NICE (1543) OU O
AVESSO DA FRANÇA
Prof Eduardo
Simões
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__ Muita gente
deve ter ficado chocada com o atentado à cidade francesa de Nice, seja pelo
número de vítimas, seja pela forma brutal, inumana, como foram mortas aquelas
pessoas, seja pela reação bastante agressiva da multidão em relação ao
primeiro-ministro da França: Manuel Valls. Logo Nice, uma espécie de paraíso
mediterrâneo, a melhor expressão da arte francesa de bem viver, com um
magnífico calçadão à beira-mar, como em Copacabana, mas que não se permitiu
resvalar para a decadência da congênere tropical.
Porém, o que muitos no Brasil não sabem é que Nice nem sempre foi francesa, e
so recentemente a cidade passou para a guarda do pavilhão francês, não sem
antes ter sofrido uma de suas experiências mais traumáticas, justo pelas mãos
de franceses e de um povo muçulmano: os turcos.
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Por Museo Pietro Micca -
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__ Nice
pertencia originariamente ao Ducado da Saboia, um estado autônomo que durou de
1391 até 1860, quando suas terras foram divididas, por meio de plebiscitos, ente a França e a Itália. Vemos (acima) o
mapa do ducado, a área em laranja. Onde vemos Montmelian e Bard, a área azul
escuro, e a parte em que está escrito Nizza (Nice em italiano), passaram a
pertencer à França, o restante, a maior parte do ducado, disposto à direita da
linha marrom, passou a pertencer à Região (uma unidade político territorial
italiana com um estatuto semelhante aos estados do Brasil) do Piemonte. A
língua branca que se estende por baixo do ducado pertence à República de Gênova
(hoje região italiana da Ligúria), e nela
tem uma área em laranja com uma cidadezinha, Oneglia, que também
pertenceu ao ducado. Hoje ela é italiana. Entre Nice e a fronteira italiana
fica, hoje, um estado independente: o Principado do Mônaco. Em 1543,
entretanto, a cidade enfrentou um cerco inusitado.
__ Tudo
aconteceu como resultado do excessivo empoderamento do maior rival da França
pela hegemonia do continente no século XVI: a Espanha, cujo rei, Carlos I (1519-1556),
da família dos Habsburgos que reinavam na Áustria, assumiu a coroa do Sacro
Império Romano Germânico, com o título de Carlos V, e de uma só vez assenhorou-se
de vastas regiões no centro da Europa (Alemanha, Aústria e Balcãs e em geral) e
no Mediterrâneo (Itália e Espanha), justo no momento em que os navegantes
espanhóis acessavam minas de metais precisos estupendas na Américas. Ao rei
francês, Francisco I (1515-1547), um homem extremamente inquieto e realizador,
pareceu que se não fizesse alguma coisa a França seria engolida pelo colosso
espanhol. Era necessário detê-lo, e o campo de batalha primordial, na visão de
Francisco, deveria ser a Itália, cortando ou dificultando a comunicações entre o
setor oriental (Áustria) e o setor ocidental (Espanha), da parte europeia do
império mundial de Carlos V.
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__ Francisco
(acima), entretanto, não conseguiu ser um páreo a altura do poderio espanhol, e
após um início vitorioso foi fragorosamente derrotado e preso pelo rival na
batalha de Pavia, em 1525. Foi então que, mesmo preso, resolveu dar um passo que
escandalizou o mundo político da época, e que, de uma certa forma ainda causa
debates: ele buscou aliança com o sultão turco otomano Suleiman o Magnífico
(1520-1566), o mais encarniçado inimigo dos Habsburgos na região dos Balcãs –
os turcos são muçulmanos – e um grande tormento para as populações cristãs
daquela região, cujos vestígios e lembranças, de tão dolorosos, causaram, até
recentemente, guerras sangrentas e amargas: as chamadas Guerras Iugoslavas ou
Guerra Civil da Iugoslávia (1991-2001).
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__ Suleiman ficou
satisfeito com o pedido de aliança, que legitimava, por meio de um soberano
europeu de primeira grandeza, as suas pretensões no continente, e começou a pressionar Carlos V pela liberação
de Francisco I. Este, em troca, bom conhecedor que era da situação político
militar dos soberanos europeus, recomenda Suleiman a atacar o Reino da Hungria,
predominantemente católico, como a França e a Espanha. Os húngaros sofrem uma
derrota arrasadora em Mohács, 29/8/1526 (acima), na qual perece o jovem rei
Luis II, e a Hungria, com seus milhares de habitantes, experimenta uma dura
servidão por 170 anos. Esse foi o preço para viabilizar a aliança franco-turca.
__ Uma vez
livre, e após assinar tratados onde se compromete justo com o contrário do que
fará a seguir, Francisco I acorda com o sultão turco expedições de saque e
destruição ao longo da costa italiana e espanhola, oferecendo como suporte os
portos franceses do Mediterrâneo, além de fustigar territórios imperiais próximos
à fronteira francesa, entre eles a cidade de Nice, que fazia parte do Ducado as
Savoia, ligado ao Sacro Império. A ocasião mais propícia seria no verão de
1543.
__ No dia 5 de
agosto de 1543, a frota franco-turca, composta por 122 galés turcas, 40
galeotas, 4 barcaças e 22 galeras francesas assumiu posição frente à baía de
Nice. No dia 7 de agosto a milícia da cidade sai ao encontro da infantaria
turca, sendo facilmente repelida. Tem início ao fogo e contrafogo de canhões.
No dia 10 chegam as tropas francesas, e um assalto é tentado no dia 12, mas
fracassa.
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__ Em dia 15 de
agosto, após intenso bombardeio, um pedaço da muralha cai, e é imediatamente
assomado pela infantaria atacante. Um janízaro turco, mais audacioso, passa à
frente dos demais, e, de cima dos restos da muralha, agita a bandeira do
sultão, sem aperceber-se que dos sitiados sai uma mulher forte e raivosa, com
um porrete de madeira nas mãos, um batedor para limpeza de roupas grossas, que
se usava nas lavanderias da época, e com ele esmaga o crânio do turco e
rouba-lhe a bandeira (acima). Dando um novo ânimo aos nicenses, que conseguem
repelir o ataque.
__ Essa mulher,
segundo a tradição local, era Catherina Segurane ou Segurana (acima), também
conhecida como “Malafatta” (mal feita, feia), uma artesã-lavadeira, gente do
povo, com muito pouca finura a classe, a ponto de não só rasgar a bandeira
turca e esfrega-la em suas partes íntimas, por debaixo da saia, antes de
arremessá-la de volta aos turcos. Outros dizem que ela levantou a saia e
mostrou o traseiro para os turcos, que horrorizados com aquela demonstração de
despudor, ficaram sem ação e foram facilmente repelidos. A Joana D’Arc de Nice
era bem diferente da original e lutou pelo lado oposto.
__ De 15 a 22 de
agosto, o bombardeio por mar e por terra se intensificou, provocando mais duas
brechas na muralha, obrigando aos habitantes a se renderem, com uma condição:
se entregariam aos franceses, o que foi aceito, para desconsolo dos turcos, que
sonhavam em por as mãos em muitos escravos, embora eles também não tenham saído
de mãos abanando, uma vez que fizeram várias razias na zona rural de Nice e nos
territórios limítrofes, conseguindo capturar entre 500 e 2500 pessoas,
posteriormente levadas aos mercados de escravos (acima) do império.
__ Em 7 de
setembro, porém, ante a proximidade de um poderoso exército de socorro
saboiano-imperial, os atacantes optaram pela retirada, o que foi feito entre os
dias 8 e 9 de setembro, após o incêndio e o saque generalizado da cidade. As
tropas assaltantes se retiraram, e a frota turca retornou ao abrigo que
Francisco I lhe concedera em Toulon. As forças do Duque da Saboia, após a
chegada, fizeram mais obras defensivas, além de uma dura repressão àqueles que
apoiaram o ataque.
A invernada em Toulon
__ Para causar
ainda mais prejuízos a seu arqui-inimigo, Francisco instou para que a frota
turca ficasse abrigada em um porto francês, durante o inverno, para daí
realizar ataques contra as cidades costeiras italianas e espanholas, providenciando
alojamentos para Barba Ruiva, nobres e chefes turcos, além dos soldados, num
total de 30 mil pessoas. A cidade escolhida foi
o porto de Toulon.
__ Para abrigar
essa força a cidade teve que passar por algumas mudanças:
a) Todos os
cidadãos foram obrigados a se retirar da cidade, sob pena de morte, exceção
feita exclusivamente aos pais de família. Em troca, por essa amolação e
possíveis prejuízos, os habitantes ficaram livres de pagar a talha por dez
anos.
b) A catedral da
cidade foi transformada em mesquita.
c) A moeda turca
tinha curso forçado (era moeda obrigatória).
d) Nesse período
esteve em funcionamento, na cidade, um ativo mercado de escravos cristãos.
e) O governo
francês mantinha, com inusual cuidado, um pesado abastecimento de comida para os
turcos na cidade.
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__ Graças ao
abrigo em Toulon, os turcos puderam atacar e bombardear Barcelona, na Espanha,
San Remo, Borghetto, Santo Espirito e Cereale, na Itália, além de alguns
ataques bem-sucedidos à frota hispano-italiana, sem falar da incursão a Gênoca,
que permitiu aos turcos negociar a libertação de um de seus mais notáveis
piratas: Turgut Reis. Barba Ruiva gostou do lugar e simplesmente foi ficando,
cada vez mais espaçoso, começando a gerar algum estresse com os franceses. Por
fim, para se ver livre do incômodo aliado, Francisco teve de pagar a exorbitante
quantia de 800.000 escudos (mais de 20 milhões de dólares), se comprometer a
não punir piratas turcos com prisão nas galés, e assistir, impassível, ele
saquear 5 navios franceses que estavam no porto, na ocasião. Finalmente, no dia 23 de maio de 1544, ele
abandonou o porto de Toulon, que ainda serviria de abrigo para o citado Turgut
Reis, em uma de suas campanhas posteriores (acima, um modelo de galé de Barba Ruiva).
__ A caminho de Istambul,
a frota de Barba Ruiva ainda arrasou várias cidades da Sicilia, incorporando
mais uns 6 mil escravos europeus cristãos ao seu botim.
Rescaldo
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__ Nice nem
sempre foi francesa, aliás, só tardiamente foi tornou-se tal. A mudança foi
decorrente de uma aliança entre Napoleão III e Camilo Cavour, na qual o imperador
francês se comprometia e ajudar o rei da Sardenha e Piemonte a conquistar e
unificar a Itália, e em troca receberia o Ducado da Saboia e o Condado de Nice.
A situação foi regularizada após um plebiscito, que aconteceu nos dias 22 e 23
de abril de 1860. O resultados, confirmou as pretensões dos franceses; votaram
sim, 25.743 pessoas, não, 160, abstiveram-se, 4.779, além de 30 votos nulos.
__ A esmagadora
maioria em prol da anexação francesa, entretanto, não foi suficiente para
apagar as marcas de antigas pendências, inclusive do terrível cerco de 1543,
que deixou, como lembrança, várias esferas metálicas, balas, disparadas pelos
canhões turcos, espalhadas pelas ruínas da cidade. Uma dessas balas foi
preservada e afixada numa parede, num cruzamento de ruas em Nice (veja acima),
sendo que uma das ruas desse cruzamento se chama Catherine Segurane. Sob o artefato
pode-se ler o seguinte: “bala de canhão da frota turca, durante o cerco de
1543, onde a heroína de Nice, Catherine Segurane se destacou”.
__ A delicadeza
dessa situação transparece até hoje nos artigos da Wikipedia, onde os textos em
espanhol e italiano ressaltam a ação de Catherine e a possibilidade de sua
existência real, pois não há menção sobre ela fora esse episódio, o que é
estranho, sem falar aldeões aprisionadas pelos turcos e levadas para mercados
de escravos no Oriente, enquanto os verbetes em francês ressaltam que as tropas
francesas não deixaram os habitantes da cidade serem escravizados, o que é
verdade, sem se referir ao povo da zona rural, além de chamar a atenção para a
possibilidade de Catherine não passar de uma lenda local, o que também é
altamente provável.
__ Seja como for,
a aliança franco-turca, no contexto e na motivação em que ela teve início, o
ataque a Nice e a invernada em Toulon, são como que espinhos atravessados na
garganta, lembrados anualmente por movimentos independentistas, como o Nissa
Rebela (Nice Rebelde), numa marcha dedicada a Catherine Segurane, além de
outras reivindicações de caráter regionalista e antiemigraçionista, que devem
atingir um novo clímax após o grotesco atentado de 14 de julho.
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