segunda-feira, 24 de abril de 2017

A SOLIDÃO DAS BALEIAS, DE NÓS MESMOS E DE NOSSAS CRIANÇAS

Prof Eduardo Simões

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__ Na Bíblia e entre os povos antigos, as águas e o seu maior ajuntamento, o mar, era expressão do poder daquelas, e sempre esteve associada à ideia de solidão, poder descontrolado, selvagem, e de morte. Era, enfim, um poder, para uns sobrenatural, ameaçador da vida, do qual Deus, na linguagem poética e mítica do Gênesis, se serviu quando quis exterminar a humanidade no dilúvio.
__ Nesse reino, o das águas, reina absoluto o leviatã dos leviatãs: a baleia azul, provavelmente o animal maior e mais pesado que já existiu em nosso planeta. Um gigante pacífico e sereno que, sabedor que nenhum outro animal ameaça a sua existência, vaga solitário nas águas dos cinco oceanos, zeloso de sua solidão e condenado, como nós, a um destino final, um dia tornar-se água, da mesma forma que nós, os terrestres, um dia seremos pó.
__ Estamos a descobrir que não existe baleias apenas no mar, mas também em terra firme e muito mais próximas de nós, pais e professores do que imaginávamos. Percebi-as há muito tempo, ao dirigir o carro pela estrada que me conduzia à escola onde trabalho, no rosto de alunos de todas as idades, tristonhos, desalentados, silenciosos, a esperar o transporte escolar no respectivo ponto. Mais tarde, senti mais fortemente a sua proximidade, no rosto de alguns alunos ou alunas, sempre silenciosos e apáticos em sala de aula.
__ Fui então percebendo que, assim como as mulheres de Simone Beauvoir, ninguém baleia, tornasse baleia! Isso é claramente perceptível no olhar dos adolescentes que ingressam no 6º Ano do Fundamental, ainda vivaz e brilhante, cheio da esperança e curiosidade que todos nós, que não fomos excessivamente brutalizados pela solidão precoce, tivemos num passado... não tão remoto assim, certo? Pois bem; esse brilho, com o passar do tempo, vai como que esmaecendo, se apagando, no rosto de muitos, agora jovens, como se a descoberta dos mecanismos que regem a sociedade, que até aquele momento eram ocultados à criança pelo véu da fantasia, agora, alevantado pelo amadurecimento da lógica e da razão, mostrasse, ainda no seio do ambiente familiar, um quadro de sorte a não dar-lhe nenhuma esperança ou sonho de que dias melhores virão. Dá para negar a crise da família brasileira? O jovem desiste, mergulha numa solidão patológica, quando muito dividida com um ou outro, assim como as baleias-azuis, e se torna uma delas.
__ Os professores, em geral, não atinam para a gravidade desse comportamento, antes até o apreciam, uma vez que o aluno quieto não dá trabalho, pode ser ignorado sem consequências... para o professor, afinal tristeza não é crime nem algo estranho à condição humana, quando não alimenta a alma e as obras de grandes artistas e literatos. “Nada de novo sob o sol”, diriam muitos a não ser por um detalhe: a triunfal entrada em cena de outra baleia azul, agora, a mascote de um letal e diabólico, onde adolescentes e jovens brincam com sua vida, já sabendo de antemão que irão perdê-la.
__ Digamos sem subterfúgio: “baleia azul” não é um jogo ou um desafio, mas um pacto ou um treinamento sádico, fatal e desesperado de suicídio, logo o suicido que sempre foi um grande tabu para em nossa sociedade, a certeza mais plena do inferno espiritual na outra vida, e que, de repente, está se tornando epidêmico, justo entre aqueles que têm mais motivos de continuar vivos, uma vez que quase nada sabem ainda da vida e estão na fase em que todo ser humano sadio sonha, devaneia, começa a amar e faz grandes planos para melhorar o mundo, mas que agora passaram a tomar a realidade como um verdadeiro “inferno”, até por desconhecimento completo, ainda que teórico, do outro. Nossos filhos e alunos, a deixar-nos no deserto moral e emocional que nós, adultos, os metemos, junto conosco, e fazem o seu próprio êxodo, guiados por um anjo mau, porque o bom já foi despedido a muito tempo pelos adultos. É um novo dilúvio acontecendo, só para menores, e se tudo vai virar água, ou morte, o melhor é ser baleia... azul
__ Pouco importa, nesse instante, se o que há por trás desse pacto, se uma quadrilha de malfeitores ou grupos aleatórios de jovens ou adultos querendo se “divertir”, sentir-se poderosos por manipular adolescentes, ao ponto de levá-los a negar o mais poderoso e primário de todos os instintos, pois o fato é que as regras para o treinamento existem, estão disponíveis, e jovens estão procurando em massa participar dele, mesmo quando se trombeteia a cada momento, em todas as mídias, que o final é a morte. Até parece que isso os motiva ainda mais! Afinal sua morte, trágica e precoce, os levará às primeiras páginas dos jornais, à fama e ao reconhecimento público, não é isso o que mais importa, segundo a ideologia dominante entre os adultos, tanto que vemos crianças de até dez anos começarem a se profissionalizar no The Voice Kids, o novo frenesi da TV ? Sem falar do fim de sua solidão? A edição online do jornal O Globo, de 20/04/17, revela que um grupo de combate a obesidade, coincidentemente chamado “Baleia”, e em geral frequentado por adultos, está recebendo uma média de 60 e-mails diários de adolescentes procurando o baleia azul... O que falta para ser declarada uma epidemia, uma das mais horrorosas que já tivemos? Como chegamos a isso?
__ No final do chamado Regime Militar, eu já observava, precariamente, que nós perdíamos algumas virtudes importantes aprendidas na minha infância, entre as quais eu listo o elo entre os vizinhos, e o conceito de vizinhança – todos os adultos de uma rua, pais de família, se conheciam e velavam ativamente por toda criança encontrada; cansei de receber lições e reprimendas de estranhos, por alguma traquinagem, sem que eu ou meus pais se sentissem ofendidos por isso; era natural e esperado que adultos educassem crianças, afinal nós pertencíamos não apenas aos nossos pais, mas a toda comunidade de vizinhos – e a crença de que as virtudes coletivas, públicas e morais se impunham ao sucesso financeiro – nessa época ocorre uma fascinação, pela importação açodada e seletiva, por parte dos militares e de seus cúmplices, de modelos culturais americanos, como o sucesso de um indivíduo medido exclusivamente pelo montante da conta bancária, independente dos meios para atingi-lo, ou como dizia um comercial da época: “o importante é levar vantagem em tudo, certo?” O Brasil era o xerife contratado pelos americanos para policiar a América do Sul, e o país começou a fazer planos para se tornar potência regional e até mundial, movida pelo fantasioso “Milagre Brasileiro”.
__ Creio que o maior milagre desse “milagre” foi fazer desaparecer, em tão pouco tempo, traços culturais e virtudes morais importantes, centenárias, que deram sustentação e sentido à construção da nação brasileira, para se tornar uma caricatura vulgar do “american way of life”. O Brasil estava mais rico, mas os pobres, abandonados e atropelados pelo ritmo mudanças, haviam evoluído para a miséria e a extrema pobreza, que eu nunca vira na minha infância, enquanto os ricos estavam mais ricos do que nunca, e dispostos a tudo para ficarem mais ricos ainda... O culto aos mais velhos e à Deus foi substituído pelo culto ao dinheiro e ao sucesso.
__ Quem mais sentiu essas mudanças foi a família tradicional, encurralada à esquerda, por ser “reacionária”, e à direita, por ser “retrógrada”, refratária ao progresso material e aos valores do capitalismo americano, colapsou e marchou célere para o deserto de sua confusão intelectual, levando os seus filhos. Em pouco tempo, nesse mesmo deserto, por razões morais, vieram se juntar outras famílias, que optaram se adaptar aos “novos tempos” e transformar o dinheiro valor supremo, junto com a autossuficiência. Os pais agora abandonariam seus filhos aos cuidados da televisão ou, quem podia, de uma babá, para irem à luta multiplicar os seus rendimentos. Os vizinhos desapareceram, se tornaram concorrentes ou desnecessários, e os filhos deixaram de ser um bem público, cujo desenvolvimento era do interesse da comunidade, para se tornar um bem privado da família nuclear, mergulhada em profundo complexo de inferioridade, por não conseguir replicar os padrões de consumo da “classe média” americana. Nesse ambiente, quem se atrevesse a corrigir uma criança que não fosse sua arrisca-se a comprar uma briga grave com a família dela, como ocorre ainda hoje. Os filhos foram se tornando a muleta emocional de pais temerosos do fracasso, uma vez que este deixou de ser um evento natural para se tornar uma espécie de pecado capital, uma assombração permanente na cabeça dos adultos, que só queriam dar aos seus filhos aquilo (material) que não tiveram.
__ Mais gente, porém, acercou-se ao deserto moral e espiritual em que se internou a nação brasileira, no seu êxodo ao contrário: as famílias aos pedaços, aquelas que ignoraram a ausência de valores ou passaram a cultuar falsos valores, e por isso colapsaram, engrossadas também pelas famílias que nem deveriam existir, não planejadas, nascidas de gravidez precoce, cada vez mais numerosas. Fato curioso; quanto mais multidões ingressavam no Saara da nação brasileira, mais nos sentíamos, e nos sentimos, solitários. A disseminação de pré-escolas, dos computadores pessoais e dos celulares afastou-nos ainda mais, uns dos outros e de nossos filhos.
__ Mães e pais estão cada vez mais confusos em relação a educação de seus filhos, não a educação no sentido formal, mas aquela que responde pelo desenvolvimento saudável de qualquer ser humano, seja porque há muito abandonaram os valores morais e emocionais tradicionais, que regulam e mantém as comunidades pacíficas e integradas, ou perderam a memória sobre o que funcionou na educação que receberam, preferindo ir atrás de modismos educacionais, e por isso os pais deixaram de ser um modelo confiável para os seus próprios filhos. Se não se pode esperar dos próprios país, vai esperar de quem? Fora isso existe também as más companhias, e a nossa chocante e imprevisível realidade, estragada e corrompida pelos mais velhos. Dá até para entender a enorme resistência que os alunos apõem aos conselhos que os professores lhe – parei de alertar meus alunos sobre o risco de gravidez precoce, após ver tanto resultado em contrário; era como si os meus conselhos sobre o que evitar os estimulasse mais ainda a não evitar. A verdade, a grande verdade que os educadores negam diariamente, é que as palavras nada podem contra a realidade de abandono e falta de esperança que essas crianças, em especial as mais pobres, vivem no seu dia a dia, abandonadas pelas autoridades, por sua família, assoberbada na luta pela sobrevivência e achacadas por bandidos e traficantes.
__ Nossas autoridades só pensam em índices, estatísticas e quadros numéricos, que possam apresentar diante da televisão, no período eleitoral, e assim garantir mais quatro anos de poder, mordomias e propinas. Para elas nós todos, cidadãos, jovens e crianças, não passamos de números ou abstrações usadas como pera seus projetos pessoais, moralmente questionáveis ou vazios.
__ Estamos sós. As milhões de pessoas que moram em prédios de apartamentos, em prédios de condomínios, nas grandes metrópoles brasileiras, imaginam que não podem contar senão consigo mesmos, que do outro lado da parede limítrofe do apartamento não tenha senão espaço vazio ou deserto, de tal sorte que ao encontrar um vizinho no corredor ou no elevador, eles nem sabem o que dizer, e em geral mal trocam alguns grunhidos. A última contribuição de nossas autoridades a essa questão é a criação das escolas públicas de tempo integral onde as crianças de famílias pobres permanecerão o dia todo, ocupadas em se tornar mão-de-obra digna daqueles que estudam em escolas privadas de qualidade, maquinalmente obedientes e sem um pingo de vida social, exceto aquela ritualizada e artificial que temos na escola. Não há nada tão ruim que não posa piorar.
__ As autoridades estão alertas e as polícias já foram mobilizadas para enfrentar esse fenômeno. Para nosso alívio e conforto, já foi encontrado um culpado para isso: alguém ou um grupo lá na Rússia, que de forma quase mágica consegue induzir centenas de jovens, no mundo inteiro, a fazer algo que o instinto natural repele com veemência, sem falar que isso, o suicídio de jovens é como que uma “tendência” mundial, uma nova moda, como é natural tratar tudo nos dias de hoje, independentemente de sua gravidade ou ameaça à estabilidade social de longo prazo, embora quem navegue pela internet sabe que o Baleia Azul é apenas uma entre as muitas formas e incentivos que existem e continuarão a existir, para que a criança e o jovem estraguem ou exterminem a sua saúde ou a sua vida.  
__ A culpa é dos russos, a polícia já está sabendo, retornemos à nossa zona de conforto, ao nosso deserto moral, afetivo, tão pessoal e tão árido, mas íntimo e antigo o bastante para nos sentirmos confortáveis nele, até que uma nova onda, ou um novo “desafio”, ameace a existência ou a integridade de jovens e crianças, contanto que não sejam as nossas, quando então ouviremos novamente a frase mais comum nesses momentos: “eu não quero que ninguém passe pelo que eu estou passando!”

__ Então porque não agiu antes?     

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