quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A Herança do Primeiro Bispo

Professor Eduardo Simões

Dom Pero Fernandes Sardinha, nomeado Bispo de Salvador em 22 de junho de 1552, portanto ainda no governo de Tomé de Sousa, é um desses personagens "condenados" a ser polêmicos na história.

Apesar de sua grande erudição teológica e de ter suas qualidades morais gabadas pelos seus contemporâneos, é consenso entre os padres jesuítas que aqui estavam, segundo as cartas trocadas entre eles, que o bispo jamais entendeu as peculiaridades de nossa terra, nela permanecendo como um estranho ou alguém em permanente estado de choque, até o "espetacular" desfecho de sua vida.

Ao desembarcar no Brasil, Sardinha vinha muito sobrecarregado:

Primeiro por uma vasta erudição acumulada nos corredores e salas de aula das melhores universidades europeias, num país em que até hoje o excesso de erudição e saber causam estranheza.

Segundo por uma autossuficiência que afastava os bons conselheiros, indispensáveis para o enfrentamento bem-sucedido de uma nova realidade; e terceiro por normas de um direito canônico adaptado a uma realidade cultural estranha à da diocese que ele ia assumir. A receita certa do mais completo fracasso.

Primeiros conflitos
No início, ele foi muito ajudado pelos jesuítas de Manuel da Nóbrega e recebeu destes todo o apoio, mas logo começaram os atritos, aparentemente por causa de sua visão pastoral oposta à destes em relação aos indígenas.

Isso porque enquanto os jesuítas de Nóbrega criam numa conversão gradual dos índios, respeitando os seus costumes e desvinculando o cristianismo da cultura europeia, a percepção do bispo era fortemente eurocêntrica.

Sua visão começava por combater acirradamente qualquer insinuação de nudez ou a simples mostra de partes do corpo durante a liturgia, como faziam os europeus de seu tempo, sem falar na obrigatoriedade do uso da língua portuguesa na liturgia e nos sacramentos – inclusive naquele que é, até hoje, considerado como fulcral para a aquisição e o aprimoramento da fé católica: a confissão. 
"Confundindo... a religião com a cultura, queria o bispo que se exigisse dos índios, antes de serem admitidos ao batismo, a capitulação diante da civilização ocidental" (Sérgio B. de Hollanda; História geral da civilização brasileira; vol.2; Bertrand Brasil; pág. 58)


O passo seguinte foi ainda mais grave: os índios, na visão do bispo, segundo cartas dos jesuítas aos seus superiores em Portugal e até ao rei, não passavam de selvagens, no sentido mais pejorativo do termo, incapazes de assimilar corretamente o cristianismo como era praticado na Europa que, segundo a mentalidade do bispo, era o único correto, o que justificaria, inclusive, a sua escravização, contrariando uma bula do Papa Júlio III, de 1537, que declarava ilícita a escravidão dos índios.

O choque de concepções foi tão forte que Nóbrega, pretextando dar uma ajuda à fundação do aldeamento de São Paulo, pediu licença a Sardinha e viajou para o sul, em 1552. O bispo ficou entregue aos seus próprios pré-conceitos e aos membros menos preparados do clero de Salvador.

Segundo Pedro Calmon, em sua História do Brasil, o bispo cometeu outro grave erro ao se cercar de vários clérigos despreparados e até mal-afamados, para formar o seu cabido – conjunto de padres que servem junto ao bispo no serviço de uma catedral – o que só serviu para agravar a situação.

Com auxiliares tão despreparados, o bispo começa a meter os pés pelas mãos também com os colonos, exigindo de forma muito acintosa que eles cumprissem os seus deveres de fiéis cristãos, em especial no pagamento do dízimo, feito com guarda armada e ameaças, o que era aceitável para os padrões daquele tempo, mas não por pessoas que estavam longe de serem exemplos de "bons cristãos", como os colonos aqui estabelecidos.

Sardinha completou as suas medidas, excomungando o donatário da Capitania do Espírito Santo, Vasco Fernandes Coutinho, que, deprimido pelo fracasso de seu empreendimento, deu-se ao vício indígena do fumo, algo inconcebível para o bispo, que o apartou oficialmente da igreja Católica, não sem antes submetê-lo à humilhação pública de ser expulso de um ato religioso.

Fora de controle
Com a chegada do segundo governador, Duarte da Costa, em 13 de julho de 1553, trazendo o seu filho primogênito Álvaro da Costa, a situação tomou um rumo inesperado, pois, segundo uma certa tradição, ele era um jovem impetuoso e dado a farras – como nas baladas de hoje.

Nesse caso, Álvaro da Costa seria o patrono de todos os "filhinhos de papai" que até hoje infernizam o sono da gente trabalhadora – que começaram a incomodar os moradores mais sossegados e a desafiar a autoridade do bispo, que, como era do seu feitio, fez um duro sermão a respeito desses acontecimentos na frente dos interessados.

O efeito foi imediato: o governador tomou o lado do filho e a pequena cidade do Salvador viu-se dividida em duas facções inconciliáveis. Chegou-se à beira do conflito generalizado, enquanto na periferia os troca-tapas, as ameaças, os desaforos e as prisões arbitrárias começaram a ocorrer. Nada de novo sob o sol!

Esse conflito, retratado de diferentes maneiras, conforme o autor se coloca, quer a favor do bispo ou quer a favor do governador, revela bem a imaturidade psicológica dos principais envolvidos, o que nos faz desconfiar de sua condição de "novo-rico", gente que emigrou muito rapidamente de uma posição social desfavorecida para uma muito eminente.

Muito parecido ocorreu com a nova nobreza após a Revolução de Avis (1383-85), processo esse que só fez aumentar com o incremento do comércio colonial e, como nós observamos na história recente do Brasil, nós sabemos o quanto a sensibilidade e o amor próprio dessa gente é sensível e dado a reações explosivas, públicas e desproporcionais.

Os índios aldeados ao redor da cidade, provavelmente contrariados tanto com a política de catequese do bispo como dos excessos cometidos contra eles pelo filho do governador e percebendo o conflito entre os portugueses, aproveitaram-se para levantar-se em 1556, obrigando os dois lados a uma trégua.

O comando da reação colonial foi entregue a Álvaro da Costa, que conseguiu, com uma grande mortandade de índios, uma vitória incontestável, debelando a rebelião, enquanto deixava a situação do bispo ainda mais difícil, afinal, a função do clero, prevista no Padroado Régio, carta que regulava as relações entre o estado e a Igreja em Portugal, era de apaziguar os espíritos para viabilizar a colonização e a cristianização que daí adviria.

Ora, a ação de D. Sardinha estava longe de atingir esse objetivo, por isso ele foi destituído do cargo em 2 de junho de 1556 e convocado, junto a alguns de seus partidários, para ir a Portugal para dar explicações ao rei.

Em 15 de junho de 1556, D. Sardinha embarcou no navio "Nossa Senhora da Ajuda", mas no dia seguinte o navio, levado por ventos e corrente contrários, foi dar em uma praia onde encalhou, e seus ocupantes, passageiros e tripulação foram capturados, mortos e devorados pelos índios locais em um festim canibal.

As controvérsias de Moacyr Soares Pereira
O impacto da morte de Sardinha na Europa foi tremendo, nunca antes um alto clérigo da Igreja Católica sofrera um fim tão "selvagem" para a mentalidade do europeu da época, por isso o estado colonial português apressou-se em cair como um raio sobre os responsáveis.

Em 1557, a regente de Portugal, Catarina da Áustria, declarou guerra perpétua e autorização para escravizar os índios caetés, supostos causadores da morte do bispo, segundo podemos ver no artigo do falecido professor Moacyr Soares Pereira, "O naufrágio e morte de D. Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil; sua revisão histórica" (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; abril-junho, 1995, pág. 285).

a) A responsabilidade dos caetés.
A responsabilidade dos caetés sempre esteve muito ligada à crença que se construiu ao longo da história de que o naufrágio ocorreu na barra do rio Cururipe, em Alagoas, terra tradicionalmente habitada pelos índios caetés, de fala tupi, senhores da faixa litorânea que ia de Alagoas até o sul da Paraíba.

Essa versão tem sua principal fonte nos escritos de um senhor de engenho da época chamado Gabriel Soares, em seu Tratado descritivo do Brasil, que, vindo de Portugal, chegou aqui em 1577.

O problema é que documentos antigos, pelo menos quatro, feitos por contemporâneos desse acontecimento, ignorados ou só recentemente encontrados, revelam que a nau do bispo naufragou não na barra do Cururipe, mas na barra do rio Vaza-Barris, mais ao sul, no território de Sergipe, área tradicionalmente associada aos índios tupinambás, também de língua tupi, mas inimigos dos caetés.

Entretanto, também é certo que entre esses dois povos havia uma guerra interminável e, não raro, a fronteira entre eles se movia conforme um ou outro avançava nos territórios dos adversários.

O trabalho dos pesquisadores Marcos Eugênio O. Lima e Alan M. Matos de Almeida da UFS, assim como a página do professor Ivan Paulo sobre a história de Sergipe sustentam que havia caetés em Sergipe. A autoria dos caetés, portanto, pode até ser descartada, mas não por causa do critério geográfico.

Outra questão surge do costume dos próprios índios. Um sucesso tão arrasador como esse (que redundou na prisão e devoramento de dezenas de pessoas) seria um motivo de glória para uma tribo.

Surge, então, a indagação: Por que os tupinambás, que também eram inimigos incondicionais dos portugueses, como os caetés, abririam mão dessa "glória" para deixar a "culpa" e a "glória" recaírem toda sobre os caetés se eles, naturalmente, pouco se importavam com o desconforto e os valores dos portugueses e nem acreditavam que estes fossem tão poderosos assim (tanto é que nunca deixaram de travar contatos com os franceses)?

Para mim, uma coisa até esse momento é absolutamente certa: o naufrágio ocorreu na barra do Vaza-Barris em Sergipe – se alguém quiser se aprofundar a respeito, eu recomendo o artigo citado de Moacyr Pereira na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro constante em http://www.ihgb.org.br/rihgb.php?s=20.

b) A punição contra os caetés
Segundo o mesmo Moacyr, a acusação contra os caetés fez parte de uma campanha orquestrada e colonialista para justificar a guerra justa contra esses índios, sendo a sua extinção, ocorrida poucos anos depois, um mero genocídio: "o maior genocídio contra do índio brasileiro no primeiro século da nossa história".

Desconsiderando que o termo genocídio só surgirá na linguagem jurídica mundial em 1944 e oficializado pela comunidade mundial na Carta de Londres de 8 de agosto de 1945, sendo, por conseguinte, totalmente inadequado para caracterizar um evento do século XVI, a decisão de atacar e destruir os índios de Alagoas e Sergipe não era tão simples assim.

Portanto, precisa ser enquadrada dentro da lógica colonial, esta sim condenável, embora não deva ser julgada pelos mesmos valores de hoje, sob pena de caírmos em anacronismo – concepção que desconsidera a evolução das sociedades ao longo do tempo.

b.1. É certo que os colonos portugueses nunca precisaram de acontecimentos tão dramáticos para obterem a autorização real para fazerem suas guerras se tornarem "justas" no Brasil, quando se davam a esse trabalho, sem falar que os caetés já vinham há muito tempo movendo guerra contra os colonos de Pernambuco, que os desalojaram de sua terra.

A morte do bispo não acrescentou nada ao status dos caetés com os colonos portugueses, não se justificando a tese de um complô que se deu ao trabalho de ir até Portugal para "fazer a cabeça" da regente contra os caetés.

b.2. Gabriel Soares fala em sua obra que os caetés foram punidos com a extinção cultural por essa “desfeita sacrilega” ao poder colonial, pouco tempo depois do ocorrido.

O professor Moacyr Pereira concorda com isso e, inclusive, esclarece-lhe o tempo: 5 anos após o massacre do bispo. Mas aí começam os problemas para a tese do professor Moacyr.

b.2.1. Segundo Soares, o fim dos caetés está ligado a uma confederação de tribos tupis e jês da Bahia e do Pernambuco, formada logo após o incidente com o bispo para dar uma lição nos caetés, em vista de sua "excessiva" agressividade e ardor guerreiro.

Ainda segundo Soares, foi o ataque dessa confederação de tribos que de fato desmantelou os caetés, ficando aos portugueses a oportunidade de ajudar no extermínio com ataques secundários, além da incorporação de muitos caetés ao plantel dos escravos na colônia. Aqui Moacyr Pereira e Gabriel Soares divergem.

b.2.2. Um texto constante no livro O feudo: a Casa da Torre de Garcia DÁvila, de Moniz Bandeira, pág. 133, Google Books (versão online) – além de Pedro Calmon – diz que uma expedição punitiva-escravagista contra os caetés foi enviada a Sergipe (?) pelo Governador-Geral Manuel Teles Barreto.

Tal expedição foi completamente massacrada pelos caetés de Sergipe, aliados aos franceses, junto ao Rio Real, na fronteira com a Bahia, entre 1583 e 1587.

Eis um trecho do livro de Moniz Bandeira que narra esse episódio: "quando os caetés que habitavam o rio Sirigi (Sergipe), acima do rio Real, na enseada do Vaza-Barris...".

Frei Vicente do Salvador fala desse episódio no seu livro "História do Brasil", Livro Quarto, Capítulo Décimo Sétimo, "De uma grande traição que o gentio de Sergipe fez aos homens da Bahia, e a guerra que o governador fez aos Aimorés", embora lhe dê uma motivação bem diversa daquela dada pelos autores precedentes.

A data e o posicionamento geográfico dos caetés nesses textos levam de roldão quase tudo o que se afirmou nos parágrafos acima.

b.2.3. Frei Vicente do Salvador no Livro Quarto, Capítulo Vigésimo, pág. 96, edição online, fala que Cristovão Barros, o filho bastardo de Antônio Cardoso de Barros – donatário fracassado da Capitania do Ceará e um dos devorados no naufrágio do Vaza-Barris – resolveu se vingar dos índios que haviam morto o seu genitor, e que habitariam em Sergipe.

"Muito estimou Cristovão de Barros entrar no governo para poder ir vingar assim a traição, que o gentio de Sergipe fez aos homens da Bahia (no massacre do rio Real)... como a morte de seu pai Antonio Cardoso de Barros, que ali mataram e comeram, indo para o reino com o primeiro bispo desta Bahia".

O professor Moacyr ganha um ponto precioso em sua tese ao mesmo tempo em que sofre uma derrota acachapante: a expedição punitiva de Cristovão de Barros ao gentio sergipano (tupinambá ou caeté?). Se o relato de frei Vicente for plenamente confiável, deu-se em fins de 1589, 33 anos após o naufrágio do bispo! Como fica a tese da "guerra santa" e do "genocídio" imediato contra os assassinos do bispo?

O texto de frei Vicente dá muito mais ênfase ao desejo de vingança pessoal de Cristovão de Barros do que a uma pretensa política "genocida" do estado português, na qual elementos de justiça bruta "guerra tão justa dada com o consentimento de el-rei", seja por conta da morte do bispo seja por causa da aliança, estreita e contínua, que os índios de Sergipe faziam com corsários franceses, misturam-se interesses bem pessoais com políticos e outros muito objetivos; "esperaram trazer muitos escravos".

O rescaldo
O incrível fim de Pero Sardinha – não conheço a história de outro bispo da Igreja Católica que tenha conhecido morte semelhante – sacudiu durante séculos o imaginário do povo brasileiro, ora condenando ora aplaudindo, e até procurando ver nele o sinal da nossa afirmação cultural.

Houve reflexo também no "Manifesto Antropofágico" de Oswald de Andrade, de 1927, que via no fim do bispo um símbolo – este, que tanta questão fazia que os índios se tornassem espiritualmente europeus, acabou sendo transformado, literalmente, em índio – e termina o seu texto em uma ironia ácida autodatada no "ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha".

O final do Manifesto pode até valer como uma nota de humor negro, mas aquilo que ele vê no acontecido não podia ser mais equivocado, pois a morte do bispo desencadeou fortes paixões e motivação psicológica que levou a uma das mais raivosas matanças de índios de nossa história, enfraquecendo as possibilidades de afirmação cultural destes ao longo dos primeiros séculos.

Será esta a vingança final do bispo ou um aviso de que não convém que política e religião andem juntas?

O caráter pendular de nossas reações emocionais acaba por se refletir no caráter também pendular em nossa forma de abordar os problemas nacionais e a nossa história.

À historiografia "tradicional", sempre preocupada em apontar para a estabilidade e o consenso social em torno de valores e figuras históricas consagradas pelo costume ou a tradição, sucedeu outra que só consegue ver conflitos, luta de classes etc., usando deste como uma camisa de força tal qual os costumes e a tradição faziam antes em relação aos "grandes personagens".

Assim, logo se veem conspirações, genocídios etc., em que um sentido histórico mais moderado veria um conjunto de situações historicamente condicionadas, levando para um desfecho que não é exatamente aquele que desejaria o historiador.

É, por acaso, função de a história completar as lacunas do tempo com as sobras dos historiadores?

É tão absurdo assim ver, no massacre dos índios de Alagoas e Sergipe, o resultado de movimentos históricos profundos e gigantescos, não necessariamente sob o completo controle dos agentes, como o quer a "historiografia das intenções" ou "das conspirações", tão comum em nossa intelectualidade de esquerda?

Seria muito complicado ver índios e colonos envolvidos por acontecimentos e/ou movimentos que ultrapassavam de muito a sua compreensão imediata, o seu discernimento e o seu poder de decisão, enquanto se procura, por meio de uma análise linear, comprovar em apenas um acontecimento a única crença possível que alguns alimentam acerca das motivações e movimentos históricos?

Voltamos à camisa de força, ao dogma, à mistura explosiva de religião com política, transformando a política em religião.

Agitar gratuitamente um conceito, procurando moldá-lo a tudo que, ainda que distante, se assemelhe ao seu uso original é desmoralizá-lo por completo.

Esse fato é grave quando nos referimos a um tão carregado de significado e emotividade como "genocídio", que nos induz logo à imagem de homens, mulheres e crianças desarmados, que não representavam o menor perigo objetivo, sendo levados ao matadouro pelo simples fato de estarem ali, como se a sua simples existência já fosse uma provocação, conforme o conceito foi originalmente criado em meados dos anos 1940.

Será que o que aconteceu em Sergipe no século XVI se enquadra nesse conceito?

Sem negar que em muitas partes houve uma matança desnecessária, injustificada e covarde de índios, neste caso há controvérsias:

a) Os autores antigos são unânimes em dizer que esses índios estavam em estreita aliança com contrabandistas e piratas franceses, e que em função disso a ligação terrestre entre a capitania mais rica, Pernambuco, e a capital da colônia, Salvador, distando apenas uns 800 km, estava cortada.

b) Que os franceses não apenas contrabandeavam o pau-brasil local como também armavam e orientavam militarmente os índios locais (caetés ou tupinambás?).

c) Que os franceses participaram ativamente no combate à expedição luso-indígena massacrada junto no rio Real, sem falar que durante o embate final entre Cristovão de Barros e os índios de Sergipe, acima referido, estes mostraram uma grande sofisticação bélica, com armadilhas e manobras diversionistas, comuns a um exército europeu, mas estranhas à concepção de guerra indígena.

d) O texto de Pedro Calmon diz o seguinte: "O mesmo missivista da Companhia de Jesus (provavelmente o visitador Cristovão de Gouveia) explicava: "...De três anos a esta parte somente nesta Capitania (Sergipe), são mortos em semelhantes entradas perto de 500 homens brancos, e que com estes são agora alguns seiscentos (o autor se refere ao grupo massacrado no rio Real, que constava de uns 130 portugueses e mestiços), pág. 929-930.

O livro de Muniz Barreto diz: "o número de portugueses mortos pelos índios em semelhantes entradas naqueles últimos três anos subiram a mais de 600" (pág. 133).

O que houve em Sergipe foi uma guerra, uma guerra duríssima para ambos os lados, na qual os nativos levaram a pior e sofreram as maiores perdas.

Certamente, foram por razões de ordem econômica e política que moveram a metrópole a dar guerra de extermínio aos índios de Sergipe, servindo a morte do bispo apenas como um pretexto menor ou secundário.

A morte do bispo, então, serviu para enfurecer e mobilizar o homem comum, o soldado, a bucha de canhão, que partiram para lá pensando em mover uma guerra santa, em serem o braço da vingança divina, logo ele que era tão humilhado e desprezado no seu cotidiano, da mesma forma como motivou os índios a darem mais de si, a confiarem que a vitória era possível.

Afinal, se eles haviam sido bem-sucedidos no episódio do naufrágio, por que não o seriam agora?

Outra coisa que fica clara é o desencontro entre as diversas fontes. Abundam omissões, lacunas, contradições etc.

Isso é raro na nossa história? É tão difícil assim aceitar isso e se conter para não sair completando, sem esclarecer ao leitor, o que falta às crônicas originais, considerando que a retirada ou o corte de uma informação, nessas condições, seria um crime de lesa memória?

Desde que os impostos estivessem sendo pagos em dia, em nada interessava ao estado colonial coletar dados sobre acontecimentos sociais relevantes, afinal não havia, para o Estado, nada relevante fora do fisco, como parece acontecer até hoje.

Bibliografia
BANDEIRA, Moniz. O feudo: a Casa da Torre de Garcia DÁvila. Google-Book: online. p 132-135, 148. Acesso em 22/02/2012.
CALMON, Pedro. "História do Brasil". In: Enciclopédia Delta Larousse. 2ª ed. Rio de Janeiro: Delta, v. II, 1964. p 929-930.
HOLLANDA, Sergio Buarque (org). História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 119, 125, 132 v.I e p.58 v.II.
PEREIRA, Moacyr Soares. "O naufrágio e morte de D. Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil; sua revisão histórica". In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. abril-junho, 1995. p. 285. edição online.
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. p 93-94. edição online.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil. edição online.

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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O I CHING DA TEMPESTADE BRASILEIRA PERFEITA

Prof Eduardo Simões


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Fonte:  http://nunoquelhas.blogspot.com.br/

            A valer tudo o que dizem os especialistas minimamente imparciais, desvinculados oficialmente de partidos, a grande imprensa e o que veem nossos olhos; creio que estamos que estamos na expectativa da tempestade perfeita: esfarelamento social – aumento da criminalidade, sob as mais variadas formas, descrédito das instituições públicas, em especial aquelas ligadas à segurança (polícia) e à reprodução da sociedade (escola [recentemente, como professor, cheguei a ser agredido fisicamente por um garoto da 5ª série!]), enquanto vândalos sem bandeira estouram portas de bancos, e vândalos com bandeiras, da direita, para variar, tentam calar o congresso à força e insuflar a volta dos militares ao poder – sem falar do esfarelamento político – governos, nos três níveis, incrivelmente incapazes, oposições incrivelmente sedentas e políticos incrivelmente corruptos – e do esfarelamento econômico – indústria estagnada, balanço de pagamentos deficitário, inflação resistente, consumo em baixa, como baixos estão os níveis dos reservatórios das hidrelétricas, energia mais cara, preço da gasolina defasado, ameaçando a sobrevivência da maior e mais importante empresa do país, carro chefe da principal bolsa de valores...
            E para quem acha os desmandos internos são demasiados, o ambiente global está longe de ser amigável. A queda vertiginosa do preço mundial do petróleo ameaça os investimentos naquilo que já foi apresentado como a “redenção do Brasil” e nosso passaporte para o Primeiro Mundo: o pré-sal, que de tanto o governo postergar o início da perfuração, para garantir que permanecesse sob controle dos interesses ‘dele’, normalmente confundido com os interesses da nação, perdeu-se o tempo ideal para o investimento, e se o preço baixar mais a exploração essa ‘mina de ouro’ se tornará antieconômica. Sob a mesma ameaça encontram-se outras comodities, matérias-primas, devido a perda de vapor da locomotiva chinesa – o interminável escândalo do petróleo ganha mais um contorno trágico; a justiça americana, aquela mesma que costuma conceder indenizações de milhões de dólares em simples ações de divórcio, acolheu uma representação de acionistas da Petrobrás, nos EUA, que se sentiram lesados por esse interminável mar de lama, mais preta que o ouro a que aquela está acostumada a retirar de dentro da terra.
            Some isso tudo aos efeitos da maior seca já registrada na região mais densamente povoada do país, talvez até o início de uma mudança climática permanente, então está na hora de começar a prender a orar e de buscar ajuda em manuais de sobrevivência que não sejam apenas uma extensão do ego de seus autores, em geral pessoas bem-sucedidas, quando não bem-nascidas, a dizer que tudo está sujeito à vontade do leitor, e que basta ele querer, inventar, etc., para virar a situação, a revelia do que acontece fora dele. É costume citar o mantra que a palavra chinesa para crise é a mesma para oportunidade.
            Quem se interessa pela cultura chinesa, mais do que apenas seus pedaços, sabe que eles não assim tão superficiais ou ‘capitalistas’, exceto os membros do seu partido comunista. A densidade de sua sabedoria escapa à mente dos gurus da livre iniciativa, livre da razão, mas não das ambições deles, e se revela em formas surpreendentes, como no várias vezes milenar livro das mutações, o I Ching, que, devidamente jateado das pretensões divinatórias, traz lições de sabedoria surpreendentemente atuais, para as diversas situações da vida.
            No caso brasileiro, quem melhor se encaixa e o hexagrama 28, o fatídico Ta Kuo, traduzido como, Preponderância do Grande, representado por uma linha descontínua acima, seguido de quatro linhas contínuas, e uma sexta linha descontínua. O autor, ou autores, veem nelas uma enorme e pesada viga mestra (as quatro linhas contínuas), mas fraca nas extremidades (as linhas descontínuas). Em função disso a viga como que cede, ou sela, sob o seu próprio peso ameaçando cair e causar grande estrago. O ‘grande’ sugerido pelo nome diz respeito ao governante e suas elites pesando sobre a população, muito a propósito em nosso caso, denunciado um período de fastio, de decadência, de um modelo, sistema ou projeto, de sociedade ou mesmo pessoal.
            Na primeira linha, a imagem que vem é de uma enchente que encobre as árvores, os homens sábios e produtivos, mas que no nosso caso, já que a China fica no hemisfério oposto, o que dá para ver é a seca, que estiola a inciativas sábias e bem intencionadas, que, nessas ocasiões não são levadas a sério pelos que seguem a ‘onda’, os inconscientes e oportunistas, que só agravam a situação. Mas quem é sábio, porém, não teme ficar sozinho na sua sabedoria e na lucidez com que descortina o horizonte, enquanto busca outras oportunidades. Agindo sempre com o máximo de cuidado possível, como convém nessas épocas especiais, embora essa não pareça ser a conduta diretriz de nossos governantes, capazes de tudo para ficarem com a maioria.
            Na segunda linha, aparece a ideia de um homem já maduro, tomando uma esposa significativamente mais jovem. Não é algo comum, mas os tempos também não o são, e antes que a frivolidade possa nos dirigir para futilidades do tipo ‘golpe do baú’, o comentador, provavelmente o grande Confúcio, nas aclara, apontando esse episódio para a união íntima, necessária, nesse contexto, da sabedoria com a juventude. A sabedoria tempera o ardor típico da juventude, enquanto esta dá uma sobrecarga de esperança àquela, pois a sabedoria também pode cansar. Isso também significa que os fautores do projeto de sociedade que está decadente devem sair com sinceridade de seus altos pedestais e procurar no povo, na base, para adquirir nova vitalidade, fazer novas adaptações e mudanças. Será que os nossos políticos ainda são capazes de ouvir o povo, de falar-lhes de maneira convincente?
            Na terceira linha, um homem poderoso avança com arrogância e força, ignorando e oprimindo quem lhe faz oposição, quando o momento é de movimentos calmos e de ampliar alianças, causando desgraças. Eu imagino logo o PT em Brasília e o PSDB em São Paulo. As palavras do comentarista chinês são claras demais para não serem reproduzidas: “em épocas de perigo, uma atitude obstinada procurando avançar apenas acelera a catástrofe”.
            Na quarta linha, o homem, o governante e/ou seu grupo realmente consegue fazer aliança com o povo, mas há um alerta: se essa aliança não for como o casamento acima, sincero, mas antes um movimento de oportunismo, com segundas intenções, como usar o povo como “bucha de canhão” na sua luta por permanecer ou conquistar o poder, a derrocada e a humilhação não estarão longe.
            Na quinta linha ocorre uma situação análoga e oposta à segunda: uma mulher idosa busca um marido, simbolizando uma elite, que ao invés de recuperar o seu viço junto a uma mulher jovem, o povo, busca encontrá-lo na associação com outros grupos da elite. Os rituais e costumes sociais são observados escrupulosamente, mas de tal aliança não sai fruto digno de mudar a angustiante situação. O mesmo do mesmo, nada muda, vide a aliança PT-PMDB, que controla folgadamente os centros de poder do país, mas não consegue torna-los fontes de decisões sábias e prudentes, mas antes agravam a crise com um susto atrás do outro no circo do Congresso, e a aliança PSDB-Dem, que faz oposição, mas que também não consegue gestar saídas seguras e confiáveis para a crise. Onde está a sinceridade?
            Na sexta linha, em virtude de tantos erros a situação só agravou-se, e as pessoas corretas precisarão continuar vivendo e assumir decisões, inclusive na defesa de seus princípios morais. Pode daí surgir a necessidade de atravessar uma torrente impetuosa ou enfrentar o deserto escaldante, sem praticamente nenhuma chance de sucesso, como aconteceu a Jesus ao estrar pela última vez em Jerusalém, ou como já aconteceu a tantas pessoas nesse país, que se dispuseram a enfrentar a oligarquia militar, o crime organizado, as quadrilhas de corruptos, etc. As águas o envolvem e ele perece sem culpa, fazendo o que acha certo.
            De fato, quanto mais anômalo e crítico é o momento histórico, mais possiblidades de que ocorram desajustes e injustiças, e a violência cresce, principalmente contra as pessoas inocentes e corretas, inclusive enquanto procuram dar uma direção correta à sociedade – dessa violência, nós somos testemunhas diárias, nem as crianças escapam. A sabedoria se torna subversão, e é preciso ter coragem para tomar a decisão suprema, a forma maior de amor: dar a vida pelos amigos. Se isso acontecer com mais frequência é possível que ainda haja uma saída para o Brasil, e a tempestade dure pouco, caso contrário os próximos anos serão muito “emocionantes”.


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sábado, 6 de dezembro de 2014

OS SUJOS, OS MAL LAVADOS E A SECA

Prof Eduardo Simões


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Fonte http://querido-deus.blogspot.com.br/

            Foi notável o clamor que se levantou da oposição, a respeito da possibilidade instituição dos chamados conselhos populares, por meio de votação no Congresso, ante a expectativa de estes se tornarem massa de manobra do Executivo, atropelando o Legislativo e outras instâncias e/ou instituições políticas nacionais, tal como acontece em algumas “democracias populares”, em particular na Venezuela, onde a ação desses grupos, associadas ao estado populista, arrastaram o país ao caos. Mas há várias pedras no meio do caminho...
            Em primeiro lugar, como diz uma matéria da Folha de São Paulo online, de 15/06/2014, essa iniciativa não é novidade, porque conselhos populares já existem no Brasil, desde 1931, como o Conselho Nacional de Educação, sem falar de outros como o Conselho nacional de Saúde, de 1937, além de diversos outros nas mais variadas áreas, alguns, inclusive, de caráter normativo, como o CONAMA, Conselho Nacional do Meio Ambiente, além de outros de caráter consultivo, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico, constituído por empresários, etc. Sem falar que eles não só não são controlados pelo governo como não obrigam este a nada.
            Em segundo lugar, o decreto do governo apenas serviria para regulamentar a criação de novos conselhos e instâncias, sem mexer nos antigos, a meu ver desnecessário, uma vez que o grande problema da presença popular no processo de tomadas de decisões, tanto políticas como administrativas, passa muito mais pela falta de uma cultura de participação, e por uma tradição de clientelismo, que por impedimentos legais ou institucionais a essa participação. O que está faltando claramente é uma educação para a participação cidadã, que demanda muito mais que atrelar o nosso sistema educacional aos resultados do PISA, ou a formar uma força de trabalho acéfala, e o funcionamento mais ágil das instâncias já criadas, além do combate aos vícios existentes e decorrentes, por exemplo, da unicidade sindical, que transforma os sindicatos em plataformas de lutas de poder de grupos de pressão alheios aos interesses das classes trabalhadoras.
            Fora isso há muitos outros órgãos de expressão da vontade popular como as igrejas, a família, os clubes, etc. A questão é fazer os seus gestores darem um mínimo de pelota aos seus liderados e encaminhar aquilo porque clamam as “bases”. Faltam raízes à nossa democracia, e por isso a nossa cidadania é antes uma lei no papel do que uma realidade palpável e percebida no dia a dia, de onde essa enxurrada de leis e decretos repetitivos, criando e recriando o que já existe, ao invés de dar efetividade a estes. Seja como for isso são águas passadas, e a proposta do governo foi derrotada devido a ação de deputados do PMDB, que, segundo analistas, mandaram um recado para o governo, a dizer que precisam de mais proteção no caso do Petrolão, ou seja, o PT precisa segurar mais a Polícia Federal, senão... Isso não tem moral, mas tem muita lógica para nós.
            Por falar em campanhas difamatórias, mentiras, etc., essa mesma oposição, que criticou tanto as mentiras do governo na última eleição e alardeou tanto o perigo do bolivarismo nos conselhos populares do Governo Federal, fez aprovar no Estado onde tem mais poder e prestígio, São Paulo, uma lei para criar os tais mesmos conselhos, com a anuência de todos os partidos da Assembleia (Estadão online, 04/12/2014). Faça o que eu faço, mas não faça o que eu digo.
            E o que dizer das duas dúzias de gatos pingados, vários partidários do deputado Izalci Cunha (PSDB-DF), segundo o Estadão online (02/12/2014), que a nossa popularíssima oposição arranjou para bloquear, no grito, a votação laxista do governo no Congresso? Não era justamente isso que eles diziam mais temer na criação dos conselhos populares do PT? E como os seus deputados vãos às galerias para impedir, no braço, que o Congresso voltasse a funcionar normalmente, com a retirada da claque de baderneiros? Hipócritas, hipócritas, hipócritas.
            Juntando tudo isso mais as estranhas mudanças climáticas em curso, só podemos recomendar que se ponha as barbas de molho, quem as tem, senão pegue uma emprestada, enquanto se formam as condições perfeitas para a tempestade perfeita, nem que seja em molho de tomate, visto que a água, assim como a vergonha e o juízo, está muito escassa na nação.

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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A SABEDORIA DOS MINEIROS

Prof Eduardo Simões



http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/cd/Caipira_picando_fumo.jpg/640px-Caipira_picando_fumo.jpg]
Fonte Wikipedia, pt
Caipira picando fumo de Almeida Junior. Muito incrível! A essência de um Brasil que não desapareceu.

            Não existe nada mais adequado, saneador e aprimorador do regime democrático e dos partidos, para o bem das gentes, que a alternância no poder. Vivi isso no meu estado, presa corriqueira de poderosos e antiquados coronéis, que, confiados em seus currais eleitorais e na violência dos militares, locupletavam-se do poder, dando pouco ou quase nada em troca, quando não tiravam muito para si. Com o fim da Oligarquia Militar, o povo teve a sabedoria de buscar algo diferente, e os políticos idem, o que permitiu o arejamento do poder e a dinamização da sociedade de uma forma impressionante. Coube a um político novo, sintomaticamente ligado ao PSDB, o empresário Tasso Jereissati, puxar uma avalanche de mudanças que contaminou os outros partidos, em especial o acomodado PMDB, fazendo com que o IDH do estado se tornasse o segundo do Nordeste.
            O mesmo descortino mostrou o povo mineiro, nas últimas eleições, ao perceber que a proposta do PSDB começava a se esgotar, vide o colapso no sistema de saúde de Minas, devido a acomodação ao poder de um grupo que já se sentia dono do estado. A longa permanência do PSDB no poder estadual, obrigou o PT mineiro a aprimorar o seu discurso e seu método, da mesma forma que obrigará o PSDB a aperfeiçoar-se, inclusive na virtude da humildade, para chegar na disputa ao  poder com mais chances, daqui a quatro anos. É preciso rever prioridades, mudar quadros, etc.
            Tal sabedoria não teve o povo paulista, mesmo com os índices gravíssimos e muito preocupantes do aumento da violência, queda no padrão das escolas públicas, vide IDEB, para não falar de algo apavorante, e que já dava amplos sinais que estava para ocorrer, sem que os donos do poder tomassem qualquer medida, antes a negassem peremptoriamente, que é a crise hídrica, que ainda pode assumir proporções bíblicas, se a natureza não vier em socorro do grupo no poder.
            A grande maioria dos paulistas, infelizmente, optou por aferrar-se às conquistas do passado e garantir o que tinha à mão, ainda que fosse como areia escorrendo entre os dedos, garantindo uma vantagem eleitoral tão grande a um grupo, há vinte anos no poder, que este nem se deu ao trabalho de formular um programa de governo! Ou seja, em São Paulo nada se muda, nada se areja, nada se aprimora, apenas se aprofunda, ou afunda-se, um modelo que há tempos mostra sinais de esgotamento. A situação se acomoda, a oposição se exaspera, a paixão política sai do controle.
            Vamos torcer para que não seja apenas a crise que vai nos fazer mexer em nosso estado, antes mexamo-nos para aprender com a sabedoria de compatriotas, e torçamos para chegar incólumes às próximas eleições.

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terça-feira, 25 de novembro de 2014

LUCIANO HUCK OU A VERGONHA DE SER BRASILEIRO

Prof Eduardo Simões


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http://www.taringa.net/
            Faço a chamada no 1º Ano do Ensino Médio. “Caroline!”. Uma aluna, uma graciosa mulata, vem até mim e pergunta: “como está escrito?” Estranhei, mas soletrei para ela. “Está errado, é com dois ípsilones”. Conferi de novo o nome é lá estava: Caroline. Fui à secretaria da escola e pesquisei na sua ficha de matrícula e nas fotocópias de documentos. “Nos seus documentos está escrito com ‘i’ e ‘e’!” Ela insiste: “mas eu quero que seja escrito com dois ípsilones”. Escaldado pela enorme quantidade de alunos com nomes estropiados, na tentativa de pais semianalfabetos em reproduzir termos da cultura inglesa – já tive até uma “Kerollen” – tentei lhe convencer já estava perfeitamente adequado à grafia inglesa original, até lhe ensinei a pronúncia: “kerolain”, mas não adiantou; a cultura inglesa era muito pouco “inglesa”, para ela. Logo ela, que só pelas características raciais, poderia sofrer preconceito se fosse morar no principal atrativo da cultura inglesa: os EUA. Pelo menos, ela não mais correria o risco de ser esterilizada, sem o saber ou sofrer linchamento público, como amargaram as pessoas de pele escura algumas décadas antes. Coisa que ela, e os outros, nem imaginam.
            Isso me preocupa, pois historicamente era apenas a elite econômica que costumava mostrar ojeriza pelo povo e a cultura da terra, tendo sido necessário um monumento literário do porte de um “Sertões”, de Euclides da Cunha, de 1902, para mostrar às nossas elites da época, que havia um Brasil para além de seus muros e das vitrines de Paris, uma elite deveras ingrata, pois devia os imensos privilégios e prestígio ao povo e ao país que tanto desprezava, e que não os experimentaria em nenhum outro local do mundo “civilizado”, tanto a seu gosto.
            Bem, já que não dá para se transferir para Europa ou Estados Unidos, carregando os privilégios junto, porque não tentar trazer o mundo “civilizado” para cá, assegurando, a manutenção do privilégio e da fama. Semana passada, um quadro do progrma de Luciano Huck, chamado “Um por todos. Todos por um”, frase retirada do romance “Os três mosqueteiros”, do francês Alexandre Dumas, penso, chamou-me a atenção.
            Tudo começou com a descoberta de um projeto extremamente meritório, de um agente penitenciário de Aquidauana, MS, uma cidade cujo nome está ligado a um dos mais imponentes e esquecidos feitos militares da história de nosso país: a Retirada da Laguna, em 1867, quando quase dois mil homens e mulheres deram a sua vida ou o seu sangue, para que aí se continuasse falando português e valendo as nossas leis. Que prevalecesse a nossa cultura.
            Descoberto por Huck, o emotivo e bem brasileiro agente, instrutor de basquete nas horas vagas, foi envolvido, junto conosco, em uma aventura de mágica, que contou com a presença de astros genuinamente nacionais como Oscar Schmidt e Hortência Marcari, sendo o tal agente, inclusive, levado pela produção do programa para assistir um jogo do Cleveland Cavaliers, onde conheceu Anderson Varejão, e a frase slogan do time: “All for one. One for all!”. O título, em inglês, do quadro de Luciano Huck!
            Tudo bem, nada de mais, como nada de constrangedor havia no presente que a produção deu ao agente ao turbinar, com uma bela reforma, o espaço a ser usado pelos alunos do agente, em geral filhos de presidiários e gente pobre, não fosse o nome escolhido, pela produção, para o time recém-criado: “AQUIDAUNA ALLIGATORS”, exatamente como é o costume nos Estados Unidos e Canadá, inclusive com a inversão, na frase, entre possuidor e a coisa possuída, como ocorre na língua inglesa.
            Aligátor, amigo, é um animal que só existe nos Estados Unidos, no Brasil, se é que é para por um nome de animal, conforme o costume americano, o que existe são jacarés. Qual a razão dessa cópia tão grosseira de um costume americano no interior do Brasil, no centro da América do Sul, tão abandonada e esquecida pelos “brothers”? Por que razão impor, de foram tão agressiva, ao povo pobre de Aquidauana, vergonha por sua própria cultura, ou será que todos vão conseguir olhar para aquele escudo do time, onde está escrito “alligators”, e ler sem dificuldade “aligueirô”, como Luciano Huck fez questão de ressaltar e até gritar, no final do programa, como que para ninguém esquecer a pronúncia correta do inglês dos EUA? Por que razão é importante que as pessoas se sintam analfabetas, ou inferiores, toda vez que olharem para o escudo do seu time de coração e não entenderem nada, até ficarem com vergonha por viverem em um lar ou em uma cidade onde só se fala português? O Departamento de Estado dos EUA, alguma empresa de lá, pelo menos, financiou alguma coisa? Eles vieram de lá trabalhar no projeto? Se isso aconteceu, por que foi omitido?
             Isso não é brincadeira, estamos ignorando coisa séria e está na hora de termos mais cuidado e zelo nossa cultura. Certa vez eu estava dando aula e pronunciei displicentemente “eipou”, a propósito de “apple”, afinal eu não faço nenhum esforço em ser castiço na pronuncia do meu inglês no meu país – eu sou brasileiro e não americano ou inglês – quando um aluno, semianalfabeto em português e analfabeto em história do Brasil, por resistir à aprendizagem, me interrompeu para corrigir: “é épou”. Ou seja, enquanto nas universidades doutores e mestres recomendam não corrigir os erros de português dos alunos, a pretexto de preservar a autoestima, constrangimento de classe ou sei lá que outra mitologia, os brasileiros, alguns semianalfabetos, estão se cobrando nas ruas a pronuncia correta do inglês, e o programa de Luciano Huck, infelizmente, deu mais força a esse desatino.
            E quem fica na corda bamba numa realidade como esta? A principal fonte de cultura luso-brasileira: a escola com os seus professores, vistos cada vez mais como antifuncionais, porque tentam passar conhecimento e valores que programas como os de Luciano Hulk afirmam gratuitamente ser inadequados ou ultrapassados, na melhor das hipóteses, ou talvez ele, como a maioria, nem saiba o que está fazendo, afinal tem um quadro felicíssimo chamado “soletrando”, ainda que baseado em antiquíssimas competições americanas de soletração. Mas vale, é uma boa iniciativa.

            Como a escola e professores podem resistir a pressões dessa envergadura e garantir uma boa qualidade e quantidade de aprendizagem? Enquanto isso, “especialistas”, mobilizados pelas principais revistas do país, clamam ter encontrado a solução à descaracterização e desvalorização da cultura e o seu prolongamento necessário, a desvalorização do conhecimento adquirido nessa cultura: a culpa é dos professores e a solução é acabar com a estabilidade no emprego e quaisquer outras vantagens para a carreira, afinal ele é um profissional como outro qualquer, da mesma forma que as crianças, os seres humanos, são um bem como outro qualquer? Afinal não é nisso que se acredita nos Estados Unidos?

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A VOLTA DO PARAFUSO

Prof Eduardo Simões

            O parafuso da sociedade brasileira completou mais um ciclo, e lá está de novo a classe média brasileira, ensaiando tomar as ruas, para exigir a invalidação de uma eleição, bem típico, ou o apressamento do resultado de investigações ainda em curso, ou seja, acelerar a condenação, porque as pessoas dessa classe social, assim como crianças mimadas, não gostam de esperar por nada, querem tudo logo. E o querem de forma agressiva, atacando fisicamente as pessoas que discordam de sua imaturidade e facilidade de ser manipulada, como aconteceu numa manifestação em São Paulo, noticiada pelos órgãos de imprensa sérios.
            Convenhamos que a atual presidenta e o seu incrível exército de Brancaleone do PT colaboraram muito para que as coisas chegassem a esse ponto, mas querer torná-los os únicos e piores bandidos dessa história é absolutamente inconcebível, pois todos os órgãos de imprensa sérios, inclusive aquela revista que não é tanto, mostram que a grande massa dos que sangraram a Petrobrás está ligada a outros partidos, principalmente o PMDB, de Calheiros, Sarney, Temer, etc., ídolos da classe média nordestina, assim como o PP, de Paulo Maluf, eterno “perseguido” da justiça, que recebeu da classe média paulista uma votação consagradora, assim como o palhaço Tiririca.
            Por que então só se fala em “PT”, “petralha”, e se minimiza a ação desses outros partidos, frequentadores muito mais assíduos na folha policial que aquele? Será que se está buscando, com essas mobilizações, criar uma cortina de fumaça de sorte a deixar incólumes os maiores ladrões nessa história toda, e nesse caso a “birra” da classe média estaria sendo habilmente manipulada contra seus próprios interesses de classe? Afinal, qual é o interesse ou o valor determinante de nossa classe média?
            Historicamente vamos encontrar essa classe média, pequena é verdade, mas já ativa, em 1822, clamando pela independência do Brasil, no momento em que a prosperidade do reino português se transformara em cinzas e em lembranças de um passado glorioso. A riqueza fazia-se ao mar.
            Durante o Império vemos a classe média conviver tranquilamente com o espancamento de homens nus em praças públicas, pelourinhos, e que ela fingia não ver, para não ter que se comprometer mais com sua consciência cristã católica, capaz de assistir compungida a uma missa, voltar para casa, e em seguida mutilar um escravo que lhe causara um pequeno aborrecimento. A classe média não suportava contrariedade, espera, etc. Mas quando todos perceberam que a escravidão não era economicamente tão vantajosa assim, e a fuga dramática de escravos, associada à crise econômica gerada pela Guerra do Paraguai, agravava a crise econômica do país, essa classe média descobriu-se, “bestificada”, que a escravidão era um horror, a Princesa Imperial um anjo, mas ela, classe média, que sempre fora republicana. O Império cai sem resistência.
            E assim, de crise em crise econômica caem os grandes mitos de nossa história: a Primeira República, com a crise de 1929 – a queda de Getúlio, em 1945, seria uma exceção, mas o seu suicídio em 1954 tinha como ingredientes a fragilidade da sua política econômica e o desejo de seu ministro em melhorar, paternalisticamente, a vida dos trabalhadores, já massacrados em greves desde 1917, ante a indiferença e o temor da classe média, sossegada pela Lei Adolfo Gordo, que mandou de volta à Europa aqueles que não se adaptavam ao escravismo endêmico de nossas relações de trabalho. A prosperidade econômica cria uma aura mística em torno de Juscelino Kubitschek.
            Uma crise econômica derruba o governo de João Goulart, não antes de a classe média descobrir as ruas, em espalhafatosas marchas da Família com Deus Pela Liberdade, em 1964. Pois bem, a liberdade foi para a cova, mas os militares pagavam bem, e diante do milagre manipulado e construído à custa da pobreza da classe trabalhadora, do surgimento da miséria absoluta em nossas cidades, das crianças sem teto e da destruição dos valores familiares tradicionais, que ainda davam algum sentido à nossa sociedade, a classe média se calou e, da mesma forma que fazia para não ouvir os gritos dos negros espancados no século anterior, se afastou de viagem para a Disneylândia.
            A Oligarquia Militar tentou se eternizar no poder, e teria conseguido, se não fosse a crise econômica dos anos 1980, quando essa classe média se descobriu, de novo, muito “democrática”, e foi para as ruas apoiar a emenda Dante de Oliveira e comemorar a eleição de Tancredo Neves, este que, até bem pouco tempo atrás, era visto como “comunista”, ou no mínimo simpatizante. O dinheiro está curto no bolso, então os militares são uns... O início de problemas econômicos traz Lula ao Poder Federal e o início de outra ameaça a eternização do PT aí, enquanto os indicadores econômicos, à revelia do desmanche das relações sociais e da educação, mantém o PSDB eterno no governo de São Paulo.
            Acho que descobrimos, afinal, qual é o valor que move a nossa classe média e porque razão o parafuso seria a melhor imagem para descrevê-la, e porque cada ciclo voltarmos exatamente para onde estávamos antes: o dinheiro, e só ele.

            Mergulhando cada vez mais fundo nas contradições, por essa classe mesma, criadas, nossa sociedade, já sem valores intangíveis, se vê, senão veja, às voltas com uma crise de proporções bíblicas, gestadas pincipalmente no estado onde essa classe média se sente mais segura, enquanto o céu azul e abrasador do eterno verão dos trópicos, o símbolo da nossa nacionalidade alegre e irresponsável, prenuncia, para o início do ano que vem, a tempestade perfeita.

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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

BUMERANGUE

Prof Eduardo Simões

         As mentes periféricas da grande intelligentsia que se abriga em São Paulo devem estar em pânico ante o quadro climático atual, se é que a suas condições intelectivas atuais lhes permite a tanto, sem falar dos estragos que comumente faz, às suas vítimas, a imaturidade psicoemocional.
         Poucos dias após esse estranho Exército de Brancaleone tomar as ruas da capital do estado, bramindo fúria contra a candidata vencedora e os seus asseclas, os miserandos nordestinos, substitutos dos escravos na construção da grandeza de São Paulo, fazendo aquilo que ninguém, dos brancos, queria fazer, mas que se não fosse feito não haveria aqui sequer civilização, quanto mais grandeza.
         É que esses pobres coitados, revestidos do verde de sua imaturidade e do amarelo de sua anemia mental, não sabem o que é viver permanentemente sob os efeitos da falta de água, pois a única coisa perene no nordeste é, justamente, a falta de água... e a vontade de fazer futuros trabalhadores para a grandeza de São Paulo. Mas eu sei. Eu vivi o sertão do Ceará na grande seca de 1978-83, uma seca que só acontece a cada cem anos, parelha com a dos “três oitos” (1888), quando pessoas riquíssimas morreram de sede, à mingua, crianças se prostituíram para sobreviver, e outros horrores variados, sem falar das bazófias do Augusto Imperador.
         O nordestino do semiárido é, deveras, um ser desprezível, acomodado. Pequeno atarracado, musculoso, mas leve, pois sua constituição física são só ossos, pele e músculos, parcialmente carcomidos pela ausência de reservas de gordura, como se as partes de seus corpo brigassem uma contra as outras para sobreviver, entredevorando-se. Diante de uma crise destas, tão perto e tão sem jeito, o melhor é ficar quieto e não pensar muito. Como poderia ser diferente, sem água?
         Nordestino é pobre, mas como poderia ser diferente se as benções das últimas revoluções industriais teimam em se consolidar apenas no litoral, próximas aos grandes centros consumidores e às maiores fontes de água do país, pois nada consome mais água que grandes unidades fabris, tanto para o fabrico de suas mercadorias como para o consumo de seus empregados, além do tratamento de seus rejeitos.
         Sua cara indefinida, meio índia, meio branca, meio negra, está longe de fazer boa figura, principalmente quando ele ri, é que, para ele, mesmo a mais irrisória delícia, a mais banal coisa doce, como aquele torrão de açúcar chamado rapadura, entra no seu estômago à custa dos dentes. Ele come pouco e mal. Como poderia ser diferente, sem água?
         Ele cheira mal. Trabalha relativamente muito sob um sol escaldante, sua e transpira como qualquer paulista, mas que fazer se lhe falta água para o asseio básico, e a água que escorreria pelo seu sovaco e partes íntimas, perdendo na sofreguidão do barro sedento do sertão, torna-se premente para matar a sede, causada pela atividade que lhe traz o mau cheiro?
         O homem do semiárido não precisa de guarda roupa, sequer de baú, basta tirar suas calças e deixar lá, sozinha, em pé, pois só Deus sabe quando aquela peça de pano viu uma boa lavagem. Como poderia ser diferente, sem água? As pessoas falam da elegante e bem cuidada “roupa da missa”, mas quem diz isso não sabe que na maioria das comunidades das regiões mais secas padre é artigo de luxo, só não é mais raro que agrônomo e comunista. Como poderia ser diferente, se não há água?
         Nordestino vive doente. Quando não morre de doença curável, fruto da doença incurável da falta de vergonha de nossos políticos de todas as regiões. Não tem noção de higiene, lava sua louça com uma toalha quando muito úmida, usada em “n” ocasiões, para dar um “rolé” na vista, da mesma forma que tenta dar um “rolé” na fome, espalhando a pouca comida pelo prato. Como poderia ser diferente, se não há água?
         Nordestino é subserviente. Deixa-se arrastar por políticos que compram o seu voto com bolsa família e outras benesses, que, antes, deveriam eles receber como direito do que como favor. É que para muitos esses benefícios podem fazer a diferença entre a vida e a morte. Ele não pensa, como os fartos, onde pode ganhar mais ou perder menos, mas como não perder tudo. E ao retribuir a “ajuda” com um voto, ainda que possamos etiquetar essa atitude como pouco esclarecida, ele não estaria demonstrando gratidão? Não é a gratidão uma virtude, ou a virtude perde o seu valor se for dirigida em favor de alguém não merecedor? Uma sociedade que assiste à multiplicação de parricidas e matricidas, Rugai, Richtofen, etc., está ficando estruturalmente incapacitada de entender o significado dessa virtude, e das outras.
         Mas isso está mudando, e hoje, 07/11, eu vi, pela TV, um pequeno grupo de pessoas de joelhos, em volta de uma cruz a rezar contritas, sob um sol inclemente, pela vinda de chuvas, enquanto um cidadão, já de cabelos branco, testemunhava, choroso, os seus apertos pela falta de água, em alguma cidade do oeste paulista. Afinal começam a ter alguma coisa em comum com os nordestinos, além de políticos que enganam, garantindo que tudo está sob controle, e que não vai haver seca, etc. A próxima etapa é a aparição de penitentes, se flagelando pelas ruas, adicionando o seu sangue purificado pela fé ao sangue das vítimas inocentes, com ou sem fé, da guerra entre policiais e traficantes. O pecado que no fez merecedores dessa ira climática?
         Só faltará, então, alguém, com os miolos e o coração cozidos pelo sol, pela miséria e pela falta d’água, conclamar uma guerra santa contra alguma coisa ou coisa nenhuma, atraindo após si uma grande multidão de paulistas convictos, vendo na fuga da realidade uma ocasião para se sentir mais vivos, ou pelo menos não tão mortos, obtendo da federação, como resposta a essa “esquisitice”, a mobilização de uma grande força militar para destruir tal chusma de miseráveis, confundidos com fanáticos, inimigos do regime – que sabe alguém não ressuscite a Lei de Segurança Nacional? – e vejamos no centro do estado, Piracicaba, Sorocaba, etc., um massacre; um grande massacre de multidões de pobres famélicos, lutando com armas brancas individuais, como quando os homens acreditavam na bravura e na honra, contra as armas de destruição em massa da modernidade, disparadas à distância, matando indiscriminadamente a homens, mulheres, crianças, anciãos...

          Talvez depois de tudo isso, quem sabe, um desses paulistas, que eu ainda acho são a minoria, andando pela rodoviária, ao se defrontar com uma nova leva de nordestinos chegando, se veja tão perfeitamente identificado neles, que talvez até os convide para um cafezinho, ou talvez para uma refeição mais abundante, como acontece, hoje, quando o oposto acontece, lá no semiárido mais profundo, onde o governo sempre ganha, e o povo sempre perde.
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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

TRAGÉDIA QUASE ANUNCIADA

Prof Eduardo Simões

         A morte recente, e em circunstâncias trágicas, de uma menina de apenas 9 anos, em um acidente numa escola de tempo integral em Caraguatatuba, deve nos provocar a uma reflexão sobre os mitos e verdades da escola de tempo integral, que nos está sendo imposta de cima para baixo, goela adentro, antes que tragédias semelhantes aconteçam.
         O primeiro deles é que a escola é, de per si, um lugar seguro para crianças e jovens, como se o seu gigantismo ou a pureza da intenção que a gerou garantisse a segurança de alunos e profissionais contra as mazelas do mundo externo. Ora, o gigantismo da escola, com muitas e superlotadas turmas, para melhorar a ‘relação custo-benefício’, dificulta sobremaneira o controle sobre as crianças, facilitando a que adultos e jovens infantilizados, vindos de fora, escalem os muros para passar drogas a quem está dentro, ou que, de fora, a joguem por cima do muro, sem que ninguém veja, quando não finge que não vê, para evitar problemas. Afora isso a sempre a possibilidade de o crime organizado infiltrar “aviõezinhos” entre os alunos ou simplesmente espera-los na saída. Onde há aglomeração há possibilidade de lucro para o crime organizado, que não se esquivará de explorá-la.
         Segundo, o excesso de edificações para acomodar tanta criança e serviços a que a nova escola se propõe, cria uma série de microambientes, alguns muito discretos e difíceis de perceber, onde uma criança, fazendo uso de sua curiosidade temerária, pode facilmente se envolver numa encrenca, sem ser notada. De nada adiantam imensos espaços abertos, mostrando que os projetistas desses prédios entendem muito pouco de crianças e jovens, e menos ainda dos mecanismos da atenção humana, que está sempre buscando um foco, enquanto despreza os contornos, até com uma forma de sua percepção não se “desligar” automaticamente. Na minha cidade ficou famosa a fuga de duas crianças de uma escola de tempo integral, que acabou tanto na rádio como nas vias de fato. A importância de Espaços específicos para a recepção e despedida das crianças no final do turno, de forma organizada e segura, só se coloca para quem vive nesse meio, e não para quem só pensa em custos, funcionalidade, organização espacial neutra, etc.
         Terceiro, a mágica da transformação da criança pelo simples ingresso emuma escola destas, não vai acontecer, é apenas um truque, efeito de marketing, presente, inclusive nas novas formas de batizar esse tipo de escola – a de Caraguá, onde houve a tragédia, tinha o pomposo nome de “complexo educacional de tempo integral”, oficialmente: “Centro Integrado de Desenvolvimento Educacional”, para não ser confundida com uma... “escola”. A criança trará de casa para esse novo paraíso arquitetônico, os velhos maus costumes que adquiriu na ausência dos pais, e até por sua presença, principalmente o de não obedecer às regras e avisos de professores e funcionários. Quem é de escola sabe o que eu estou falando. Tampouco irá melhorar a qualificação precária da mão-de-obra disponível, educada pelo sistema “entrou passou”, há muito anos em voga nas escolas de São Paulo.
         Mas há outros problemas a desafiar a teimosia do sistema em se meter em “frias”, que complicam a vida dessas escolas. Segundo alguns professores, o número de casos de pais invadindo as escolas de tempo integral, para acertar as contas pela agressão ou ameaças ao seu filho aumentou. O problema é que quando surgia uma desavença entre dois alunos, o final do expediente único soava e os brigões iam embora, dando tempo de esfriar a cabeça e preparar a chegada, em paz, no dia seguinte. Na escola de tempo integral não! Os desafetos ficarão face-a-face por mais um expediente inteiro, acumulando raivas, tensões, humilhações, etc., até que no dia seguinte alguém da família terá que vir ameaçar ou agredir alguém, uma vez que, professores e gestores, com a autoridade totalmente esvaziada pelas leis absurdas que se votam nesse país e pelo descaso da população pela educação de suas crianças, não conseguem se tornar mediadores respeitados nesses conflitos. A eficácia do professor mediador só existe no projeto, em ações periféricas e em poucos profissionais excepcionais.
         A evolução das medidas educacionais, nesses últimos anos, em nosso estado também não ajudou muito. Como Mario Covas fechou muitas escolas, para concentrar os garotos em grandes unidades, processo que se acirrou na superlotação das turmas, garotos ligados às gangues de bairros, que no passado estudavam em paz em escolas diferentes, passaram a se esbarrar nos corredores da mesma escola, e até a estudar nas mesmas turmas. O índice de violência dentro da escola, é claro, disparou, e a escola em tempo integral deve acirrar ainda mais essa situação.
         O que há, então de errado no projeto da escola integral? O principal erro é criar esse tipo de escola em um ambiente educacional em franca decadência ou desagregação, e até para deter a esta, quando deveria ser a culminância de um processo bem-sucedido, sem falar da ausência de um projeto pedagógico, ou como diria o professor Lauro O. Lima: “é apenas pedagogia predial!”
         O projeto da escola de tempo integral busca, ao que parece, quebrar toda resistência da escola tradicional em ser transformada numa linha de produção fabril em tempo integral, numa escola que não acolhe crianças, mas fazedores de testes e exames, que só existem para consumir e vomitar informações afetivamente neutras. Se o objetivo fosse outro eu entenderia que se fizesse o seguinte;
         a) Definir de forma clara e precisa – pelo menos muito mais do que nos Parâmetros Curriculares Nacionais – com a ajuda de pais, professores, burocratas, as diretrizes político-pedagógicas do sistema educacional, noutras palavras: o que queremos fazer ou gerar (que tipo de cidadão?), e como nós vamos fazer isso (o melhor método, em função do que se conhece sobre a psicologia de crianças e jovens).
            b) Por em prática os princípios dessa pedagogia, em uma ou outra escola e ver os resultados, ou observar as escolas já existentes, e escolher aquelas que funcionam melhor, como exemplo a ser seguido pelas outas. Exportação de know-how.
         c) Ir expandindo pouco a pouco aquele modelo, aprendendo com cada fracasso e/ou sucesso, consolidando a estrutura tangível do projeto, gerenciamento dos espaços, ao mesmo tempo em que se aprimora a estrutura intangível, o substrato psicopedagógico.
         d) Parar de se preocupar com resultados de exames criados em realidades diferentes da nossa, a partir de projetos educacionais que são apenas parcialmente semelhantes ao nosso, como o PISA e correlatos. Nós temos que criar a nossa própria via educacional, o nosso caminho de maturação cognitiva-afetiva-social, sem querer copiar ninguém, nem ignorar importantes lições que nos possam vir do exterior.
         Acima de tudo é preciso que nos compenetremos da importância vital e até sagrada do espaço escolar, com tudo o que ele contém em sua estrutura física, que os alunos tanto depredam!, e nos profissionais que trabalham lá, hoje tão desencantados! Um projeto educacional só é sério no longo prazo, cujos frutos só se pode colher após uma longa maturação, com cuidados contínuos, na direção correta, e não algo que se mude de afogadilho, ao sabor de modismos internos ou externos, além de conveniências políticas, quando alunos e professores são usados descaradamente como cobaias, e menos ainda obra de quixotes solitários, porque a maioria dos pais estão muito ocupados ganhando dinheiro para comprar um carro novo ou reformar a sua casa já tão confortável. O que vale mais, nossos filhos ou o nosso patrimônio material?     O governo, por sua vez, precisa superar a sua visão de que escola e deposito de crianças para deixar os pais livres para trabalhar pelo lucro das empresas seu patrão, gerando maior recolhimento de impostos, quase que nos mesmos moldes da primeira revolução industrial, graças à terceirização e a prática de acoplar o salário à consecução de um volume de tarefas, semelhante à que era usada pelo senhor do servo medieval. A crise da educação, da escola, no Brasil e em São Paulo é, por fim, o perfeito retrato da crise de valores de nossa sociedade, cujas primeiras e mais numerosas vitimas são as crianças.
         É difícil adivinhar aonde isso vai dar?

Fontes: http://www.portal.caraguatatuba.sp.gov.br/noticias_view.php?id=7599#.VFPfhPnF9qU
                   http://caraguablog.blogspot.com.br/2013/07/caragua-cide-centro-ja-comecou-funcionar.html

                   http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1510358

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COLANDO COM SALIVA

            Prof Eduardo Simões

            Mais uma vez a direção da minha escola mostra que não é do ramo. Tudo começou com a vice passando um pito nos alunos por causa da sua postura displicente, principalmente de alunos do Ensino Médio, durante a oração de abertura do expediente. Confesso que nunca vi muita conveniência nisso, uma vez que nem todos os alunos são cristãos praticantes, quando não têm alguma birra, por causa dos pais que os obrigam a ir à missa ou ao culto, quando não porque a rebeldia é a marca dessa idade. Para mim, melhor seria se fosse feito uma espécie de oração-compromisso, religiosamente neutra, com a república, a democracia, ao esforço intelectual e a nobreza moral; enfim um momento de congraçamento e união, com o fim, inclusive da discriminação sexual constante das filas separadas de meninos e meninas.
            O mais grave, porém, é a forma errática de como esses pitos aparecem na escola. Em alguns momentos, parece-nos que os alunos estão mais agitados ainda, e nada acontece! Será que os alunos não percebem isso? Eu acho que sim, e ficam perdidos. É preciso que fique claro para eles quando a displicência, nesse momento, passa dos limites, e uma vez ultrapassados o pito, ou outra punição, deve vir irrevogavelmente, e não quando as gestoras simplesmente decidem que, naquele dia, não vão aturar. Os alunos, percebendo isso, nunca deixarão de testar.
            A isso seguiu uma cena tragicômica: a equipe de gestão, a diretora estava ausente, preocupada com os alunos que, sempre quando acaba a oração, se dirigem ao banheiro e aos bebedouros, para atrasar propositalmente a sua entrada na aula, resolveu, nesse dia, agir. Eles se dirigiram ao banheiro, a coordenadora correu à frente para impedi-los, aí eles se desviaram para um bebedouro, a coordenadora saiu atrás, falando alto e pedindo que eles fossem para a sala, como os outros, aí eles saíram correndo para o outro bebedouro, bebendo água e fazendo um grande barulho, saboreando bem alto a sua vitória, “aaaaah!”, enquanto a coordenadora falava alto em prováveis punições.
            As questões que surgem daí são: primeiro, qual é a causa dessa atitude de rebeldia tão aberta? Será que é fruto de problemas domésticos familiares que estão repercutindo no comportamento desses rapazes? É a resposta a atitudes inconvenientes ou pouco pedagógicas da direção e dos professores? É fruto do modelo de escola imposto, e nisso eu friso bem: IMPOSTO, pela Secretaria de Educação, que, ignorando os aspectos afetivos e sociais do desenvolvimento das crianças as tornam reféns, assim como aos professores, de metas de caráter meramente cognitivo-eleitoreiro? É uma mistura de tudo isso?
            Segundo: o que a escola, ou o sistema com um todo, têm feito para responder às demandas sociais e afetivas dos alunos? O que a escola tem feito, fora da repressão, para desenvolver a disciplina social e o autocontrole emocional-afetivo desses garotos? Pelo que eu vivencio: nada! Temos uma professora mediadora muito esforçada, mas convenhamos, não é a mesma coisa que uma psicóloga, e até uma enfermeira com especialização em atendimento infanto-juvenil, como acontece nas escolas americanas, onde o nosso governo foi buscar a Secretaria Escolar Digital (SED). Pelo lado do sistema, a mesma coisa. O grande investimento do momento é a SED, que aumentará enormemente o controle e o aspecto da escola como uma mera e afetivamente neutra linha de produção, semelhante a uma fábrica de conservas, com a vantagem de transferir trabalho de secretaria para os professores, permitindo redução de custo. Palavra mágica e mântrica desse governo.
            O que fazer então? Ora, esses alunos são “figurinhas carimbadas” se se quiser agir pelo lado da repressão, é só usar contra eles medidas administrativas legais como a suspensão. É possível, embora não seja certo, que, após um ou dois casos punidos exemplarmente por esse instituto administrativo, essa compulsão passe. O perigo são esses meninos decidirem não mais ir a escola, como vários já o fizeram, impunemente, ao longo desse ano, apesar das ameaças da legislação. Não dá para por na cadeia ou cobrar multas aos pais de tantos alunos que não querem mais ir à escola. Não há cadeia que chegue. Isso é uma excrecência do Regime Militar ou do autoritarismo histórico de nossa sociedade, tornado ridículo, pelo monte de leis paternalistas criadas após 1988, a pretexto de proteger a infância e juventude da incoerência e da hipocrisia dos adultos. Para mim, que conheci o que havia antes, piorou.
            Uma alternativa seria encarar filosoficamente essa atitude, entendendo que esses meninos – nenhuma aluna participa disso – estão usando disso como um ritual de autoafirmação, cuja causa precisa ser descoberta e trabalhada, ao mesmo tempo em que a escola, se desprendendo um pouco do monopólio da cognição, e mesmo essa abordada de forma incorreta, ressuscitando o behaviorismo, passe a trabalhar e avaliar mais o valor das normas sociais e de uma socialização bem sucedida, em que pese o caos da sociedade brasileira, com os professores tolerando, sem se estressar com o atraso, mas estimulando-os com elogios quando eles se fizerem merecedores. Para mim é o melhor caminho.

           
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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

MAL OCIDENTAL

Prof Eduardo Simões

         No passado, sempre que algum conflito se destacava pela sanguinolência entre povos africanos, eu ouvia de alguém a expressão: “isso é herança do imperialismo... eles aprenderam isso com os ocidentais”. Confesso que nunca vi muito sentido nessas expressões, pois sempre tive muita dificuldade em vislumbrar anjos e demônios associados a grupamentos humanos, que são, independente das circunstâncias, sempre... humanos. O resto é ideologia barata, adquirida a custa de pouca reflexão. Entretanto ao ver as cenas dramáticas envolvendo as recentes vítimas, reais ou potenciais, do ebola na África, algo me chamou a atenção.
         Os documentários sobre a vida selvagem nos trazem o drama da luta pela vida na África, em toda sua majestade e dramaticidade, sem miséria ou indignidade, com o seu final inevitável: a morte. Aí há uma sabedoria. Sabedoria assimilada em milênios pelos africanos em geral, que aprendem da natureza a inevitabilidade da morte e a aceitação, entre natural e serena, da culminância de nossa vida. Mas não é isso que estamos vendo na TV. Um homem, agonizando ou desfalecido, jaz abandonado sobre uma poça d’água, um contaminado assoma uma feira livre, lotada de gente, multidões fogem para lugares remotos, espalhando doença, outros matam médicos para evitar a doença!
         Algo mau ficou da presença dos europeus na África, nesse último século e meio. Eles eram burgueses, burgueses arrogantes, cheios de empáfia e certezas, e, acima de tudo, descrentes de Deus e da natureza, a quem queriam corrigir. Sua visão de curto prazo, muito utilitária, fazia com que eles vissem na morte um flagelo ou um sinal de impotência humana, que deveria ser a todo custo postergada, quando não vencida. Morrer cedo, significa não “gozar a vida”, a vida que fluía, na forma de mercadorias, pelas portas das fábricas, ao custo da poluição e escarmento das fontes naturais de vida. Uma vida que só era gozada de fato no interior de mansões raras e exclusivas, para poucos colunáveis ou “fashion”.
         Disso tudo ficou o medo da morte, e o seu correlato, ao mesmo tempo contraditório e complementar: o medo da dor, física ou moral (cultural), principalmente quando ela implica em perda daquilo que nós nunca possuímos, o controle do futuro, que no desespero de seu aguçamento leva vários a buscar a abreviação da vida, acorrendo para o que mais teme. A doença não impossibilita a vida, mas a onipotência burguesa, e daí é melhor sair dela, pois deixar de ser produtor-consumidor pleno, nesse mundo, equivale ao inferno capitalista.

         O medo da morte gera o medo da dor, da qual se escapa pela busca da morte, que gera o medo da infecção, da doença, que também causa o fim da solidariedade, do heroísmo, da paciência, etc. Tudo isso muito ocidental, e nisso aqueles ideólogos tinham razão, e faz com que as cenas de desespero e desumanidade vistas na TV, aparentemente tão distantes, nos pareçam estranhamente familiares e ameaçadoras.

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