sexta-feira, 31 de outubro de 2014

TRAGÉDIA QUASE ANUNCIADA

Prof Eduardo Simões

         A morte recente, e em circunstâncias trágicas, de uma menina de apenas 9 anos, em um acidente numa escola de tempo integral em Caraguatatuba, deve nos provocar a uma reflexão sobre os mitos e verdades da escola de tempo integral, que nos está sendo imposta de cima para baixo, goela adentro, antes que tragédias semelhantes aconteçam.
         O primeiro deles é que a escola é, de per si, um lugar seguro para crianças e jovens, como se o seu gigantismo ou a pureza da intenção que a gerou garantisse a segurança de alunos e profissionais contra as mazelas do mundo externo. Ora, o gigantismo da escola, com muitas e superlotadas turmas, para melhorar a ‘relação custo-benefício’, dificulta sobremaneira o controle sobre as crianças, facilitando a que adultos e jovens infantilizados, vindos de fora, escalem os muros para passar drogas a quem está dentro, ou que, de fora, a joguem por cima do muro, sem que ninguém veja, quando não finge que não vê, para evitar problemas. Afora isso a sempre a possibilidade de o crime organizado infiltrar “aviõezinhos” entre os alunos ou simplesmente espera-los na saída. Onde há aglomeração há possibilidade de lucro para o crime organizado, que não se esquivará de explorá-la.
         Segundo, o excesso de edificações para acomodar tanta criança e serviços a que a nova escola se propõe, cria uma série de microambientes, alguns muito discretos e difíceis de perceber, onde uma criança, fazendo uso de sua curiosidade temerária, pode facilmente se envolver numa encrenca, sem ser notada. De nada adiantam imensos espaços abertos, mostrando que os projetistas desses prédios entendem muito pouco de crianças e jovens, e menos ainda dos mecanismos da atenção humana, que está sempre buscando um foco, enquanto despreza os contornos, até com uma forma de sua percepção não se “desligar” automaticamente. Na minha cidade ficou famosa a fuga de duas crianças de uma escola de tempo integral, que acabou tanto na rádio como nas vias de fato. A importância de Espaços específicos para a recepção e despedida das crianças no final do turno, de forma organizada e segura, só se coloca para quem vive nesse meio, e não para quem só pensa em custos, funcionalidade, organização espacial neutra, etc.
         Terceiro, a mágica da transformação da criança pelo simples ingresso emuma escola destas, não vai acontecer, é apenas um truque, efeito de marketing, presente, inclusive nas novas formas de batizar esse tipo de escola – a de Caraguá, onde houve a tragédia, tinha o pomposo nome de “complexo educacional de tempo integral”, oficialmente: “Centro Integrado de Desenvolvimento Educacional”, para não ser confundida com uma... “escola”. A criança trará de casa para esse novo paraíso arquitetônico, os velhos maus costumes que adquiriu na ausência dos pais, e até por sua presença, principalmente o de não obedecer às regras e avisos de professores e funcionários. Quem é de escola sabe o que eu estou falando. Tampouco irá melhorar a qualificação precária da mão-de-obra disponível, educada pelo sistema “entrou passou”, há muito anos em voga nas escolas de São Paulo.
         Mas há outros problemas a desafiar a teimosia do sistema em se meter em “frias”, que complicam a vida dessas escolas. Segundo alguns professores, o número de casos de pais invadindo as escolas de tempo integral, para acertar as contas pela agressão ou ameaças ao seu filho aumentou. O problema é que quando surgia uma desavença entre dois alunos, o final do expediente único soava e os brigões iam embora, dando tempo de esfriar a cabeça e preparar a chegada, em paz, no dia seguinte. Na escola de tempo integral não! Os desafetos ficarão face-a-face por mais um expediente inteiro, acumulando raivas, tensões, humilhações, etc., até que no dia seguinte alguém da família terá que vir ameaçar ou agredir alguém, uma vez que, professores e gestores, com a autoridade totalmente esvaziada pelas leis absurdas que se votam nesse país e pelo descaso da população pela educação de suas crianças, não conseguem se tornar mediadores respeitados nesses conflitos. A eficácia do professor mediador só existe no projeto, em ações periféricas e em poucos profissionais excepcionais.
         A evolução das medidas educacionais, nesses últimos anos, em nosso estado também não ajudou muito. Como Mario Covas fechou muitas escolas, para concentrar os garotos em grandes unidades, processo que se acirrou na superlotação das turmas, garotos ligados às gangues de bairros, que no passado estudavam em paz em escolas diferentes, passaram a se esbarrar nos corredores da mesma escola, e até a estudar nas mesmas turmas. O índice de violência dentro da escola, é claro, disparou, e a escola em tempo integral deve acirrar ainda mais essa situação.
         O que há, então de errado no projeto da escola integral? O principal erro é criar esse tipo de escola em um ambiente educacional em franca decadência ou desagregação, e até para deter a esta, quando deveria ser a culminância de um processo bem-sucedido, sem falar da ausência de um projeto pedagógico, ou como diria o professor Lauro O. Lima: “é apenas pedagogia predial!”
         O projeto da escola de tempo integral busca, ao que parece, quebrar toda resistência da escola tradicional em ser transformada numa linha de produção fabril em tempo integral, numa escola que não acolhe crianças, mas fazedores de testes e exames, que só existem para consumir e vomitar informações afetivamente neutras. Se o objetivo fosse outro eu entenderia que se fizesse o seguinte;
         a) Definir de forma clara e precisa – pelo menos muito mais do que nos Parâmetros Curriculares Nacionais – com a ajuda de pais, professores, burocratas, as diretrizes político-pedagógicas do sistema educacional, noutras palavras: o que queremos fazer ou gerar (que tipo de cidadão?), e como nós vamos fazer isso (o melhor método, em função do que se conhece sobre a psicologia de crianças e jovens).
            b) Por em prática os princípios dessa pedagogia, em uma ou outra escola e ver os resultados, ou observar as escolas já existentes, e escolher aquelas que funcionam melhor, como exemplo a ser seguido pelas outas. Exportação de know-how.
         c) Ir expandindo pouco a pouco aquele modelo, aprendendo com cada fracasso e/ou sucesso, consolidando a estrutura tangível do projeto, gerenciamento dos espaços, ao mesmo tempo em que se aprimora a estrutura intangível, o substrato psicopedagógico.
         d) Parar de se preocupar com resultados de exames criados em realidades diferentes da nossa, a partir de projetos educacionais que são apenas parcialmente semelhantes ao nosso, como o PISA e correlatos. Nós temos que criar a nossa própria via educacional, o nosso caminho de maturação cognitiva-afetiva-social, sem querer copiar ninguém, nem ignorar importantes lições que nos possam vir do exterior.
         Acima de tudo é preciso que nos compenetremos da importância vital e até sagrada do espaço escolar, com tudo o que ele contém em sua estrutura física, que os alunos tanto depredam!, e nos profissionais que trabalham lá, hoje tão desencantados! Um projeto educacional só é sério no longo prazo, cujos frutos só se pode colher após uma longa maturação, com cuidados contínuos, na direção correta, e não algo que se mude de afogadilho, ao sabor de modismos internos ou externos, além de conveniências políticas, quando alunos e professores são usados descaradamente como cobaias, e menos ainda obra de quixotes solitários, porque a maioria dos pais estão muito ocupados ganhando dinheiro para comprar um carro novo ou reformar a sua casa já tão confortável. O que vale mais, nossos filhos ou o nosso patrimônio material?     O governo, por sua vez, precisa superar a sua visão de que escola e deposito de crianças para deixar os pais livres para trabalhar pelo lucro das empresas seu patrão, gerando maior recolhimento de impostos, quase que nos mesmos moldes da primeira revolução industrial, graças à terceirização e a prática de acoplar o salário à consecução de um volume de tarefas, semelhante à que era usada pelo senhor do servo medieval. A crise da educação, da escola, no Brasil e em São Paulo é, por fim, o perfeito retrato da crise de valores de nossa sociedade, cujas primeiras e mais numerosas vitimas são as crianças.
         É difícil adivinhar aonde isso vai dar?

Fontes: http://www.portal.caraguatatuba.sp.gov.br/noticias_view.php?id=7599#.VFPfhPnF9qU
                   http://caraguablog.blogspot.com.br/2013/07/caragua-cide-centro-ja-comecou-funcionar.html

                   http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1510358

(visite construindopiaget.blogspot.com.br)

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