DIÁLOGOS
COM SCHUMPETER – 2
(Baseado
na História da análise econômica de
Joseph A. Schumpeter)
Eduardo
Simões
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Algumas
reflexões prévias
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Com uma inteligência muito aguçada e uma cultura fora do comum, Schumpeter é precioso
até nas suas notas de rodapé, de onde saltam, aqui e ali, observações
imperdíveis, que em geral contestam antigas crenças, em especial as fabricadas
no século XVIII, pelos iluministas franceses. Para ressaltar o avanço do
conhecimento científico, pelo menos do pensamento crítico, baseado na lógica,
ele diz numa nota, na p 32:
“Como ponto de referência [para mostrar o
avanço do pensamento crítico no século XIII], escolhemos a Suma Teológica de São Tomás de Aquino, que exclui a
revelação de entre as disciplinas filosóficas, quer dizer de todas as ciências,
exceto a teologia sobrenatural... Esse pode ser considerado como o mais antigo
e um dos mais importantes passos dados pelo criticismo metodológico na Europa,
depois da decadência do mundo greco-romano”.
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Em seguida Schumpeter passa à análise do conceito de “teoria”, fundamental para
distinguir, ao longo dos séculos os avanços e os recuos da compreensão e
análise de fatos econômicos; houve observações muito avançadas sobre fenômenos
específicos, mas que devem ser consideradas apenas como “descobertas” isoladas,
que podem até ter influenciado outras descobertas e teorias posteriores,
daquilo que, mesmo não sendo de grande valor em seu conjunto, tem, pela integração
lógica e harmônica de vários elementos, um sentido lógico e o status de
“teoria”, e teoria científica, uma vez que, para ele, Schumpeter, não há como
negar o status de “ciência” à economia.
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Os argumentos de Schumpeter, na tentativa de explicar o que se deve entender
por “teoria”, nem sempre são felizes; um tanto obscuros, repetitivos, e de uma
maneira geral se referem a questões que não cabem ser aprofundadas neste
artigo, embora aqui e ali deixe escapar alguma observação interessante: como a
sua não adesão ao “cientificismo”, ou seja, a submissão da economia aos métodos
e abordagens aplicados às ciências naturais, muito em voga na primeira metade
do século XX:
“Esse termo [Cientificismo] foi introduzido pelo professor von Hayek,
para nomear o erro de copiar-se sem crítica alguma, os métodos das ciências naturais
no pressuposto, igualmente acrítico, de que esses métodos tenham aplicação
universal e que devam ser seguidos por toda atividade científica” (idem, p
39).
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A respeito de uma certa similaridade entre os métodos usados pelas ciências
naturais e a economia ele faz uma observação interessante:
“Há limites, porém, para esse paralelismo
[economia e ciências naturais]... quando
os economistas discutem a respeito de experimentação, querem significar algo
muito diferente do que comumente se entende por experimentação em laboratório,
mas dispõem, por outro lado, de uma fonte de informação que não está ao alcance
da física, isto é o amplo conhecimento do homem a respeito do sentido das ações
econômicas... quando falamos sobre indivíduos e grupos, nossa fonte de
informações... será o conhecimento dos processos psíquicos, conscientes ou
inconscientes, que seria absurdo não usar” (p 38-39)
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Não dá para negar o forte teor weberiano nessa observação, compreensível pelo
fato de que ele e Max Weber (1864-1920) terem sido muito próximos (1). Portanto ao contrário dos
“clássicos” e, principalmente, “neoclássicos” que tendiam a abordar a economia
como uma disciplina neutra, baseada em princípios estritamente lógicos, o que
supunha modelos ideais submetidos a uma “racionalidade”, dirigindo as ações
humanas, pelo menos no campo da economia – como dizem por aí, para saber se
alguém está realmente louco basta saber se ele trata o dinheiro: se o queima
com certeza é “caso perdido”. Schumpeter, por seu lado está consciente da
precariedade estrutural do fator humano presente na pesquisa econômica, embora
mostre uma confiança nas possibilidades reais de conhecimento da sua
psicologia, que talvez não seja mais compartilhado no mesmo grau, hoje em dia;
mas ao negar à economia uma objetividade na economia semelhante à das ciências
naturais, nem por isso fica cego ao subjetivismo, por vezes pueril e anômalo,
que pode se imiscuir na economia.
“É necessário que nos acautelemos contra uma
ilusão de ótica similar a que tornou os marxistas tão relutantes a usarem
termos como preço, custo, moeda, valor dos serviços da terra ou juro equivalente,
quando tratam da futura ordem socialista, pois embora esses termos denotem conceitos
da lógica econômica geral, parecem, aos socialistas, estar impregnados de
significado capitalista, somente porque são usados também nas sociedades
capitalistas” (p 40).
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Outro alerta importante é contra o caráter por vezes difícil, quase
“hermético”, do discurso dos economistas – em nosso país se usa o termo “economês”
para referir-se a discursos ou textos que ninguém consegue entender, sem falar
das inúmeras tentativas, de nossos
Ministros da Fazenda para se tornarem inteligíveis, ou explicar o inexplicável:
quanto mais eles explicavam menos as pessoas entendiam – o que amplia a resistência do cidadão comum a
essa ciência, e o deixa, ao povo, mais propenso a seguir líderes populistas
cevados de promessas econômicas irrealizáveis, mas com um discurso fácil.
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Outro problema ainda é o das alianças espúrias que economistas tenderam a firmar
com as elites político-econômicas de seu tempo, que comprometeram, até certo
ponto, a intenção geral de tornar a economia numa ciência... respeitável – para
Schumpeter, boa parte dessas iniciativas se deve ao “imprevisível”, mas
repetitivo padrão de comportamento oriundo da inflamação do ego dos economistas.
“Um exemplo clássico dessa situação foi a
aliança da teoria econômica com o liberalismo político do século XIX... esse
entendimento foi a causa de relacionar-se por algum tempo o malogro do
liberalismo político com o da teoria econômica [ele deve se referir a
episódios como a Quebra da Bolsa de 1929 e a ascensão de regimes totalitários
no entreguerras]. A esse tempo, muitas
pessoas definitivamente odiavam a teoria econômica por pensarem que a sua
fundamentação era apoiar um programa político que elas desaprovavam. Essa
convicção era reforçada porque os próprios teóricos econômicos... punham o seu
aparato analítico a serviço de suas convicções liberais em matéria política...
[e assim] os economistas satisfazem a
estranha propensão de dedicar-se à política como amadores, mascateando as
prescrições políticas, oferecendo-se como filósofos da vida econômica [dando
asas à livre especulação],
embaraçando-se nos julgamentos de valor [valores burgueses, é claro] que, inevitavelmente, introduziam em suas
análises” (p 42)
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Clarificando a
questão da “teoria”
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Não é uma “sacada”, uma intuição, por mais genial que seja, nem mesmo um monte
delas, sem qualquer interconexão aparente, que constituem uma “teoria”
científica – Schumpeter não gosta do termo, coloca-o entre aspas no seu livro, por
achar que este se presta a mal-entendidos, preferindo o de “análise”, que supõe
uma apresentação mais integrativa e profunda, como deve ser um relato
científico; entretanto ele foi “voto vencido” na evolução da ciência
contemporânea, e o termo “teoria” se vulgarizou entre acadêmicos e leigos, com
todos os perigos que advém de uma unanimidade, sempre a flertar com a máxima do
dramaturgo pernambucano-carioca Nelson Rodrigues (1912-1980) de que “toda
unanimidade é burra!”.
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Portanto, não dá para escapar desse
assunto, ainda mais porque do correto entendimento desse termo dependem muitas
das afirmações de Schumpeter em sua análise. A apresentação do tema em HAE não
me parece clara para o iniciante, que é a quem eu me dirijo preferencialmente, e
para não me alongar numa seara que não me atrai nem é a principal razão de ser
desse projeto, apresento, de uma maneira esquemática, a moderna noção de teoria
científica conforme aparece nos dicionários de filosofia, de Nicola Abbagnano
(1901-1990) e José Ferrater Mora (1912-1991).
__ A teoria científica cumpre várias funções, a
primeira e mais simples é a de ser uma “hipótese
explicativa”, Schumpeter fala disso, enquanto ressalta seu pouco valor e
faz questão de assinalar a resistência que se lhe opôs o físico inglês Isaac
Newton (1642/43-1727) (2).
Entretanto, é inegável que há espaço para hipóteses numa teoria científica.
Para reforçar isso Abbagnano cita as palavras do médico e pesquisador francês
Claude Bernard (1813-1878): “O
experimentador formula sua ideia [ou hipótese experimental] como uma questão, uma interpretação
antecipada da natureza, mais ou menos provável, da qual deduz logicamente
consequências que a cada momento compara com a realidade por meio da
experiência... o objetivo das hipóteses não é só levar-nos a fazer experiências
novas, mas também descobrir fatos novos que não teríamos percebido sem elas”
(Abbagnano; 2000; p 952). O grande perigo é a multiplicação de hipóteses,
comprometendo a higidez, a coerência do arcabouço teórico.
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Em segundo lugar, “a teoria [que é um
produto da mente do pesquisador]
condiciona tanto a observação dos fenômenos quanto o uso de instrumentos de observação” (p 952-53), ou seja, a
influência ideológica, das preferências pessoais e/ou sociais, que é mais
perceptível nas chamadas “ciências humanas”, como se houvessem outras além
destas!
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Em terceiro lugar, “além de uma parte
hipotética, uma teoria científica contém um aparato que permite sua verificação
ou confirmação... Bergmann [Gustav Bergmann (1906-1987), fazendo uma analogia
com a matemática] disse que uma teoria
científica consiste em 1º axiomas [um sistema de declarações
indemonstráveis, convencionadas, mas evidentes, no qual se baseia uma
determinada teoria; esse sistema partilha a qualidades de ser coerente,
completa, independente, pequeno e simples]; 2º
teoremas [proposições demonstráveis]; 3º
prova [ou demonstração] dos teoremas
[mostra que a implicação lógica dos axiomas prevalece mesmo numa mudança de
contexto = verificação de uma teoria no mundo real]; 4º definições [ou
corolário = afirmação deduzida de uma verdade demonstrada, que equivaleria às
conclusões sobre a validade da teoria]... [atenção! Mesmo considerando o quanto
a proposta de Bergmann tem de analogia e paralelismo, um teorema não é
exatamente a mesma coisa que uma teoria, ela, antes, nos ajuda no sentido de
ressaltar que] as modalidades e o grau de prova ou confirmação que uma teoria deve
possuir para ser considerada ‘científica’ não são definíveis segundo um
critério unificado... a verdade
de uma teoria psicológica ou de uma teoria econômica exige um tipo de
comprovação completamente diferente do exigido
por uma teoria física, visto que as técnicas de verificação são completamente
diferentes”(p 953). Abbagnano também encarece, como decorrente das
disposições de Bergmann, a necessidade de limitar o número de hipóteses
contidas na teoria. Creio que se as pessoas tivessem a dimensão exata do quão
difícil é estabelecer e articular os elementos envolvidos numa teoria
científica, entrariam mais humildes e flexíveis nos debates acadêmicos, mais
dispostos a aprender que a ensinar...
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“Uma teoria não é necessariamente uma
explicação do domínio dos fatos, mas um instrumento de classificação e
previsão... A verdade de uma teoria está em sua validade, e a sua validade
depende de sua capacidade de cumprir as funções às quais se destina... 1º uma
teoria deve constituir um esquema de unificação sistemática de conteúdos
diversos...; 2º... deve apresentar um conjunto de meios de representação
conceitual e simbólica [uma linguagem]
dos dados de observação... o critério ao qual deve satisfazer é o de economia
dos meios conceituais, vale dizer, simplicidade lógica; 3º ... deve constituir um
conjunto de regras de inferência [que lhe permitam algum grau de
previsibilidade a partir dos fatos observados]... a capacidade de previsão de uma teoria é o critério fundamental para
avaliá-la” (idem).
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Ferrater Mora (1912-1991), chama a atenção para a diferença essencial entre uma
teoria nas ciências naturais e outra das humanidades: “enquanto nas primeiras a teoria não modifica em princípio a realidade,
antes pretende ajustar-se a ela [ou descrevê-la] o mais minuciosamente possível, nas segundas a teoria pode transformar,
e quase sempre transforma, a realidade submetida à teorização, pois a teoria é
neste caso fruto exclusivo da reflexão humana sobre atividades humanas. E assim uma teoria sobre uma realidade
histórica ou social não é algo que permaneça à margem dessa realidade, mas se
constitui antes um traço desta [é condicionada pelo período histórico ou pela
sociedade assim observada]” (1964; p 775)
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O físico inglês Stephen Hawking (1942-2018) arremata, reforçando uma das
principais características daquilo que se pode chamar teoria científica: “uma teoria é boa se satisfaz dois
requisitos: descreve com precisão uma extensa classe de observações e é capaz
de realizar predições corretas acerca de resultados de futuras observações...
Qualquer teoria física [ou
científica] é sempre provisória, no
sentido que é apenas uma hipótese, e, portanto, não pode ser provada. Não
importa quantas vezes os resultados dos experimentos confirmem a teoria, nunca se
estará seguro de que na próxima vez o resultado não a desmentirá. Por outro
lado, basta uma única observação em desacordo com as predições da mesma, para
que ela seja dada como refutada [bem diferente de certos grupos que clamam
o caráter “científico” de sua teoria econômica, justo por não ser nunca
refutada, uma vez que se recusam a encarar os “furos” grosseiros, em sua teoria]”
(trecho traduzido da Wikipedia em espanhol) – nesse momento eu lembro de uma
das frases mais felizes de meu mestre Lauro de Oliveira Lima (1921-2013), num artigo
onde estigmatiza a velorização, nas escolas, do “saber sistematizado”: “a
ciência, dizia ele, é um cemitério de ideias”.
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Para Schumpeter, mesmo reconhecendo as contribuições geniais feitas à análise
econômica por inúmeros autores, ele não hesita em afirmar que a vasta maioria
não chegou a construir uma teoria econômica científica, na acepção técnica do
termo. O primeiro, para ele, a construir um arrazoado de hipóteses e
explicações, que poderia ser chamado de uma “teoria” econômica, foi o
economista franco irlandês Richard Cantillon (1680-1734) – nisso ele acompanha
a outros, como o britânico William Jevons, que afirmou ser o livro de
Cantillon, Ensaio sobre a natureza do
comércio em geral, de 1755, “o berço
da economia política”.
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Quem diria!
Notas
1 – O que não impediu desentendimentos
um tanto ‘dramáticos’, quase “latinos”, entre eles, como quando no início dos
anos 20, aborrecido com a indiferença que Schumpeter aparentava em relação ao
sofrimento humano imposto pela Revolução Russa recém-acontecida, Weber
retirou-se, resmungando a sapatear, da lanchonete onde se travou o diálogo.
2 – Segundo Abbagnano (2000), na
concepção de Aristóteles, o criador do termo, hipótese é “um enunciado ou um conjunto de enunciados que só pode ser comprovado,
examinado e verificado indiretamente, por meio de suas consequências. Portanto
a característica da Hipótese é que ela não inclui nem garantia de verdade nem a
possibilidade de verificação direta” (p 500). Aos poucos, porém, o
significado de “hipótese” ganha mais abrangência e peso na filosofia, passando
a designar o mesmo que “causa”, dando –lhe uma tonalidade mais metafísica,
intolerável, por exemplo, para gente como Newton, que assim se exprimiu: “Até agora, não pude deduzir dos fenômenos [a
queda dos objetos ao solo] as razões
dessas propriedades da gravidade, e não formulo hipóteses. Tudo o que não se
deduz dos fenômenos deve ser chamado hipótese, e as hipóteses, tanto as
metafísicas como as físicas, sejam elas de qualidades ocultas ou mecânicas, não
têm lugar na filosofia experimental” (p 501). Abbagnano então completa com
muita felicidade: “a renúncia de Newton
às hipóteses, não mais é que a renúncia
à explicação [ inevitável em
quem observa fenômenos sociais] em favor da descrição [dos fenômenos
naturais]” (p 501-02). No alvo!
Bibliografia
Abbagnano, Nicola; Dicionário de filosofia; trad. Alfredo Bosi – rev. Ivone C.
Benedetti; 4ª edição; Martins Fontes; São Paulo; São Paulo; 2000
Bottomore, Tom; Dicionário do pensamento marxista; trad Waltensir Dutra; Zahar; Rio
de Janeiro; 2012 – edição digital de 2013
Mora, José Ferrater; Diccionario de Filosofia; 5ª edición;
Sudamerica; Buenos Aires; 1964
Schumpeter, Joseph A; História da análise econômica; trad Alfredo Moutinho Reis – José
Luís Miranda – Renato Rocha; Fundo de Cultura; Rio de Janeiro – São Paulo –
Lisboa; 1964; 3 vols.
Schumpeter, Joseph A; History of economic
analysis – introduction of Mark Perlman; Routledge; 2006; UK (online)