sábado, 5 de maio de 2018

DIÁLOGOS COM SCHUMPETER – 1
(Baseado na História da análise econômica de Joseph A. Schumpeter - revisado em 07/05/18)

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Nenhum princípio ou teorema argumentativo, por mais complexo que seja, é superior a um ser humano, por mais insignificante que este seja; e a consciência disso é o melhor antídoto, na minha opinião, para aquele que tendem a lidar com hipóteses e teorias humanas, seja de qual for a área, como se fossem “revelações divinas”

Eduardo Simões

__ A História da análise econômica, do economista austríaco Joseph Alois Schumpeter, é para os teimosos, para os persistentes, que pacientemente retiram, camada por camada, a grossa, capa de erudição e conhecimento de dados, especialmente nomes – algo que beira à obsessão e sobrecarrega o texto, como se não quisesse se apropriar ou ligar inadequadamente a alguém, um mínimo que fosse, um conceito ou abordagem que pertencesse a outrem, mesmo considerando que, desde a invenção da escrita, creio eu, é praticamente impossível ser absolutamente original no que quer que seja (Schumpeter reconhece isso ao longo do livro) – com que ele envolve a história de uma ciência tão apaixonante, embora a atividade de desvelamento do texto se revele uma fonte de imenso prazer; a erudição de Schumpeter não cansa, embora possa causar algum embaraço a um neófito, uma vez que a última, não sei se a única, tradução disponível em língua portuguesa date de 1964, repleta de expressões pouco corrente hoje em dia e erros de ortografia extravagantes, decorrentes de uma revisão pouco cuidada. Para mim, entretanto, não há dúvida: História da análise econômica faz jus ao elogio que alguns fazem a ele de ser o mais erudito e profundo livro de história que já foi escrito.

Há, como se pode ver neste livro, muita coisa que é redundante, irrelevante, enigmática, fortemente tendencioso, paradoxal, ou de outra forma inútil e mesmo prejudicial à compreensão. Quando tudo isso, porém, é deixado de lado, ainda resta o suficiente para constituir, por uma ampla margem, a mais construtiva, original, erudita e brilhante contribuição para a história das fases analíticas de nossa disciplina que já foi feita” (Jacob Viner (1892-1970), in Schumpeter; History of economic analysis – with a new introduction of Mark Perlman; Routledge Collection; 2006; UK; p viii  tradução livre).
  
__ Deve-se considerar ainda, caro leitor, que o livro está inacabado em decorrência da morte precoce de Schumpeter, em 8 de janeiro de 1950, nos Estados Unidos, sendo finalizado apenas graças ao empenho de sua esposa, Margareth Boody Schumpeter, ela também falecida antes de terminar a empreitada, finalmente concluída graças ao esforço de vários colegas de trabalho de ambos (ela também era economista), até a obra estar concluída, embora no seu interior abundem notas de partes faltantes, deixadas para uma finalização posterior, que nunca ocorreu...
__ História da análise econômica é assim uma das obras inacabadas mais profundas e marcantes da história do pensamento humano. Que monumento de saber não seria se o seu autor tivesse vivido o suficiente para deixá-la exatamente como a idealizou?

Apologia da história

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Fachada imponente do Theresianum, em Viena.

__ O interesse de Schumpeter pela história foi tão precoce e intenso (1) quanto seu interesse pela matemática, que no ocaso de sua vida o levará a ser fundador e presidente, nos Estados Unidos, da Sociedade de Econometria – alguns falam de seu hábito de transitar pelos corredores acadêmicos agarrado a grossos volumes de biografias diversas, um gênero tão interessante e enriquecedor quanto desprezado em nosso país; logo não é de admirar que no início de HAE ele faz uma crítica àqueles tratados, como os de economia, muito frequentes em sua época, que ignoravam as nuances históricas de sua área:

A menos que o tratado apresente um mínimo de aspectos históricos [saiba-se lá que “mínimo” é esse], nenhuma parcela de correção, de originalidade, rigor ou elegância evitará uma certa carência de direção e sentido... Isso acontece porque os problemas e os métodos que estão em uso em uma certa época incorporam os resultados e preservam as características do trabalho que foi feito no passado sob condições bem diferentes. A importância e a validade, tanto dos problemas como dos métodos atuais não podem ser entendidos totalmente sem um conhecimento dos problemas e métodos anteriores para os quais são uma (tentativa) de resposta. A análise científica não é... um processo logicamente consistente que se inicia com algumas noções básicas... adicionadas, linearmente, a um conjunto preexistente. Não é também... a descoberta progressiva de uma realidade objetiva [como queriam os positivistas, os empiristas, muito influentes nos meios universitários anglo-saxões da época]... é, antes, uma incessante luta com criações de nosso próprio espírito e o de nossos predecessores e progride – quando o faz – como que serpenteando [há, portanto, recuos, e a economia está eivada deles!], não por um processo lógico, mas pelo impacto inesperado de novas ideias, observações ou necessidades, e também segundo as propensões e temperamentos de novos homens [novas sociedades, novas culturas ou, dito de outro modo, novos paradigmas]. Qualquer tratado que deseje mostrar o estado “presente da ciência”, realmente apresentará métodos, problemas e resultados historicamente condicionados e que têm sentido somente no processo histórico do qual resultam... o estado de qualquer ciência num tempo qualquer implica sua história anterior e não será entendido se não tornar explícita essa história” (Schumpeter; 1964; p 24-25).

__ Ele afirma ainda na página 27 ele afirma que “em Economia... os modernos problemas métodos e resultados não poderão ser satisfatoriamente entendidos sem algum conhecimento de como os economistas chegarão às conclusões que estabelecem”. Algo que aparentemente parece meio “fora de moda” no senso comum geral, afeito apenas aos acontecimentos de curtíssimo prazo, a resultados imediatos. 
__ A história é, portanto, para Schumpeter, um meio indispensável para apercebermo-nos do significado e da direção possível, ou antes das direções possíveis, de um ramo da ciência, se quisermos considerar o caráter aproximativo, portanto estatístico, de todo conhecimento que se pretende científico, racional, como o é a economia, além de explicar o nível de entendimento atual dos fenômenos que pretende deslindar; tudo, aparentemente, bem de acordo com o figurino habitual, “conservador”, daquilo que se convencionou chamar “história”, inaceitável, em seus detalhes, nos dias de hoje, mas perfeitamente compatível com o tempo em que foi escrito: anos 30 e 40 do século passado.
__ Mas que ninguém se engane o novo e o polêmico estão presentes nessa obra daquele que foi chamado de enfant terrible da economia. Partindo da premissa que os acontecimentos históricos se desdobram num continuum, em processos seculares, senão milenares, de maturação, cujas mudanças mal se fazem sentir até estarem firmemente consolidadas no seio das sociedades, e já a caminho para se tornarem outra coisa mais adiante, no tópico seguinte, quando discute a possibilidade de a economia ser uma ciência, Schumpeter faz a seguinte observação:

Nossa definição original [da ciência ou ramo de ciência, como um esforço de conhecimento sobre questões específicas]... indica a razão porque é impossível, geralmente, datar – ainda que por aproximação de décadas – as origens e até os fundamentos de uma ciência, distinguindo-as do aparecimento de um método particular ou da instituição de uma escola... [Uma] ciência se desenvolve por acréscimos insignificantes, enquanto adquire existência própria, e ascende por meio de pequenos acréscimos, gradualmente diferenciados entre si, sob a influência de condições ambientes e pessoais... a partir de seu substrato de senso comum, e por vezes também de outras ciências... No que se refere à Economia, só a ignorância ou o espírito tendencioso podem admitir como pressuposto que A. Smith, F. Quesnay, Sir William Petty ou quaisquer outros tenham fundado essa ciência, ou que o historiador deva começar seu estudo por algum deles [dou-me aqui a liberdade de divergir um pouco do Mestre,  entendendo que nesse livro ele é um acadêmico se dirigindo a especialistas, que certamente, não precisam tanto de referenciais fora da economia para entender o que se está discutindo, para não falar da especificidade dos debates nesse nível, mas, ao apresentarmos os resultados de pesquisas para leigos, creio que podemos sim fazer uma concessão a "pais" e "escolas", desde que não se perca de vista o caráter acumulativo, contínuo de todo processo de aquisição e descrição de conhecimentos, avanço tecnológico, etc. marcando mais uma vez a importância da História, como uma ferramenta fundamental, indispensável, em todas as áreas do conhecimento]... O conhecimento leigo que diz que as colheitas abundantes estão associadas a preços mais baixos de gêneros alimentícios [como diziam os fisiocratas] ou que a divisão do trabalho aumenta a eficiência do processo produtivo [como pontificava Adam Smith] são obviamente pré-científicas e é absurdo visar tais afirmativas em velhos escritos como se constituíssem descobertas. O instrumental da primeira teoria da oferta e da procura é científico; mas essa realização científica é tão modesta – visto que ciência e senso comum estão muito interligados neste caso – que qualquer afirmação sobre o ponto exato em que se passa de um ao outro se torna necessariamente arbitrária [tão arbitrária como dizer que a ciência econômica começou com este ou aquele autor, o que não é de forma alguma ilegítimo fazer, mas não pode ser absolutizado ou tornado oficial]” (idem; p 30).

__ No parágrafo acima vê-se o quanto Schumpeter chacoalha a crença comum vigente entre liberais, e até marxistas, no Brasil, que de uma maneira geral prestam culto ao “fato” de Adam Smith ser o “fundador” da ciência econômica moderna, em especial da corrente liberal-capitalista, mas outras surpresas nos esperam ao longo do texto dessa obra magnífica, mas gostaria de fechar essa seção com um testemunho pessoal dele sobre o seu apreço à história:

Se iniciasse novamente os meus estudos de economia e me dissessem que deveria escolher apenas um dos três ramos mencionados [ramos de estudos especialização na economia da época; os outros dois eram a “estatística” e a “teoria econômica”], minha preferência teria recaído sobre a História da Economia, por três razões... Ninguém poderá entender o complexo econômico (2) de qualquer época, a presente inclusive, se não possuir uma visão adequada [seja lá o que isso quer dizer] dos fatos históricos e senso histórico bastante [talvez uma espécie de consciência das mudanças ou do ritmo evolutivo das sociedades]... O relato histórico [na economia] não pode ser puramente econômico, mas, antes, refletirá também os fatos institucionais não econômicos: pois fornece o melhor método para entender como os fatos econômicos e os não econômicos estão relacionados... a maioria dos erros fundamentais frequentemente cometidos em análise econômica são devidos a deficiência de conhecimento histórico, mais do que qualquer outra coisa” (idem p. 34).


Notas
1 – Aluno brilhante, Schumpeter teve o privilégio de fazer sua educação escolar básica na mais prestigiosa e conceituada escola do antigo Império Austro-Húngaro, o Theresianum, de Viena, onde ingressou graças ao prestígio genealógico de seu padrasto – ele ficou órfão de pai aos 4 anos. Hoyos (2001), citando Gottfried Haberler (1900-1995) tem uma visão complementar desse período: “A passagem pelo Theresianum forjou em Schumpeter sua “agradável e às vezes excessiva cortesia e modos da aristocracia do velho mundo”. Também determinou muitos traços de sua personalidade, presentes em momentos posteriores de sua vida, nos quais se nota certa ambiguidade, camuflada por um sentimento de não querer incomodar, de não contrariar de chofre a quem quer que fosse, num equilíbrio bem balanceado de oportunismo e hipocrisia”. Schumpeter era, enfim, um aristocrata da velha escola.
2 – Schumpeter usa o termo “complexo econômico”, adaptando à sua área de conhecimento o conceito de “área cultural”, também traduzida por “traço”, “padrão” ou “complexo cultural”, definido, segundo um blog na internet (http://contraculturacm.blogspot.com.br/), como um “conjunto de traços ou grupo de traços associados, formando um todo funcional; ou ainda um grupo de características culturais interligadas, encontrado em uma área cultural. O complexo cultural é constituído, portanto, de um sistema interligado, interdependente e harmônico, organizado em torno de um foco de interesse central. Cada cultura engloba um número grande e variável de complexos inter-relacionados. Dessa maneira, o complexo cultural engloba todas as atividades relacionadas com o traço cultural. Exemplo: O carnaval brasileiro, que reúne um grupo de traços ou elementos relacionados entre si, ou seja, carros alegóricos, música, dança, instrumentos musicais, desfile, organização etc. A cultura do café, que abrange técnicas agrícolas, instrumentos, meios de transporte, máquinas. O complexo do fumo, entre sociedades tribais, envolvendo cultivo, produto, e os mais variados usos sociais e cerimoniais; o complexo do casamento, da tecelagem caseira etc.” Traduzindo em termos mais próximos diríamos, com as devidas ressalvas, que se assemelha ao tradicional conceito marxista de “modo de produção” ou ao conceito mais moderno de “sistema”. Um todo, definido tanto por um objetivo específico como por uma lei de formação (organização interna), enfim, um “momento” ou “período histórico” de uma sociedade visto pelo ângulo da economia.

Obs: no próximo deixarei a bibliografia consultada)

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