sábado, 30 de julho de 2016

KALEVALA (1849) ONDE COMEÇA A FINLÂNDIA

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos da Rússia, Brasil, EUA, França. Deus os abençoe.

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__ Como um povo especifico, uma nação, com costumes e língua próprios, os finlandeses existem a milhares de anos. Porém, vivendo em comunidades autônomas, espalhadas pela Península da Escandinávia, não lograram constituir um estado, sendo obrigados a sujeitar-se ao domínio de outros povos; suecos e russos. Como um país independente a Finlândia só começará a sua história a partir de 1918, quando se separará da Rússia, após uma traumática guerra civil.

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__ Entretanto, antes de sua independência política, os finlandeses se inventaram enquanto povo, se unificaram culturalmente, a partir de um mito, que explicitou de uma forma concreta, o que é ser um finlandês. Essa invenção é fruto do trabalho de um homem em especial: o médico, botânico, filólogo e poeta Elias Lönnrot (1802-1884), assim como Homero foi o inventor da Grécia e do pensamento ocidental. Muito pobre, como pobre era a existência da maioria do povo finlandês na época – a região em que os fineses (finlandês étnico) moravam, e ainda moram, não era propícia à grande agricultura nem dispunha de jazidas de metais precisos abundantes. A sua única riqueza era a gente morando lá, e aparentemente foi isso que Lönnrot (acima), um homem profundamente humanitário e preocupado com a sorte desse povo, percebeu e pôs-se a promover, coletando pacientemente canções e narrativas diversas da cultura popular nas mais, remotas comunidades finesas onde conseguiu chegar.
__ Do material coletado, Lönnrot fez uma compilação, e, a partir de invariantes que ele percebeu e adendos que ele mesmo fabricou, adicionando alguns versos para fazer ligação entre os personagens e os eventos, até criar uma história de aventuras lendário-mitológicas oriundas do imaginário finês, na forma de um épico, como a Ilíada de Homero, chamada Kalevala. Ele lançou a primeira edição, em 1835, melhorou-a e ampliou e lançou outra, em 1849, que contém o texto definitivo que se lê até hoje, com 22.795 versos.
__ O sentido da palavra Kalevala é discutido. Quer dizer literalmente “casa de Kaleva”, onde Kaleva é um antigo governante mitológico, pai de vários heróis, como os semideuses gregos, cujas proezas os povos da Escandinávia cantam desde as mais remotas épocas. Noutra interpretação Kalevala é a representação do mundo pagão em contraposição ao cristianismo, que gradualmente se impõe, e de uma certa forma desloca a essência natural dos finlandeses em prol de outra trazida por povos estrangeiros, suecos e russos, que aderiram ao cristianismo antes e o impõem aos fineses. Aproximando-se de seu passado pagão, os finlandeses recuperam e reconhecem a sua origem mais remota, pagando sua dívida de existência para com os antepassados, ao mesmo tempo que afirmam mais fortemente, com razões até de caráter cronológico, o seu direito ao status de nação independente, e dizem ao mundo: “é assim que nós somos”.

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__ O personagem mais importante do kalevala é Vänämöinen, filho da deusa Ilmatar, a deusa dos ares – o seu nome quer dizer “filha do ar” – uma das divindades primordiais da mitologia finesa (acima). Diz a lenda que, cansada de sua solidão, Ilmatar se deixa acariciar pelas águas do mar sendo então fecundada pelo vento do leste, engravidando de Vänämöinen, que permanece no seu seio por 700 anos, colocando no chinelo a proverbial lentidão baiana. Para ajudá-la nessa gestação tão difícil e enfadonha, uma pata faz um ninho em seus joelhos e aí põe seis ovos de ouro e um de ferro, que, em um movimento brusco da deusa, caem no mar e se quebram e de suas partes se formam a terra, o sol, a lua, as nuvens, etc. Trinta anos depois da conclusão desse trabalho, nasce-lhe, afinal, o filho.

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__ Vänämöinen nasceu já velho, mas cheio de atributos. A sua voz é poderosa e seu canto tem poderes mágicos – encanta até os animais (acima) – sem falar que é dotado de uma sabedoria invulgar (também pudera, passara 730 anos pensando na vida, no útero da mãe), e leva uma vida sossegada enquanto cresce o seu renome de poeta e sábio por toda a terra,  embora lhe faltasse uma coisa pela qual os jovens adolescentes com menos de 730 anos vivem a subir às paredes: uma garota. Apareceu-lhe então uma oportunidade de uma maneira inesperada.
__ Da Lapônia desceu um jovem feiticeiro, cheio de marra, como quase sempre o são os jovem, chamado Joukahainen, disposto a medir forças com o famoso e tarimbado cantor mágico de Kalevala. Não deu para o caldo, e foi, por obra da palavra mágica de Vänämöinen, lançado a um pântano onde começou a afundar. Desesperado começou a oferecer tudo que trouxera, para o rival o livrar daquela situação, em vão, até que fez aquilo que alguns os irmãos fazem quando estão em apuros... jogam a irmã no fogo, e prometeu ao rival a mão de sua irmã, Aino. Vänämöinen não pensou duas vezes e aceitou a oferta.

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__ Joukahainen e sua mãe encheram a irmã de alegria ao revelar-lhe que a havia dado em casamento, e ela, tão doce, sonhadora e carregada graça natural da juventude, começou a sonhar, com o futuro marido, um poeta famoso, em sua casa cheia de crianças, e assim ficou até ser surpreendida pelo chamado de Vänämöinen, às suas costas (acima). Então ela se dá conta que o seu futuro como mãe de vários filhos seria substituído pelo de enfermeira de um velho várias vezes centenário. Não houve “química” entre eles.

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__ Desesperada ela passa dois dias chorando em casa e no terceiro corre até uma pedras à beira mar, onde põe-se a chorar sua desdita, e em meio a confusão de pensamentos e sonhos frustrados, Aino toma uma atitude extrema: se arroja ao mar, esperando tornar-se um espírito das águas.

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__ Triste, Vänämöinen vai pescar, e lhe ocorre de pegar um peixe estranho que, ele, abismado resolve examiná-lo por dentro, ao invés de contemplá-lo em sua estranha beleza, mas o peixe escapa-lhe de entre os dedos e cai na água, onde aparece na figura da bela Aino, a dizer-lhe que veio para ser sua companheira, e não ser feita em pedaços, e que ele nunca mais a verá, desaparecendo em seguida. O velho ficou maluco, jogou rede, procurou o ralo por onde escoar o mar; em vão. Aprenda, velho sábio: desgraça pouca é bobagem, quando tem alguém querendo chutar não adianta o cachorro fingir-se de morto.
__ A sabedoria é uma coisa boa, o sábio é muito amado e gabado na conversa das pessoas, mas a sabedoria é também uma virtude solitária, que leva à solidão, pois o vulgo tem uma relação ambígua com ela. Admiram-na e a temem igualmente. A primeira virtude do sábio é se preparar para a solidão. A sabedoria do homem, enquanto racionalidade pura, esvai-se diante da graça da mulher, enquanto intuição pura ou um outro tipo de sabedoria, ligada a outros interesses, capaz de subverter a sabedoria dos homens, desde Adão e Eva. Isso Vänämöinen não foi capaz de perceber, e ainda agravou-o ao buscar uma companheira muito mais jovem. “Para cavalo velho o remédio é capim novo”, diz o aforismo sertanejo, mas esse capim, no velho pangaré finlandês, causou uma tremenda indigestão e de quebra uma depressão, da qual ele se curou pelas palavras de sua mãe, a deusa Ilmatar, lembrando-lhe que em Pohjola havia muita garota bonita.

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By Akseli Gallen-Kallela - Scanned from a book: Eija Kämäräinen, Akseli Gallen-Kallela – Katsoin outoja unia, p. 81. WSOY, 2005. ISBN 951-0-19217-1., Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3704863
__ Refeito por essas palavras, Vänämöinen, montado em um alce ou caribu, se dirije a Pohjola – que geograficamente corresponde ao norte, à Lapônia, ao Círculo Polar Ártico, alegoricamente associado às trevas, ao frio e ao mal, mas estava valendo tudo para encontrar um “cobertor de orelhas” novinha em folha. No caminho porém, ele foi visto por Jukahainen, que morava lá perto, e este, tomado pelo ódio que votava ao rival, que o derrotara tão fragorosamente e provocara a morte da irmã, armou-se com uma besta e, apesar dos rogos da mãe, foi emboscar Vänämöinen (acima). Ele bem que mirou, mas acertou a montaria de outro, que ficou á deriva no borrascoso mar de Pohjola.
__ Vänämöinen é salvo por uma águia, que o leva à terra seca de Pohjola, onde é acolhido pela terrível rainha feiticeira do lugar: Louhi, que tem a rara habilidade de mudar de forma como e quando quiser. Ao saber do motivo da vinda dele, Louhi diz-lhe que lhe cederá uma de suas belas filhas, desde que ele fabrique um instrumento mágico chamado sampo. Vänämöinen diz que não sabe construir, mas conhece um ferreiro, Ilmarinen, que pode fazer, e recebe então um trenó com montaria, para ir atré Kalevala buscar o ferreiro. com a promessa de que se este for bem sucedido terá a mão da mais bela das filhas de Louhi.

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__ Ilmarinen, entretanto, era realista, um homem prático, e se recusa a ir tão longe só por causa de uma mulher. Mas Vänämöinen, preso por juramento a Louhi, inventa mentiras maravilhosas sobre Pohjola e, afinal, convence Ilmarinen a ir com ele para o norte, onde forja o sampo. Porém, na hora de voltar a Kalevala com sua noiva prometida, esta se recusa a deixar o escuro reino de sua mãe, e Ilmarinen volta de mãos abanando. Olhando para Vänämöinen com cara de fera.

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__ Nesse momento começa o ciclo de Lemminkäinen, o Don Juan do ártico, que levava uma vida de inveterado namorador, sobrando para ele o que tanto faltava a Vänämöinen, mesmo porque um jovem louco, mas saudável, é, bem mais atraente, aos brotos, que um sábio alquebrado. C’est la guerre! Até que um dia ele se sente profundamente enamorado por uma jovem bela e festeira, Kyllikki, por cuja atenção ele se submete a situações muito humilhantes, até que a rapta de uma festa e, após se comprometerem mutuamente, ele de não ir mais à guerra, ela a não mais dançar nas festas públicas, deram inicio a um casamento “burguês”.
__ No início tudo era bom, o amor é lindo, até que veio o enfado natural da rotina, e um dia, por causa do atraso da chegada do esposo, ela sai para um baile na aldeia. Os dois  descumpriram a palavra dada e Lemminkäinen, furioso, decide partir para mais uma guerra contra a gente e os monstros de Pohjola, que já estavam a atacar Kalevala, como quem busca novas aventuras juvenis.

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__ Sua intervenção na guerra garante uma fácil vitória, e ele se enche de tal empáfia que, até poupa um soldado de Pohjola, que lhe pareceu um mísero pastor, e vai tentar a sorte com uma das filhas Louhi, que, espertamente, propõe-lhe uma missão letal: matar o cisne negro de Tuonela, para ter a mão de uma de suas filhas. Lemminkäinen vai até o refúgio do cisne negro e é morto por uma serpente do mar, invocada justamente pelo pastor que ele desprezara na batalha, e é posteriormente esquartejado. Alertada sobre a desgraça de seu filho, a mãe de Limminkäinen, sai a sua procura de seus pedaços, junta-os e com a ajuda de uma abelha os traz a vida. Tem uma séria conversa com ele sobre a necessidade de ele começar a agir como um adulto, como um chefe de família, e o leva para casa.
__ Novamente Vänämöinen e Ilmarinen tomam rumo a Pohjola, na intenção desposar alguma das belas filhas de Louhi – o fogo de Vänämöinen é interminável, é como “vei macho” do sertão – e ela sugere à filha que escolha o velho e poderoso sábio, mas a moça prefere o ferreiro, não tão poderoso, mas bem mais jovem, bonitinho e forte. Louhi, não se dá por vencida e propõe tarefas bem difícieis para Ilmarinen, que delas se desincumbe com a ajuda da noiva (sem a sogra saber). Por fim Ilmarienen se casa e só resta ao rival voltar sozinho para casa e alertar aos outros velhos que não disputem com homens mais moços, o coração de uma jovem. Sábio conselho!

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__ Há uma bela festa de casamento, mas a noiva, lembrando-se que deverá abandonar a casa materna e ir para uma terra estranha, deixa-se começa a chorar, sendo então consolada e aconselhada bela e experiente Osmotar. Eis os conselhos de Osmotar, para a noiva e as mulheres de Kalevala (acima):
* Assumir as tarefas domésticas.
* Ser sempre educada e côrtes, com os sogros, mesmo quando a recíproca não for verdadeira.
* Cuidar da criação da família, administrar os empregados e manter o marido satisfeito (ela engravida e ele fica obeso).
* Separar a lenha da sauna e cumprimentar estranhos na rua de forma adequada.
* Não falar mal de ninguém (fofoca!) quando estiver em casa alheia.


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__ Alguns marmanjos também aconselham a Ilmarinen, e aos homens de Kalevala (acima):
* Deve-se permitir-lhe certas liberdades (as mulheres, em geral, brincam de uma forma diferente dos homens; há mais proximidade e toques) e não entristecer a noiva.
* a esposa não deve ser tratada como servo ou empregada, e deve-se dar-lhe total liberdade dentro de casa.
* Nunca deve falar-lhe ou tratar-lhe com desprezo.
* O homem não deve jamais bater na sua mulher, como se ela fosse uma escrava, nem permitir que seus parentes o façam, a não ser que ela seja uma desobediente contumaz, e nunca na frente dos outros, para não humilha-la (a lei “Maria da Penha” ainda não era conhecido na Finlândia).
__ O casal, enfim, chega a Kalevala e a família do noivo faz outra festa de casamento, desta vez com a presença britânica do bardo Vänämöinen, que cantou alegres canções aos noivos e convivas.
__ Lemminkäinen fica furioso por não ter sido convidado para o casório e resolve ir a Pohjola, para tirar satisfações com Louhi. A luta é dura, e Lemminkäinen é obrigado a fugir. Nesse meio tempo as tropas de Pohjola arrasam a sua aldeia e só a sua mãe se salva. Lemminkäinen, a encontra, refugiada em um bosque, e mais uma vez lhe promete ficar em casa, não mais se meter em confusão. Após isso, a narrativa se foca no anti-herói de Kalevala. O barra pesada Kullervo.
__ Kullervo é filho da única sobrevivente do povo de seu avô, exterminado pelo povo do seu irmão Untamo, tio-avô de Kullervo, que toma o menino para si. Pensando que sua família fora exterminada, Kullervo alimenta compulsivamente desejos de vingança, tornando-se assassino desde tenra idade. Posto para tomar conta de uma criança, ele a mata. Untamo, vendo que não pode mata-lo por causa de seus poderes mágicos, o vende como escravo para o ferreiro Ilmarinen, onde trabalha como pastor (a escravização de crianças foi um fato comum na Finlândia até o século XX).

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__ A mulher de Ilmarinen, entretanto, é tocada pela postura provocativa e rebelde de Kullervo, ela também é da estirpe da gente difícil de Pohjola, e resolve dobrá-lo pela dor da humilhação. Certo dia manda Kullervo pastorear o gado da família e põe, no meio de seu lanche, uma pedra. Ora, ao cortar seu lanche Kullervo quebra a sua faca na pedra e percebe o embuste. Ele se enfurece mais ainda porque aquela faca era a única lembrança que ele tinha de sua finada família e resolve se vingar, induzindo, por meio de magia, o rebanho sob seus cuidados a entrar na floresta, onde é devorado por ursos e lobos, que ele hipnotiza, e faz segui-lo até a casa de sua dona. Esta, quando olha para aquela manada de feras, só vê vacas e ovelhas e tenta ordenha-las, sendo mortalmente atacada. Ela clama por socorro a Kullervo, mas ele ri da situação, e foge para a flroesta.
__ Na floresta, em desespero, ele clama aos deuses e uma divindade, a Donzela da Floresta (acima), lhe revela que, na verdade, sua família imediata na fora morta, sua mãe, Untamala, se submetera na última hora ao cunhado e fora poupada junto com outros filhos. Cheio de esperanças Kullervo parte ao seu encontro, o que de fato acontece, após três dias de caminhada, já na fronteira de Pohjola. Porém, fica sabendo que uma de suas irmãs saíra para colher frutos na floresta e desaparecera.
__ A busca se revela infrutífera mas a presença de Kullervo é um desastre. Seu espírito, contaminado por anos de profundo ressentimento, não é persistente em empreitadas para o bem e ele torna-se um desadaptado, até que o pai lhe envia à aldeia para pagar um imposto, na volta ele se encanta por uma jovem muito pobre, e a estupra. Enquanto ela traça um relato de sua desdita, ele descobre que aquela era a sua irmã que perdera-se na mata (na história, muitas jovens camponesas finlandesas pobres foram abusadas por seus senhores suecos, russos ou finlandeses ricos, seus irmãos de nação). Traumatizada ela se mata. Kullervo também quer se matar, mas a mãe recomenda-lhe que parte em exílio, mas ele aproveita para se vingar dos males sofridos pelo povo de sua aldeia no passado e vai à desforra com Untamo.

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__ Seus familiares lhe imploram que não vá à guerra, recuse-se à vingança, mas ele não os ouve, nem aos mensageiros enviados pela família, para lhe anunciar a morte, um por um, de seus parentes ainda vivos, certamente por desgosto. Chegando ao povoado de Untamo, ele, usando de uma espada mágica dada pelo deus Ukko, destrói tudo e mata a todos, e volta para a sua família, mas ao chegar encontra a casa vazia; só restara o cachorrinho de sua mãe. Ele cai em si, e toma consciência do enorme erro que cometera, talvez por toda a sua vida, e se retira para a floresta, onde, enlouquecido, põe-se a falar com a sua espada, perguntando-lhe se ela beberia do seu sangue, e ela lhe responde “estou sempre pronta para beber sangue”. Ele se atira sobre a espada.

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__ Logo adiante o Kalevala diz: “Ao saber do que acontecera com Kullervo, Vänämöinen proferiu essas palavras de antiga sabedoria: “Oh vós, das muitas nações que ainda não nasceram! Nunca alimentem com o mal os vossos filhos. Nunca os deem a estranhos. Nunca os confiem aos cuidados de um tolo. Se a criança não é bem nutrida, afagada e estimulada, embora cresça no tempo de sua maturidade, e tenha um corpo forte e bem torneado, ela não adquirirá princípios morais, não se alimentará do pão da honra e nunca beberá no cálice da sabedoria”. Falou bem!

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__ Ilmarinen, como vimos, ficou no prejuízo. Tivera tanto trabalho para conseguir a sua esposinha, e perdeu-a para as feras. Resolveu então, como Pigmalião, fundir uma mulher de ouro e prata casar com ela (os japoneses ainda não tinham inventado suas bonecas de silicone). De noite, enquanto a superfície da estátua ainda estava quentinha, foi bom, mas de manhã ele estranhou a frieza de corpo dela e o seu silêncio obstinado. Recorreu a Vänämöinen, que depois de chama-lo de “mané” pra baixo, mandou-o ir atrás de uma mulher de verdade. Tem cada guabiru nesse mundo! Ele vai de novo a Pohjola atrás de noiva.
__ E as mulheres de Kalevala? Deveriam até ser mais abundantes! Mas não é bem assim. Durante séculos mercadores de escravos compravam ou sequestravam muitas mulheres finlandesas, principalmente meninas, para venderem aos ricos harens de turcos e árabes, e a outros povos vizinhos, a peso de ouro. Ilmarinen vai a Pohjola, e ante a recusa de Louhi em ceder-lhe uma filha ele sequestra uma delas contra sua vontade, mas quando ele para para descansar, ela foge com outro homem, e ele retorna sozinho para casa – depois ele foi dar um mergulho num lago congelado... Oh, desgraça!

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__ Mas surgiu-lhe uma oportunidade de se vingar da antiga-quase-futura sogra, quando foi convidado por Vänämöinen, para ir a Pohjola, a fim de pegar o sampo emprestado, para ajudar a soerguer Kalevala, uma vez que o sampo estava deixando Pohjola muito rico. Para isso, eles resolveram juntar todas as forças possíveis, convidando Lemminkäinen a ir com eles e foram os três para o extremo norte, que nem os argonautas da mitologia grega – o sampo era uma espécie de moinho que as pessoas, ao girarem a sua manivela, viam sair por três canaletas grãos, sal e ouro.
__ Entretanto Louhi, a dona do sampo, faz jogo duro e se recusa e emprestá-lo. Vänämöinen diz-lhe então que vai leva-lo na marra. Louhi convoca, aos gritos os seus soldados, mas o bardo, pegando da sua lira, põe-se a tocar colocando a todos os inimigos em um sono profundo. Logo depois ele tomam o barco em que vieram e começaram o seu retorno. Mas como nada é fácil nessas sagas, Lemminkäinen pede para Vänämöinen cantar algo, mas este se recusa, e aquele resolve arriscar o seus dotes de cantor de banheiro. Sua voz de taquara assusta um grou que passava, e este, aos berros, imaginando Deus sabe la o quê, voou para Pohjola, acordando todo mundo. Quando Louhi descobre que o sampo foi roubado lança feitiços e feras do mar contra os heróis, quase os matando, até que vai ela própria, com a sua armada atrás dos ladrões.

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__ Vänämöinen, cria uma onda gigante e afunda a esquadra da bruxa, mas ela, transformando-se numa águia gigantesca, abate-se sobre o navio dele, transportando no dorso alguns de seus soldados (acima). Há uma luta feroz no barco e Louhi é derrotada, mas o sampo queda-se quebrado. A bruxa se afasta chorando, enquanto profetiza desgraças para Kalevala. Vänämöinen junta os pedaços do sampo, e se ele não é mais capaz de produzir metais precisoso, pelo menos é capaz de fornecer grãos em abundância e Kaleva conhece um ciclo de prosperidade. Louhi ainda tenta, com magia, acabar com essa alegria, mas é vencida pelos heróis.

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__ Após isso uma jovem muito virtuosa, chamada Marjatta (acima), sonhando com um casamento, vai à floresta e ouve uma pequena fruta chorando, por ninguém querer comê-la. Marjatta a come e fica grávida. Incompreendida é repudiada pela família, mas é acudida por sua serva Piltti. Sem abrigo, ela é obrigada a dar a luz em um estábulo frio, onde há um cavalo. O menino, apesar de bem cuidado, desaparece certa vez no pântano, mas é recuperado. Ele cresce, mas quando chega o momento do batismo do menino, entretanto, Virankannos, um personagem poderoso e enigmático, se recusa a batizá-lo, por não saber se o menino é digno do batismo. Nesse momento Vänämöinen aparece e declara que o menino, em virtude de seu nascimento incomum, representa um perigo para a camunidade e que deve ser morto. Nesse momento a criança com uma notável sabedoria e conhecimento, põe-se a recriminar os erros de Vänämöinen, sua participação na morte de Aino, seu belicismo irresponsável. O velho bardo fica sem palavras e o menino não só batizado como é clarado, por Virankannos o governante da da Karelia, lar ancestral dos fineses.



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__ Vänämöinen, despeitado e com raiva, reconhece que a sua era chegara ao fim, que ele e as suas leis não mais dominariam nas terras de Kalevala, deslocado pela mensagem daquele menino que nascera de uma mãe virgem. E que Kalevala, abandonando os antigos deuses, abraçara com firmeza o cristianismo. Ele toma o seu barco e parte para um lugar ignorado, não sem antes cantar seus últimos versos, como um presente ao seu povo.
“O sol nasce e se põe em Suomi [outro nome da Finlãndia],
Nascerá e se porá por gerações.
Quando o norte aprender os meus ensinamentos,
Ele se recordará dos meus ditos de sabedoria,
Faminto pela verdadeira religião.
Quando Suomi precisar novamente de mim.
Aguarde-me às primeiras horas da manhã.
Para que eu traga de volta o sampo,
Traga de novo a lira e os cantos festivos.
Traga a luz dourada da lua.
Traga a luz do sol pratedo.
Paz e abundância às terras do norte”.

(traduzido da Wikipedia em inglês – Kalevala (synopse))

sexta-feira, 29 de julho de 2016

É FOGO NA ROUPA 1

Prof Eduardo Simões

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__ Ao saber da delação de caixa 2 durante a sua campanha, feita por seu marqueteiro João Santana, Dilma Rousseff disparou: isso é problema de João Santana e do PT, que, por acaso, até hoje, é o partido dela! Não podia dar uma resposta mais atenuada, limpar um pouco a barra do partido, inclusive para safar a sua imagem nesse embroglio?
__ Como dizia o coronel Tamarindo, na debandada catastrófica da terceira expedição a Canudos: “É tempo de murici, cada um cuide de si”.

É FOGO NA ROUPA 2

Prof Eduardo Simões

__ Ao contrário do que dizem certos órgãos de imprensa, o ex-presidente Lula não recorreu à Comissão de Direitos Humanos da ONU contra o juiz Sergio Moro, mas contra o Brasil, em especial o sistema judiciário brasileiro, pois a ONU não recebe queixas contra pessoa físca, por motivos óbvios, mas apenas aquelas que envolvem nações soberanas; o que, convenhamos, não é muito salutar a quem está querendo retornar à presidência, pois dá munição aos seus inimigos e mexe numa área delicada, até para brasileiros: o orgulho nacional.
__ Argumentar que o Judiciário brasileiro não é imparcial é uma grande injustiça contra várias decisões já tomadas pelo STF que puseram cobro à fome de seus adversários políticos e até ao desejo de justiça rápida e eficaz, ou de um pouco mais de holofote, do juiz Sergio Moro. É uma atitude desesperada, uma tentativa extrema de politizar o seu processo na justiça.
__ Será que ele acredita mesmo que pode, com essa ação, barrar as investigações já tão adiantadas da Lava Jato, e outras, ou estará ele preparando um futuro pedido de confortável asilo político em algum país que não tenha acordo de extradição com o Brasil? Seria um desastre para quem já foi presidente da república e amigo íntimo dos homens mais ricos do Brasil, mas um final esplêndido para quem já teve que abandonar a sua terra natal, como retirante.

__ De qual dos Lulas Lula sente mais saudades?

terça-feira, 26 de julho de 2016

NICE (1543) OU O AVESSO DA FRANÇA

Prof Eduardo Simões

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__ Muita gente deve ter ficado chocada com o atentado à cidade francesa de Nice, seja pelo número de vítimas, seja pela forma brutal, inumana, como foram mortas aquelas pessoas, seja pela reação bastante agressiva da multidão em relação ao primeiro-ministro da França: Manuel Valls. Logo Nice, uma espécie de paraíso mediterrâneo, a melhor expressão da arte francesa de bem viver, com um magnífico calçadão à beira-mar, como em Copacabana, mas que não se permitiu resvalar para a decadência da  congênere tropical. Porém, o que muitos no Brasil não sabem é que Nice nem sempre foi francesa, e so recentemente a cidade passou para a guarda do pavilhão francês, não sem antes ter sofrido uma de suas experiências mais traumáticas, justo pelas mãos de franceses e de um povo muçulmano: os turcos.

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Por Museo Pietro Micca - http://www.museopietromicca.it/Mappa_inglese/La_guerra_inglese/la_guerra_inglese.html, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=37754135 

__ Nice pertencia originariamente ao Ducado da Saboia, um estado autônomo que durou de 1391 até 1860, quando suas terras foram divididas, por meio de plebiscitos,  ente a França e a Itália. Vemos (acima) o mapa do ducado, a área em laranja. Onde vemos Montmelian e Bard, a área azul escuro, e a parte em que está escrito Nizza (Nice em italiano), passaram a pertencer à França, o restante, a maior parte do ducado, disposto à direita da linha marrom, passou a pertencer à Região (uma unidade político territorial italiana com um estatuto semelhante aos estados do Brasil) do Piemonte. A língua branca que se estende por baixo do ducado pertence à República de Gênova (hoje região italiana da Ligúria), e nela  tem uma área em laranja com uma cidadezinha, Oneglia, que também pertenceu ao ducado. Hoje ela é italiana. Entre Nice e a fronteira italiana fica, hoje, um estado independente: o Principado do Mônaco. Em 1543, entretanto, a cidade enfrentou um cerco inusitado.
__ Tudo aconteceu como resultado do excessivo empoderamento do maior rival da França pela hegemonia do continente no século XVI: a Espanha, cujo rei, Carlos I (1519-1556), da família dos Habsburgos que reinavam na Áustria, assumiu a coroa do Sacro Império Romano Germânico, com o título de Carlos V, e de uma só vez assenhorou-se de vastas regiões no centro da Europa (Alemanha, Aústria e Balcãs e em geral) e no Mediterrâneo (Itália e Espanha), justo no momento em que os navegantes espanhóis acessavam minas de metais precisos estupendas na Américas. Ao rei francês, Francisco I (1515-1547), um homem extremamente inquieto e realizador, pareceu que se não fizesse alguma coisa a França seria engolida pelo colosso espanhol. Era necessário detê-lo, e o campo de batalha primordial, na visão de Francisco, deveria ser a Itália, cortando ou dificultando a comunicações entre o setor oriental (Áustria) e o setor ocidental (Espanha), da parte europeia do império mundial de Carlos V.

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__ Francisco (acima), entretanto, não conseguiu ser um páreo a altura do poderio espanhol, e após um início vitorioso foi fragorosamente derrotado e preso pelo rival na batalha de Pavia, em 1525. Foi então que, mesmo preso, resolveu dar um passo que escandalizou o mundo político da época, e que, de uma certa forma ainda causa debates: ele buscou aliança com o sultão turco otomano Suleiman o Magnífico (1520-1566), o mais encarniçado inimigo dos Habsburgos na região dos Balcãs – os turcos são muçulmanos – e um grande tormento para as populações cristãs daquela região, cujos vestígios e lembranças, de tão dolorosos, causaram, até recentemente, guerras sangrentas e amargas: as chamadas Guerras Iugoslavas ou Guerra Civil da Iugoslávia (1991-2001).

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By Soma Orlai Petrich - Fine Arts in Hungary:, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=258030

__ Suleiman ficou satisfeito com o pedido de aliança, que legitimava, por meio de um soberano europeu de primeira grandeza, as suas pretensões no continente,  e começou a pressionar Carlos V pela liberação de Francisco I. Este, em troca, bom conhecedor que era da situação político militar dos soberanos europeus, recomenda Suleiman a atacar o Reino da Hungria, predominantemente católico, como a França e a Espanha. Os húngaros sofrem uma derrota arrasadora em Mohács, 29/8/1526 (acima), na qual perece o jovem rei Luis II, e a Hungria, com seus milhares de habitantes, experimenta uma dura servidão por 170 anos. Esse foi o preço para viabilizar a aliança franco-turca.
__ Uma vez livre, e após assinar tratados onde se compromete justo com o contrário do que fará a seguir, Francisco I acorda com o sultão turco expedições de saque e destruição ao longo da costa italiana e espanhola, oferecendo como suporte os portos franceses do Mediterrâneo, além de fustigar territórios imperiais próximos à fronteira francesa, entre eles a cidade de Nice, que fazia parte do Ducado as Savoia, ligado ao Sacro Império. A ocasião mais propícia seria no verão de 1543.
__ No dia 5 de agosto de 1543, a frota franco-turca, composta por 122 galés turcas, 40 galeotas, 4 barcaças e 22 galeras francesas assumiu posição frente à baía de Nice. No dia 7 de agosto a milícia da cidade sai ao encontro da infantaria turca, sendo facilmente repelida. Tem início ao fogo e contrafogo de canhões. No dia 10 chegam as tropas francesas, e um assalto é tentado no dia 12, mas fracassa.

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__ Em dia 15 de agosto, após intenso bombardeio, um pedaço da muralha cai, e é imediatamente assomado pela infantaria atacante. Um janízaro turco, mais audacioso, passa à frente dos demais, e, de cima dos restos da muralha, agita a bandeira do sultão, sem aperceber-se que dos sitiados sai uma mulher forte e raivosa, com um porrete de madeira nas mãos, um batedor para limpeza de roupas grossas, que se usava nas lavanderias da época, e com ele esmaga o crânio do turco e rouba-lhe a bandeira (acima). Dando um novo ânimo aos nicenses, que conseguem repelir o ataque.
__ Essa mulher, segundo a tradição local, era Catherina Segurane ou Segurana (acima), também conhecida como “Malafatta” (mal feita, feia), uma artesã-lavadeira, gente do povo, com muito pouca finura a classe, a ponto de não só rasgar a bandeira turca e esfrega-la em suas partes íntimas, por debaixo da saia, antes de arremessá-la de volta aos turcos. Outros dizem que ela levantou a saia e mostrou o traseiro para os turcos, que horrorizados com aquela demonstração de despudor, ficaram sem ação e foram facilmente repelidos. A Joana D’Arc de Nice era bem diferente da original e lutou pelo lado oposto.
__ De 15 a 22 de agosto, o bombardeio por mar e por terra se intensificou, provocando mais duas brechas na muralha, obrigando aos habitantes a se renderem, com uma condição: se entregariam aos franceses, o que foi aceito, para desconsolo dos turcos, que sonhavam em por as mãos em muitos escravos, embora eles também não tenham saído de mãos abanando, uma vez que fizeram várias razias na zona rural de Nice e nos territórios limítrofes, conseguindo capturar entre 500 e 2500 pessoas, posteriormente levadas aos mercados de escravos (acima) do império.
__ Em 7 de setembro, porém, ante a proximidade de um poderoso exército de socorro saboiano-imperial, os atacantes optaram pela retirada, o que foi feito entre os dias 8 e 9 de setembro, após o incêndio e o saque generalizado da cidade. As tropas assaltantes se retiraram, e a frota turca retornou ao abrigo que Francisco I lhe concedera em Toulon. As forças do Duque da Saboia, após a chegada, fizeram mais obras defensivas, além de uma dura repressão àqueles que apoiaram o ataque.

A invernada em Toulon
__ Para causar ainda mais prejuízos a seu arqui-inimigo, Francisco instou para que a frota turca ficasse abrigada em um porto francês, durante o inverno, para daí realizar ataques contra as cidades costeiras italianas e espanholas, providenciando alojamentos para Barba Ruiva, nobres e chefes turcos, além dos soldados, num total de 30 mil pessoas. A cidade escolhida foi  o porto de Toulon.
__ Para abrigar essa força a cidade teve que passar por algumas mudanças:
a) Todos os cidadãos foram obrigados a se retirar da cidade, sob pena de morte, exceção feita exclusivamente aos pais de família. Em troca, por essa amolação e possíveis prejuízos, os habitantes ficaram livres de pagar a talha por dez anos.
b) A catedral da cidade foi transformada em mesquita.
c) A moeda turca tinha curso forçado (era moeda obrigatória).
d) Nesse período esteve em funcionamento, na cidade, um ativo mercado de escravos cristãos.
e) O governo francês mantinha, com inusual cuidado, um pesado abastecimento de comida para os turcos na cidade.

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__ Graças ao abrigo em Toulon, os turcos puderam atacar e bombardear Barcelona, na Espanha, San Remo, Borghetto, Santo Espirito e Cereale, na Itália, além de alguns ataques bem-sucedidos à frota hispano-italiana, sem falar da incursão a Gênoca, que permitiu aos turcos negociar a libertação de um de seus mais notáveis piratas: Turgut Reis. Barba Ruiva gostou do lugar e simplesmente foi ficando, cada vez mais espaçoso, começando a gerar algum estresse com os franceses. Por fim, para se ver livre do incômodo aliado, Francisco teve de pagar a exorbitante quantia de 800.000 escudos (mais de 20 milhões de dólares), se comprometer a não punir piratas turcos com prisão nas galés, e assistir, impassível, ele saquear 5 navios franceses que estavam no porto, na ocasião.  Finalmente, no dia 23 de maio de 1544, ele abandonou o porto de Toulon, que ainda serviria de abrigo para o citado Turgut Reis, em uma de suas campanhas posteriores (acima, um modelo de galé de Barba Ruiva).
__ A caminho de Istambul, a frota de Barba Ruiva ainda arrasou várias cidades da Sicilia, incorporando mais uns 6 mil escravos europeus cristãos ao seu botim.

Rescaldo

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__ Nice nem sempre foi francesa, aliás, só tardiamente foi tornou-se tal. A mudança foi decorrente de uma aliança entre Napoleão III e Camilo Cavour, na qual o imperador francês se comprometia e ajudar o rei da Sardenha e Piemonte a conquistar e unificar a Itália, e em troca receberia o Ducado da Saboia e o Condado de Nice. A situação foi regularizada após um plebiscito, que aconteceu nos dias 22 e 23 de abril de 1860. O resultados, confirmou as pretensões dos franceses; votaram sim, 25.743 pessoas, não, 160, abstiveram-se, 4.779, além de 30 votos nulos.
__ A esmagadora maioria em prol da anexação francesa, entretanto, não foi suficiente para apagar as marcas de antigas pendências, inclusive do terrível cerco de 1543, que deixou, como lembrança, várias esferas metálicas, balas, disparadas pelos canhões turcos, espalhadas pelas ruínas da cidade. Uma dessas balas foi preservada e afixada numa parede, num cruzamento de ruas em Nice (veja acima), sendo que uma das ruas desse cruzamento se chama Catherine Segurane. Sob o artefato pode-se ler o seguinte: “bala de canhão da frota turca, durante o cerco de 1543, onde a heroína de Nice, Catherine Segurane se destacou”.
__ A delicadeza dessa situação transparece até hoje nos artigos da Wikipedia, onde os textos em espanhol e italiano ressaltam a ação de Catherine e a possibilidade de sua existência real, pois não há menção sobre ela fora esse episódio, o que é estranho, sem falar aldeões aprisionadas pelos turcos e levadas para mercados de escravos no Oriente, enquanto os verbetes em francês ressaltam que as tropas francesas não deixaram os habitantes da cidade serem escravizados, o que é verdade, sem se referir ao povo da zona rural, além de chamar a atenção para a possibilidade de Catherine não passar de uma lenda local, o que também é altamente provável.
__ Seja como for, a aliança franco-turca, no contexto e na motivação em que ela teve início, o ataque a Nice e a invernada em Toulon, são como que espinhos atravessados na garganta, lembrados anualmente por movimentos independentistas, como o Nissa Rebela (Nice Rebelde), numa marcha dedicada a Catherine Segurane, além de outras reivindicações de caráter regionalista e antiemigraçionista, que devem atingir um novo clímax após o grotesco atentado de 14 de julho.

        

segunda-feira, 25 de julho de 2016

PROFESSORES, CUIDADO COM “HISTORIAR” DE GIBERTO COTRIM

Prof Eduardo Simões

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Sou professor da rede pública estadual do Estado de São Paulo e recebi, para escolher o livro-texto de 2017, amostra de diversas editoras, e optei, após uma breve vista, pela coleção Historiar, do professor Gilberto Cotrim, da editora Saraiva, porém, após uma leitura mais atenta comecei a descobri tal quantidade e de erros dos mais variados tipos, que me deixaram profundamente decepcionado com o trabalho dos profissionais do MEC, que fazem a seleção dos textos a serem usados como apoio de aprendizagem por milhões de alunos de escolas públicas, que merecem o respeito de todos. Senão vejam os erros que encontrei após ler pouco mais de dez por cento das páginas da coleção:

Vol 6
p. 37: “a maioria dos povos utiliza o calendário cristão”: o nosso calendário não é cristão ele é “solar ou gregoriano”. O nosso método de datação histórica, tendo o nascimento de Cristo como referencial, é que é cristão.

p. 49: não faz nenhum sentido a comparação entre o criacionismo e o evolucionismo aí expostos, uma vez que se usa caráteres diferentes de uma e outra posição, sem falar que o conceito de seleção natural não tem o menor sentido. A melhor diferença seria
* O homem veio de Deus x O homem evoluiu de um animal irracional
* O homem nasceu com o aspecto e a capacidade mental já concluídos x Mudança gradual do aspecto e da capacidade mental do homem.
Trazer o conceito de “seleção natural” para o 6º ano é um despropósito, fazê-lo de uma forma errada ou confusa é um absurdo.

p. 51: cita África do Sul como “berço da humanidade”, mas os achados mais antigos, hoje, se concentram no lago Turkana e na Garganta de Olduvai, respectivamente no Quênia e na Tanzânia.

p.66: os caçadores do paleolítico vieram para a América andando sobre uma “ponte de gelo”. Absurdo! Nem ele nem os grandes herbívoros que vieram da Ásia para as Américas, sobreviveriam comendo exclusivamente urso e raposa polares. O que houve foi um acúmulo muito grande de água, na forma de gelo, no hemisfério norte, de tal sorte que o nível dos oceanos baixou muito e esses homens, e os animais, atravessaram o estreito de Bering pisando no fundo do mar, agora exposto, e com vegetação (essa glaciação durou milhares de anos), vendo grandes e longínquos paredões de gelo à sua esquerda.


Vol 7

p. 12: entre os germânicos “ladrões, assassinos e traidores eram punidos severamente”. Não é verdade! No vol 1 da coleção a História da vida privada e no volume Os bárbaros na Europa, da Biblioteca de Historia Universal LIFE, está dito claramente que o roubo e a traição eram punidos, pelos germânicos, com a morte, enquanto o assassinato acarretava apenas uma multa paga à família da vítima.

p. 17 “muçulmanos, hunos e vikings” atacaram a Europa no século VIII. Primeiro, quem atacou a Europa, motivado pela fé, foram os árabes e norte africanos, que por sinal também eram muçulmanos, mas toda a iniciativa e o comando das invasões pertenceu aos árabes. Segundo, os hunos NÃO invadiram a Europa nesse tempo: foram os MAGIARES, ascendentes dos húngaros!

p. 36: “escolhas religiosas e opções discordantes” são qualificadas como “heresias”. ERRADO, uma heresia é uma distorção de uma doutrina considerada ortodoxa, é a variação dentro de uma mesma religião. Do ponto de vista católico, o protestante é um herege, mas um judeu não.

P 37-38: as Cruzadas são descritas “expedições militares organizadas por autoridades da Igreja católica [católica com letra minúscula (!)] e por poderosos nobres da Europa Ocidental”.
Primeiro: não era a Igreja Católica quem convocava as cruzadas, mas Papas e bispos específicos, eventualmente com após um concílio ou um sínodo, como em Clermont, mas não obrigatoriamente.
Segundo: nem toda expedição militar convocada por Papas ou nobres eram cruzadas! Noutras palavras, confunde e não diz porque algumas expedições militares recebiam esse nome.
A seguir diz que as “Cruzadas mais importantes foram as que se dirigiram para o Oriente Médio” para “libertar os cristãos e os lugares considerados sagrados”... de quem? O texto não diz, tampouco explica o que quer são esses “lugares sagrados”.
Na página seguinte ele começa com as consequências das Cruzadas, que foram muito importantes, sem que tenha feito qualquer ligação clara com o que foi dito antes sobre as Cruzadas. No último parágrafo fala de territórios “reconquistados pelos muçulmanos... ressentimentos entre cristãos e muçulmanos”. De onde vieram esses muçulmanos? Como eles entram nessa história?”. É o samba do crioulo doido. E não é o único.

p. 43: Ao descrever a “crise do feudalismo”, o primeiro parágrafo fala que “nos séculos XIV e XV as sociedades europeias foram atingidas pela fome e pela peste negra” seguem-se outras calamidades, mas no parágrafo terceiro e último desse tema ele afirma, estapafurdiamente, que “a partir do século XI, a produção econômica cresceu e se diversificou”, seguem outros eventos maravilhosos. Está completamente sem sentido! Rasgue-se cessa página e se jogue fora!

p. 98: “venda de indulgências, isto é, “o perdão dos pecados””. Esse é um erro grosseiro e recorrente nos livros didáticos, e nesse não foi diferente, embora o autor tenha cometido a ousadia de ironizar a sua falsa compreensão do fenômeno, colocando “perdão dos pecados” entre parênteses, realçando a sua ignorância quanto a este assunto.
Eis uma definição correta e acessível, disponível na Wikipedia em português, com base no texto da Catholic Encyclopedia: “é o perdão fora dos sacramentos, total ou parcial, e "da pena temporal devida, para a justiça de Deus, pelos pecados que foram perdoados, ou seja, do mal causado como consequência do pecado já perdoado, a remissão é concedida pela Igreja Católica no exercício do poder das chaves, por meio da aplicação dos superabundantes méritos de Cristo e dos santos, por algum motivo justo e razoável." Embora "no sacramento da Penitência a culpa do pecado é removida, e com ele o castigo eterno devido ao pecado mortais, ainda permanece a pena temporal exigida pela Justiça Divina, e essa exigência deve ser cumprida na vida presente ou no depois da morte, isto é, no Purgatório. Uma indulgência oferece ao pecador penitente meios para cumprir esta dívida durante sua vida na terra, reparando o mal que teria sido cometido pelo pecado”.
Exemplo: um assassino pode pedir e obter perdão em uma confissão sincera com um padre, mas o que ele poderá fazer para acabar com os efeitos pecaminosos de seu ato, pois a família do morto perdeu, com este, uma parte ou a totalidade de sua renda financeira, e um referencial psicoafetivo que o assassino jamais poderá suprir ou compensar, ficando eternamente em dívida? É para sanar isso, e dar também uma chance a esse assassino de se reconciliar com Deus de uma forma completa, que existem as indulgências, até hoje.

p. 102: ele afirma que “em 1529 nobres alemães luteranos protestaram contra as medidas da Igreja que impediam cada Estado de escolher a própria religião”. Quem determinou essa proibição, em nome da unidade do Sacro Império, não foi a Igreja, que seria um absurdo, nem o Papa da época: mas o imperador Carlos V.

p. 103; ele afirma que “o luteranismo não aceitava... a adoração de imagens”. Ora, os católicos nunca prestaram adoração a imagens, antes professaram, e professam, o “culto das imagens” como uma expressão visível, uma memória daquilo que creem, e o autor sabe disso, tanto que, no penúltimo parágrafo, falando do calvinismo, ele cita a proibição pelos calvinistas, sobre “o culto às imagens de santos”.

P. 104 o autor cita Max Weber e o seu livro icônico A ética protestante e o espírito do capitalismo. Como é que alguém ousa indicar textos tão complexos e técnicos, como os de Max Weber, para garotos de onze-doze anos?

p. 105: sobre as “fontes da fé [do catolicismo] - a doutrina religiosa tem como fonte a Bíblia”. Curioso, o primeiro “fonte” está no plural, mas ele só cita uma fonte: “a Bíblia”; ou seja: as fontes de fé do catolicismo é a Bíblia.... (sem comentário). As fontes de fé do catolicismo são: a Bíblia, a tradição dos Santos Padres (os primeiros fundadores e defensores da Igreja, que teriam estabelecido interpretação correta de algumas passagens da Bíblia) e o Magistério da Igreja (presente nos documentos papais mais solenes e nas determinações dos concílios).

Vol. 8

p. 32: falando da Prússia de Frederico II o autor diz: “a Prússia é hoje parte do território da Alemanha”. Não é! Quase todo território da antiga Prússia, do tempo de Frederico, foi dividida entre a Polônia, principalmente, a Tchecoslováquia, a Bielorrússia, ficando a Alemanha com os nacos mais ocidentais, do auge alcançado pela Prússia, cem anos após Frederico II.

p. 40: “o motor a vapor criado por James Watt”. Watt não criou o motor a vapor; ele antes aperfeiçoou a bomba a vapor de Thomas Newcomen, dando-lhe uma eficiência que possibilitou a explosão produtiva da Revolução Industrial.

p. 45: no segundo parágrafo ele descreve as duras condições de trabalho das mulheres na fábricas, e no meio daquele alerta: “Mas, naquela época, havia um agravante. Ao Reivindicar seus direitos, as mulheres nem sempre podiam contar com o apoio da maioria dos homens”, e assim encerra o parágrafo sem ter dado, antes ou mesmo depois, qualquer informação que permita ao leitor deduzir o porquê dessa falta de apoio.
Não sei, ademais, em que pesquisa ele se baseia para fazer essa afirmação, nem se os “homens” a que ele se refere são os operários, os burgueses, os camponeses, etc. A História é sempre uma história social e não natural, aqui não se fala em gênero, exceto para denunciar ou praticar um preconceito, anteriormente delineado, o que não foi o caso.

p. 54: “os colonos ingleses [da América do século XVII] conquistaram autonomia política”. Não conquistaram os reis ingleses, ou Cromwell, simplesmente se livravam de seus súditos incômodos mandando-os para América, e lá os esqueciam. Os primeiros colonos americanos tiveram ampla autonomia na América. Era um dado prévio.

p. 60 “os líderes da independência não se preocuparam com os mais de 500 mil africanos e seus descendentes... escravos”. Não é verdade. Várias colônias, na época da luta pela independência, avançaram na abolição da escravatura: Vermont, em 1777; Pennsylvania, em 1780; Massachussetts, em 1783. O texto abaixo, da Wikipedia em inglês, desmente a afirmação de Cotrim, embora reconheça que tenha havido segregação, algo mais complicado para extinguir. Nossas favelas que o digam:

“During and after the American Revolutionary War, between 1777 and 1804, anti-slavery laws or constitutions were passed in every state north of the Ohio River and the Mason–Dixon line. By 1810, 75 percent of all African Americans in the North were free. By 1840, virtually all African Americans in the North were free. In Massachusetts, slavery was successfully challenged in court in 1783 in a freedom suit by Quock Walker; he said that slavery was in contradiction to the state's new constitution of 1780 providing for equality of men. Freed slaves were subject to racial segregation and discrimination in the North, and it took decades for some states to extend the franchise to them.”
“Most northern states passed legislation for gradual abolition, first freeing children born to slave mothers (and requiring them to serve lengthy indentures to their mother's masters, often into their 20s as young adults). As a result of this gradualist approach, New York did not free its last slaves until 1827, Rhode Island had seven slaves still listed in the 1840 census, Pennsylvania's last slaves were freed in 1847, Connecticut did not completely abolish slavery until 1848, and slavery was not completely lifted in New Hampshire and New Jersey until the nationwide emancipation in 1865”.
Muito cedo foram tomadas medidas para coibir o tráfico de escravos.
While under the Constitution, Congress could not prohibit the import slave trade until 1808, the third Congress regulated it in the Slave Trade Act of 1794, which prohibited shipbuilding and outfitting for the trade. Subsequent acts in 1800 and 1803 sought to discourage the trade by limiting investment in import trading and prohibiting importation into states that had abolished slavery, which most in the North had by that time. The final Act Prohibiting Importation of Slaves was adopted in 1807, effective in 1808. However, illegal importation of African slaves (smuggling) was common”.

Concluindo: a questão da escravidão foi muito discutida pelos fundadores da república americana, embora o número daqueles que eram favoráveis ao seu fim fosse menor, (veja http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142000000100008). Sabe-se também que George Washington deixou formalmente expresso o seu temor sobre os danos, em especial a divisão, que a escravidão provocaria na jovem nação, além de iniciativas pessoais no sentido de conseguir meios de se desfazer de seus escravos, mesmo sendo originário e morador de um dos estados mais escravagistas dos EUA. No seu testamento ordenou que a sua viúva educasse (o que era proibido pelas leis da Virginia) e libertasse todos os seus escravos.

p. 73: sobre a Constituição Francesa de 1791, “o Estado foi separado da Igreja”. Não é verdade, a Constituição de 91, na verdade, criava uma igreja católica francesa oficial, autônoma, mas não separada de Roma, igreja essa composta por padres e bispos juramentados, e mantida até 18 de setembro de 1794, já sob a constituição jacobina republicana, quando se deu a separação, por razões de economia. A separação foi confirmada pela Convenção, em 21 de fevereiro de 1795, quando se institui a liberdade de culto.

p. 75: “a guilhotina foi desenvolvida pelo médico e deputado Joseph-Ignace Guillotin”. Errado. A guilhotina, ou um engenho análogo chamado Hallifax Gibbet, já existia e era usada nas ilhas Britânicas desde 1280; outro, chamado Maiden (donzela), entrou em uso no século XVI, na Escócia. O que Guillotin, um médico humanitário e um homem preocupado em reduzir o sofrimento dos condenados nas execuções invitáveis fez, como deputado, foi propor esse engenho como a forma menos dolorosa de execução. Só isso. Dizem, seus biógrafos, que ele sofreu muito, até o fim de sua longa vida, ao ver o seu nome associado a esse instrumento.

p. 77: “Marat sofria de uma doença de pele que o obrigava a trabalhar durante o banho”. Desde quando trabalhar no banho cura dermatite? Marat sofria de uma dermatite, cujos sintomas se agravavam no verão, obrigando-o a ficar imerso, para suportar os efeitos (provavelmente coceiras intensas). Ele trabalhava, portanto, numa banheira, imerso em água. Só isso.

p. 119: “a proclamação da independência do Brasil aconteceu na cidade de São Paulo”. Desde quando o riacho Ipiranga, em 1822, começou a fazer parte da cidade de São Paulo?

p. 120: o autor confunde “guarda de honra” com a Guarda Imperial, os dragões da Independência. D Pedro I tinha uma guarda de honra formada por 35 fazendeiros, vestidos a paisana. O que não existiu no Grito do Ipiranga foi a Guarda Imperial com seu vistoso uniforme branco e capacete dourado.

p. 131: “em 1863 a escravidão foi abolida nos Estados Unidos”. Não foi. O que aconteceu foi a Proclamação de Emancipação, um ato unilateral, por razões militares tomado por Lincoln, contra o sul, que determinava a emancipação dos escravos nos territórios ocupados pelos exércitos da União. A abolição definitiva só aconteceu em 18 de dezembro de 1865, com a ratificação final da 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

Vol 9

p. 116: sobre a revolta do Contestado o autor diz “os moradores foram perseguidos pela polícia, pelos coronéis-fazendeiros e pelos empresários estrangeiros, com o apoio do governo federal”, e que “os últimos núcleos foram destruídos por 7 mil homens armados”. Esses homens armados, em sua grande maioria, eram tropas do exército e das polícias dos estados (Paraná e Santa Catarina), que têm de andar armados mesmo! Onde não erra é confuso.

p. 116: a definição de Cangaço é muito superficial e confusa. Eram “grupos” que se formavam no semiárido, e que “cangaceiros chefiados por Lampião viveram verdadeiras aventuras”, então os cangaceiros seriam como que grupos atrás de aventuras? É impressionante como um tema tão marcante e com um significado social tão profundo para o Nordeste e o Brasil, tenha sido tratado de forma tão banal, quase ridícula.

p. 120: sobre a Revolta da Chibata o autor diz: “em 9 de dezembro os marujos iniciaram outra rebelião”. Não é correto! A revolta do dia 9 foi iniciada pelo Batalhão Naval, os atuais fuzileiros navais, que são a infantaria da marinha, eles não são marujos nem tinham nada a ver com a revolta da Chibata de João Cândido. Inclusive João Cândido manobrou o Minas Gerais, e com ele bombardeou, o quanto pode, o Batalhão Naval, secundando as forças do governo. Mesmo assim a Marinha, ainda ressentida pelos acontecimentos da revolta, denunciou a João Cândido e o perseguiu enquanto viveu.

p. 122: “a Coluna Prestes, liderada por Luís Carlos Prestes”. A coluna pode até ser chamada de “Prestes”, mas Prestes nunca foi o comandante da coluna. O comandante da Coluna Prestes foi o Major Miguel Costa, da polícia de São Paulo, enquanto Prestes, capitão do exército, era chefe do Estado-Maior da coluna.

O que eu desejo com isso?
Primeiro, que se chame a atenção do funcionário ou funcionários do PNLD-MEC que aprovaram uma coleção tão precária para uso por nossas crianças, a fim de que tenham mais concentração na hora de ler e avaliar textos de livros didáticos, principalmente para o Ensino Fundamental público.
Que se suspenda o quanto antes a distribuição desse livro em território nacional, até que o autor faça os reparos adequados.
O MEC não pode associar-se a falhas como esta.

Em relação aos professores eu só espero que eles possam, um dia, trabalhar em paz, fazendo um trabalho digno da dureza de sua formação e regime de trabalho, e da natureza de sua atividade, nas suas salas de aula, sabendo que os outros profissionais, necessariamente incluídos no projeto de formar novas gerações, cumpra cada um o seu dever profissional com competência e interesse, e nós não precisemos ficar, nas férias correndo atrás do prejuízo por erros que não cometemos.

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Eis o resultado: dá para surpreender?