quinta-feira, 30 de outubro de 2014

MAL OCIDENTAL

Prof Eduardo Simões

         No passado, sempre que algum conflito se destacava pela sanguinolência entre povos africanos, eu ouvia de alguém a expressão: “isso é herança do imperialismo... eles aprenderam isso com os ocidentais”. Confesso que nunca vi muito sentido nessas expressões, pois sempre tive muita dificuldade em vislumbrar anjos e demônios associados a grupamentos humanos, que são, independente das circunstâncias, sempre... humanos. O resto é ideologia barata, adquirida a custa de pouca reflexão. Entretanto ao ver as cenas dramáticas envolvendo as recentes vítimas, reais ou potenciais, do ebola na África, algo me chamou a atenção.
         Os documentários sobre a vida selvagem nos trazem o drama da luta pela vida na África, em toda sua majestade e dramaticidade, sem miséria ou indignidade, com o seu final inevitável: a morte. Aí há uma sabedoria. Sabedoria assimilada em milênios pelos africanos em geral, que aprendem da natureza a inevitabilidade da morte e a aceitação, entre natural e serena, da culminância de nossa vida. Mas não é isso que estamos vendo na TV. Um homem, agonizando ou desfalecido, jaz abandonado sobre uma poça d’água, um contaminado assoma uma feira livre, lotada de gente, multidões fogem para lugares remotos, espalhando doença, outros matam médicos para evitar a doença!
         Algo mau ficou da presença dos europeus na África, nesse último século e meio. Eles eram burgueses, burgueses arrogantes, cheios de empáfia e certezas, e, acima de tudo, descrentes de Deus e da natureza, a quem queriam corrigir. Sua visão de curto prazo, muito utilitária, fazia com que eles vissem na morte um flagelo ou um sinal de impotência humana, que deveria ser a todo custo postergada, quando não vencida. Morrer cedo, significa não “gozar a vida”, a vida que fluía, na forma de mercadorias, pelas portas das fábricas, ao custo da poluição e escarmento das fontes naturais de vida. Uma vida que só era gozada de fato no interior de mansões raras e exclusivas, para poucos colunáveis ou “fashion”.
         Disso tudo ficou o medo da morte, e o seu correlato, ao mesmo tempo contraditório e complementar: o medo da dor, física ou moral (cultural), principalmente quando ela implica em perda daquilo que nós nunca possuímos, o controle do futuro, que no desespero de seu aguçamento leva vários a buscar a abreviação da vida, acorrendo para o que mais teme. A doença não impossibilita a vida, mas a onipotência burguesa, e daí é melhor sair dela, pois deixar de ser produtor-consumidor pleno, nesse mundo, equivale ao inferno capitalista.

         O medo da morte gera o medo da dor, da qual se escapa pela busca da morte, que gera o medo da infecção, da doença, que também causa o fim da solidariedade, do heroísmo, da paciência, etc. Tudo isso muito ocidental, e nisso aqueles ideólogos tinham razão, e faz com que as cenas de desespero e desumanidade vistas na TV, aparentemente tão distantes, nos pareçam estranhamente familiares e ameaçadoras.

(visite o blogue construindopiaget.com.br) 

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