A
SOLIDÃO DAS BALEIAS, DE NÓS MESMOS E DE NOSSAS CRIANÇAS
Prof
Eduardo Simões
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Na Bíblia e entre os povos antigos, as águas e o seu maior ajuntamento, o mar,
era expressão do poder daquelas, e sempre esteve associada à ideia de solidão,
poder descontrolado, selvagem, e de morte. Era, enfim, um poder, para uns
sobrenatural, ameaçador da vida, do qual Deus, na linguagem poética e mítica do
Gênesis, se serviu quando quis exterminar a humanidade no dilúvio.
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Nesse reino, o das águas, reina absoluto o leviatã dos leviatãs: a baleia azul,
provavelmente o animal maior e mais pesado que já existiu em nosso planeta. Um
gigante pacífico e sereno que, sabedor que nenhum outro animal ameaça a sua
existência, vaga solitário nas águas dos cinco oceanos, zeloso de sua solidão e
condenado, como nós, a um destino final, um dia tornar-se água, da mesma forma
que nós, os terrestres, um dia seremos pó.
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Estamos a descobrir que não existe baleias apenas no mar, mas também em terra
firme e muito mais próximas de nós, pais e professores do que imaginávamos.
Percebi-as há muito tempo, ao dirigir o carro pela estrada que me conduzia à
escola onde trabalho, no rosto de alunos de todas as idades, tristonhos,
desalentados, silenciosos, a esperar o transporte escolar no respectivo ponto.
Mais tarde, senti mais fortemente a sua proximidade, no rosto de alguns alunos
ou alunas, sempre silenciosos e apáticos em sala de aula.
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Fui então percebendo que, assim como as mulheres de Simone Beauvoir, ninguém
baleia, tornasse baleia! Isso é claramente perceptível no olhar dos
adolescentes que ingressam no 6º Ano do Fundamental, ainda vivaz e brilhante,
cheio da esperança e curiosidade que todos nós, que não fomos excessivamente
brutalizados pela solidão precoce, tivemos num passado... não tão remoto assim,
certo? Pois bem; esse brilho, com o passar do tempo, vai como que esmaecendo, se
apagando, no rosto de muitos, agora jovens, como se a descoberta dos mecanismos
que regem a sociedade, que até aquele momento eram ocultados à criança pelo véu
da fantasia, agora, alevantado pelo amadurecimento da lógica e da razão, mostrasse,
ainda no seio do ambiente familiar, um quadro de sorte a não dar-lhe nenhuma
esperança ou sonho de que dias melhores virão. Dá para negar a crise da família
brasileira? O jovem desiste, mergulha numa solidão patológica, quando muito
dividida com um ou outro, assim como as baleias-azuis, e se torna uma delas.
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Os professores, em geral, não atinam para a gravidade desse comportamento,
antes até o apreciam, uma vez que o aluno quieto não dá trabalho, pode ser
ignorado sem consequências... para o professor, afinal tristeza não é crime nem
algo estranho à condição humana, quando não alimenta a alma e as obras de
grandes artistas e literatos. “Nada de novo sob o sol”, diriam muitos a não ser
por um detalhe: a triunfal entrada em cena de outra baleia azul, agora, a
mascote de um letal e diabólico, onde adolescentes e jovens brincam com sua
vida, já sabendo de antemão que irão perdê-la.
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Digamos sem subterfúgio: “baleia azul” não é um jogo ou um desafio, mas um
pacto ou um treinamento sádico, fatal e desesperado de suicídio, logo o suicido
que sempre foi um grande tabu para em nossa sociedade, a certeza mais plena do
inferno espiritual na outra vida, e que, de repente, está se tornando epidêmico,
justo entre aqueles que têm mais motivos de continuar vivos, uma vez que quase
nada sabem ainda da vida e estão na fase em que todo ser humano sadio sonha,
devaneia, começa a amar e faz grandes planos para melhorar o mundo, mas que
agora passaram a tomar a realidade como um verdadeiro “inferno”, até por
desconhecimento completo, ainda que teórico, do outro. Nossos filhos e alunos, a
deixar-nos no deserto moral e emocional que nós, adultos, os metemos, junto
conosco, e fazem o seu próprio êxodo, guiados por um anjo mau, porque o bom já
foi despedido a muito tempo pelos adultos. É um novo dilúvio acontecendo, só
para menores, e se tudo vai virar água, ou morte, o melhor é ser baleia... azul
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Pouco importa, nesse instante, se o que há por trás desse pacto, se uma
quadrilha de malfeitores ou grupos aleatórios de jovens ou adultos querendo se “divertir”,
sentir-se poderosos por manipular adolescentes, ao ponto de levá-los a negar o
mais poderoso e primário de todos os instintos, pois o fato é que as regras
para o treinamento existem, estão disponíveis, e jovens estão procurando em
massa participar dele, mesmo quando se trombeteia a cada momento, em todas as
mídias, que o final é a morte. Até parece que isso os motiva ainda mais! Afinal
sua morte, trágica e precoce, os levará às primeiras páginas dos jornais, à
fama e ao reconhecimento público, não é isso o que mais importa, segundo a
ideologia dominante entre os adultos, tanto que vemos crianças de até dez anos
começarem a se profissionalizar no The Voice Kids,
o novo frenesi da TV ? Sem falar do fim de sua solidão? A edição online
do jornal O Globo, de 20/04/17, revela que um grupo de combate a obesidade,
coincidentemente chamado “Baleia”, e em geral frequentado por adultos, está
recebendo uma média de 60 e-mails diários de adolescentes procurando o baleia
azul... O que falta para ser declarada uma epidemia, uma das mais horrorosas
que já tivemos? Como chegamos a isso?
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No final do chamado Regime Militar, eu já observava, precariamente, que nós
perdíamos algumas virtudes importantes aprendidas na minha infância, entre as
quais eu listo o elo entre os vizinhos, e o conceito de vizinhança – todos os
adultos de uma rua, pais de família, se conheciam e velavam ativamente por toda
criança encontrada; cansei de receber lições e reprimendas de estranhos, por
alguma traquinagem, sem que eu ou meus pais se sentissem ofendidos por isso;
era natural e esperado que adultos educassem crianças, afinal nós pertencíamos
não apenas aos nossos pais, mas a toda comunidade de vizinhos – e a crença de
que as virtudes coletivas, públicas e morais se impunham ao sucesso financeiro
– nessa época ocorre uma fascinação, pela importação açodada e seletiva, por
parte dos militares e de seus cúmplices, de modelos culturais americanos, como
o sucesso de um indivíduo medido exclusivamente pelo montante da conta
bancária, independente dos meios para atingi-lo, ou como dizia um comercial da
época: “o importante é levar vantagem em tudo, certo?” O Brasil era o xerife
contratado pelos americanos para policiar a América do Sul, e o país começou a
fazer planos para se tornar potência regional e até mundial, movida pelo
fantasioso “Milagre Brasileiro”.
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Creio que o maior milagre desse “milagre” foi fazer desaparecer, em tão pouco
tempo, traços culturais e virtudes morais importantes, centenárias, que deram
sustentação e sentido à construção da nação brasileira, para se tornar uma
caricatura vulgar do “american way of life”. O Brasil estava mais rico, mas os
pobres, abandonados e atropelados pelo ritmo mudanças, haviam evoluído para a
miséria e a extrema pobreza, que eu nunca vira na minha infância, enquanto os
ricos estavam mais ricos do que nunca, e dispostos a tudo para ficarem mais
ricos ainda... O culto aos mais velhos e à Deus foi substituído pelo culto ao
dinheiro e ao sucesso.
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Quem mais sentiu essas mudanças foi a família tradicional, encurralada à
esquerda, por ser “reacionária”, e à direita, por ser “retrógrada”, refratária
ao progresso material e aos valores do capitalismo americano, colapsou e marchou
célere para o deserto de sua confusão intelectual, levando os seus filhos. Em
pouco tempo, nesse mesmo deserto, por razões morais, vieram se juntar outras
famílias, que optaram se adaptar aos “novos tempos” e transformar o dinheiro valor
supremo, junto com a autossuficiência. Os pais agora abandonariam seus filhos
aos cuidados da televisão ou, quem podia, de uma babá, para irem à luta
multiplicar os seus rendimentos. Os vizinhos desapareceram, se tornaram
concorrentes ou desnecessários, e os filhos deixaram de ser um bem público,
cujo desenvolvimento era do interesse da comunidade, para se tornar um bem
privado da família nuclear, mergulhada em profundo complexo de inferioridade, por
não conseguir replicar os padrões de consumo da “classe média” americana. Nesse
ambiente, quem se atrevesse a corrigir uma criança que não fosse sua arrisca-se
a comprar uma briga grave com a família dela, como ocorre ainda hoje. Os filhos
foram se tornando a muleta emocional de pais temerosos do fracasso, uma vez que
este deixou de ser um evento natural para se tornar uma espécie de pecado
capital, uma assombração permanente na cabeça dos adultos, que só queriam dar
aos seus filhos aquilo (material) que não tiveram.
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Mais gente, porém, acercou-se ao deserto moral e espiritual em que se internou
a nação brasileira, no seu êxodo ao contrário: as famílias aos pedaços, aquelas
que ignoraram a ausência de valores ou passaram a cultuar falsos valores, e por
isso colapsaram, engrossadas também pelas famílias que nem deveriam existir,
não planejadas, nascidas de gravidez precoce, cada vez mais numerosas. Fato
curioso; quanto mais multidões ingressavam no Saara da nação brasileira, mais
nos sentíamos, e nos sentimos, solitários. A disseminação de pré-escolas, dos
computadores pessoais e dos celulares afastou-nos ainda mais, uns dos outros e
de nossos filhos.
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Mães e pais estão cada vez mais confusos em relação a educação de seus filhos,
não a educação no sentido formal, mas aquela que responde pelo desenvolvimento saudável
de qualquer ser humano, seja porque há muito abandonaram os valores morais e
emocionais tradicionais, que regulam e mantém as comunidades pacíficas e
integradas, ou perderam a memória sobre o que funcionou na educação que
receberam, preferindo ir atrás de modismos educacionais, e por isso os pais
deixaram de ser um modelo confiável para os seus próprios filhos. Se não se
pode esperar dos próprios país, vai esperar de quem? Fora isso existe também as
más companhias, e a nossa chocante e imprevisível realidade, estragada e
corrompida pelos mais velhos. Dá até para entender a enorme resistência que os
alunos apõem aos conselhos que os professores lhe – parei de alertar meus
alunos sobre o risco de gravidez precoce, após ver tanto resultado em contrário;
era como si os meus conselhos sobre o que evitar os estimulasse mais ainda a
não evitar. A verdade, a grande verdade que os educadores negam diariamente, é
que as palavras nada podem contra a realidade de abandono e falta de esperança
que essas crianças, em especial as mais pobres, vivem no seu dia a dia,
abandonadas pelas autoridades, por sua família, assoberbada na luta pela
sobrevivência e achacadas por bandidos e traficantes.
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Nossas autoridades só pensam em índices, estatísticas e quadros numéricos, que
possam apresentar diante da televisão, no período eleitoral, e assim garantir
mais quatro anos de poder, mordomias e propinas. Para elas nós todos, cidadãos,
jovens e crianças, não passamos de números ou abstrações usadas como pera seus
projetos pessoais, moralmente questionáveis ou vazios.
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Estamos sós. As milhões de pessoas que moram em prédios de apartamentos, em
prédios de condomínios, nas grandes metrópoles brasileiras, imaginam que não
podem contar senão consigo mesmos, que do outro lado da parede limítrofe do
apartamento não tenha senão espaço vazio ou deserto, de tal sorte que ao
encontrar um vizinho no corredor ou no elevador, eles nem sabem o que dizer, e
em geral mal trocam alguns grunhidos. A última contribuição de nossas
autoridades a essa questão é a criação das escolas públicas de tempo integral
onde as crianças de famílias pobres permanecerão o dia todo, ocupadas em se
tornar mão-de-obra digna daqueles que estudam em escolas privadas de qualidade,
maquinalmente obedientes e sem um pingo de vida social, exceto aquela
ritualizada e artificial que temos na escola. Não há nada tão ruim que não posa
piorar.
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As autoridades estão alertas e as polícias já foram mobilizadas para enfrentar
esse fenômeno. Para nosso alívio e conforto, já foi encontrado um culpado para
isso: alguém ou um grupo lá na Rússia, que de forma quase mágica consegue
induzir centenas de jovens, no mundo inteiro, a fazer algo que o instinto
natural repele com veemência, sem falar que isso, o suicídio de jovens é como
que uma “tendência” mundial, uma nova moda, como é natural tratar tudo nos dias
de hoje, independentemente de sua gravidade ou ameaça à estabilidade social de
longo prazo, embora quem navegue pela internet sabe que o Baleia Azul é apenas
uma entre as muitas formas e incentivos que existem e continuarão a existir,
para que a criança e o jovem estraguem ou exterminem a sua saúde ou a sua vida.
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A culpa é dos russos, a polícia já está sabendo, retornemos à nossa zona de conforto,
ao nosso deserto moral, afetivo, tão pessoal e tão árido, mas íntimo e antigo o
bastante para nos sentirmos confortáveis nele, até que uma nova onda, ou um
novo “desafio”, ameace a existência ou a integridade de jovens e crianças, contanto
que não sejam as nossas, quando então ouviremos novamente a frase mais comum
nesses momentos: “eu não quero que ninguém passe pelo que eu estou passando!”
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Então porque não agiu antes?
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