segunda-feira, 23 de outubro de 2017

PADRES DO DESERTO

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Disse o abade Hiperéquios: “O monge que vela transforma a noite em dia, pela assiduidade à oração. O monge que espreme o coração e expulsa as lágrimas atrai a misericórdia do céu”.

Alguns irmãos foram onde o abade Felix na companhia de postulantes e lhe pediram para dizer uma palavra. O ancião se calou. Solicitado com insistência, disse-lhes enfim: “Quereis escutar uma palavra?” “Sim, Pai”, responderam eles. Disse-lhes pois o ancião: “Agora, não há mais palavras. Quando os irmãos interrogavam os Anciãos e cumpriam o dito, Deus inspirava nos Anciãos a maneira de falar. Atualmente, como interrogam e não põem em prática o que escutam [por que o fazem por pura curiosidade e modismo], Deus retirou dos anciãos a graça da palavra, e estes já não sabem mais dizer, pois não há quem as execute”. Escutando essas palavras, os irmãos gemeram e disseram: “Pai, ora por nós”.


Certo dia o abade Teodoro e o abade Ouro faziam um trabalho de manutenção, embarrando o teto de uma cela, quando começaram a dialogar entre si: “Que faríamos, se perguntavam eles, se Deus nos viesse visitar agora?”. Então se puseram a chorar e, abandonando o trabalho, retirou-se cada um na sua cela. 
Como muito bem falou Frei Ignacio de Larrañaga: "o principal sinal da ação do Espírito Santo na vida da pessoa é a autocrítica". 

domingo, 15 de outubro de 2017

PADRES DO DESERTO

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By Juan de Valdés Leal - [2], Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=45176983

Santa Apolônia e Santa Sinclética de Alexandria.

O arcebispo Atanásio pediu ao abade Pambo (séc IV) para vir do seu deserto até Alexandria. Quando o ancião chegou à cidade, viu uma mulher se prostituindo e desatou a chorar. Os presentes lhe perguntaram a razão. “Duas coisas me turbaram, respondeu ele: em primeiro lugar, a situação desta mulher; em seguida, o pouco zelo que tenho de agradar a Deus, perto do muito que ela tem feito para agradar a homens depravados”.

Certo dia estava o abade Silvano [início século IV] sentado com os irmãos, quando entrou em êxtase e caiu de cara na terra. Muito tempo depois, levantou-se banhado de lágrimas. Perguntaram-lhe os irmãos: “Que tens, Pai?”. Mas ele chorava em silêncio. Como insistissem, lhes disse: “Conduziram-me ao lugar do julgamento; vi muitos dos que usam nosso hábito ir ao suplício, e muitas gentes do mundo entrar no reino”. Deste então o ancião entregou-se à compunção por seus pecados e não queria mais sair da cela. Se o forçavam, cobria o rosto com o capucho e dizia: “Que necessidade há de ver a luz efêmera deste mundo que não nos salva”.

Sinclética [séc IV], de santa memória, disse: “Labor e peleja esperam os pecadores convertidos a Deus, para no final obter o gozo inefável. Eles são como os que querem acender um fogo: de início enfumaçados e a ponto de chorar, eles obtêm, a este preço, a chama desejada. Com efeito está escrito: “Nosso Deus é fogo devorador” (Dt. 4, 24); é-nos mister, nós também, entre lágrimas e penas, acender em nós esse fogo divino”.

domingo, 17 de setembro de 2017

PADRES DO DESERTO

Eduardo Simões

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O abade Pastor viajava, com o abade Anub, quando aproximando-se de um túmulo, e viram uma mulher que com crueza se batia e chorava amargamente. Eles pararam para observá-la e mais adiante perguntaram a um homem sobre ela, tanto os impressionara. Interrogou-o o abade Pastor: “Que se dá com essa mulher para chorar assim?”. “Ela perdeu, de uma só vez, o marido, o filho e o irmão”, respondeu ele. O abade Pastor então disse ao abade Anub: “Afirmo-te que quem não mortifica todos os desejos da carne e não possui uma compunção por seus pecados semelhante, não pode ser monge. Naquela mulher, a alma e a vida inteira estão no na dor [a dor que deve nos causar a lembrança de nossos pecados]”.


Disse ainda o abade Pastor: “A compunção pelos pecados tem dupla função: cultivar as boas obras e guarnecer contra as tentações, da mesma forma que Adão foi colocado como cultivador e guardião do jardim do Éden”  (Gn. 2, 15)”. 

Um irmão interrogou ao abade Pastor: “Que devo fazer?”. Respondeu ele: “ Abraão, ao chegar na terra prometida, comprou para si um sepulcro e, graças ao sepulcro, recebeu a terra em herança (cf. Gn. 23)”. “O que é esse sepulcro?”, retorquiu-lhe o irmão. “É o lugar das lágrimas, respondeu o ancião, e do pentos (a compunção por seus próprios pecados e dos outros)”


domingo, 10 de setembro de 2017

PADRES DO DESERTO

Eduardo Simões

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Par Inconnu — http://days.pravoslavie.ru/Images/ii1401&923.htm, Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4011565


Dizia o abade Tiago: “Como o candeeiro alumia o quarto escuro, assim o temor de Deus, quando pousa no coração do homem, alumia e lhe ensina todas as virtudes e todos os mandamentos divinos”. (Tiago, 3).

Alguns Padres interrogaram o abade Macário o Egípcio [morto em 391]: “Por que teu corpo é sempre mirrado, quer comas quer jejues?”. Respondera o ancião: “O pau com que se atiça e reatiça as brasas no fogo está sempre consumido; assim o homem que o temor de Deus purificou e consumiu até mesmo os ossos”. (Macário, 12).

Os anciãos do monte de Nítria enviaram um irmão à Cítia, à morada do abade Macário, pois desejavam vê-lo antes que partisse para o Senhor. Quando chegou à montanha, uma multidão dos irmãos se juntou perto dele, e os anciãos lhe pediram uma palavra. Disse-lhes pois Macário com muitas lágrimas: “Choremos, irmãos, deixemos as lágrimas fugirem dos olhos antes de ir onde elas nos queimarão os corpos”. Todos se puseram a chorar e se prostraram com o rosto em terra dizendo: “Pai, ora por nós!”.

domingo, 30 de julho de 2017

ABIGAIL E NABAL


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__ Abigail é um dos grandes personagens femininos da Bíblia, porém, como é comum a esses personagens, na realidade do Oriente Médio, nada sabemos sob as sua origem nem sobre as circunstâncias de sua vida antes de seu encontro com um importante personagem masculino: Davi. Abigail é o centro do capítulo 25 de 1 Samuel.
__ Tudo começou quando Davi e o seus companheiros, perseguidos pelas forças do rei Saul, foram se abrigar nas imediações do vilarejo de Maon, situado nas montanhas da Judeia, a 13 km ao sul de Hebron. Ao leste da cidade ficava uma estepe onde pastores costumavam levar seus rebanhos para pastar. Ora, nessa ocasião os guerreiros de Davi entraram em contato com os pastores de um tal Nabal, um rico pecuarista, com mais de 3 mil ovelhas, membro de um clã famoso: o de Caleb, e resolveram fazer uma aliança mutuamente vantajosa, uma vez que aquela região era frequentemente assolada por grupos nômades do deserto, que aproveitavam para roubar os rebanhos. Com a proteção de Davi e seu grupo, os pastores puderam fazer, em paz, o seu serviço, rendendo lucros para o seu patrão: Nabal.
__ Ora, ao chegar o tempo da tosquia Davi achou por bem cobrar algum retorno por todo o serviço gratuito que até então oferecera a Nabal, e que fora a este muito vantajoso, na forma de uma petição de víveres para ele e seu grupo – alguns autores querem ver nessa ação de Davi uma forma de extorsão, de venda de proteção, à semelhança das gangues de bandidos da periferia de nossas grandes cidade, mas isso não passa de um anacronismo que ignora as condições políticas e as características das relações sociais de então, que não eram idênticas às nossas. Não há como negar que Davi lhe fizera um grande e lucrativo favor. Seja como for, a reação de Nabal foi destemperada e ofensiva, revelando, aparentemente, o sentimento típico do novo-rico, de alguém que rapidamente enriquecera, enchendo-se de orgulho, ignorante ou desinteressado nas tradições locais e do aspecto quase sagrado da honra e da solidariedade entre grupos nômades e rurais.
__ Quando os homens que se entrevistaram com Nabal relataram a Davi o que tinham escutado, este se encheu de cólera, armou a sua tropa e partiu em direção a casa de Nabal para massacrar a todos. Nesse ínterim, os pastores de Nabal, sabedores de sua grosseria, foram entrevistar-se com sua esposa, Abigail, que o texto bíblico chama de inteligente e bela, alertando-a do que acontecera. Mostrando muita personalidade, intuindo claramente o que estava para acontecer, ela mandou que preparassem uma farta e variada provisão para levá-la até Davi, ordenando, sagazmente, que os empregados fossem à frente para entregar as dádivas a Davi, enquanto ela seguiria atrás, num jumentinho: se Davi não cedesse ante os presentes decerto cederia ante uma demonstração de humildade, ainda mais da parte de uma mulher importante, esposa de um rico proprietário – uma doutora em psicologia, 10 séculos antes de Cristo! E assim partiu, sem o conhecimento do marido.
__ De fato, as coisas aconteceram como ela previra. Davi, inicialmente, recusou a oferta de paz feita pelos empregados de Nabal, e ela então aproximou-se, desceu do jumentinho, prostrou-se ao chão e fez um dos mais prudentes e sábios discursos da Bíblia (1Sm 25,24-31). Tão hábil foi o seu discurso que Davi não só voltou atrás em seu projeto original como se derrama em elogios a Abigail. Ele, de fato, ficou muito impressionado.
__ A iniciativa e a habilidade de Abigail em lidar com a situação mostra que ela não devia ser de origem obscura, antes tudo aponta para uma educação num meio familiar nobre e certamente muito próximo à vida dos povos nômades, talvez uma família de certos recursos do clã calebita, de sorte que ela percebeu logo o que estava oculto ao insolente Nabal: o perigo que era melindrar um grupo aguerrido de nômades, tocando tão fundo na sua honra, como fez Nabal ao comparar Davi e os seus com “escravos fugidos”, e ignorar a lei de troca de favores, que regia as relações do meio rural da época. Mas ela também tinha um trunfo quando foi negociar com Davi, o fato de Nabal, e talvez ela própria, ser membro do clã calebita, de tanta fama na história de Israel, que tornaria qualquer ação violenta de Davi um pretexto para a vingança de sangue, por parte de membros desse clã.
__ Diz o texto, que quando ela voltou para casa encontrou Nabal e vários convivas em meio a um grande banquete, “um festim de rei”, certamente comemorando a enorme produção de lã daquele ano, graças às boas pastagens e à proteção dos homens de Davi, dos quais ele deve ter mofado muito, diante dos amigos, pela forma como os tratou e os despediu sem nada.
__ A surpresa veio no dia seguinte, quando já sóbrio, ficou sabendo pela própria esposa, o que acontecera enquanto ele se banqueteava e se gabava do que fizera. A reação de Nabal foi estranha. Homem violento e visceral, ele nada fez contra a mulher, o que reforça a tese que ela era de procedência privilegiada, e talvez o conflito nascido do desejo profundo de machucá-la e os prejuízos sociais decorrentes dessa violência, sem falar no estresse acumulado por quem só pensa em dinheiro, fê-lo ter naquele momento como que um ataque apoplético: “seu coração gelou-se no peito, e ele ficou como uma pedra”. Dez dias depois faleceu.

__ Davi se regozijou muito com a morte de Nabal, tão afetado que ficara por causa da desfeita deste, mas também porque a sabedoria e a beleza de Abigail o impressionaram deveras, e ele resolveu cortejá-la abertamente. O efeito do dramático encontro em ambos foi recíproco, e ela aceitou o pedido dele, tornando-se mais uma das esposas de Davi – eram seis nessa época – e certamente a sua favorita, até a entrada de Betsabeia no harém. A sua sabedoria valera-lhe tornar-se esposa de um rei e mãe de um príncipe: Queleab, segundo filho de Davi. Depois disso Abigail desaparece dos relatos. A última citação dela se refere à sua maternidade real, mencionada em 2Sm 3,3.
__ Abigail é também um modelo acabado do intercessor. Quando saiu de casa para encontrar-se com Davi ela aceitou correr um grande risco, pois embora estivesse relativamente bem informada sobre Davi, por meio dos pastores, havia sempre a possibilidade deles terem exagerado na descrição dele, ou ainda de algum conhecido vê-la negociando com Davi, prostrando-se diante dele, e levar a notícia ao marido antes de ela mesma. Ela poderia ter sido sequestrada e trocada por um resgate ou molestada por um enorme bando aguerrido e bem armado, contra os quais ela só podia antepor pacíficos pastores. Ela foi sábia, previu o desastre e encontrou o remédio, antecipou-se a ele, tomando a iniciativa de ir a Davi, foi persistente, apresentando primeiros seus empregados e depois a si mesma, foi humilde, ao prostrar-se diante Davi. Que dizer mais?

(visite almanali.blogspot.com.br)         
ABIATAR (ampliado)

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__ Nome de um sacerdote da família de Eli que vivia numa comunidade de sacerdotes, provavelmente um santuário, na cidade de Nob, nas terras de Benjamim. Abiatar foi o único dos sacerdotes que conseguiu sobreviver à fúria de Saul, depois que ele soube que essa comunidade de sacerdotes havia dado abrigo, alimento e até armas (a espada de Golias), a Davi e seu grupo, embora o tenha feito sem qualquer má intenção ou assumido ostensivamente a causa de Davi, conforme pode se ler em 1Sm 21-22. Seja como for, após o massacre dos 85 sacerdotes e de toda população civil de Nob, (“homens, mulheres, crianças e recém-nascidos, bois, jumentos e ovelhas – 1Sm 22,19), pelas mãos de Doeg, o idumeu, chefe dos pastores de Saul; Abiatar procurou abrigo junto às forças de Davi, que lhe recebeu de bom grado “Fica comigo e não temas. Pois o que procurar a minha morte também procurará a tua [a sorte de ambos está irremediavelmente ligada]. Comigo, estarás seguro” (1Sm 22,23).
__ É interessante notar nesse episódio a irracionalidade e a inutilidade do mal. Quanto mais Saul agia e tomava medidas com o intuito de destruir a Davi, mais o reforçava, como aconteceu nesse episódio, e mais; quando Abiatar foi se encontrar com Davi levou consigo o efod, um instrumento de consulta ritual, cuja aparência e manuseio nos é desconhecido, que revelaria, aos olhos dos antigos judeus, a vontade de Deus a respeito de assuntos diversos, inclusive os mundanos; algo fundamental para a situação que Davi e Saul protagonizavam naquele momento, o que deu ampla vantagem ao primeiro.
__ Abiatar passa então a fazer parte do grupo mais íntimo de Davi, sendo responsável, junto com o sacerdote Sadoc, pela organização dos traslados da Arca da Aliança, tendo inclusive participado numa operação de espionagem, junto ao rebelde Absalão, mantendo a Davi informado de tudo que se passava com aquele, tendo inclusive participado da trama que induziu Absalão ao seu erro fatal.

__ Mas, sobre Abiatar pairava uma maldição irrevogável, lançada contra um seu antepassado, o sacerdote Eli (1Sm 2,27ss). Essa maldição tornou-se realidade quando da morte de Davi, e então Abiatar teve a infeliz ideia de apoiar as pretensões dinásticas de Adonias, contra Salomão. Derrotado e morto Adonias, Abiatar foi despido de suas funções sacerdotais e obrigado a se exilar na cidade levítica de Anatot, onde encerrou os seus dias, ficando assim a estirpe de Eli excluída em definitivo das funções sacerdotais.
__ Esse desfecho parece nos informar que Abiatar era como que um homem que agia sem muita convicção, deixando-se levar pelos acontecimentos, de forma um tanto inconsciente. Entrou para o partido de Davoi, e foi uma ajuda valiosa, devido as circunstâncias, mas nunca aceitou plenamente essa condição, ou talvez até no seu íntimo julgasse Davi como o responsável pela morte de seu pai e de todos os seus companheiros em Nob, pois, com certeza, poucas pessoas conheciam, como ele, a vontade de Davi em relação ao seu sucessor, e Salomão não apareceu na linha sucessória repentinamente; por isso no último momento, no momento crucial, ele faz a opção errada, e perde tudo pelo que havia vivido até então, e morre em desgraça. É preciso perseverar na fé, mas também é necessário entender e aceitar conscientemente aquilo em que se crê. 

domingo, 16 de julho de 2017

ABEL

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By William-Adolphe Bouguereau - Art Renewal Center – description, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2239456

__ É curioso que num ambiente onde os nomes próprios carregam uma força tão poderosa, como no antigo mundo bíblico, esse personagem tão marcante, o segundo filho de Adão e Eva, tenha o nome de Abel que em hebraico, hevel, segundo John McKenzie, em seu Dicionário bíblico (ed Paulus), signifique “vaidade”, “nulidade” – outros ainda o traduzem por “sopro”, “névoa”, “efêmero”. Terá Abel ficado muito vaidoso pelo fato de o seu sacrifício ser claramente preferido por Deus ao de seu irmão Caim? Quer isso dizer que a glória de Abel vem justamente da forma brutal como terminou os seus dias, quando retornou ao “nada”, permanecendo até hoje como símbolo do mártir e, por que não dizê-lo, da precariedade, da transitoriedade, das relações, mesmo as mais íntimas, entre os seres humanos? O teu irmão, ainda que habitando contigo numa ilha deserta, pode ser o teu algoz, logo é tolice cuidar demasiado para ter vida longa ou eterna nesse mundo, como faz o homem contemporâneo, e não contar que a morte nos espreita a cada momento. Estejamos, pois, sempre bem preparados e só em Deus ponhamos toda a nossa confiança.
__ Coube a Abel, porque razão não se sabe, a função do pastoreio, da provisão de proteínas para o sustento da família, enquanto a Caim, o primogênito, coube provisão dos frutos da terra, pois era agricultor. Ora, no tempo adequado ambos ofertaram a Deus as primícias de seu trabalho, vegetais por parte de Caim e animais por parte de Abel, e Deus mostrou um claro agrado pelas oferendas de Abel, mais do que as de Caim, deixando a este muito enciumado.
__ O texto de Gênesis, que relata os sacrifícios dos irmãos (4,3-4), nada diz sobre os sentimentos deles nesse momento, nem sobre alguma irregularidade constante do sacrifício de Caim. Os comentadores da Bíblia de Jerusalém veem nisso uma demonstração da soberana liberdade de Deus, muitas vezes citada na Bíblia, que exalta a quem Ele quer, independente de qualquer atributo humano ou destaque social – uma pista, talvez, possa ser encontrada em Gn 4,1, quando o texto explica o nome de Caim, acompanhado da alegria por que foi tomada a sua mãe pelo seu nascimento, enquanto que de Abel não diz nada. Conhecendo a importância que a sociedade patriarcal hebraica dava ao filho primogênito, seria lícito especular que Abel era como que preterido pelos pais, sendo por isso escolhido por Deus para equilibrar a relação, como sói acontecer com os esquecidos do mundo, de quem Abel é figura?  Ou talvez tudo não passe de uma história exemplar, que reforça o modo de vida dos povos nômades, como os israelitas antigos, realçando a sua superioridade sobre os povos sedentários, enquanto chama a atenção e tenta explicar algo que era “universal” ou no mínimo bastante majoritário na região: o sacrifício às divindades, fossem elas quais fossem, inclusive entre os povos agrícolas, sempre foram feitos com animais e nunca em espécies vegetais.
__ Bem, o resto da história é por demais conhecido para nos determos em detalhes; Caim chama o seu irmão e, afastado de seus pais, o mata. Como, o texto bíblico não diz; apenas acrescenta: “Caim se lançou sobre o seu irmão Abel e o matou” (Bíblia de Jerusalém). Ou seja, o matou com suas próprias mãos; a socos ou talvez por esganadura. Mais adiante, quando Deus interpela a Caim sobre o seu irmão e ele finge ignorar, Deus lhe repreende nos seguintes termos: “Ouço o sangue do teu irmão, do solo, a clamar por mim”; McKenzie faz então uma leitura muito interessante de Hb 12,24: enquanto o sangue de Abel clama por vingança, o de Cristo, outro justo, e muito mais justo que aquele, morto por razões muito mais ignominiosas, clama, com muito mais eloquência, por perdão e redenção aos que o odeiam ou o odiarão.
__ Hebreus 11,4 assim explica a preferência de Deus pelo sacrifício de Abel: “Foi pela fé que Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor que o de Caim. Graças a ela foi declarado justo... Graças a ela, mesmo depois de morto ainda fala” (idem).

__ Amém!   

quarta-feira, 5 de julho de 2017

AOS AMIGOS DA RÚSSIA

Prof Eduardo Simões

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O “antimulher-maravilha”, enquanto ela vem para glorificar ainda mais a guerra e o espirito belicista dos homens, esse soldado russo faz uma pausa na guerra para dedilhar algumas notas num piano abandonado, durante a Guerra na Chechênia, em 1994, lembrando o absurdo de tudo aquilo. Esperamos que ele tenha conseguido manter o controle e o espírito elevado nas ações em que foi obrigado a participar, e que esteja bem.

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Setenta e um anos depois o velho veterano encontra o tanque que pilotou durante a Segunda Guerra Mundial, e se ajoelha em agradecimento. Decerto que a excelência dessa máquina, um genuíno T-34 o ajudou muito a ficar vivo, para que eu ele pudesse aprender sobre tudo o que se seguiu.

domingo, 2 de julho de 2017

ABIAS

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__ Foi o nome de um dos filhos de Jeroboão I, o primeiro rei de Israel, mas que morreu ainda criança.
__ Outro Abias, mais presente nas páginas da Bíblia, foi o quarto rei da linhagem de Davi, que reinou em Judá de 913 a 911 a.C. Os dados sobre esse rei são contraditórios, o que espelha bem o momento de seu reinado, quando o reino dravídico se dividiu em dois: Israel, ao norte, e Judá, ao sul, seguido de uma série de combates abertos e escaramuças para definir o limite da soberania, a fronteira entre os dois reino. As informações da época deviam desabrochar muito partidarizadas.
__ Segundo uma tradição constante em 1Rs 15,1ss, o seu nome seria Abiam, e ele seria filho de Maaca, filha de Absalão (o filho rebelde de Davi), com Roboão, e nesse caso ele teria sido infiel ao legado religioso de seu bisavô, permanecendo no trono apenas por um favor muito especial de Deus àquele. Em 2Cr 13, a narrativa toma um sentido diferente. Nesta, Abias é chamado por esse nome, mas é filho de Micaías (uma variante de Maaca?), filha de um tal Uriel, e ele é um homem fiel. Em Crônicas, Abias move guerra contra Jeroboão I – essa guerra é citada brevemente em 1Rs – e dirige aos seus soldados, antes da batalha, um comovedor e ortodoxo discurso em favor do deus do povo hebreu, Iahweh, como na melhor tradição profética, sem falar que, por causa do clamor que seus soldados levantaram à Iahweh, este os salva de uma derrota certa.

__ Em Crônicas, portanto, ele é um rei benfazejo, que recebe um favor extraordinário de Deus, diferente do que dele se diz em Reis. Este foi redigido muito antes, e, portanto, traz uma teologia menos elaborada, que tem dificuldades de explicar um reinado tão breve para um rei aparentemente justo – entre os mais antigos, um dos prêmios mais aguardados para uma vida justa era exatamente a longevidade. 
ABDIAS OU OBADIAH

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__ É o quarto “profeta menor”, após Oséias, Joel e Amós.  Não possuímos nenhuma informação sobre a sua vida, embora pelo tema e conteúdo de suas profecias, invectivas violentas contra os edomitas, os especialistas ae dividam entre dois períodos: primeiro, algo entre a segunda metade do século IX a.C., marcada pela rebelião bem-sucedida dos edomitas contra o domínio de Judá, no reinado de Jorão (849-842 a.C.) – essa tese é defendida por um grupo minoritário, em geral ligado à tradição protestante, que, acompanhando a tradição judaica, confunde-o com Abdias, servo do rei Acab e homem temente a Deus (1Rs 18,3-16) – ou algo em torno do século V ou VI, referindo-se ao que aconteceu às terras de Judá após a destruição do templo por Nabucodonosor, em 586 a.C., quando os edomitas, em vista da derrocada de seus históricos desafetos, prorromperam em alegres festejos e expedições de saques aos vilarejos e pequenas cidades já combalidas de Judá.
__ Algumas tradições o apresentam como um edomita convertido ao judaísmo, como que para dar mais qualificação às suas profecias e tirar um pouco do peso do extremado nacionalismo que flui de suas páginas, que fizeram alguns comentaristas duvidarem se o Livro de Abdias seja mesmo um texto inspirado e digno de constar no cânon: “Como fizeste, assim te será feito... A casa de Esaú será como uma palha! Eles a incendiarão e a devorarão, e não haverá sobreviventes da casa de Esaú, porque Iahweh o disse!” (Ab 15.18 – Bíblia de Jerusalém)

__ Mas o fato é que esse texto reflete rigorosamente o espírito da época, justamente o que melhor comprova a historicidade da Bíblia, embora possa constranger bastante a nossa ética cristã contemporânea. Uma ética que se encontra associada à nossa subjetividade e à impossibilidade de recriarmos, em toda sua abrangência, um momento histórico-cultural tão longínquo. Entretanto, no conjunto, percebe-se que ele não se afasta nem um pouco de outros discursos proféticos, considerados naturalmente inspirados, com um linguajar tão duro quanto o de Abdias, ou até mais.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

UM DIA DE SORTE?

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Soldado inglês mostra, sorridente, o resultado dos primeiros combates travados em setembro de 1915, em Loos, na França. Como se diz por aqui: “escapou fedendo” ou “ganhou um bilhete premiado”. Mas considerando o quanto lhe custava, e aos outros soldados, escapar para viver mais um dia, ou vários, nas trincheiras dessa guerra, a gente até duvida... 
ABANA E FARFAR

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By Image extracted from page 282 of Shadows of the East; or, slight sketches of scenery, persons and customs, from observations during a tour in 1853 and 1854, in Egypt, Palestine, Syria, Turkey, and Greece …, by TOBIN, Catherine - Lady. View image on Flickr   View all images from book   View catalogue entry for book.English | Français | +/−, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=33098811

Acima uma imagem das corredeiras do rio Barada, em 1853.

__ Dois rios da Síria nomeados em 2Rs 5,12.
__ Acredita-se hoje que o Abana seja mesmo que Barada, o principal rio da Síria que, nascendo nas montanhas do Antilíbano, desce suas encostas, até despejar suas águas no oásis de Al Ghouta, onde foi fundada a cidade de Damasco, após percorrer 84 km. Já o Farfar nasce no monte Hermon e também se dirige a Damasco, tendo o seu percurso a extensão de pouco mais de 64 km. Seu nome atual é Awaj.

__ Esses rios são mencionados no contexto da busca do general sírio Naamã por uma cura para a sua lepra. Após encontrar-se com o profeta Eliseu, recebeu deste a tarefa de se banhar sete vezes no rio Jordão, o que o deixou muito irritado. Pensava ele: “banho por banho, porque não nas águas dos rios de minha terra: o Abana e o Farfar, que são tão caudalosos quanto o Jordão?”. Como um general bom e fiel, decerto bastante profissional, Naamã era muito “nacionalista”. Estava a meditar nisso, quando uma “comissão” de servos achegou-se e o fez refletir sobre a irracionalidade de seu gesto, resistindo tão veementemente a uma prescrição tão simples, que em nada afetaria a sua lealdade ao seu país. Naamã ouvi-os, banhou-se no Jordão e foi curado. Esse fato, é mencionado no NT em Lc 4,27.

terça-feira, 6 de junho de 2017

AARÃO:

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__ Irmão de Moisés, intermediário entre este e sua irmã Miriam ou Maria, a primogênita, Aarão era filho de Amram e Jocabed, gente da tribo dos levitas. Sua aparição no contexto da História da Salvação se dá quando, já adulto, encontra-se com seu irmão, que retornava de um exílio distante, às terras egípcias, e ambos partem para uma missão “impossível”: livrar todo um povo do cativeiro que sofria sob o jugo do monarca mais poderoso do mundo conhecido, o faraó do Egito, quando esse povo, o israelita, era imprescindível para as grandes obras com as quais aquele queria marcar o seu reinado, sem falar que a saída em massa de tanta gente, representaria, para uma legião de inimigos, postados às fronteiras, um sinal de fraqueza incontestável.
__ Moisés tomava as iniciativas, afinal a ele fora confiada a missão, inclusive a de incluir seu irmão nos planos de Deus – no texto bíblico, Moisés tenta se esquivar da missão que lhe é confiada a pretexto de não ter boa oratória (Ex 4,10) e consegue que Deus lhe ceda o irmão como colaborador, embora seja ele, Moisés, quem toma à frente na hora de confrontar o faraó, o que não é de admirar, uma vez que ele fora criado na corte, ao contrário de Aarão, que crescera encurralado por sua condição de “servo”. Entretanto, é possível que Moisés também precisasse de alguém para lidar com o povo a ser salvo, e de quem fora afastado desde o seu nascimento, e Moisés talvez tenha se desculpado perante Deus, na passagem mencionada, por não saber falar bem a língua dos israelitas. Nesse caso podemos ainda conjeturar que a separação entre Moisés e seu povo não foi absoluta (de outro modo como ele saberia que Aarão era seu irmão?), reforçando a ideia de que houve uma ligação incipiente, mas profunda entre ele e sua família biológica, como deduz-se de Ex 2,7-10.
__ Ao longo desse enfrentamento Aarão faz com perfeição o seu papel de “secretário” diligente de Moisés, e com ele vive a alegria de ser autorizado, pelo faraó, a seguir com o povo para o deserto, a fim de prestar culto ao verdadeiro Deus. O seu prestígio praticamente equivale ao de Moisés. No relato de Ex 19,24, ele sobe o Monte Sinai sozinho com Moisés, enquanto noutro (Ex 24,1) ele sobe essa mesma montanha juntamente com seus filhos Nadab e Abiú, além de setenta anciãos (chefes de clãs?), o que pode nos informar de tradições diferentes ou diferentes momentos. Mas quando a sua liderança e sua fidelidade a Deus foram testadas de uma forma mais intensa, pela primeira vez, ele caiu miseravelmente.
__ Como Moisés demorasse muito em voltar de uma de suas subidas, Ex 32,1-20, algumas pessoas do povo, certamente a maioria, descrentes da possibilidade de ele ter sobrevivido tanto tempo em um lugar tão inóspito com o cume do Sinai, pedem a Aarão que lhe fabriquem um Deus, uma vez que com a “perda de Moisés” perdia-se também o seu Deus. Aarão, que já vira e ouvira tanta coisa maravilhosa, principalmente conselhos e ensinamentos minuciosos da boca de seu irmão, cede ante a pressão dos insensatos e constrói ele mesmo um ídolo: o bezerro de ouro, o que ocasionará uma explosão de cólera de seu irmão retornado. Em relação ao bezerro de ouro podemos considerar duas coisas: os castigos que recaíram sobre os israelitas infiéis, não atingiu a Aarão, o maior responsável pelo efeito final daquela loucura. Finalmente, esse episódio parece estranhamente similar as negações de Pedro, no pátio da guarda, constrangido por uma mulher do povo. A queda do príncipe dos sacerdotes israelitas como que prefigura a queda dos príncipes dos apóstolos no cristianismo.    
__ A medida em que o Êxodo se consolida e o retorno ao Egito se torna improvável, começam a surgir grupos de interesse e de poder divergentes dentro do acampamento israelita, dando início a sedições contra a direção de Moisés e Aarão (Nm 16). À frente do primeiro grupo levantou-se um clã levita, chefiado por um tal Coré, homem de grande prestígio, e mais tarde levantou-se um clã rubenita, liderado por dois irmãos: Datã e Abiram. O sucesso dos revoltosos teria posto a perder toda a empreitada tão duramente iniciada e levada até ali, por isso o castigo pela derrota dos sediciosos no seu pleito, não pode ter outro desfecho que não a morte dos líderes, de todos os seus familiares e seus apoiadores.
__ Mas mesmo entre os irmãos começam a surgir ciúmes e dissenções, e, quiçá, alguma ambição por um poder, que encontra um pretexto para explodir quando Moisés, aparentemente contra as recomendações do sacerdócio institucional, representado por Aarão, e da religiosidade espiritual popular, representado pela sua irmã, a profetisa Miriam, resolve tomar por esposa uma mulher cuchita. Indignados os dois se rebelam frontalmente contra Moisés, mas são derrotados na disputa onde se manifesta o terrível poder de Deus, numa repentina e severa lepra que se abate sobre Miriam, que é curada graças a intercessão de Moisés (Nm 12). Aarão, incorre em grave falta mais uma vez, e mais uma vez escapa incólume.
__ Para além dos aspectos mais novelescos e familiares desse episódio, podemos deduzir dele um ensinamento, que durante muito tempo foi esteio de equilíbrio e prosperidade entre os israelitas: a independência entre o poder temporal, representado por Moisés, e o poder espiritual, representado por Aarão e sua irmã. A história nos mostra o quanto essa questão confundia e empolgava as culturas vizinhas, dominadas por reis-sacerdotes, parcialmente divinizados, líderes políticos e religiosos que tendiam a absorver a sociedade civil sob a égide da religião, como é comum até os dias de hoje, sem falar do caso egípcio, mais próximo dos hebreus, onde a classe sacerdotal vivia às turras com os faraós, não raro liderando motins contra os mandatários do país, em geral por questões envolvendo disputa de terras e divergências fiscais. Esses são os problemas tradicionais, e nem sempre conscientes, da luta pelo poder, sempre que o poder começa a valer a pena.
__ Aarão, entretanto tem a oportunidade de se redimir quando da tremenda batalha de Rafidim, envolvendo a vanguarda israelita e um poderoso exército amalecita. Ele e Hur, colocados de cada lado de Moisés, sustentaram os seus braços deste erguidos, condição indispensável para a vitória, até que esta lhes sorriu ao final daquela jornada (Ex 8,5-13). Estava comprovado o sucesso do arranjo que previa ao mesmo tempo a independência e a harmonia entre o poder temporal e o espiritual, embora não sem novos tropeços e incidentes evitáveis. Dois filhos dos quatro filhos de Aarão: Nadab e Abiú, que também eram sacerdotes, morreram queimados, enquanto ofereciam incenso a Deus no altar.
__ Por fim, carregado de anos, Aarão morreu e foi sepultado sobre o monte Hor, por Moisés e Eleazar, filho e sucessor daquele, ao sul do atual Israel, próximo à fronteira do país de Edom, pois, assim como o seu irmã fora proibido de entrar na Terra Prometida (Nm 20).

__ No NT, Aarão é mencionado duas vezes, na Carta aos Hebreus, com o objetivo de ressaltar a superioridade do sacerdócio de Cristo.  
SER OU NÃO SER MADAME BOVARY, EIS A QUESTÃO!

Prof Eduardo Simões

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Nem tão belo, nem tão infiel, apenas em cima do muro.

__ É imoral! Mas pelo menos é erudita, a justificativa dada pelo senador do PSDB, Aloysio Nunes, uma das figuras mais inexpressivas da política nacional, à tentativa dos membros ainda “puros” de seu partido em desembarcar da canoa furada do governo Temer, movido ao lema de que “os fins justificam os meios”, afirmando Nunes que o PSDB não é Madame Bovary, personagem do escritor francês Auguste Flaubert. Alguém aí está muito entendido de traição e adultério, esperamos que só na literatura, da mesma forma que esperamos que saiba abrir mão de seu cargo pelo bem do país, se é que para aquele este valha tanto.
__ De que adianta não ser Madame Bovary, mas continuar fiel à prostituição, de que se rodeou muitos cargos públicos nesse país, nos últimos anos? Pelo menos a madame em questão tentava manter um certo ar de dignidade, de respeitabilidade, ainda que falso. E o PSDB, nem isso? Não se trata aqui de ser Madame Bovary, mas de abandonar um falso amante, alguém que traiu a confiança – para ficarmos no universo de Flaubert, um ‘Rodolphe Boulanger’ – e de dizer para o país que há algo novo na política. Mas que fazer, se o amante tem a chave do cofre?
__ Nada acontecerá de novo no Brasil, e nada mudará, qualitativa e definitivamente, enquanto nossos políticos continuarem a dar esses espetáculos de oportunismo, de maquiavelismo, da forma mais descarada, e não enfrentarmos decididamente a chaga moral que empesteia a nossa sociedade, em especial a classe política, e o PSDB bem que poderia dar uma contribuição nesse sentido.
__ Mas, se ainda quisermos ainda manter a analogia com esse personagem de Flaubert, para além de uma suposta contribuição dos “intelectuais” peessedebistas ao aumento da erudição na velhacaria política, não podemos deixar de reparar que, no contexto da trama, praticamente não foi deixada outra opção a Emma Bovary que o adultério, enquanto que o PSDB tem essa opção, o que lhe faltou até agora foi vergonha na cara para fazê-la.

__ Otto Maria Carpeaux, nosso brilhante crítico literário, observou com maestria, que o romance Madame Bovary, mais que a história de um adultério, era a história da estupidez humana, em especial a estupidez daqueles que por estreiteza e oportunismo a empurraram para o seu pecado, e que faziam questão de parecer que não eram como Madame Bovary...    

domingo, 21 de maio de 2017

O COMEÇO DE UM ACORDO?

Eduardo Simões

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__ Um grupo mais "radical" do socialismo obreirista lança uma interessante campanha que, espero, frutifique mais entre as correntes de esquerda, pelo seu grande alcance ético-moral e pela perspectivas que abre à resolução da atual crise política no Brasil, consignado no slogan “FORA TODOS ELES”, incorporando ao seu repúdio os principais membros da esquerda petista (Dilma, Lula), assim como da direita fisiológica (Aécio, Temer, Renan, Cunha), sem deixar de ressaltar que Aécio, e o próprio PSDB, apresentam-se como “socialdemocratas”. Dá para acreditar?
__ Curioso, é que ao assumir essa postura essa esquerda se aproxima muito dos liberais, grupo que esses radicais combatem, seja por desinformação, preconceito ou intoxicação ideológica, mas que assim como eles pede, há muito, a punição de todos os envolvidos, independentemente de sua coloração política e condição social. Ao contrário de alguns que acham plausível e decoroso defender uma dupla moral, como o PT, que pede a punição dos corruptos da direita, mas preserva apaixonadamente os seus próprios corruptos. As últimas eleições já avisaram: “se continuarem assim vão ficar isolados!”
__ De fato, essa dupla moral nasce do contexto ideológico (ou devo dizer religioso?) da luta de classes como “motor da história”, afinal no amor e na guerra vale tudo, inclusive a mentira, a corrupção, o engano, etc., desde que feito em nome da classe correta, aquela que deverá redimir a história da humanidade, em que pese estar à beira da extinção, pelo crescimento exponencial do setor de serviços, com a sua mão-de-obra sedenta apenas por promoções e aumento de renda, pouco propensa a trocar seu conforto pelas trincheiras, que enchiam de devaneios os revolucionários da Segunda Revolução Industrial.
__ O aforismo de Marx, porém, é de uma ingenuidade monumental, pois nos faz crer que os homens se unem em classes apenas para se sacanearem mutuamente, e que entre as classes existe uma uniformidade de metas e de ideologia monolítica, o que justificaria, inclusive, a dupla moral. Entretanto, nós sabemos que não é assim. Uma classe pode até surgir de um pequeno grupo, que num primeiro momento tem todos os motivos para agir monoliticamente, mas que com o passar do tempo, quando se torna uma multidão, após ter vencido a classe que se lhe opunha, se cinde inevitavelmente, uma vez que o poder supremo só pode ser exercido por um, ou quando muito por um pequeno grupo dessa classe dominante, às vezes à revelia ou contra alguns interesses de outros membros dessa mesma classe, de outra forma como considerar as segmentações que se ocorrem dentro das classes dominantes? Havia vários graus diferentes de nobreza na Idade Média, que serviam, entre outras coisas para manter vastos seguimentos dessa mesma classe longe do poder e até dispostos a se unirem à classe “inimiga” da sua, a burguesia, como uma estratégia para ter mais protagonismo na política, como aconteceu na Revolução Francesa, assim como só a altíssima burguesia teve acesso franqueado às benesses bilionárias do “socialismo popular” do PT e da gestão Temer, muito mais que os sindicatos de operários que aqueles diziam representar.
__ O que passou batido na avaliação de Marx foi o fenômeno anterior à formação das classes e que, inclusive, é o motor de sua formação: a luta pelo poder, tanto material (financeiro) como simbólico (político), que produz alianças de grupos sociais, nunca de uma classe inteira, uma vez que tal multiplicação de atores no poder inviabilizaria aquilo que é a maior crítica do poder político até os dias de hoje: a sua seletividade, de tal sorte que se uma classe conseguisse exterminar todos os grupos sociais ou classes que se lhe opõem veríamos surgir automaticamente, dentro dessa classe, segmentações que buscariam instrumentalizar o poder em seu benefício, mantendo o resto da sociedade fora, dando início à formação de novas classes, ao invés do paraíso prometido por Marx e seus sequazes. Não foi isso que vimos na URSS?
__ Essa verdade, que os liberais aprenderam, inclusive da análise de mitos bíblicos milenares, e que Stalin tentou enfiar na cabeça de Trotsky, um dos principais defensores da dupla moral, a golpes de picareta, em 1940, tombando ele próprio vítima dessa verdade, ao ser envenenado por seus amigos e conselheiros mais próximos, durante um festim privado, em 1953, ainda está por ser percebido por alguns ideólogos da esquerda nacional.

__ Espero que os fatos possam levar esses grupos radicais, e mesmo os petistas, a ver a inutilidade da ideologia da dupla moral, da luta de classes, que só pode prosperar na hipocrisia e gerar mais mentira e “jogo sujo”, dos quais a nação está farta, e possamos enfim unir as pessoas de boa vontade, dos dois lados, para uma solução estável e duradoura para a nossa crise atual, garantindo ou fortalecendo as instituições, a partir do mantra civilizacional básico: todos são iguais perante a lei, a ética e a moral, consoante as suas condições físicas atuais, e todos, sem exceção, merecedores de uma justiça equitativa, para os mais afortunados, e compassiva, para os mais pobres, que a pobreza seja fruto de uma escolha pessoal e não de uma imposição social, a partir de um projeto político que ponha o bem estar do ser humano, enquanto indivíduo e enquanto espécie, como objetivo, centro e meta das preocupações do Estado.     

quinta-feira, 18 de maio de 2017

RENÚNCIA DE TEMER, JÁ!

Prof Eduardo Simões

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__ Quem leu os meus artigos anteriores com atenção viu que nunca defendi a posse de Temer por um seu suposto valor pessoal e muito menos como uma espécie de salvador da pátria. Para mim ele sempre foi um mal necessário, miseravelmente imposto a nós pela incompetência e desonestidade de Dilma Rousseff, que nos levaria minimamente organizados, ou apenas semiafogados, às praias de 2018, graças à solidez e competência de sua equipe econômica, gente pouco afeita à política partidária.
__ Ao contrário de outros, que fizeram seus o antigo jargão dos coronéis do voto de cabresto e do curral eleitoral: “aos amigos (ou chefão) os privilégios, aos inimigos a lei”, nós os liberais, ou uma certa direita, defendemos que a lei seja aplicada independentemente de classe social ou filiação política do réu, considerados os atenuantes de praxe (extrema necessidade, legítima defesa, irresponsabilidade mental, etc.), e por isso prego que, uma vez confirmada as denúncias do executivo da JBS, Temer renuncie imediatamente, tendo um gesto mínimo de grandeza e de atenção ao bem do país, diferençando-se de sua antecessora, que aguentou teimosamente por meses uma batalha perdida, agravando a situação econômica do país, enquanto favorecia ao acirramento dos ânimos.
__ Digo isso porque, para além da política e da luta pelo poder, que é só o que tem importado à esquerda petista, a fragilidade da nossa economia e o grande estresse a que está submetida, há anos, a grande maioria da nação, podem estas não aguentar outros meses de disputas e brigas nos bastidores da política e votações dramáticas na Câmara e no Senado. Que se preserve a Constituição... sempre.
__ Além da renúncia imediata de Temer, se comprovada a gravação, defendo também a eleição indireta pelo Congresso, por duas razões básicas: pode ser feita imediatamente e tem custo praticamente zero, ao contrário da outra, que além de demandar meses de organização e preparo dos candidatos, tem um alto custo, e do jeito que a situação política está polarizada, pode servir de estopim para mais conflitos e mais polarização, como aconteceu nas eleições de 2014. De resto, a população já está farta das mentiras dos políticos. Que eles mintam só entre eles. Mas se a oposição conseguir juntar uma maioria necessária e aprovar uma emenda constitucional em sentido contrário, tudo bem, não sairei gritando que houve golpe, só para garantir o poder mais adiante às custas do país...
__ No mais sigo a nossa “dama de ouro”, a advogada Janaina Paschoal, uma das autoras do último pedido de impeachment, que também pede a renúncia imediata de Temer e Aécio Neves, este não passa de um “capo” mafioso, acenando com a feliz possibilidade de o Supremo depor imediatamente a Michel Temer pela prática de crime comum. A questão é saber se no Supremo tem gente com coragem e juízo bastante para tomar essa medida... quando ela se fizer necessária.
__ Que se faça justiça plena, que se lave esse país de toda sujeira moral acumulada ao longo desses quinhentos anos, tanto pela direita como pela esquerda. Não se constrói nada consistente, digno de nós, de nosso filhos e sucessores, sem uma ética elevada e sem igualdade, pelo menos perante a lei. Não torci por esse desenlace, como fazem os imaturos e obcecados, pois sei que agora estão muito mais pertos de nós os abismos da guerra civil, do golpe “de verdade”, da ditadura de esquerda ou direita, da secessão, e sei que se cairmos em um deles quem mais sofrerá serão os mais pobres, os mais fracos, além de pessoas por quem tenho razões muito pessoais, e especiais, para amar, acima até de mim mesmo. Como posso desejar o agravamento da situação nacional só para me vingar de males passados ou por interesses pessoais ou políticos? Isso não é um jogo de futebol ou um videogame; é a realidade

__ Sinto-me como alguém que recebe, sem pedir ou querer, uma viagem obrigatória à Venezuela. Tenho o consolo de que todos os pertences que levo são MEUS, principalmente um livro de orações...

terça-feira, 16 de maio de 2017

O MAR VIRA SERTÃO EM 2018?

Prof Eduardo Simões

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noticias.uol.com.br
O novo Conselheiro. Mas cadê a convicção?

__ A esquerda brasileira sempre teve razão, quando dizia que a maior expressão da odiosa opressão de classes no Brasil estava na atuação do Poder Judiciário, tão leniente quanto generoso com os crimes de “colarinho branco”, quanto célere e brutal na punição de crimes envolvendo populares, mesmo em delitos triviais, como furtar comidas ou guloseimas. Pobres eram precipitadamente lançados à cadeia, e por vezes lá esquecidos, enquanto os ricos, escorados por hábeis e caros advogados, mantinham-se indefinidamente impunes, graças ao cipoal de recursos admitidos pelo Código de Processo Civil, feito claramente para manter os grupos privilegiados fora do alcance da lei.
__ A minha geração, que desde o final do Regime Militar assistiu, impotente e horrorizada à desmoralização do estado democrático brasileiro, causada pela enfiada grotesca de escândalos, financeiros, tanto na iniciativa privados quanto na administração pública, impunes, certamente viu com esperança e alegria a ação rápida e firme com que o juiz Sérgio Moro lidava com os envolvidos na Operação Lava Jato. Pela primeira vez estávamos vendo políticos de renome e grandes empresários passando temporadas, ainda que curtas, para a nossa ânsia de justiça, atrás das grades. Algo inédito em nossa história!
__ Foi surpreendente, no mínimo, perceber essa mesma esquerda, que no passado, tanto denunciou os vícios classistas de nosso Judiciário, e tão firmemente acusou os crimes da “direita”, se voltar com ardor redobrado contra as ações da Lava Jato, justo no momento em que ela atinge o seu grande cacique, e maior esperança de vitória para as eleições de 2018, tornando-se ainda mais encarniçada à medida em que se avolumavam provas testemunhais e documentais sobre a corrupção que tomou conta da gestão petista no Brasil. De repente, subvertendo 170 anos de socialismo “científico”, o inimigo da classe trabalhadora deixa de ser a burguesia endinheirada para se tornar o Poder menos político e mais técnico da República.
__ Nós, que procuramos nos informar, sabemos que Trotsky já falara da dupla moral que movia o movimento comunista clássico, afinal a moral e a ética não passam de fantasias ideológicas das classes dominantes  (ver  http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-n%C3%A3o-Inseridos-nas-Delibera%C3%A7%C3%B5es-da-ONU/leon-trotski-a-nossa-moral-e-a-deles-1938.html). A esse respeito há um documento formidável, bastante didático, exarado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, em sua querela contra o ex-frade franciscano Leonardo Boff, um apoiador incondicional de Lula, chamado de Instrução sobre alguns aspectos da Teologias da Libertação (ver http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19840806_theology-liberation_po.html). Então ficou claro o que move a defesa intransigente de Lula e o abandono correspondente a que foi relegado um de seus mais próximos e fieis aliados: o ex-governador Sergio Cabral, do Rio, afinal ele não é oficialmente do PT. O partido, aliás, nega ser marxista, com a mesma insistência que nega a propriedade do tríplex e do sítio de Atibaia...
__ Partidários irredutíveis, obstinados, presos a minúcias legais ou questões de rito processual, ignorando descaradamente o grande volume de fatos e testemunhas, todas cercadas dos melhores advogados, que certamente impediriam ou invalidariam qualquer ação ilegal ou abusiva de Moro, para não falar da independência e seriedade técnica do STF, que ainda não achou nada que incapacitasse Sérgio Moro de continuar à frente da Lava Jato, se apegam a Lula como os combatentes de Canudos, na Bahia, se apegaram ao seu “Conselheiro”, até a última trincheira: um menino, um velho e dois adultos, contra cinco mil soldados, afinal se Lula vencer em 2018 será plenamente possível reproduzir, com nuances, o que acontece agora na Venezuela, pois teríamos um Executivo, controlado por Lula, e um Legislativo, com Renan Calheiros, ambos cevados de processos criminais, bem-dispostos e motivados para encurralar o Judiciário. Esperamos que esse golpe nunca... amadureça.       
__ Cento e vinte anos depois, Canudos se multiplica nas grandes cidades do litoral, não em favelas e subúrbios desvalidos, mas nos campis de respeitáveis universidades, entre estrelas da intelectualidade nacional, em torno não de um ideal religioso ou de um suposto problema que afete aos pequenos, mas a sobrevivência de uma figura carismática, mais uma em nossa história, que, bem mais que o antigo profeta dos sertões, também guarda ligações obscuras com os grandes da terra e uma causa bem menor: a sua própria pele.
__ Quando os frades capuchinhos João Evangelista e Caetano de São Leone estiveram em Canudos, não conseguiram falar diretamente com o conselheiro, uma vez que seus sequazes, jagunços e beatos, não saíam de perto dele, inclusive falando por ele, afinal já havia muitos interesses, legítimos ou não, em jogo, e hoje nós vemos a legião de militantes que se propõe seguir a Lula aonde quer que ele vá, principalmente em Curitiba, para conseguir, quem sabe?, demover, pela pressão, assim como os jagunços do Conselheiro, as autoridades de tirarem o seu “Bom Jesus” do meio deles, de tal sorte que não dava, como hoje dá, para saber se o líder comandava a “massa” ou era por esta conduzido.

__ Até o trágico desenlace...  

segunda-feira, 24 de abril de 2017

A SOLIDÃO DAS BALEIAS, DE NÓS MESMOS E DE NOSSAS CRIANÇAS

Prof Eduardo Simões

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__ Na Bíblia e entre os povos antigos, as águas e o seu maior ajuntamento, o mar, era expressão do poder daquelas, e sempre esteve associada à ideia de solidão, poder descontrolado, selvagem, e de morte. Era, enfim, um poder, para uns sobrenatural, ameaçador da vida, do qual Deus, na linguagem poética e mítica do Gênesis, se serviu quando quis exterminar a humanidade no dilúvio.
__ Nesse reino, o das águas, reina absoluto o leviatã dos leviatãs: a baleia azul, provavelmente o animal maior e mais pesado que já existiu em nosso planeta. Um gigante pacífico e sereno que, sabedor que nenhum outro animal ameaça a sua existência, vaga solitário nas águas dos cinco oceanos, zeloso de sua solidão e condenado, como nós, a um destino final, um dia tornar-se água, da mesma forma que nós, os terrestres, um dia seremos pó.
__ Estamos a descobrir que não existe baleias apenas no mar, mas também em terra firme e muito mais próximas de nós, pais e professores do que imaginávamos. Percebi-as há muito tempo, ao dirigir o carro pela estrada que me conduzia à escola onde trabalho, no rosto de alunos de todas as idades, tristonhos, desalentados, silenciosos, a esperar o transporte escolar no respectivo ponto. Mais tarde, senti mais fortemente a sua proximidade, no rosto de alguns alunos ou alunas, sempre silenciosos e apáticos em sala de aula.
__ Fui então percebendo que, assim como as mulheres de Simone Beauvoir, ninguém baleia, tornasse baleia! Isso é claramente perceptível no olhar dos adolescentes que ingressam no 6º Ano do Fundamental, ainda vivaz e brilhante, cheio da esperança e curiosidade que todos nós, que não fomos excessivamente brutalizados pela solidão precoce, tivemos num passado... não tão remoto assim, certo? Pois bem; esse brilho, com o passar do tempo, vai como que esmaecendo, se apagando, no rosto de muitos, agora jovens, como se a descoberta dos mecanismos que regem a sociedade, que até aquele momento eram ocultados à criança pelo véu da fantasia, agora, alevantado pelo amadurecimento da lógica e da razão, mostrasse, ainda no seio do ambiente familiar, um quadro de sorte a não dar-lhe nenhuma esperança ou sonho de que dias melhores virão. Dá para negar a crise da família brasileira? O jovem desiste, mergulha numa solidão patológica, quando muito dividida com um ou outro, assim como as baleias-azuis, e se torna uma delas.
__ Os professores, em geral, não atinam para a gravidade desse comportamento, antes até o apreciam, uma vez que o aluno quieto não dá trabalho, pode ser ignorado sem consequências... para o professor, afinal tristeza não é crime nem algo estranho à condição humana, quando não alimenta a alma e as obras de grandes artistas e literatos. “Nada de novo sob o sol”, diriam muitos a não ser por um detalhe: a triunfal entrada em cena de outra baleia azul, agora, a mascote de um letal e diabólico, onde adolescentes e jovens brincam com sua vida, já sabendo de antemão que irão perdê-la.
__ Digamos sem subterfúgio: “baleia azul” não é um jogo ou um desafio, mas um pacto ou um treinamento sádico, fatal e desesperado de suicídio, logo o suicido que sempre foi um grande tabu para em nossa sociedade, a certeza mais plena do inferno espiritual na outra vida, e que, de repente, está se tornando epidêmico, justo entre aqueles que têm mais motivos de continuar vivos, uma vez que quase nada sabem ainda da vida e estão na fase em que todo ser humano sadio sonha, devaneia, começa a amar e faz grandes planos para melhorar o mundo, mas que agora passaram a tomar a realidade como um verdadeiro “inferno”, até por desconhecimento completo, ainda que teórico, do outro. Nossos filhos e alunos, a deixar-nos no deserto moral e emocional que nós, adultos, os metemos, junto conosco, e fazem o seu próprio êxodo, guiados por um anjo mau, porque o bom já foi despedido a muito tempo pelos adultos. É um novo dilúvio acontecendo, só para menores, e se tudo vai virar água, ou morte, o melhor é ser baleia... azul
__ Pouco importa, nesse instante, se o que há por trás desse pacto, se uma quadrilha de malfeitores ou grupos aleatórios de jovens ou adultos querendo se “divertir”, sentir-se poderosos por manipular adolescentes, ao ponto de levá-los a negar o mais poderoso e primário de todos os instintos, pois o fato é que as regras para o treinamento existem, estão disponíveis, e jovens estão procurando em massa participar dele, mesmo quando se trombeteia a cada momento, em todas as mídias, que o final é a morte. Até parece que isso os motiva ainda mais! Afinal sua morte, trágica e precoce, os levará às primeiras páginas dos jornais, à fama e ao reconhecimento público, não é isso o que mais importa, segundo a ideologia dominante entre os adultos, tanto que vemos crianças de até dez anos começarem a se profissionalizar no The Voice Kids, o novo frenesi da TV ? Sem falar do fim de sua solidão? A edição online do jornal O Globo, de 20/04/17, revela que um grupo de combate a obesidade, coincidentemente chamado “Baleia”, e em geral frequentado por adultos, está recebendo uma média de 60 e-mails diários de adolescentes procurando o baleia azul... O que falta para ser declarada uma epidemia, uma das mais horrorosas que já tivemos? Como chegamos a isso?
__ No final do chamado Regime Militar, eu já observava, precariamente, que nós perdíamos algumas virtudes importantes aprendidas na minha infância, entre as quais eu listo o elo entre os vizinhos, e o conceito de vizinhança – todos os adultos de uma rua, pais de família, se conheciam e velavam ativamente por toda criança encontrada; cansei de receber lições e reprimendas de estranhos, por alguma traquinagem, sem que eu ou meus pais se sentissem ofendidos por isso; era natural e esperado que adultos educassem crianças, afinal nós pertencíamos não apenas aos nossos pais, mas a toda comunidade de vizinhos – e a crença de que as virtudes coletivas, públicas e morais se impunham ao sucesso financeiro – nessa época ocorre uma fascinação, pela importação açodada e seletiva, por parte dos militares e de seus cúmplices, de modelos culturais americanos, como o sucesso de um indivíduo medido exclusivamente pelo montante da conta bancária, independente dos meios para atingi-lo, ou como dizia um comercial da época: “o importante é levar vantagem em tudo, certo?” O Brasil era o xerife contratado pelos americanos para policiar a América do Sul, e o país começou a fazer planos para se tornar potência regional e até mundial, movida pelo fantasioso “Milagre Brasileiro”.
__ Creio que o maior milagre desse “milagre” foi fazer desaparecer, em tão pouco tempo, traços culturais e virtudes morais importantes, centenárias, que deram sustentação e sentido à construção da nação brasileira, para se tornar uma caricatura vulgar do “american way of life”. O Brasil estava mais rico, mas os pobres, abandonados e atropelados pelo ritmo mudanças, haviam evoluído para a miséria e a extrema pobreza, que eu nunca vira na minha infância, enquanto os ricos estavam mais ricos do que nunca, e dispostos a tudo para ficarem mais ricos ainda... O culto aos mais velhos e à Deus foi substituído pelo culto ao dinheiro e ao sucesso.
__ Quem mais sentiu essas mudanças foi a família tradicional, encurralada à esquerda, por ser “reacionária”, e à direita, por ser “retrógrada”, refratária ao progresso material e aos valores do capitalismo americano, colapsou e marchou célere para o deserto de sua confusão intelectual, levando os seus filhos. Em pouco tempo, nesse mesmo deserto, por razões morais, vieram se juntar outras famílias, que optaram se adaptar aos “novos tempos” e transformar o dinheiro valor supremo, junto com a autossuficiência. Os pais agora abandonariam seus filhos aos cuidados da televisão ou, quem podia, de uma babá, para irem à luta multiplicar os seus rendimentos. Os vizinhos desapareceram, se tornaram concorrentes ou desnecessários, e os filhos deixaram de ser um bem público, cujo desenvolvimento era do interesse da comunidade, para se tornar um bem privado da família nuclear, mergulhada em profundo complexo de inferioridade, por não conseguir replicar os padrões de consumo da “classe média” americana. Nesse ambiente, quem se atrevesse a corrigir uma criança que não fosse sua arrisca-se a comprar uma briga grave com a família dela, como ocorre ainda hoje. Os filhos foram se tornando a muleta emocional de pais temerosos do fracasso, uma vez que este deixou de ser um evento natural para se tornar uma espécie de pecado capital, uma assombração permanente na cabeça dos adultos, que só queriam dar aos seus filhos aquilo (material) que não tiveram.
__ Mais gente, porém, acercou-se ao deserto moral e espiritual em que se internou a nação brasileira, no seu êxodo ao contrário: as famílias aos pedaços, aquelas que ignoraram a ausência de valores ou passaram a cultuar falsos valores, e por isso colapsaram, engrossadas também pelas famílias que nem deveriam existir, não planejadas, nascidas de gravidez precoce, cada vez mais numerosas. Fato curioso; quanto mais multidões ingressavam no Saara da nação brasileira, mais nos sentíamos, e nos sentimos, solitários. A disseminação de pré-escolas, dos computadores pessoais e dos celulares afastou-nos ainda mais, uns dos outros e de nossos filhos.
__ Mães e pais estão cada vez mais confusos em relação a educação de seus filhos, não a educação no sentido formal, mas aquela que responde pelo desenvolvimento saudável de qualquer ser humano, seja porque há muito abandonaram os valores morais e emocionais tradicionais, que regulam e mantém as comunidades pacíficas e integradas, ou perderam a memória sobre o que funcionou na educação que receberam, preferindo ir atrás de modismos educacionais, e por isso os pais deixaram de ser um modelo confiável para os seus próprios filhos. Se não se pode esperar dos próprios país, vai esperar de quem? Fora isso existe também as más companhias, e a nossa chocante e imprevisível realidade, estragada e corrompida pelos mais velhos. Dá até para entender a enorme resistência que os alunos apõem aos conselhos que os professores lhe – parei de alertar meus alunos sobre o risco de gravidez precoce, após ver tanto resultado em contrário; era como si os meus conselhos sobre o que evitar os estimulasse mais ainda a não evitar. A verdade, a grande verdade que os educadores negam diariamente, é que as palavras nada podem contra a realidade de abandono e falta de esperança que essas crianças, em especial as mais pobres, vivem no seu dia a dia, abandonadas pelas autoridades, por sua família, assoberbada na luta pela sobrevivência e achacadas por bandidos e traficantes.
__ Nossas autoridades só pensam em índices, estatísticas e quadros numéricos, que possam apresentar diante da televisão, no período eleitoral, e assim garantir mais quatro anos de poder, mordomias e propinas. Para elas nós todos, cidadãos, jovens e crianças, não passamos de números ou abstrações usadas como pera seus projetos pessoais, moralmente questionáveis ou vazios.
__ Estamos sós. As milhões de pessoas que moram em prédios de apartamentos, em prédios de condomínios, nas grandes metrópoles brasileiras, imaginam que não podem contar senão consigo mesmos, que do outro lado da parede limítrofe do apartamento não tenha senão espaço vazio ou deserto, de tal sorte que ao encontrar um vizinho no corredor ou no elevador, eles nem sabem o que dizer, e em geral mal trocam alguns grunhidos. A última contribuição de nossas autoridades a essa questão é a criação das escolas públicas de tempo integral onde as crianças de famílias pobres permanecerão o dia todo, ocupadas em se tornar mão-de-obra digna daqueles que estudam em escolas privadas de qualidade, maquinalmente obedientes e sem um pingo de vida social, exceto aquela ritualizada e artificial que temos na escola. Não há nada tão ruim que não posa piorar.
__ As autoridades estão alertas e as polícias já foram mobilizadas para enfrentar esse fenômeno. Para nosso alívio e conforto, já foi encontrado um culpado para isso: alguém ou um grupo lá na Rússia, que de forma quase mágica consegue induzir centenas de jovens, no mundo inteiro, a fazer algo que o instinto natural repele com veemência, sem falar que isso, o suicídio de jovens é como que uma “tendência” mundial, uma nova moda, como é natural tratar tudo nos dias de hoje, independentemente de sua gravidade ou ameaça à estabilidade social de longo prazo, embora quem navegue pela internet sabe que o Baleia Azul é apenas uma entre as muitas formas e incentivos que existem e continuarão a existir, para que a criança e o jovem estraguem ou exterminem a sua saúde ou a sua vida.  
__ A culpa é dos russos, a polícia já está sabendo, retornemos à nossa zona de conforto, ao nosso deserto moral, afetivo, tão pessoal e tão árido, mas íntimo e antigo o bastante para nos sentirmos confortáveis nele, até que uma nova onda, ou um novo “desafio”, ameace a existência ou a integridade de jovens e crianças, contanto que não sejam as nossas, quando então ouviremos novamente a frase mais comum nesses momentos: “eu não quero que ninguém passe pelo que eu estou passando!”

__ Então porque não agiu antes?