terça-feira, 22 de maio de 2018

DIÁLOGOS COM SCHUMPETER – 2

(Baseado na História da análise econômica de Joseph A. Schumpeter)



Eduardo Simões



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Algumas reflexões prévias



__ Com uma inteligência muito aguçada e uma cultura fora do comum, Schumpeter é precioso até nas suas notas de rodapé, de onde saltam, aqui e ali, observações imperdíveis, que em geral contestam antigas crenças, em especial as fabricadas no século XVIII, pelos iluministas franceses. Para ressaltar o avanço do conhecimento científico, pelo menos do pensamento crítico, baseado na lógica, ele diz numa nota, na p 32:



Como ponto de referência [para mostrar o avanço do pensamento crítico no século XIII], escolhemos a Suma Teológica de São Tomás de Aquino, que exclui a revelação de entre as disciplinas filosóficas, quer dizer de todas as ciências, exceto a teologia sobrenatural... Esse pode ser considerado como o mais antigo e um dos mais importantes passos dados pelo criticismo metodológico na Europa, depois da decadência do mundo greco-romano”.



__ Em seguida Schumpeter passa à análise do conceito de “teoria”, fundamental para distinguir, ao longo dos séculos os avanços e os recuos da compreensão e análise de fatos econômicos; houve observações muito avançadas sobre fenômenos específicos, mas que devem ser consideradas apenas como “descobertas” isoladas, que podem até ter influenciado outras descobertas e teorias posteriores, daquilo que, mesmo não sendo de grande valor em seu conjunto, tem, pela integração lógica e harmônica de vários elementos, um sentido lógico e o status de “teoria”, e teoria científica, uma vez que, para ele, Schumpeter, não há como negar o status de “ciência” à economia.

__ Os argumentos de Schumpeter, na tentativa de explicar o que se deve entender por “teoria”, nem sempre são felizes; um tanto obscuros, repetitivos, e de uma maneira geral se referem a questões que não cabem ser aprofundadas neste artigo, embora aqui e ali deixe escapar alguma observação interessante: como a sua não adesão ao “cientificismo”, ou seja, a submissão da economia aos métodos e abordagens aplicados às ciências naturais, muito em voga na primeira metade do século XX:



Esse termo [Cientificismo] foi introduzido pelo professor von Hayek, para nomear o erro de copiar-se sem crítica alguma, os métodos das ciências naturais no pressuposto, igualmente acrítico, de que esses métodos tenham aplicação universal e que devam ser seguidos por toda atividade científica” (idem, p 39).



__ A respeito de uma certa similaridade entre os métodos usados pelas ciências naturais e a economia ele faz uma observação interessante:



Há limites, porém, para esse paralelismo [economia e ciências naturais]... quando os economistas discutem a respeito de experimentação, querem significar algo muito diferente do que comumente se entende por experimentação em laboratório, mas dispõem, por outro lado, de uma fonte de informação que não está ao alcance da física, isto é o amplo conhecimento do homem a respeito do sentido das ações econômicas... quando falamos sobre indivíduos e grupos, nossa fonte de informações... será o conhecimento dos processos psíquicos, conscientes ou inconscientes, que seria absurdo não usar” (p 38-39)



__ Não dá para negar o forte teor weberiano nessa observação, compreensível pelo fato de que ele e Max Weber (1864-1920) terem sido muito próximos (1). Portanto ao contrário dos “clássicos” e, principalmente, “neoclássicos” que tendiam a abordar a economia como uma disciplina neutra, baseada em princípios estritamente lógicos, o que supunha modelos ideais submetidos a uma “racionalidade”, dirigindo as ações humanas, pelo menos no campo da economia – como dizem por aí, para saber se alguém está realmente louco basta saber se ele trata o dinheiro: se o queima com certeza é “caso perdido”. Schumpeter, por seu lado está consciente da precariedade estrutural do fator humano presente na pesquisa econômica, embora mostre uma confiança nas possibilidades reais de conhecimento da sua psicologia, que talvez não seja mais compartilhado no mesmo grau, hoje em dia; mas ao negar à economia uma objetividade na economia semelhante à das ciências naturais, nem por isso fica cego ao subjetivismo, por vezes pueril e anômalo, que pode se imiscuir na economia.



É necessário que nos acautelemos contra uma ilusão de ótica similar a que tornou os marxistas tão relutantes a usarem termos como preço, custo, moeda, valor dos serviços da terra ou juro equivalente, quando tratam da futura ordem socialista, pois embora esses termos denotem conceitos da lógica econômica geral, parecem, aos socialistas, estar impregnados de significado capitalista, somente porque são usados também nas sociedades capitalistas” (p 40).



__ Outro alerta importante é contra o caráter por vezes difícil, quase “hermético”, do discurso dos economistas – em nosso país se usa o termo “economês” para referir-se a discursos ou textos que ninguém consegue entender, sem falar das inúmeras tentativas,  de nossos Ministros da Fazenda para se tornarem inteligíveis, ou explicar o inexplicável: quanto mais eles explicavam menos as pessoas entendiam –  o que amplia a resistência do cidadão comum a essa ciência, e o deixa, ao povo, mais propenso a seguir líderes populistas cevados de promessas econômicas irrealizáveis, mas com um discurso fácil.    

__ Outro problema ainda é o das alianças espúrias que economistas tenderam a firmar com as elites político-econômicas de seu tempo, que comprometeram, até certo ponto, a intenção geral de tornar a economia numa ciência... respeitável – para Schumpeter, boa parte dessas iniciativas se deve ao “imprevisível”, mas repetitivo padrão de comportamento oriundo da inflamação do ego dos economistas.



Um exemplo clássico dessa situação foi a aliança da teoria econômica com o liberalismo político do século XIX... esse entendimento foi a causa de relacionar-se por algum tempo o malogro do liberalismo político com o da teoria econômica [ele deve se referir a episódios como a Quebra da Bolsa de 1929 e a ascensão de regimes totalitários no entreguerras]. A esse tempo, muitas pessoas definitivamente odiavam a teoria econômica por pensarem que a sua fundamentação era apoiar um programa político que elas desaprovavam. Essa convicção era reforçada porque os próprios teóricos econômicos... punham o seu aparato analítico a serviço de suas convicções liberais em matéria política... [e assim] os economistas satisfazem a estranha propensão de dedicar-se à política como amadores, mascateando as prescrições políticas, oferecendo-se como filósofos da vida econômica [dando asas à livre especulação], embaraçando-se nos julgamentos de valor [valores burgueses, é claro] que, inevitavelmente, introduziam em suas análises” (p 42)



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Clarificando a questão da “teoria”



__ Não é uma “sacada”, uma intuição, por mais genial que seja, nem mesmo um monte delas, sem qualquer interconexão aparente, que constituem uma “teoria” científica – Schumpeter não gosta do termo, coloca-o entre aspas no seu livro, por achar que este se presta a mal-entendidos, preferindo o de “análise”, que supõe uma apresentação mais integrativa e profunda, como deve ser um relato científico; entretanto ele foi “voto vencido” na evolução da ciência contemporânea, e o termo “teoria” se vulgarizou entre acadêmicos e leigos, com todos os perigos que advém de uma unanimidade, sempre a flertar com a máxima do dramaturgo pernambucano-carioca Nelson Rodrigues (1912-1980) de que “toda unanimidade é burra!”.

__  Portanto, não dá para escapar desse assunto, ainda mais porque do correto entendimento desse termo dependem muitas das afirmações de Schumpeter em sua análise. A apresentação do tema em HAE não me parece clara para o iniciante, que é a quem eu me dirijo preferencialmente, e para não me alongar numa seara que não me atrai nem é a principal razão de ser desse projeto, apresento, de uma maneira esquemática, a moderna noção de teoria científica conforme aparece nos dicionários de filosofia, de Nicola Abbagnano (1901-1990) e José Ferrater Mora (1912-1991).   

__  A teoria científica cumpre várias funções, a primeira e mais simples é a de ser uma “hipótese explicativa”, Schumpeter fala disso, enquanto ressalta seu pouco valor e faz questão de assinalar a resistência que se lhe opôs o físico inglês Isaac Newton (1642/43-1727) (2). Entretanto, é inegável que há espaço para hipóteses numa teoria científica. Para reforçar isso Abbagnano cita as palavras do médico e pesquisador francês Claude Bernard (1813-1878): “O experimentador formula sua ideia [ou hipótese experimental] como uma questão, uma interpretação antecipada da natureza, mais ou menos provável, da qual deduz logicamente consequências que a cada momento compara com a realidade por meio da experiência... o objetivo das hipóteses não é só levar-nos a fazer experiências novas, mas também descobrir fatos novos que não teríamos percebido sem elas” (Abbagnano; 2000; p 952). O grande perigo é a multiplicação de hipóteses, comprometendo a higidez, a coerência do arcabouço teórico.

__ Em segundo lugar, “a teoria [que é um produto da mente do pesquisador] condiciona tanto a observação dos fenômenos quanto o uso de instrumentos de observação” (p 952-53), ou seja, a influência ideológica, das preferências pessoais e/ou sociais, que é mais perceptível nas chamadas “ciências humanas”, como se houvessem outras além destas!

__ Em terceiro lugar, “além de uma parte hipotética, uma teoria científica contém um aparato que permite sua verificação ou confirmação... Bergmann [Gustav Bergmann (1906-1987), fazendo uma analogia com a matemática] disse que uma teoria científica consiste em 1º axiomas [um sistema de declarações indemonstráveis, convencionadas, mas evidentes, no qual se baseia uma determinada teoria; esse sistema partilha a qualidades de ser coerente, completa, independente, pequeno e simples]; 2º teoremas [proposições demonstráveis]; 3º prova [ou demonstração] dos teoremas [mostra que a implicação lógica dos axiomas prevalece mesmo numa mudança de contexto = verificação de uma teoria no mundo real]; 4º definições [ou corolário = afirmação deduzida de uma verdade demonstrada, que equivaleria às conclusões sobre a validade da teoria]... [atenção! Mesmo considerando o quanto a proposta de Bergmann tem de analogia e paralelismo, um teorema não é exatamente a mesma coisa que uma teoria, ela, antes, nos ajuda no sentido de ressaltar que] as modalidades e o grau de prova ou confirmação que uma teoria deve possuir para ser considerada ‘científica’ não são definíveis segundo um critério unificado... a verdade de uma teoria psicológica ou de uma teoria econômica exige um tipo de comprovação completamente diferente do exigido por uma teoria física, visto que as técnicas de verificação são completamente diferentes”(p 953). Abbagnano também encarece, como decorrente das disposições de Bergmann, a necessidade de limitar o número de hipóteses contidas na teoria. Creio que se as pessoas tivessem a dimensão exata do quão difícil é estabelecer e articular os elementos envolvidos numa teoria científica, entrariam mais humildes e flexíveis nos debates acadêmicos, mais dispostos a aprender que a ensinar...

__ “Uma teoria não é necessariamente uma explicação do domínio dos fatos, mas um instrumento de classificação e previsão... A verdade de uma teoria está em sua validade, e a sua validade depende de sua capacidade de cumprir as funções às quais se destina... 1º uma teoria deve constituir um esquema de unificação sistemática de conteúdos diversos...; 2º... deve apresentar um conjunto de meios de representação conceitual e simbólica [uma linguagem] dos dados de observação... o critério ao qual deve satisfazer é o de economia dos meios conceituais, vale dizer, simplicidade lógica; 3º ... deve constituir um conjunto de regras de inferência [que lhe permitam algum grau de previsibilidade a partir dos fatos observados]... a capacidade de previsão de uma teoria é o critério fundamental para avaliá-la” (idem).

__ Ferrater Mora (1912-1991), chama a atenção para a diferença essencial entre uma teoria nas ciências naturais e outra das humanidades: “enquanto nas primeiras a teoria não modifica em princípio a realidade, antes pretende ajustar-se a ela [ou descrevê-la] o mais minuciosamente possível, nas segundas a teoria pode transformar, e quase sempre transforma, a realidade submetida à teorização, pois a teoria é neste caso fruto exclusivo da reflexão humana sobre atividades humanas. E assim uma teoria sobre uma realidade histórica ou social não é algo que permaneça à margem dessa realidade, mas se constitui antes um traço desta [é condicionada pelo período histórico ou pela sociedade assim observada]” (1964; p 775)

__ O físico inglês Stephen Hawking (1942-2018) arremata, reforçando uma das principais características daquilo que se pode chamar teoria científica: “uma teoria é boa se satisfaz dois requisitos: descreve com precisão uma extensa classe de observações e é capaz de realizar predições corretas acerca de resultados de futuras observações... Qualquer teoria física [ou científica] é sempre provisória, no sentido que é apenas uma hipótese, e, portanto, não pode ser provada. Não importa quantas vezes os resultados dos experimentos confirmem a teoria, nunca se estará seguro de que na próxima vez o resultado não a desmentirá. Por outro lado, basta uma única observação em desacordo com as predições da mesma, para que ela seja dada como refutada [bem diferente de certos grupos que clamam o caráter “científico” de sua teoria econômica, justo por não ser nunca refutada, uma vez que se recusam a encarar os “furos” grosseiros, em sua teoria]” (trecho traduzido da Wikipedia em espanhol) – nesse momento eu lembro de uma das frases mais felizes de meu mestre Lauro de Oliveira Lima (1921-2013), num artigo onde estigmatiza a velorização, nas escolas, do “saber sistematizado”: “a ciência, dizia ele, é um cemitério de ideias”. 

__ Para Schumpeter, mesmo reconhecendo as contribuições geniais feitas à análise econômica por inúmeros autores, ele não hesita em afirmar que a vasta maioria não chegou a construir uma teoria econômica científica, na acepção técnica do termo. O primeiro, para ele, a construir um arrazoado de hipóteses e explicações, que poderia ser chamado de uma “teoria” econômica, foi o economista franco irlandês Richard Cantillon (1680-1734) – nisso ele acompanha a outros, como o britânico William Jevons, que afirmou ser o livro de Cantillon, Ensaio sobre a natureza do comércio em geral, de 1755, “o berço da economia política”.

__ Quem diria!     



Notas

1 – O que não impediu desentendimentos um tanto ‘dramáticos’, quase “latinos”, entre eles, como quando no início dos anos 20, aborrecido com a indiferença que Schumpeter aparentava em relação ao sofrimento humano imposto pela Revolução Russa recém-acontecida, Weber retirou-se, resmungando a sapatear, da lanchonete onde se travou o diálogo.

2 – Segundo Abbagnano (2000), na concepção de Aristóteles, o criador do termo, hipótese é “um enunciado ou um conjunto de enunciados que só pode ser comprovado, examinado e verificado indiretamente, por meio de suas consequências. Portanto a característica da Hipótese é que ela não inclui nem garantia de verdade nem a possibilidade de verificação direta” (p 500). Aos poucos, porém, o significado de “hipótese” ganha mais abrangência e peso na filosofia, passando a designar o mesmo que “causa”, dando –lhe uma tonalidade mais metafísica, intolerável, por exemplo, para gente como Newton, que assim se exprimiu: “Até agora, não pude deduzir dos fenômenos [a queda dos objetos ao solo] as razões dessas propriedades da gravidade, e não formulo hipóteses. Tudo o que não se deduz dos fenômenos deve ser chamado hipótese, e as hipóteses, tanto as metafísicas como as físicas, sejam elas de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental” (p 501). Abbagnano então completa com muita felicidade: “a renúncia de Newton às hipóteses, não mais é que a renúncia à explicação [ inevitável em quem observa fenômenos sociais] em favor da descrição [dos fenômenos naturais]” (p 501-02). No alvo!



Bibliografia

Abbagnano, Nicola; Dicionário de filosofia; trad. Alfredo Bosi – rev. Ivone C. Benedetti; 4ª edição; Martins Fontes; São Paulo; São Paulo; 2000

Bottomore, Tom; Dicionário do pensamento marxista; trad Waltensir Dutra; Zahar; Rio de Janeiro; 2012 – edição digital de 2013

Mora, José Ferrater; Diccionario de Filosofia; 5ª edición; Sudamerica; Buenos Aires; 1964

Schumpeter, Joseph A; História da análise econômica; trad Alfredo Moutinho Reis – José Luís Miranda – Renato Rocha; Fundo de Cultura; Rio de Janeiro – São Paulo – Lisboa; 1964; 3 vols.

Schumpeter, Joseph A; History of economic analysis – introduction of Mark Perlman; Routledge; 2006; UK (online)

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