domingo, 25 de setembro de 2016

HISTÓRIA DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – XVIII

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos de Brasil, Ucrânia, França, EUA, Portugal, Espanha, China, Tailândia. Deus os abençoe

A propagação do cristianismo

a) Palestina
__ Após o fim da Primeira Revolta Judaica, de 66-73, muito judeus e cristãos voltaram para a Palestina, e pode-se observar inclusive, um breve surto de conversões entre os judeus, segundo o testemunho de Hegésipo, citado por Eusebio de Cesareia; mas a oposição também era enorme: “se viam obrigados a debates intermináveis com os judeus-cristãos heterodoxos, que continuavam a insistir na necessidade de cumprir os ditames da Lei e reconheciam a Jesus de Nazaré apenas como um grande profeta, mas não como Filho de Deus, na acepção cristã do termo. Havia também a propagação de ideias gnósticas... com um forte centro na Samaria, inviabilizando a difusão do cristianismo. Mas, sobretudo, enfrentavam os cristãos a oposição sistemática e apaixonada do judaísmo ortodoxo, baseada no mais vívido ódio aos renegados que haviam abandonado o sábado e seguiam pregando como messias aquele a quem os judeus teriam pregado na cruz” (p 312)
__ E mais: deram início a uma intensa atividade contramissionária, enviando homens escolhidos a todos os principais centros de difusão judaica pelo império romano, para preveni-los contra a nova seita, além de, no âmbito de Jerusalém e Palestina, tomarem parte ativa, junto com o estado romano, que já os massacrara tão ferozmente e arrasara o seu lugar mais sagrado, na perseguição a liderança cristãs, como aconteceu com o bispo Simeão, denunciado como cristão e judeu renegado, no tempo do governador Atico, sob o imperador Trajano, condenado e crucificado em 107 (1). Em 132 essa comunidade sofreu de novo um grande tranco, por ocasião da Terceira Revolta Judaica (132-135), quando apareceu um homem, Simão bar-Kochba, dizendo que era o verdadeiro messias, reconhecido nessa condição pelos mais eminentes mestres do judaísmo, e, ato contínuo, passou a perseguir todos os que não reconhecessem essa condição, em especial aquele que adoravam ao concorrente: Jesus de Nazaré (2). A mensagem passada pelo judaísmo ao cristianismo era clara: “estamos dispostos a lutar até a morte, de preferência a sua, a nos converter”.
__ Com os judeus definitivamente afastados do cristianismo, a igreja de Jerusalém vai experimentar uma mudança na sua composição étnicossocial. Os conversos vindos da gentilidade, que antes eram praticamente nulos, pelo menos na área de Jerusalém, vão se tornar a maioria, chegando a fazer o seu primeiro bispo, o grego Marcos, logo após a refundação da cidade de Jerusalém por Adriano, agora com o nome de Aelia Capitolina. Isso, entretanto, não foi suficiente para evitar o enfraquecimento, o esvaziamento, daquela que era ainda a mais significativa e a mais amada sede da religião cristã, e a única que poderia sacudir ou incomodar, por si só, a escolha de Pedro. Acontecimentos externos, inesperados, e escolhas internas conscientes, entretanto, elevaram Roma à cabeça do cristianismo.

b) Síria

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By Central Bank of Armenia - http://www.bonistica.ru/, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7652995

__ O cristianismo apresenta uma notável difusão, tendo como centro a cidade de Antioquia no Orontes ou Antioquia da Síria (havia outras), frequentada pelo apóstolo Paulo. Jedin cita ação missionária bem sucedida em cidades como Damasco, Sidon e Tiro, embora o interior da Fenícia, no atual Líbano, permanecesse predominantemente pagão. Há ainda uma notável e bem-sucedida ação missionária do bispo de Antioquia, Inácio, do qual já falamos antes, e de Teófilo, por volta de 180. Uma vasta zona de missão abriu-se no reino sírio semi-independente de Osroene, cuja capital Edessa, também dava nome ao reino, graças a atividade do judeu-cristão Mar Adday ou Tadeu de Edessa, por vezes tido como um dos discípulos de Jesus, que após curar o rei local, Abgar V (13-50) (3), obteve carta branca para atuar no reino, seguido posteriormente por seus discípulos Aggai e Mari (4).
__ Outros dados sobre a presença cristã nessa região são os relatos da ação dos bispos Hitaspes e Aggay (outro?), que expulsaram a Bardesanes da Igreja, em virtude de sua apologia às ideias gnósticas, nos anos 180. Uma inscrição (5) prova a existência de comunidades cristãs entre Nisibin e o Eufrates. Em fins do século II ocorre um sínodo de bispos na cidade de Edessa para discutir a data da Páscoa. Esses são sinais de uma ação missionária forte e bem-sucedida nessa região. Jedin conclui:

Uma inundação no ano 201 destruiu o templo cristão de Edessa... Bardesanes cita como uma característica da igreja a reunião aos domingos e jejuns em dias determinados. É típico da nascente igreja da Síria não limitar a sua missão apenas às cidades, mas que se esforçou, desde as mais remotas origens, pela evangelização da gente do campo” (pg 315)

__ É uma comunidade cristã próspera e em ascensão.

c) Arábia
__ Não há notícias da cristianização na Arábia do Sul, mas restam alguns relatos da ação missionária de judeu-cristãos na Arábia do Norte, que corresponde a atual Jordânia, levada a cabo após a sua fuga precipitada da Primeira Guerra Judaico-Romana. O centro dessa ação foi a cidade de Pella (norte da atual Jordânia). Fala-se também de conversões isoladas de famílias ao redor da cidade de Bosra (no sul da atual Síria).

d) Egito
__ Nada se sabe sobre o início do cristianismo no Egito, exceto o caráter lendário da história de que Pedro esteve lá pregando. Foram encontrados papiros, datando do início do século II, com enxertos do Evangelho de João, mas aí a propaganda gnóstica prevaleceu sobre o cristianismo ortodoxo, de sorte que só no final do século II este se torna conhecido. O centro desse cristianismo é a cidade de Alexandria, onde ficou conhecido o nome do primeiro grande mestre dessa religião: Panteno (6), que preparará o caminho para sagração de um bispo de primeira grandeza, no ano 190, na pessoa de Demetrio (7).

e) Ásia Menor e Europa Balcânica
__ Mais eficaz foi a difusão do cristianismo na região costeira ocidental da Turquia, também conhecida como Ásia Menor, onde desde os primeiros tempos se organizam sedes eclesiásticas importantes nas principais cidades; o que é atestado nos capítulos 2 e 3 de Apocalipse. Inácio de Antioquia mantém correspondência regular com as igrejas de Magnésia e Trales. Plínio o Jovem, em sua correspondência a Trajano, já citada, fala da intensa penetração do cristianismo na zona rural. A correspondência de Dionísio de Corinto, citada por Eusébio de Cesareia, nomeia várias igrejas como Nicomédia, Amastria, e as “igrejas do Ponto”, às margens do Mar Negro, organizads e fortes o bastante para, nos anos 180, se organizar uma eficaz resistência ao movimento montanista. Em Creta ouve-se falar de igrejas em Gortina e Cnossos. Fala-se do bom crescimento das fundações do apóstolo Paulo na Cilícia e em Chipre. As comunidades da Grécia e Macedônia experimentam um vigoroso aumento, enquanto Corinto, com seu bispo Dionísio à testa, se torna um grande centro do cristianismo – e pensar nas dificuldades aí encontradas por Paulo no início de sua pregação, que ficaram registradas nas duas cartas aos corintos! Em Atenas, nesse período, se destaca o grande apologista Arístides.

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Di Lawrence Alma-Tadema (1836-1912) - Belygorod.ru, Pubblico dominio, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1422972

f) Roma e o Ocidente
__ No Ocidente é a igreja de Roma que experimenta o mais rápido e qualitativo crescimento, embora se deva reconhecer que, até início do século II, a maioria de seus adeptos ainda não é romana; mas diz Jedin:

O prestígio e a autoridade da comunidade se veem claramente na forte atração que exerce sobre os cristãos de outras partes, em especial do Oriente; Inácio de Antioquia lhe tributa os mais calorosos encômios, Marcião, Abercio, Hegésipo e Irineu, Valentim e Teodoto, Justino, Taciano e Policarpo... viajam à capital do Ocidente pelos mais variados motivos: uns para lograr que sejam conhecidas suas doutrinas especiais; outros para conhecer nela a doutrina cristã não falseada” (p 317).

__ Ou seja, o prestígio e o volume das atividades que transcendem o seu próprio território apontam para uma comunidade muito dinâmica, mas que tem um calcanhar de aquiles: como a maioria de seus membros não é de romanos, com muitos estrangeiros (a lista dos primeiros papas é repleta de nomes gregos), isso dificulta a sua propagação para o interior, para não falar da resistência do Estado. Os dados atuais apontam para uma escassa propagação da fé na Península Italiana, antes da segunda metade do século II.     
__ A Sicilia só começou a ser evangelizada no século III.
__ No Norte da África a cristianização avançou em passos céleres, e já em 180, na cidade de Scilio, na atual Tunísia, ocorre um martírio envolvendo 12 cristãos que, ao que tudo indica, já tinham acesso à versão latina das cartas de Paulo – esses mártires, entre os quais se conta Santa Generosa, foram decapitados. Cartago, próxima a Scilio, era o principal centro cristão dessa região, e a intensidade da perseguição romana ali descrita nesses tempos mostra o vigor dessa igreja. Em 220, um bispo, Agripino de Cartago, convoca um sínodo onde compareceram 70 bispos. Essa região é a mais próspera da Igreja junto com a Síria e a Ásia Menor.
__ Na região do vale do rio Ródano, França, ao longo de todo o seu curso, tem-se a presença precoce de cristãos, ajudado pela proximidade de Marselha, porto antigo e importante, com a presença de muita mercadoria, marinheiros e viajantes oriundos da Ásia Menor e Egito, um lugar propício a interações culturais e religiosas. Nas cidades de Lion e Vienne, veem-se vigorosas comunidades muito antigas, como se depreende do grande número de cristãos envolvidos no episódio dos mártires de Lion, em 177.
__ Há relatos da presença antiga de cristãos na Germânia, seguindo o curso do rio Mosela, que estava integrado à rede comercial gerada pelo Ródano. Há indícios de cristãos vivendo em Colônia, Moguncia e Treveris, em território alemão.
__ Uma característica comum une quase todas essas comunidades: ninguém sabe o nome do primeiro missionário, daquele que divulgou pela primeira vez a mensagem do cristianismo nesses lugares, e, no entanto, ele prosperou aí, brotando como que de repente! Cumpria-se assim a parábola de Jesus que atribui ao cristianismo uma força misteriosa e invisível que o fazia expandir de uma forma acelerada, como o grão de mostarda, a menor das sementes e a maior das hortaliças, até contra todas as expectativas. Era um trabalho missionário, espontâneo e voluntário de homens e mulheres, que íam até o sacrifício da própria vida, sem nenhum ganho imediato aparente, muito pelo contrário. Eram atos de puro amor à causa, sem qualquer embasamento teórico prévio ou o apoio de uma organização.
__ Isso não podia continuar assim, e o aparecimento de heresias e de particularismos regionais, contaminações do entorno pagão, exigiam que se fizesse algo a respeito, sob pena de as sementes, arrastadas pelos ventos mais inesperados, acabassem por não se realizar em todo o seu potencial.

A consolidação da Igreja
__ No início do século III a igreja cristã encontra-se pulverizada, com várias sedes importantes mantendo, de uma forma precária, a unidade doutrinal e administrativa do grande sinal de esperança que era a mensagem do Cristo. Essas sedes funcionavam como imãs que atraíam, sustentavam e esclareciam os seguidores do cristianismo das redondezas, enquanto ampliavam, pela atividade misisonária, o alcance da sua mensagem. As principais sedes e focos do cristianismo eram Antioquia, na síria, Alexandria, no Egito, Éfeso, na Ásia Menor, Cesareia, no Ponto, Cartago, no norte da África, e Roma.
__ Em abril de 193, após mais um ciclo de guerras civis, sobe ao trono o norteafricano Lucio Septimio Severo, que tivera uma longa convivência com cristãos tanto no norte da África como nas guerras que travou no Oriente, contra usurpadores e partos. Ele vinha em sucessão a Cômodo, o filho de marco Aurelio, que um homem violento e depravado, mas que deixou a Igreja em paz, e até promoveu notórios cristãos no funcionalismo público, salvo algumas perseguições isoladas, como a de Scilio. Severo, ao iniciar o seu reinado, também salvaguardou os direitos dos cristãos e promoveu alguns que lhe eram próximos. Famílias importantes, que haviam se convertido, eram protegidas da ira do populacho. No séquito da esposa do imperador, Julia Domma, vieram várias princesas sírias, simpatizantes de cultos orientais, inclusive do cristianismo.
__ Entretanto isso também apresentou problemas para o cristianismo uma vez que Severo experimentou como poucos, devido a sua formação militar, a enorme diversidade cultural dentro do império e a grande possiblidade de ela vir a ser um elemento de desagregação desse mesmo império. Para reduzir essa possibilidade, Severo viu na divinização da pessoa do imperador o melhor remédio, e nesse sentido ampliou a ritualística divinizante ligada desse cargo: “a família imperial é considerada sagrada, e o imperador deve ser tratado como Dominus (Senhor) ou Dominus Noster (Nosso Senhor). O imperador não é mais apresentado como uma representação divina viva [uma imagem da divindade], e passa a se confundir com os próprios deuses em si; por exemplo, na África foram encontradas efígies de Severo em trajes de Júpiter Capitolino [ou seja, ele é o deus mesmo]” (Wikipedia em francês – Septime Sévère)     
__ Para concluir esse processo, Severo resolveu atingir de uma forma inexorável, mas politicamentre menos estressante, as duas principais religiões que se opunham declaradamente a esse projeto. No ano de 202 ele emitiu um edito que proibia, sob graves penas, a conversão de quem quer que fosse ao cristianismo ou ao judaísmo, derrogando a política da Trajano a respeito, uma vez que submetia a igreja à estrita vigilância policial. Diz Jedin:

Agora não era apenas o indivíduo cristão que estava em perigo, ameaçado por uma denúncia, pois a seta fora lançada contra a própria Igreja, enquanto organização, uma vez que toda atividade de aquisição de novos membros fora duramente atingida. O trabalho missionário estava impossibilitado. O cristianismo estava encurralado, condenado a definhar lentamente até a morte, dentro do império” (p 326-327).

__ É inacreditável que Severo tenha se deixado levar por tal decreto, na prática, completamente inexequível, inclusive nos dias de hoje, em que pese todos os avanços tecnológicos não área da informática e vigilância de cidadãos! Ele também sobrecarregava os funcionários encarregados de uma missão tão espinhosa quanto infrutífera, aumentando os conflitos entre a administração imperial e a população, uma das causas do esfriamento do fervor patriótico, típico dos romanos nesse período –Roma começava a mergulhar na grande crise do século III, da qual não sairá senão muito modificada. Severo pretendeu opor uma barreira a uma avalanche em curso, dispendendo recursos materiais e psicológicos naquele momento indispensáveis para sanar os males do império que, a despeito de historiadores como Edward Gibbons, não provinham das religiões monoteístas. O grande problema do final do Império Romano era por um freio nas forças de segurança, externas e internas, que haviam adquirido muita autonomia perante a lei e os cidadãos, e achavam-se fora de controle, conspurcando pela força a lei e o direito, esfriando o patriotismo natural dos cidadãos. Severo apenas arranjou um novo pretexto para usar dessas forças, dando mais poder aos órgãos de repressão, agravando a crise.
__ A mudança na atitude de Severo pode ser atribuída também ao fato de ele ter percebido a grande força que a Igreja se tornara dentro do império, agravada por demonstrações de alguns mais radicais, como a dos montanistas, que eram bem ativos nesse período, e que rechaçavam qualquer diálogo com o império, assim como ressistiam de maneira absoluta ao serviço militar. Nesse item, por sinal, se observava uma tendência geral, que preocupava muito aos imperadores-soldados.

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Di Gaetan Poix - Opera propria, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4633899

__ As consequências do edito de Severro não se fizeram esperar: em 202 a escola cristã de Alexandria, uma das mais renomadas do império na ocasião, perde vários de seus professores, na tentativa de fugirem da perseguição e vários cristãos, entre ele o pai de Orígenes, e seis discípulos deste, padeceram o martírio (8). No início de 203 foram detidos, em Cartago, vários cristãos, que posteriormente sofreram um doloroso e afamado martírio: a jovem matrona Vibia Perpetua, e seus servos Revocato, Saturnino, Secundo e Felícitas, além do diácono Sáturo (9). Nesse ano sucederam-se ainda outros martírios em Cartago, onde três padeceram na fogueira, e uma mulher cristã foi decapitada. O governador Claudio Herminiano, da Capadocia, foi um perseguidor tenaz do cristianismo, como uma forma de descontar a frustração de ter a sua esposa convertida por eles, etc.

A paz enganosa
__ Com a morte de Severo, em 211, subiu ao trono o seu filho Caracala, um bruto selvagem, que mandou assassinar seu irmão mais novo e possível concorrente ao trono, Geta, por quem morreram Perpetua e seus companheiros, crime aquele executado por um grupo de militares fieis a Caracala, que o massacraram nos braços de sua mãe (a mãe de Geta, Julia Domma) (10), em seguida mandou executar uns 20 mil supostos inimigos políticos. Tão atarefado estava em massacrar inimigos políticos, reais e inaginários, que Caracala tratou os cristãos como um mal menor, e por isso foi muito tolerante, e até benevolente, para com eles – alguns chegaram até a ocupar lugar de destaque na administração pública – talvez até como uma afronta à memória do pai, a quem não apreciava. Para momentos como esse, e como quando Cômodo era imperador, bem vale a palavra do Apóstolo: “tudo [até o mal] converge para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8,28).
__ Entretanto, não deixou de haver perseguição, como a movida entre os anos de 211 e 212 por Escápula, o procônsul da África, em sua sede, Cartago, embora com certeza não se possa atribuir sua iniciativa a um decreto ou consentimento de Caracala – nessa época as ações dos funcionários do império estavam ocorrendo de forma mais ou menos errática, em função do enfraquecimento do poder central e do gigantismo territorial do império. O grande escritor cristão da África, Tertuliano, contemporâneo aos fatos, denuncia Escápula e faz uma apaixonada descrição de suas terríveis perseguições, embora só seja capaz de nomear um mártir: Mavilo de Hadrumeto, atual Susa, na Tunísia, que foi jogado às feras, num tipo de condenação chamada de “damnatio ad bestias” (11).
__ Caracala foi assassinado em um golpe palaciano, qunado estava no meio de uma operação de guerra na Ásia, e o trono foi usurpado por Marco Opelio Macrino, em 217. Entretanto, no ano seguinte, a sua função foi contestada por outro pretendente ao trono, Heliogábalo. O exército de Macrino foi derrotado, e ele preso e executado. Sobe ao trono o dito Heliogábalo, um excêntrico depravado, além de muito jovem, tinha 15 anos quando começou a reinar, e só pensava em festas, orgias e estimular o culto do deus sol. Deixou os cristãos em paz, mas fez tanta extravagância que os romanos não só lhe deram uma morte cruel e vergonhosa, em 222, como votaram contra ela uma damnatio memoriae, apagando a sua imagem e nome de todos os monumentos públicos.
__ Nesse mesmo ano, 222, outro adolescente sobe ao poder: Alexandre Severo, com apenas 13 anos de idade! Mas Alexandre, pelo menos fora muito bem preparado pela mãe, Julia Domma e pela avó, Julia Mesa, para o cargo e, sob a tutela destas, fez um bom governo interno e foi muito tolerante com os cristãos – dizem que a sua mãe seria uma simpatizante da nova religião. Entretanto Alexandre cometeu um erro grave: não percebeu a grave autonomia dos militares perante a lei, e não soube agir conforme. Em 235, ele, que já havia feito uma campanha mais ou menos bem sucedida contra os persas, dirigiu-se à fornteira da Germania, oferecendo presentes às tribos germânicas, para evitar mais um conflito. Ora, os soldados que estavam com ele atravessado no pescoço, porque lhes recusara aumento, não se conformaram com isso, e o massacraram em sua tenda de campanha, junto com a sua mãe.
__ Após assassinarem a Alexandre, os soldados nomeiam seu general, Maximino Tracio, imperador, no que são acompanhados pela Guarda Pretoriana, que deveria originalmente proteger o imperador assassinado, presente à ocasião, enquanto em Roma o Senado preparava a resistência, visto que Maximino era de origem camponesa, meio romano meio trácio, e muitos senadores ainda o viam como um “bárbaro”. Maximino reinou por três anos (235-238) até ser traído por seus soldados e massacrado junto com seu filho, enquanto descansavam em suas tendas. As cabeças foram remetidas a Roma e seus corpos entregues a cachorros. A Maximino e seu filho sucederam Máximo Pupieno e Décimo Balbino, que duraram menos de um ano, sendo assassinados pela guarda pretoriana. Seu sucessor foi Gordiano III, morreu poucos anos depois, em circunstâncias misteriosas, permitindo a ascensão de outro aspirante ambicioso: Filipe o Árabe, em 244.
__ Filipe o Árabe, era natural de Shahba, na atual Síria, pertencente a uma família patrícia local. Seu reinado foi marcado por duas coisas: sua luta constante para debelar rebeliões militares e por sua suposta simpatia pelo cristianismo, marcante a ponto de alguns autores, como Eusébio de Cesareia, o qualificarem como o primeiro governante cristão de Roma, embora isso seja muito contestado, pois nenhuma das fontes da época fala sobre isso (Eusébio escreveu uns 50 anos após os acontecimentos). Seja com for nesse período os cristãos experimentaram uma grande tolerância por parte do estado, até que Décio, um governante de província nomeado por Filipe, se revolta contra seu imperador, derrota-o no campo de batalha, em 249, e o manda matar, junto com o seu filho de 11 anos.

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__ A situação política em Roma estava ficando muito instável, fruto do esgotamento ideológico do império, cuja unidade estava fundada numa mitologia tolerante, mas que começava a parecer absurda infantil para muitas mentes pensantes, inclusive nos mais altos escalões do Estado, e em costumes e tradições nascido em uma cidade e em uma época que não existiam mais. A pequena aldeia do Lácio, valhacouto de bandidos e prostitutas, se tornara a sede de um império universal, tendo que lidar com religiões e tradições muito mais antigas, complexas e consistentes que a sua, sem falar no peso relativo cada vez maior, na economia, desempenhado pelas províncias do Oriente, turbinadas pelo prodigioso comércio proveniente da Rota da Seda. Agravava esse cenário o fato de o exército, cada vez menos romano e mais profissional, portanto sem uma relação afetiva com a cidade-capital, viu hipertrofiado o seu poder de ingerência na sociedade, isso tudo, agravado por uma violenta crise político-econômica que se arrastou ao longo do século III.
__ Da parte dos imperadores, a resposta mais comum a esses desafios foi simplesmente tentar resgatar na marra a antiga religião e seus costumes historicamente ultrapassados, submeter-se à gula dos exércitos e tirar proveito das riquezas do Oriente em benefício próprio. A única novidade foi querer-se colocar como o centro da nova religião de estado, justo no momento em que a sequência estonteante de assassinatos e desgraças caindo sobre os ocupantes e pretendentes ao trono mostrava a todos que ali estavam bem menos que deuses e, às vezes, até bem menos que homens de bem. Nesse ambiente de decadência material e espiritual na instável sede do império tudo podia acontecer, e tudo o que se ganhava pela manhã poderia estar perdido à noite. Os cristãos não podiam cochilar, nem deitar em berço esplêndido, e talvez o tenham feito, até que Décio, o sucessor de Filipe o Árabe os veio despertar da forma mais brutal.
__ Décio era mais um velho general, 48 anos, com uma grande ambição de poder, e disposto a tudo para chegar nele. Era também um romano da velha escola com um acalentado projeto pessoal: resgatar a grandeza e a antiga paz interna do império romano, sem se dar conta que a sua própria ascensão, acontecida à revelia e contra a lei, se encontrava em forte contradição com os costumes e a estabilidade tradicionais que ele se propunha resgatar. Dizem que ele estava fortemente impressionado o esvaziamento dos templos pagãos e a forte presença de adeptos nas igrejas e cultos cristãos, por isso pôs mãos a obra para recuperar o prestígio do paganismo decadente, mandando erguer novos templos e embelezar os antigos, tentou ainda resgatar as antigas magistraturas romanas, principalmente o antigo censor, uma magistratura poderosíssima, responsável pela moralidade pública e orientação para os bons costumes públicos, ignorando clamorosamente que as condições atuais já não permitiam o seu funcionamento – o censor deveria mexer e expor publicamente gente muito poderosa, numa cidade onde a corrupção e a força das armas se impunham cada vez mais à lei! O próprio imperador era um exemplo! E, para completar essa improvável volta ao passado, deu início a uma das mais minuciosas perseguições contra os cristãos da história de Roma.
__ Em dezembro de 249, alguns líderes cristãos são presos e em 20 de janeiro de 250, foi morto, provavelmente na prisão, devido aos maus tratos, o bispo de Roma, Fabiano. Nesse mesmo ano saiu um edito do imperador, o texto original se perdeu, dizendo mais ou menos o seguinte: todos os cidadãos do império, em dias variáveis, segundo cada região, deveria prestar um sacrifício geral aos deuses, suplicando-lhes pelo bem do império. Para certificar-se de que o edito estava sendo cumprido, foram designadas comissões de fiscalização. O seu trabalho consistiria em fornecer e fiscalizar a posse de uma espécie de documento de participação no sacrifício, o “libelus”, dado a todos os que dele participassem – mais ou menos como acontece, no nosso Brasil, durante as eleições. Quem não tivesse com esse documento em dia seria acusado de crime gravíssimo e era preso, estando sujeito à tortura e morte terríveis. Foi um grande susto! E Jedin nos conta:

É inegável o êxito inicial das medidas... As comovidas cartas dos bispos Dionísio de Alexandria e Cipriano de Cartago não deixam dúvidas de que, sobretudo no Egito e na África do Norte, o número daqueles que de uma forma ou de outra preferiram seguir a ordem do edito foi superior, de muito, ao daqueles que preferiram resistir a abedecê-las... dos cristãos de Alexandria, um se apresentavam tremendo diante da comissão de sacrifício e executavam pontualmente o ritual obrigatório; outros negavam um dia terem sido cristãos, enquanto outros fugiram para longe. Uns sacrificaram só após terem sido detidos e outros após uma temporada no cárcere, ante a presença de um juiz, outros após sofrerem torturas. Já outros, principalmente na África, escaparam comprando as autoridades com um suborno... em Roma, cristãos procuravam por meio de terceiros [falsas testemunhas] atestar sua participação no sacrifício e conseguir o documento selado pelas autoridades” (p 334).

__ Foi um escândalo, do qual não escaparam sequer vários bispos, e de tão grave e variado fez que surgisse uma classificação mostrando a grande modalidade de traições e traidores à pureza do evangelho de Cristo (Deus nos dê força para agirmos melhor!). No grau mais baixo estavam os libellatici, aqueles que haviam conseguido documentos falsos e não sacrificaram aos deuses; a seguir os turificati, aqueles que haviam apenas queimado incenso aos deuses; acima estavam os sacrificati, que haviam feito o sacrifício completo aos deuses; e no grau máximo os traditores (traidores), padres e bispos que haviam entregado as Sagradas Escrituras às autoridades – alguns desses bispos, segundo Cipriano de Cartago, quiseram, após cessarem as perseguições, retornar ao seu cargo, como se nada tivesse acontecido!
__ Muito grande e significativa foi também a presença de alguns espíritos de escol que foram fieis e pacientes e puderam tanto salvar a sua honra como a da Igreja, assim como experimentar em si aquela coragem sublime, fruto do Espírito Santo, que fora prometida por Cristo, em sua passagem neste mundo, enfrentando sentenças de morte que primavam pela meticulosa crueldade (12) – em Cartago e em outras cidades do império, a situação ficou pior ainda, pois algumas pessoas tentaram ver na eclosão de uma nova e mortal epidemia, provavelmente sarampo, a chamada Praga de Cipriano, iniciada em 250, que grassou por quase 20 anos, e que no seu auge matava até 5.000 pessoas por dia em Roma, um castigo provocado pela atividade dos cristãos...
__ Entretanto, a perseguição de Décio era extemporânea, excessiva e muito desgastante, tanto psicologicamente para o homem comum como para os cofres públicos, que tinham de bancar um esquema de fiscalização formidável – Jedin fala de um tal Celerino que, em virtude de sua dignidade e coragem na defesa da fé fora perdoado por Décio em pessoa, ao mesmo tempo que narra um episódio análogo, ocorrido em Alexandria, quando cinco soldados cristãos, que incentivavam desabusadamente um cristão vacilante a permanecer firme na fé, não foram molestados pelo tribunal. É claro que a conduta deles no momento foi importante, mas as autoridades também viram, pela reação de repulsa àquela brutalidade dos circunstantes, que era melhor atenuar um pouco o rigor da lei, sem falar que problemas externos, invasões de bárbaros fronteira, requeriam uma atenção maior do imperador.
__ Em 1 de julho de 251 as tropas de Decio encontraram-se com as da confederação goda, um conjunto de povos germânicos que viva no coração da Rússia e que se deslocava para oeste, nos pântanos de Abrito, na Bulgária atual, onde sofreu uma derrota esmagadora, não sem ante presenciar a morte de seu filho, Herenio Etrusco, atravessado por uma flecha logo no início da batalha. Decio seguiu-o logo depois, sendo o primeiro imperador romano a morrer numa batalha contra povos tribais “bárbaros”. O historiador bizantino João Zonaras relata, segundo antiga tradição, que “ele e seu filho, com um grande número de romanos, caíram no pântano e morreram; e seus corpos não puderam ser identificados, pois estavam todos cobertos de lama e musgos” (Wikipedia em espanhol – Batalla de Abrito). Lactâncio, um autor cristão dos séculos III e IV, expressando os sentimentos dos cristãos da época, regoziga-se: “Foi repentinamente rodeado pelos bárbaros, que o mataram, junto com grande parte de seu exército: não pode ser honrado com ritos de sepultamento, antes, despojado e desnudo, jazeu para ser devorado pelas feras e as aves. Um final adequado para um inimigo de Deus” (idem) 
__ Assim, em 251, da mesma forma repentina e espetaculosa como teve início a perseguição de Decio cessou, como se tudo não tivesse passado de um breve, mas traumático, pesadelo. Segundo Cipriano de Cartago, citado por Jedin, logo após as perseguições de Décio enormes filas de fieis “infiéis” acudiram às igrejas pedindo o seu reingresso, colocando à Igreja outro problema candente: o que fazer com os lapsos (caídos), ou seja, aqueles que, sob ameaça, cederam e ofertaram sacrifícios aos deuses. Deviam ser perdoados e aceitos ou ser definitivamente expulsos da Igreja?

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Notas
(1) Durante a Primeira Revolta Judaica, Simeão, que já era bispo de Jerusalém, refugiou-se, com a sua igreja, na cidade de Pela, fora da zona de conflito, e retornou a Jerusalém após o fim da guerra. Há dúvida se ele seria um dos Simeões citado no Segundo Testamento.
(2) “Com efeito, na guerra com dos judeus, agora terminada, bar Kochba, o cabeça da rebelião, mandava submeter a terríveis torturas somente os cristãos, caso eles não negassem ou não blasfemassem Jesus Cristo” (São Justino Mártir; Apologia, 31; texto completo em http://www.monergismo.com/textos/apologetica/Justino_de_Roma_IApologia.pdf)   
“Adriano, ano 17: Kochba, o chefe da seita judaica, matava os cristãos por meio de todo tipo de perseguição, se eles não o ajudassem a combater os romanos” (Crônicas de Eusebio de Cesareia – tradução do inglês de http://www.livius.org/ja-jn/jewish_wars/bk03.html)
(3) Edessa, que dá nome à capital e ao reino de Abgar V, estava etnicamente e politicamente ligada aos armênios, e estes politicamente aos romanos. Conta uma “lenda” que Abgar V foi o primeiro rei a se tornar cristão, primazia de que os armênios muito se orgulham, e que teria escrito uma carta a Jesus, tendo, inclusive, recebido uma resposta; existem versões muito antigas e insistentes dessa carta, cujo conteúdo seria o seguinte, segundo Eusébio de Cesareia:
“Abgar Oukama a Jesus o Bom Médico, que apareceu no território de jerusalém, saudações:
Ouvi de vós e de vosso poder curativo; que vós não usais ervas medicinais ou raízes, senão por vossa palavra abris os olhos dos cegos, fazeis que paralíticos caminhem... como por vossa palavra curais espíritos enfermos e aqueles atormentados por demônios lunáticos, e como chamais de novo os mortos para a vida... me dei conta que ou descestes do céu ou sois Filho de Deus, para que aconteçam essas coisas. Fiquei sabendo também que os judeus murmuram contra vós e os seus, perseguindo-os, buscando crucificá-los e destrui-los [aqui o autor se trai, afinal Jesus, supostamente ainda estaria vivo e existiam outras maneiras bem mais simples de matar Jesus, além da crucificação]. Possuo unicamente uma pequena cidade, mas é bela e grande o bastante para que vivamos nela, em paz”
(4) Segundo o escritor Bar Hebbraeus (1226-1286), um bispo e pesquisador de ponta da Igreja Ortodoxa Síria, provavelmente coligindo tradições muito antigas, “Após Adday, o pregador do evangelho na Síria, seu discípulo Aggai, que tecia panos chineses para o rei Abgar, após a morte do mestre fugiu para o Oriente distante. Ele começou a pregar através da Pérsia, da Assíria, Armênia, Média, Babilônia, chegando ao Khuzistão (Irã), pregando entre os geles e até à fronteira da Índia. Quando ele retornou a Edessa, temeu que a verdadeira religião caísse em declínio, devido o aumento das superstições, estimuladas pelo filho e sucessor de Abgar. Quando ele retornou a Edessa, o filho de Abgar [Ma’nu V] ordenou-o que lhe tecesse roupas de pano chinês, como já fizera para o seu pai. Aggai replicou-lhe: “Enquanto o meu mestre apascentava o rebanho de Cristo, eu trabalhava para o seu pai, mas agora que a tarefa de apascentar o rebanho passou para mim [tanto Adday como Aggai seriam bispos], eu já não posso fazer outra coisa”. O rei ficou furioso com essas palavras e mandou matar a Aggai, fazendo-lhe quebrar todos os ossos da perna” (traduzido da Wikipedia em inglês)
Originalmente chamado Palut, Mari foi um convertido de Addai, mas filho espiritual de seu sucessor, Aggai, que o designou para pregar na área da antiga Mesopotâmia. Ele esteve em Nínive, Nisibin [atual Nusaybin, leste da atual Turquia]. Teria sido um dos grandes apóstolos da Síria e da Pérsia.
Há dúvidas se o Mari acima seria o mesmo Mar Mari das Atas de Mari, que relatam as aventuras e a doutrina de um Mari, que seria um dos setenta discípulos de Jesus, e que teria, a mando de um dos apóstolos, ido em viagem missionária até o centro do Império Parto. Partindo de Edessa ele segue a Nisibin, Arzanéne (Turquia Oriental), chegando até Beit Garmai, na região de Kirkuk (norte do Iraque), descendo até Selêucia-Ctesifonte (centro do Iraque), ao reino de Caracene, na desembocadura dos rios Tigre e Eufrates no Golfo Pérsico, e em Susiana, na província do Khurzistão. Ele teria sido o pioneiro da pregação do cristianismo entre os partos, e em sua capital, Selêucia-Ctesifonte, chegou a pregar inclusive aos membros da corte real. Manteve calorosos debates com os adeptos do mazdeísmo. Em Carcene disputou com os adeptos de um tal Dusthi, citado em outras fontes, representante de um movimento batista, que poderia ter algo com os mandeus.
(5) A chamada inscrição de Abércio, bispo de Hierápolis (morto em 167), considerado santo pelas igrejas Ortodoxa e Católica Romana, foi encontrada em 1882, pelo religioso e pesquisador inglês William Ramsay, em Kelendres, próximo à antiga Hierápolis, e datada posteriormente de no final do século II e início do III. Essa inscrição diz o seguinte: “Cidadão de uma cidade ilustre, construí esse túmulo durante a vida, onde o meu corpo, um dia, possa descansar. Sou discípulo de um Santo Pastor, que apascenta as suas ovelhas, por entre montes e planícies. Ele tem olhos enormes que tudo enxergam, ensinou-me as escrituras da verdade e da vida. Enviou-me até Roma, para vislumbrar seu esplendor e majestade e ver a Rainha [provavelmente a Igreja] com vestes e sandálias de ouro. Lá conheci um povo marcado com um sinal resplandecente [lembrando a visão da mulher no livro do Apocalipse]. Também fui à planície da Síria e vi cidades, como Nisibin, para além do Eufrates, e por toda parte achei irmãos. Eu tinha Paulo... [parte ilegível] a fé me levou adiante e por toda parte pude saborear um farto alimento de peixe grande [antigo símbolo da fé cristã e, principalmente, da eucaristia], de pura fonte, apanhado por uma Santa Virgem [a Igreja], que o entregava a seus amigos. Ela possui um vinho maravilhoso e o serve misturado ao pão. Eu, Abercio, ditei esse texto e o fiz gravar na minha presença, aos setenta e dois anos. O irmão que o ler ore por Abercio...”. Esse testemunho é importante pelo seguinte: refere-se claramente a passagens dos Evangelhos que conhecemos, principalmente João, frequentador daquela região, como quando se refere a Cristo como Bom Pastor e o apascentamento das ovelhas; a importância da Igreja de Roma; o sinal resplandecente pode ser o do batismo; a presença de cristãos na Mesopotâmia; a antiguidade do sacrifício da eucaristia, com a comunhão em duas espécies; a oração pelos mortos que supõe necessariamente, a crença no purgatório.
(6) Possivelmente originário da ilha da Sicilia, Panteno era professor de filosofia, há dúvida se ele era pitagórico ou estoico, que se converteu ao cristianismo, movido seja pela conduta dos que conheceu seja por uma fácil absorção de sua doutrina, que o convenceu da superioridade da nova religião. Foi mestre insigne da escola catequista de Alexandria, e, posteriormente teria partido em missão às terra extremas ao sul (ou Arábia do Sul, ou Etiópia ou Índia), onde teria encontrado os originais em hebreu-aramaico do Evangelho de Mateus. Morreu por volta de 216.
(7) Demetrio foi o 12º patriarca de Alexandria, e o primeiro de quem se conhece alguma coisa. Foi um homem inteligente e operoso e agiu no sentido em que fossem determinadas datas fixas para a celebração de eventos importantes do cristianismo, em especial os dias próprios para jejum, e a determinação exata da comemoração da Páscoa, cujos cálculos foram aprovados no Concílio de Niceia, em 325, e vigoram até hoje entre algumas igrejas ortodoxas. Demetrio, que morreu em 223, também esteve envolvido em um episódio doloroso e muito impactante na história da Igreja: a condenação do pensador e apologista cristão Orígenes, egípcio de Alexandria.
(8) Esses foram os chamados mártires de Alexandria, a saber: Plutarco, Sereno, Heraclíde catecúmeno, Erone neófita, outro Sereno, Eraíde catecúmena, Potamiena e sua mãe Marcela. Uns morreram decapitados ou em jogo de anfiteatro, as duas últimas, após muita tortura, foram queimada vivas.
(9) Segunda as fontes hagiográficas da época, Perpetua, uma jovem patrícia, moradora em Cartago, foi denunciada como cristã e presa com seus servos, numa dura prisão onde sofreram toda sorte de tortura psicológica, inclusive de seu próprio pai, que era pagão, e insistia constantemente, em suas visitas, para que a filha renegasse o cristianismo – visitavam-na também, alguns membros da igreja local, graças ao suborno do carcereiro, para dar-lhe forças e trocar recados com o resto de sua família. No dia do julgamento o pai ainda insiste, em vão, para desconvertê-la, pedindo-a que não manche o nome da família. O grupo é então condenado à execução no circo, no dia 7 de março, em comemoração ao nascimento de um dos filhos de Setimio Severo, Publio Setimio Geta. Nesse meio tempo nasce o filho de Felícita, que até o momento seria o penhor de que ela não seria executada com os outros, pois a lei romana proibia a execução de uma mulher grávida, e a criança é dada a uma mãe adotiva cristã. Secundo morre de maus-tratos na cadeia, e no dia aprazado, na arena, foram açoitados, e contra os homens se lançou um urso, um javali e um leopardo, enquanto as mulheres são expostas a um touro selvagem. E assim entregaram a vida.
(10) Manobrando o Senado, Caracala fez com que os senadores aprovassem uma “damnatio memoriae” (condenação da memória) contra Geta, que o autorizava a apagar a efígie ou qualquer sinal da existência de Geta dentro dos limites do império, com a proibição, inclusive, da pronúncia do seu nome, mesmo entre familiares. Seria como se a pessoa atingida por esse decreto nunca tivesse existido.
(11) A “damnatio ad bestias” era uma pena capital, prevista no ordenamento jurídico de em Roma, que consistia em entregar o condenado a ser devorado por algum animal carniceiro faminto, em um ambiente público, em gertal um anfiteatro, como uma “abertura” para jogos de gladiadores – uma forma de estimular o apetite dos espectadores por sangue e movê-los a ficar menos propensos a pedir piedade para os vencidos. Os animais mais usados eram o leão e o tigre, por sinal os mais “piedosos”, uma vez que matam o mais rápido possível as suas vítimas, para depois devorá-las, ao invés dos canídeos e similares, como, por exemplo, lobos, cachorros selvagens e hienas, que começam a devorar suas vítimas ainda vivas; a esses animais eram entregues os autores dos crimes mais detestáveis, embora possa-se dizer que, nesses momentos, a sociedade que abominava tais crimes e os criminosos por ela punidos se equivaliam...
Essa pena era aplicada a escravos criminosos – uma lei de 61 (Lex Petronia) proibia aos senhores atirar seus escravos às feras sem uma sentença judicial – a desertores do exército, a traidores, feiticeiros e seus clientes, falsificadores, a criminosos políticos e seus mandantes (principalmente o assassínio de imperadores), os parricidas (estes eram por vezes costurados em um saco de couro, junto com um animal que podia ser um galo, um cão, um macaco, cobras ou insetos peçonhentos, para, posteriormente ser atirado a um rio, no qual, invariavelmente já chegava morto, após muito sofrimento; era a “pena cullei” ou a “punição do saco”), os fomentadores de rebeliões, os sequestradores de crianças (a partir de Constantino), e por fim os cristãos. Estes eram acusados de lesa majestade (traição ao imperador), por se negar a adorá-lo, por desobediência aos deuses do Estado, por serem adeptos de uma magia ilícita e má  e por professar uma religião não autorizada...
(12) Em Esmirna, em 12 de março de 250, foram martirizados Pionio e outros confrades como Sabina, Asclepíades, Macedônia e Lino, denunciados por judeus e pagãos, após Pionio ter pedido a estes cessassem suas zombarias sobre os cristãos que naquele momento apostatavam da fé e sacrificavam aos deuses, entre eles o bispo da cidade! Após várias sessões de torturas, como ele se mantivesse firme na fé, foi cravado com cravos em um poste, sobre uma fogueira, e aí morreu cremado.
Julião de Anazarbo, na Cilícia, foi amarrado num saco com cobras e escorpiões e jogado ao mar.
Cipriano de Cartago fala de dois mártires em sua cidade, embora deixe entender que houve mais. Luciano de Antioquia cita os nomes de dezesseis mártires em sua cidade, que se deixaram morrer de fome no cárcere.
A respeito do Egito, o bispo Dionísio indica a forma como morreram catorze mártires: 10 queimados na fogueira e 4 a golpe de espada [em Alexandria]. Mas além disso ouviu falar de numerosos mártires em aldeias e outras cidades, sem falar de muito que fugiram para regiões desérticas e acabaram morrendo de fome e frio”. (p 335)
É notável ainda o suplício do bispo Alexandre de Jerusalém, já preso pela fé sob Alexandre Severo, já centenário, e que morreu na prisão vítima de maus tratos. O famoso apologista e teólogo cristão, Orígenes, já ancião, foi também submetido a muitas torturas, mas delas escapou vivo...

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Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009.

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