terça-feira, 21 de março de 2017

LAURO OLIVEIRA LIMA E A REFORMA DA ESCOLA MÉDIA - 1

Prof. Eduardo Simões

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A primeira escola do mundo: a eduba sumeriana, que preparava futuros escribas (trabalhadores intelectuais).

A colocação do problema
__ No início de seu livro Escola secundária moderna; Forense-Universitária; 1976; pg 21-37;  Lauro faz uma profunda e muito útil, até hoje, reflexão sobre a natureza e o papel da escola secundária de seu tempo, o Ensino Médio de hoje. Que gostaria de compartilhar com você, leitor, na esperança de que lance alguma luz no momento em que a educação, o Ensino Médio em especial, sofre mais uma reforma de gabinete, embora reconheçamos que isso acontece não apenas por culpa do governo atual, como quer a oposição, que teve a oportunidade de lançar um debate sobre o tema e não o fez, preferiu debater propina com as empreiteiras, seja por um desinteresse generalizado pelo tema (considere-se a diminuta quantidade de pais que aparecem nas escolas para pegar a nota e discutir sobre a situação de seu filhos), seja pela conveniente falta de transparência dos políticos (havia um projeto de lei sobre o tema, tramitando ou “gavetando” há quatro anos, no Congresso Nacional).
__ Ele começa o texto chamando a atenção para a estabilidade e a clareza das discussões acerca do caráter da universidade e da escola primária, em nossa sociedade: a primeira sempre foi tratada em nossa sociedade como uma escola de aprimoramento profissional, enquanto a segunda “todos concordam que a ela cabe fornecer às crianças “técnicas fundamentais” que permitam acesso à [espúria] pirâmide escolar e um mínimo de maleabilidade dentro do sistema de produção”; uma mentalidade canhestra e vã que até hoje persiste – em algumas escolas de São Paulo se faz simuladão de dois em dois meses, em crianças desde o 6° Ano (!), para prepará-las para o vestibular e concurso público; numa brutalidade à natureza de meninos e meninas inenarrável – e que demonstra que ainda não aprendemos a ver seres humanos como tais, mas antes como máquina de trabalho, como no tempo da escravidão.
__ Mas o “nó” do sistema, segundo Lauro se apresenta no “ensino médio – esse período escolar indefinido e fluido que medeia entre a escola primária e a superior... No dia em que se começou a denominar de “médio” esse período escolar, começaram também as dúvidas sobre a sua definição. Sendo escola para “adolescentes” (pré e pós), foi sempre equívoca, como equívoca é essa idade que separa o mundo fantasmagórico da infância, descuidada e lúdica, do engajamento tranquilo ou traumático na sociedade adulto... a escola que a essa fase corresponde terá de enfrentar, de uma forma ou de outra, o problema do engajamento [do jovem na sociedade]. É na adolescência que o indivíduo forma o seu conceito de sociedade (aceitando ou recusando as normas, os valores e os símbolos culturais) e planeja a sua atuação com relação ao futuro de seu grupo social”. Há, portanto, uma questão psicossocial premente, que nem sempre a sociedade consegue lidar com o discernimento exigido para sua complexidade.
__ A escola, por sua vez, pode alimentar dois propósitos diferentes – Lauro os vê diferentes, enquanto eu os vejo, dentro de certos limites, complementares: ou se dedica “a conservação de normas, valores e símbolos culturais, isto é preservação cultural” ou “a reestruturação permanente da sociedade, isto é, manter o processo diacrônico na evolução das formas de organização e de produção sociais”. Lauro, por conseguinte, vê uma contradição ou uma oposição absoluta entre conservação e transformação, entre o “moderno” e o “antigo”, de que eu, porém, discordo, uma vez que nem tudo que é antigo ou “mais velho” é necessariamente não funcional, descartável, que não serve, como orientação e alicerce para as mudanças que virão. Se formos tão radicais quanto Lauro, nesse tema, teremos que admitir que não existe sequer evolução, pois toda mudança de fato uma transformação, com coisas diferentes surgindo, uma após outra, do nada ou de estruturas já existentes, que sumiriam com a transformação e que, portanto, ficariam assim inexplicáveis. Por mais profunda que seja a mudança, a evolução, algo da estrutura antiga sempre permanece.
__ “Ora, a conservação e a reestruturação podem... referir-se à superestrutura (escola intelectualista) ou à infraestrutura (escola vocacional), de modo que não é o fato de a escola ser verbalista ou profissionalizante que determina o seu conteúdo conservador ou evolucionista [o aluno de uma escola técnica não é mais “revolucionário” que o de uma escola compreensiva, generalista, supostamente “burguesa”], mas a forma da abordagem dos conteúdos”. Ou seja, o que torna uma escola revolucionária é o método que ela usa para abordar a realidade: se permite a pesquisa e a troca de opinião sobre os resultados e liberdade de inovação ou se tenta impor respostas padronizadas e fazer valer o peso da “autoridade”.

Um problema social importante
__ As sociedades tratam diferentemente o problema da ascensão das novas gerações: “há sociedades que preparam a inserção dos imaturos em seu contexto, através de um processo de acesso gradual, de modo que não se configura nelas o chamado conflito de gerações. Outras esmeram-se por conter o ímpeto da juventude, tudo fazendo para prolongar, indefinidamente, a sua imaturidade [pelo mimo ou pela repressão]. A escola média reflete rigorosamente essas posições, podendo aparecer como estímulo à autonomia e à criatividade ou como rigoroso treinamento para a conformação aos padrões sociais vigentes”, porém, seja qual for a sociedade, “homogênea” ou “estratificada”, a “escola pode ser crítica e criativa ou conformista e transmissora [= repetidora]”. Embora tenda a reproduzir no seu seio o tipo de relação social dominante na sociedade, a escola possui uma certa autonomia em relação à sociedade e um espaço suficientemente aceito para tentar novas combinações sociais, da mesma forma que a escola, de per si, não tem força de determinar ou modificar sozinha o se entorno social.
__ “Os responsáveis pelo planejamento da escola média sempre estiveram oscilando (como os próprios adolescentes que a frequentam) entra o mental e o manual, o aplicado e o teórico, entre o especializado e o geral [como acontece na reforma atual]... Por vezes é uma iniciação conservadora ou evolucionista... à vida comunitária, mas, quase sempre, transforma-se em uma mera escola de transição para os níveis superiores de ensino, adiando o problema do engajamento [juvenil], indebitamente transferido para o nível da universidade”. Isso é claramente perceptível na quantidade enorme de alunos que se transfere de curso, depois de ingressar na universidade, mesmo excluindo aqueles que buscam nos cursos menos concorridos, um atalho torto para outro curso de maior status.
a) do ponto de vista da “profissionalização” e do “desinteresse” da escola média [antigamente se chamava a escola compreensiva ou generalista de “desinteressada”; desinteressada das coisas deste mundo para cultivar só o “espírito”], não se trata evidentemente de um problema pedagógico, mas de uma concepção de sociedade... Nos EUA e na URSS... a ambivalência da escola média foi superada, obtendo-se uma escola comum para todos os adolescentes (escola compreensiva e escola politécnica)” É importante considerar agora que Lauro não é fã incondicional do sistema americano, e ele o exporá mais tarde.
b) do ponto de vista do “manual” e do “mental”, do “aplicado” e do “teórico”... (maneira sutil de camuflar a discriminação socioeconômica), verifica-se que o problema não é de conteúdo, mas de forma; o mesmo material pode ser abordado como automatização e como reflexão, o que revela... que a dicotomia não é pedagógica [ou “tão pedagógica assim” digo eu], mas sociológica (sociedade fechada x sociedade aberta)

Um pouco de história
__ Lauro então destaca que ao longo da história as incongruências da escola média mudavam ao sabor das mudanças sociais, determinadas por uma evolução amarrada a múltiplos fatores. A escola, em primeiro lugar, surge como um apêndice da superestrutura social, para aprimorar os conteúdos e práticas considerados a partir dos interesses daquela, que variam de acordo com a natureza do grupo ou da classe que controla essa superestrutura: “a escola nasceu como uma atividade que se opunha à ‘manualidade’”, numa sociedade que se dividia em homens livres e escravos, e por muito tempo manteve esse viés aristocrático, discriminatório, inclusive quando tentava disfarça-lo.
__“Os titulares das carreiras liberais não eram propriamente especialistas que prestavam serviços assalariados, mas homens livres que se dedicavam, por idealismo, (daí dizer-se, por exemplo, que a Medicina é um sacerdócio) a determinadas ‘artes liberais’ (medicina, engenharia, advocacia)... [daí que esses profissionais] não recebiam (ou não recebem) ‘pagamento’, mas ‘honorário’ (de honor, oris = honra, em latim)... os artistas [principalmente no início dos tempos modernos] dependiam dos mecenas para sobreviver, pois a sua atividade nem correspondia a uma arte liberal nem a um artesanato ou ofício manual. A arte, representando a rebeldia do espírito e a criatividade, foi sempre tida como uma atividade suspeita...”
__ “De fato, as chamadas artes liberais, no fundo eram apenas ‘literatura’ (no sentido pejorativo: elucubração mental) sem fundamentação científica nem tecnologia específica”. Mas é claro que foi assim e não poderia ter sido diferente, afinal a ciência moderna e a tecnologia dela decorrente é fruto de secular maturação, desde os alquimistas da Idade Média até a Teoria da Relatividade, passando por Copérnico, Galileu, Bacon, Lavoisier, etc. Lauro, no seu furor iconoclasta comete aqui, a meu ver, uma injustiça com a Idade Média e peca por anacronismo por julgar a escala de valores usada em um momento histórico pelos critérios ou escala de um período subsequente, mas a conclusão que ele tira daí é genial! “Na medida em que as artes liberais (e em parte as belas artes) se vão configurando como profissão (trabalho remunerado), começa-se a indagar se a universidade é mera escola profissional, fazendo a crise da escola média atingir o Ensino Superior
__ Com o aprofundamento da Revolução Industrial, na segunda metade do século XIX, “as máquinas [assumindo o trabalho manual] foram como que ‘liberalizando’ as profissões a ponto de não ser mais possível distinguir, hoje, com precisão, as atividades manuais das atividades intelectuais. Tradicionalmente, pois, a profissão se opunha ao conceito de escola (lazer, em grego). O que era profissão, por definição, não podia ser escola”. De fato, até fins do século XVIII, em virtude da simplicidade e do ‘primitivismo’ da tecnologia, muitas máquinas da Primeira Revolução Industrial foram inventadas por mecânicos diletantes e sua manutenção entregue, às vezes, a marceneiros ou carpinteiros. As profissões eram aprendidas em casa e passadas de pai para filho ou por meio de corporações de ofício, que, no Brasil, isso se estendeu até muito dentro do século XX, quando jovens pobres iam morar junto a um mecânico para aprender a consertar automóveis. Aliás, diz Lauro, “esse processo continua até os nossos dias, nas oficinas e nas fábricas, e talvez seja a única forma realmente eficiente de se aprender uma técnica... Mão se conhece escola profissional que faça o aluo transitar da sala de aula para o sistema de produção sem um ‘estágio’, ocasião em que realmente aprende uma profissão. As situações escolares são muito artificiais para levar a uma autêntica profissionalização. A profissão é constituída em grande parte, mas cada vez menos, de sequências estereotipadas e automáticas de conduta [muita linha de produção ainda é assim, hoje] que só podem ser aprendidas no próprio trabalho”. Essa mais pura verdade relativiza, e muito, o poder de panaceia que alguns querem dar às escolas técnicas e ao ensino profissionalizante, que nos parece, mais uma vez, uma solução meia-boca paternalista, feita para atender as crianças mais pobres, mantendo-as “no seu lugar”, uma vez que não têm recursos para financiar um curso superior e os governos têm se mostrado muito sovinas e pouco criativos nessa questão. Falta interesse.
__ Isso chega quase a parecer arcaico, mas no parágrafo seguinte ele complementa: “O que caracteriza ainda hoje o conceito de profissão não é a manualidade, mas a estereotipia e a automatização, apesar de, cada vez mais, aparecerem tarefas que exige flexibilidade operatória e alto grau de criatividade”. Isso dito no início dos anos 70 é muito revolucionário! Mas antes que saiam por aí dizendo que a escola deve preparar o trabalhador do futuro, que deverá ter um rol de habilidades e competências dignas de um superhomem, pela quantidade e o grau com que se exige, é preciso dar um “pare”, e argumentar a esses “fazedores” de política educacional, que nem todo mundo vai, ou quer, ser executivo de grandes multinacionais. A linha de produção moderna, por sinal, está tão complexa e diversificada que há lugares para todos, e a pior coisa que uma escola pode almejar é “fabricar” profissionais, como se fabrica uma mercadoria qualquer numa linha de produção, todos iguaizinhos, milimetricamente esquadrinhados e cinzelados, inclusive em suas predisposições internas, a pretexto de criar o profissional de um futuro idealizado, que ninguém sabe exatamente qual será.... (continua)
   
 

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Quadro Uma escola rural em 1848 do suíço Albert Samuel Anker (1831-1910).

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Escola de crianças bretãs,  de Jules Trayer (1824-1909)

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