TRAGÉDIA
QUASE ANUNCIADA
Prof
Eduardo Simões
A morte recente, e em circunstâncias
trágicas, de uma menina de apenas 9 anos, em um acidente numa
escola de tempo integral em Caraguatatuba, deve nos provocar a uma reflexão
sobre os mitos e verdades da escola de tempo integral, que nos está sendo
imposta de cima para baixo, goela adentro, antes que tragédias semelhantes
aconteçam.
O primeiro deles é que a escola é, de
per si, um lugar seguro para crianças e jovens, como se o seu gigantismo ou a pureza
da intenção que a gerou garantisse a segurança de alunos e profissionais contra
as mazelas do mundo externo. Ora, o gigantismo da escola, com muitas e
superlotadas turmas, para melhorar a ‘relação custo-benefício’, dificulta
sobremaneira o controle sobre as crianças, facilitando a que adultos e jovens
infantilizados, vindos de fora, escalem os muros para passar drogas a quem está
dentro, ou que, de fora, a joguem por cima do muro, sem que ninguém
veja, quando não finge que não vê, para evitar problemas. Afora isso a sempre a
possibilidade de o crime organizado infiltrar “aviõezinhos” entre os alunos ou
simplesmente espera-los na saída. Onde há aglomeração há possibilidade de lucro
para o crime organizado, que não se esquivará de explorá-la.
Segundo, o excesso de edificações para
acomodar tanta criança e serviços a que a nova escola se propõe, cria uma série
de microambientes, alguns muito discretos e difíceis de perceber, onde uma
criança, fazendo uso de sua curiosidade temerária, pode facilmente se envolver
numa encrenca, sem ser notada. De nada adiantam imensos espaços abertos,
mostrando que os projetistas desses prédios entendem muito pouco de crianças e
jovens, e menos ainda dos mecanismos da atenção humana, que está sempre buscando
um foco, enquanto despreza os contornos, até com uma forma de sua percepção não
se “desligar” automaticamente. Na minha cidade ficou famosa a fuga de duas
crianças de uma escola de tempo integral, que acabou tanto na rádio como nas
vias de fato. A importância de Espaços específicos para a recepção e despedida
das crianças no final do turno, de forma organizada e segura, só se coloca para
quem vive nesse meio, e não para quem só pensa em custos, funcionalidade,
organização espacial neutra, etc.
Terceiro, a mágica da transformação da
criança pelo simples ingresso emuma escola destas, não vai acontecer, é apenas
um truque, efeito de marketing, presente, inclusive nas novas formas de batizar
esse tipo de escola – a de Caraguá, onde houve a tragédia, tinha o pomposo nome
de “complexo educacional de tempo integral”, oficialmente: “Centro Integrado de
Desenvolvimento Educacional”, para não ser confundida com uma... “escola”. A
criança trará de casa para esse novo paraíso arquitetônico, os velhos maus
costumes que adquiriu na ausência dos pais, e até por sua presença,
principalmente o de não obedecer às regras e avisos de professores e
funcionários. Quem é de escola sabe o que eu estou falando. Tampouco irá
melhorar a qualificação precária da mão-de-obra disponível, educada pelo
sistema “entrou passou”, há muito anos em voga nas escolas de São Paulo.
Mas há outros problemas a desafiar a
teimosia do sistema em se meter em “frias”, que complicam a vida dessas
escolas. Segundo alguns professores, o número de casos de pais invadindo as
escolas de tempo integral, para acertar as contas pela agressão ou ameaças ao
seu filho aumentou. O problema é que quando surgia uma desavença entre dois
alunos, o final do expediente único soava e os brigões iam embora, dando tempo
de esfriar a cabeça e preparar a chegada, em paz, no dia seguinte. Na escola de
tempo integral não! Os desafetos ficarão face-a-face por mais um expediente inteiro,
acumulando raivas, tensões, humilhações, etc., até que no dia seguinte alguém
da família terá que vir ameaçar ou agredir alguém, uma vez que, professores e
gestores, com a autoridade totalmente esvaziada pelas leis absurdas que se
votam nesse país e pelo descaso da população pela educação de suas crianças,
não conseguem se tornar mediadores respeitados nesses conflitos. A eficácia do
professor mediador só existe no projeto, em ações periféricas e em poucos
profissionais excepcionais.
A evolução das medidas educacionais,
nesses últimos anos, em nosso estado também não ajudou muito. Como Mario Covas
fechou muitas escolas, para concentrar os garotos em grandes unidades, processo
que se acirrou na superlotação das turmas, garotos ligados às gangues de
bairros, que no passado estudavam em paz em escolas diferentes, passaram a se
esbarrar nos corredores da mesma escola, e até a estudar nas mesmas turmas. O
índice de violência dentro da escola, é claro, disparou, e a escola em tempo
integral deve acirrar ainda mais essa situação.
O que há, então de errado no projeto da
escola integral? O principal erro é criar esse tipo de escola em um ambiente
educacional em franca decadência ou desagregação, e até para deter a esta, quando
deveria ser a culminância de um processo bem-sucedido, sem falar da ausência de
um projeto pedagógico, ou como diria o professor Lauro O. Lima: “é apenas
pedagogia predial!”
O projeto da escola de tempo integral
busca, ao que parece, quebrar toda resistência da escola tradicional em ser
transformada numa linha de produção fabril em tempo integral, numa escola que
não acolhe crianças, mas fazedores de testes e exames, que só existem para
consumir e vomitar informações afetivamente neutras. Se o objetivo fosse outro
eu entenderia que se fizesse o seguinte;
a) Definir de forma clara e precisa –
pelo menos muito mais do que nos Parâmetros Curriculares Nacionais – com a
ajuda de pais, professores, burocratas, as diretrizes político-pedagógicas do
sistema educacional, noutras palavras: o que queremos fazer ou gerar (que tipo
de cidadão?), e como nós vamos fazer isso (o melhor método, em função do que se
conhece sobre a psicologia de crianças e jovens).
b) Por
em prática os princípios dessa pedagogia, em uma ou outra escola e ver os
resultados, ou observar as escolas já existentes, e escolher aquelas que
funcionam melhor, como exemplo a ser seguido pelas outas. Exportação de
know-how.
c) Ir expandindo pouco a pouco aquele
modelo, aprendendo com cada fracasso e/ou sucesso, consolidando a estrutura
tangível do projeto, gerenciamento dos espaços, ao mesmo tempo em que se
aprimora a estrutura intangível, o substrato psicopedagógico.
d) Parar de se preocupar com resultados
de exames criados em realidades diferentes da nossa, a partir de projetos
educacionais que são apenas parcialmente semelhantes ao nosso, como o PISA e
correlatos. Nós temos que criar a nossa própria via educacional, o nosso
caminho de maturação cognitiva-afetiva-social, sem querer copiar ninguém, nem
ignorar importantes lições que nos possam vir do exterior.
Acima de tudo é preciso que nos
compenetremos da importância vital e até sagrada do espaço escolar, com tudo o
que ele contém em sua estrutura física, que os alunos tanto depredam!, e nos
profissionais que trabalham lá, hoje tão desencantados! Um projeto educacional só
é sério no longo prazo, cujos frutos só se pode colher após uma longa
maturação, com cuidados contínuos, na direção correta, e não algo que se mude
de afogadilho, ao sabor de modismos internos ou externos, além de conveniências
políticas, quando alunos e professores são usados descaradamente como cobaias, e
menos ainda obra de quixotes solitários, porque a maioria dos pais estão muito
ocupados ganhando dinheiro para comprar um carro novo ou reformar a sua casa já
tão confortável. O que vale mais, nossos filhos ou o nosso patrimônio material?
O governo, por sua vez, precisa
superar a sua visão de que escola e deposito de crianças para deixar os pais
livres para trabalhar pelo lucro das empresas seu patrão, gerando maior
recolhimento de impostos, quase que nos mesmos moldes da primeira revolução
industrial, graças à terceirização e a prática de acoplar o salário à
consecução de um volume de tarefas, semelhante à que era usada pelo senhor do servo
medieval. A crise da educação, da escola, no Brasil e em São Paulo é, por fim,
o perfeito retrato da crise de valores de nossa sociedade, cujas primeiras e mais
numerosas vitimas são as crianças.
É difícil adivinhar aonde isso vai dar?
Fontes:
http://www.portal.caraguatatuba.sp.gov.br/noticias_view.php?id=7599#.VFPfhPnF9qU
http://caraguablog.blogspot.com.br/2013/07/caragua-cide-centro-ja-comecou-funcionar.html
http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1510358
(visite construindopiaget.blogspot.com.br)
Nenhum comentário:
Postar um comentário