sexta-feira, 31 de março de 2017

LAURO OLIVEIRA LIMA E A REFORMA DO ENSINO MÉDIO-2

Prof Eduardo Simões

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Um novo mundo começa a surgir
__ “A repugnância à ociosidade e ao parasitismo [um conceito ambíguo não desprovido de preconceito, que precisa ser historicamente condicionado, de acordo com os valores das sociedades de cada época] “profissionalizou” todas as atividades, até a dos artistas que hoje se engajam na arquitetura, no desenho industrial...Ser profissional tronou-se sinônimo de ser cidadão. O trabalho manual praticamente desapareceu, face à mecanização, à automatização e à automação. Muitas atividades intelectuais “programáveis” foram cibernetizadas [nós dizemos “informatizadas”]. Pode-se dizer que a profissão como estereotipia e automatização tende a desaparecer diante da eletrônica, da automação e da cibernética [ou seja, as ações repetitivas por parte do profissional, como na antiga linha de produção]... Um engenheiro e um agrônomo são profissionais no sentido ‘estrito’ da palavra, mas não se pode dizer o mesmo de um físico ou de um biólogo, que não trabalham com a ‘técnica’, e sim com a própria ‘ciência’”. Vejam a perspicácia e a candência dessa última questão que, junto com outros inumeráveis paradoxos psicopedagógicos, além das questões político-sociais, precisa estar claramente definida, equacionada, antes de se começar a tirar projetos de reforma da educação, seja da cartola de um mágico seja do bolso de um deputado.


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Escola secundária x escola profissionalizante; alguém tem que servir ao piquenique.

__ A seguir Lauro chama a atenção para uma consequência importante das reformas que se seguiram à Revolução Francesa (acima). “Aparece a necessidade (com a extinção das corporações de ofício medievais...) de se sistematizar a formação da mão-de-obra [rompendo com o antigo modelo de escola herdada dos gregos... a escola suméria, que aparece na ilustração do artigo anterior, é mais profissionalizante, sem deixar de ser elitista e intelectualista]. Criam-se assim escolas profissionais, que se situam justamente entre a escola primária e a escola superior (no período da adolescência), paralelamente á escola secundária. Isto gerou o problema que até hoje perdura, de distinguir ou unificar a “educação desinteressada” e a educação “vocacional”. A escola secundária é filha das escolas (“colégios”, na Inglaterra...) onde recebiam educação (em geral lições de etiqueta) os rebentos da aristocracia, posteriormente invadidas pelos filhos da classe burguesa... Ao seu lado foram surgindo as escolas profissionais, que visavam outro tipo de “etiqueta”, isto que hoje chamam de ‘know how’, ‘savoir faire’ ou ‘habilidades manuais’, práticas ensinadas aos que se destinavam a energizar o sistema de produção” (ilustração acima). Com fina ironia, Lauro desmascara o caráter de classe da escola secundária nascente, colocando mais uma vez o dedo na ferida: como implementar uma reforma educacional sem definir seriamente, em detalhes, a que tipo de sociedade essa escola vai servir. Bastarão as declarações pomposas, aduladoras, de políticos populistas, que nos demonstram, escândalo após escândalo, o quão indignos são de confiança?

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Alguém tem que lavar a roupa, o que não requer uma maior preparação técnica ou intelectual. A máquina de lavar acabará com isso (belíssima ilustração de Robert Morland).

__ Até um determinado momento histórico não havia nenhum estresse envolvendo seja e educação básica seja a superior, até o alvorecer da Revolução Industrial e a ascensão da burguesia. Um problema sério, surge então, “quando se tem de decidir o destino social do jovem. Um problema de caráter socioeconômico – o das classes ociosas frente às classes trabalhadoras – transforma-se de repente num problema educacional. Mas os educadores (geralmente idealistas, sem visão sociológica) supõem... estar salvando (com a defesa da escola “desinteressada”) o humanismo, confundido por eles como artes liberais e belas artes. De fato estão justificando uma odiosa discriminação de classe. Só hoje o trabalho foi incorporado ao conceito de “hominização”... Foi preciso que a ciência desmanualizasse progressivamente o trabalho [ilustação acima], para que se superasse a antinomia entre prático e intelectual [sem resolver, infelizmente, o problema da pobreza e da desigualdade social, como se imaginava naquela época, outro tipo de “idealismo”]. Muito contribuiu ...a profissionalização das carreiras liberais... Todo trabalho é hoje uma profissão, toda profissão é mais ou menos intelectual e todo indivíduo pode apreciar e criar arte. Não se justifica, portanto, dois tipos de escola, mesmo porque a ‘democracia pretende abrir oportunidades iguais para todos, independentemente da classe social’
__ Vamos lá! Nenhuma reforma educacional pode começar sem uma sólida concepção de sociedade e de evolução social desejada, claramente colocada e assentida pela maioria. Sem isso a reforma não passa de um remendo, um tapa-buraco, feito para satisfazer no curto prazo certas demandas sociais mal alinhavadas e pouco esclarecidas, embora possa dar munição para a propaganda do senhor político na próxima eleição. A exaltação do trabalho, e a colocação de todo trabalho no mesmo nível de “dignidade” e “honraria”, era revolucionário na época e ainda o é na cabeça de muito mais gente, em nosso país, do que nós imaginamos. A ideia de igualdade, como um valor intrinsecamente democrático é mais revolucionário ainda, agora pregar, como consequência disso, uma só escola para todos – como o fazem as maiores autoridades em educação no Ocidente, e quiçá no mundo: os finlandeses – o é ainda mais.  A questão da escola técnica, profissionalizante, será aprofundada mais adiante.

O aparecimento da burguesia
__ “A ascensão da burguesia e a Revolução Industrial implicam em:
a) manutenção de uma escola média “desinteressada”, que “aristocratize” a burguesia sem ‘pedigree’...
b) a manutenção de uma escola média “profissional” [ou técnica] que forme a capatazia do sistema de produção tendente à industrialização
c) profissionalização da escola superior (agronomia, arquitetura...) que capacite a burguesia a assumir o comando do sistema de produção, agora altamente complexificado... Até então a universidade [criada no âmbito de sociedades dirigidas por uma aristocracia, na Baixa Idade Média] era também “desinteressada””
__ “Criam-se, pois, duas formas de ‘trabalho’: uma, ‘inferior’ que vai da mão-de-obra qualificada até o limiar das profissões de nível superior (perito, técnico, especialista, etc.) e outra ‘superior’ continuação histórica das artes liberais”. Ou seja, o sistema educacional se organiza de acordo com os valores, resistências e/ou preconceitos sociais, historicamente definidos, da classe ascendente, que anseia em ver a expansão de seus valores culturais (culto ao trabalho e ao capital) sem abrir mão do que já têm ou pretende conquistar em termos de patrimônio ou propriedade.
__ “A escola-lazer (histórica)... passa a ter duas outras funções
a) formação da mão-de-obra de nível técnico (a capatazia) visto que a mão-de-obra de baixo nível ainda não foi escolarizada...
b) instrumento de manutenção do controle do sistema de produção mediante formatura em ensino superior. Nos países subdesenvolvidos, o fato de inúmeros “doutores” não exercerem a profissão correspondente à sua “especialidade” (médico dirigir banco, engenheiro administrar empresa...) mostra que o ensino superior nessas zonas socioeconômicas ainda tem muito de caráter simbólico...)

A burguesia ascendente e a questão educacional

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Par Edgar Degas — The Yorck Project: 10.000 Meisterwerke der Malerei. DVD-ROM, 2002. ISBN 3936122202. Distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH., Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=150053

__ “O desaparecimento das classes ociosas e a ascensão da burguesia ao comando do sistema de produção não implicou ... na unificação do sistema educacional...
a) ao nível elementar temos uma escola primária curta de transição para as classes elevadas [que seguiriam para o ginasial] e outra longa, terminal, destinada às classes mais humildes”. Aqueles que formarão o estrato mais baixo do sistema, o operariado não especializado, que vive de bicos, por não estar preparado para uma função técnica: o lumpemproletariado. O conceito de terminalidade, no sistema escolar brasileiro, veio para tentar contornar um fenômeno tão grave quanto típico no nosso sistema escolar até hoje: a evasão, em geral provocada por razões econômicas, reforçando, ainda hoje, a colocação do professor Lauro! Em 2014 apenas 74% dos alunos que ingressaram na educação Fundamental terminaram o curso, enquanto os que ingressaram no ensino médio foram apenas 57%
“b) ao nível médio temos a escola secundária (de transição) privilégio reservado à classe média em ascensão, e a vocacional (profissional), destinada à formação do escalão médio do sistema de produção”. Ou seja, os garotos da baixa classe média ou alta classe baixa, que já não alimentam o sonho, comum entre a classe média, de um dia se tornar classe alta. Embora hoje o Ensino Médio, antigo secundário, esteja à disposição de todos, a peneira social continua... ‘peneirando’, a revelia da lei e das belas intenções dos ‘quixotes’ de plantão, e os jovens das classes mais pobres abandonam em massa o Médio, se não o fazem já no Fundamental, para irem trabalhar, talvez numa boca de fumo, e/ou cuidar do filho precoce, o que torna o texto de Lauro atualíssimo. Nosso maior problema educacional chama-se “realidade”.
c) o nível superior, apesar de visar à formação dos quadros dirigentes... divide-se em carreiras privilegiadas [as mais procuradas] – como a advocacia, a medicina e a engenharia – para as classes mais abastadas, e carreiras destinadas às pessoas de menores recursos, como dentista, enfermeira e economista”. O sistema não perde uma oportunidade de marcar a discriminação social. Se é verdade que odontologia e economia não são mais carreiras para as classes mais humildes, também é verdade que a pedagogia e as licenciaturas exercem uma atração incomum em pessoas dessas classes – o que dá ao governo a esperança de no curtíssimo prazo não haver um blecaute na educação brasileira por falta de professor, enquanto o blecaute das verbas destinadas às bolsas universitárias lançam no vazio milhares de jovens pobres, que acreditaram que poderiam, enfim, romper as correntes que os amarram à base da pirâmide social  – o que nos faz desconfiar que o fator social (= renda), e não o vestibular, é a principal peneira à entrada de um jovem numa universidade brasileira.

A ‘bendita” meritocracia

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__ “Fala-se hoje… em ‘meritocracia’ para significar que a tecnocracia não respeita o “status” socioeconômico dos indivíduos, mas apenas seus méritos [era o discurso, por exemplo, de militares, políticos e empresários ligados ao regime militar]. J. Galbraith [economista ‘pop’ americano]... chega a afirmar que a tecnocracia é a nova classe (dirigente), que na macroempresa moderna, supera a dominação até aqui exercida pelo dono do capital... imune aos privilégios decorrentes da estratificação social. Acontece, porém, que o mérito aparece... dentro de um círculo vicioso: crianças provenientes de núcleos socioeconomicamente bem dotados levam vantagem inicial [acesso a instrumentos e técnicas de aprendizagem mais modernos e sofisticados] que não poder ser posteriormente compensada. A meritocracia baseia-se num pressuposto (inatismo) que a psicologia e a sociologia demonstraram não ser verdadeiro: o ‘germe’ [a semente] não contém a árvore; a árvore é fruto da interação do germe com o meio; o mérito também não é inato, é função das estruturas genéticas ao relacionarem-se com o meio. Em síntese: o meio (a classe, o status, etc.) é que “realizam” o mérito...” Bem no alvo! Eis um exemplo típico e muito inteligente de unir a complexa teoria de Piaget, com a praticidade de uma análise político-sociológica destinada ao grande público, desmascarando ou esclarecendo um discurso politicamente correto, mas realisticamente equivocado.
__ Assim fica claro, para quem não é especialista em educação, segundo Lauro, que o único caminho para o paraíso da sociedade capitalista é por meio da escola secundária, e, por ela, chegar a universidade, onde se tem, afinal, acesso às carreiras mais rentáveis e o reconhecimento social, ficando a escola profissionalizante para a formação da capatazia, “marcando o indivíduo, socialmente, para estrato inferior da sociedade”. Tentou-se, na Lei 5692, usar de artimanha semântica e legal para encobrir esse fato na chamada “lei das equivalências”, onde o período gasto num curso profissionalizante seria considerado equivalente a um mesmo período do 2º Grau, o Ensino Médio da época, antigo secundário secundária, além de chamar de ““ginásio” e “colégio” às escolas profissionais” – mudamos de nomenclatura na educação como trocamos de moeda e de constituição, até parece que nenhuma delas tem valor para nós.
__ Mas essas variações semânticas não iludem... As classes inferiores sabem que a estrada real para a universidade... é a escola secundária. O fato de a lei permitir o acesso à universidade à partir das escolas técnicas não modifica fundamentalmente a situação... Quando, por exemplo, a seleção do sistema escolar se torna insuficiente para as aspirações do sistema social (invasão indiscriminada da escola secundária = ascensão da massa), aparecem outros recursos, como os chamados ‘cursinhos’... por meio dos quais se processo novo tipo de triagem econômica: o cursinho exige não só a disponibilidade do tempo, mas também recurso financeiro, que implica numa seleção que nada tem de intelectual, tornando anedótica a meritocracia... Assim as estruturas sociais mostram ter mais peso na decisão [dos estudantes] do que as românticas intenções legais (equivalência e variações semânticas). O cursinho – reservado aos que têm poder econômico – anula todos os esforços legais de hipotética homogeneização das oportunidades. O rigor dos exames [vestibulares] – que aparece aos olhos dos idealistas como a solução meritocrática – implica simplesmente numa discriminação socioeconômica”. Ainda mais porque a matéria, que normalmente faz parte dos exames vestibulares, é retirada exclusivamente do conteúdo constante do currículo das escolas secundárias não profissionalizantes ou técnicas, com evidente prejuízo para os que frequentam a estas, sem falar, como foi dito acima, do peso dos cursinhos. É um verdadeiro massacre!

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A solução clássica e mais fácil para a eterna crise educacional brasileira: repressão policial, ou sob outras formas mais sutis. 

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