Estava surgindo uma nova
antropologia, com a visão de um homem que sofria a influência de seu meio e
devia tornar-se consciente e engajado. Nisso se baseavam os ginásios
vocacionais.”
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Diversidade
Antes de inaugurar as escolas, a
coordenação do SEV fazia uma profunda pesquisa na comunidade para descobrir o
perfil da região, os tipos de comércio e empresa, as classes sociais dos
moradores, entre outras características. O resultado subsidiava o processo de
seleção e eram promovidas entrevistas com pais e filhos interessados. As
unidades da capital e do município de Batatais foram inauguradas em 1962, no
ano seguinte vieram as de Rio Claro e Barretos e, por fim, em 1968, entrou em
funcionamento a de São Caetano do Sul.
O ex-aluno Luiz Carlos Marques afirma
que a pesquisa na comunidade fazia com que houvesse heterogeneidade entre os
selecionados. “Eu estudava na unidade do Brooklin. Se lá 10% dos moradores
fossem da classe A, 50% da classe B e 40% da C, por exemplo, essa seria a
composição das turmas. Na época a gente nem sabia disso”, lembra Luigy, como é
conhecido o atual presidente da GVive, Associação dos Ex-Alunos e Amigos do
Vocacional.
Outra inovação foi o conteúdo
curricular, também desenvolvido de acordo com as características locais. As
disciplinas eram estudadas a partir de um tema central (geralmente na área dos
estudos sociais), decidido em uma espécie de assembleia de professores e
alunos. Havia aulas de estudos sociais – uma mistura de geografia, história e
sociologia –, português, matemática, ciências, inglês, francês, além das
matérias técnicas, como artes industriais, práticas comerciais, práticas
agrícolas (em algumas unidades), artes plásticas, educação doméstica, educação
musical, educação física, teatro, orientação religiosa ecumênica e sexual.
“Se o tema era Olimpíada, em matemática
tirávamos as medidas de quadras, em português pesquisávamos textos sobre o
assunto, nas artes plásticas desenhávamos os temas, em educação musical,
pesquisávamos e tocávamos os hinos. Era um processo cíclico. Todas as
disciplinas dialogavam e se complementavam”, recorda Luigy. No primeiro ano do
Ginásio Vocacional estudava-se o bairro, depois, passava-se para as cidades
próximas, o estado, o país, e no quarto ano ampliavam para temas relacionados
com o resto do mundo.
O astro do programa era o que chamavam
de estudos do meio, em que os grupos saíam das escolas para conhecer a
realidade da cidade, viajavam para os municípios vizinhos e para outros
estados. “Teve uma turma que chegou a ir para a Bolívia!”, diz Luigy. Eles
visitavam os comércios, indústrias, iam para fazendas aprender de perto noções
de agricultura e pecuária. O aprendizado era complementado pelas atividades na
cooperativa, no banco, no escritório contábil e no governo estudantil.
Podia até parecer brincadeira, mas tudo
fazia parte do método de ensino: nas viagens e na cantina, os alunos usavam
cheques emitidos por banco próprio, vendiam material escolar na cooperativa,
faziam o balanço financeiro no escritório de contabilidade e ainda votavam para
governador e deputados, tal qual em regimes democráticos de gente grande. Marco
Otávio Baruffaldi, que estudou na mesma turma de Luigy, lembra: “Os pais que
podiam depositavam dinheiro na conta do filho e era com isso que ele ia viajar
nos estudos do meio, comprava alguma coisa na cantina... E os filhos dos pais
que não podiam também faziam tudo isso porque os outros pais, em segredo,
depositavam para eles também”.
Apesar de sua família ser pobre,
Elisete Greve Tedesco nunca deixou de fazer atividades nem de viajar com sua
turma, em Barretos, por falta de dinheiro. Filha de uma viúva – a cozinheira da
unidade – e com outros dois irmãos, ela garante ter sido essa escola que a
ajudou a tornar-se o que é hoje: historiadora, artista plástica, administradora
de empresas e presidente da Academia de Letras e Artes de Barretos. “Como eu
teria acesso às artes plásticas, à decoração, à pintura? Tocávamos Chiquinha
Gonzaga, Donga, fazíamos xilogravuras, óleos sobre tela, mosaicos. Também
tínhamos torno, práticas agrícolas... Plantávamos, colhíamos e preparávamos os
alimentos nas aulas de economia doméstica. Meninos e meninas juntos. E tudo com
a maior naturalidade”, lembra Elisete, hoje com 53 anos.
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Juntos e iguais
Os garotos participavam das aulas de
educação doméstica, iam para a cozinha, aprendiam a pregar botão, assim como as
meninas iam para o torno, a marcenaria e a horta. O respeito à individualidade
era o mesmo para ambos os sexos. Elisete destaca como marcantes de seus quatro
anos de estudo ginasial não apenas o conteúdo das aulas, mas a forma como eram
dadas. Liberdade era palavra de ordem, sempre acompanhada de outra de igual
importância: responsabilidade. “Se quiséssemos sair, saíamos, éramos livres e
responsabilizados pelos nossos atos. A educação do Vocacional formava para a
liderança, para aprendermos a viver com as diferenças e respeitá-las. Os alunos
eram contestadores. Os professores estimulavam o pensamento, que buscássemos as
respostas. Eles sempre nos devolviam as perguntas”, emociona-se.
A liderança era incentivada por meio de
uma técnica chamada sociograma. Os jovens elegiam três pessoas que queriam ter
em seus grupos e os mais votados eram os líderes. Claudia e Elisete foram
escolhidas. Pérsio Ebner foi além. Candidatou-se pelo partido União Vocacional
Democrática e foi eleito para o cargo de deputado. “Fui eleito pela cota do
partido. A gente estudava as leis e adaptava para a escola. Tinha eleição mesmo
– mesário, título de eleitor, campanha”, conta o biomédico de 57 anos,
selecionado em 1965 para estudar na unidade de Batatais.
“Inicialmente conhecíamos os aspectos
da cidade e íamos estudando tudo dentro do contexto dos estudos sociais.
Conhecemos indústria de leite, de calçados, fomos a museus, descobrimos os
tipos de vegetação. Fizemos muitas viagens. Fomos para Belo Horizonte, São
Paulo, acampamos numa fazenda de alho em Batatais. Eu me desenvolvi muito”,
garante Pérsio.
Aos 78 anos e cheia de lucidez, a
ex-coordenadora de orientação pedagógica Olga Bechara conhece como poucos a
história de todas as unidades do Vocacional e lembra a alegria dos que lá
estudavam. “Acabava a aula e eles não queriam ir embora. Nessa idade, isso não
é muito comum, né? Os pais me perguntavam: ‘Que escola é essa que, quando quero
castigar meu filho, digo que ele não vai à aula?’ Eles não entendiam”, ri.
O engenheiro e empresário Nelson Freire
teve três dos quatro filhos na unidade do Brooklin. Seu entusiasmo com a escola
foi tão grande que se tornou presidente da Federação das Associações de Pais e
Amigos do Vocacional. “Foi uma experiência maravilhosa, porque víamos que o
processo educacional era inovador e criativo. Havia envolvimento profundo dos
alunos na vida da comunidade e da sociedade. Como pai e cidadão, passei por um
aprendizado fabuloso”, diz, saudoso.
A maior dificuldade do SEV sempre foi o
orçamento, proveniente da Secretaria de Educação e considerado baixo para o
tamanho do investimento. O coordenador financeiro do serviço, Manoel Maia,
lembra que suas visitas à sede do governo e à secretaria eram frequentes. “Fui várias
vezes ao gabinete do (governador) Abreu Sodré em busca de verbas para suportar
o projeto. Sempre conseguia alguma coisa, apesar da má vontade. No geral, havia
desinteresse do estado.” O contador afirma que parte dos recursos era
arrecadada pelas associações de pais. “Mesmo assim, a verba não cobria nunca.
Era um ensino diferenciado, mas valia a pena, era um celeiro de inteligência.”
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Início do fim
Foi essa mesma percepção que levou o
governo militar – ainda mais arbitrário em 1968 devido à promulgação do Ato
Institucional número 5 – a apertar cada vez mais o cerco àquela nova forma de
ensinar que formava cidadãos críticos e contestadores. Afastamentos, ameaças e
até prisões aconteceram. Por fim, em 1969, foi oficialmente extinto pela
ditadura – permitindo apenas aos alunos que tinham iniciado seus cursos e aos
que entraram no ano seguinte concluir seus estudos. Foi por esse contexto que
Manoel Maia ficou preso por três meses, Elisete viu pais de amigos indo para a
prisão, Nelson Freire teve de prestar depoimento na Polícia Federal e Olga
Bechara, no DOI-Codi. Se o problema até então era a falta de recursos, agora
era também a perseguição à coordenação, ao corpo docente e até mesmo aos pais
dos alunos.
Olga sofreu ameaças. A situação que
viveu numa salinha daquele centro de tortura ficou gravada na memória. “O cabo
me perguntou como eu podia levar um menino de 12 anos para conhecer uma favela.
Eu respondi que não precisava esconder a favela dele, que era preciso conhecer
o problema habitacional. ‘O senhor precisa ver, cabo, o que eles dizem quando
voltam. Eles querem consertar o país, fazem projetos. Se a gente esconde isso
agora, quando descobrirem a realidade na universidade, ficarão revoltados e
será pior.’ E o cabo ficou ali, me olhando”, lembra a ex-coordenadora
pedagógica.
Além das ameaças da ditadura, a
experiência dos vocacionais sofreu com os desencontros pessoais que começaram a
surgir nas equipes. Olga e a ex-professora Esméria afirmam que hoje várias
escolas particulares utilizam conceitos do ginásio vocacional, mas nunca mais a
iniciativa aproximou-se das públicas.
“Conhecer a realidade, e não ficar
apenas com o ‘estudo livresco’, levou o Vocacional a ser considerado um projeto
subversivo. Ainda hoje seus princípios básicos são atualíssimos e acho que ele
pode e deve ser levado à educação pública”, opina Esméria, autora do livro
Ensino Vocacional: uma Pedagogia Atual.
O ex-aluno Marco Buruffaldi não deixa
de pensar: “Imagine se metade da população brasileira tivesse acesso ao que
tivemos no Vocacional! Tenho certeza de que não estaríamos na situação em que
estamos hoje”.
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(idem)
Éramos assim...
... como fomos acabar nisso?!
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Em educação andamos para trás, rumo a Idade da Pedra!
Mas se você desejar ver um filme completo
sobre essa incrível escola pública, o Ginásio Vocacional, procure no endereço abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=u0NbxuFPCrg
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