terça-feira, 26 de julho de 2016

NICE (1543) OU O AVESSO DA FRANÇA

Prof Eduardo Simões

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__ Muita gente deve ter ficado chocada com o atentado à cidade francesa de Nice, seja pelo número de vítimas, seja pela forma brutal, inumana, como foram mortas aquelas pessoas, seja pela reação bastante agressiva da multidão em relação ao primeiro-ministro da França: Manuel Valls. Logo Nice, uma espécie de paraíso mediterrâneo, a melhor expressão da arte francesa de bem viver, com um magnífico calçadão à beira-mar, como em Copacabana, mas que não se permitiu resvalar para a decadência da  congênere tropical. Porém, o que muitos no Brasil não sabem é que Nice nem sempre foi francesa, e so recentemente a cidade passou para a guarda do pavilhão francês, não sem antes ter sofrido uma de suas experiências mais traumáticas, justo pelas mãos de franceses e de um povo muçulmano: os turcos.

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Por Museo Pietro Micca - http://www.museopietromicca.it/Mappa_inglese/La_guerra_inglese/la_guerra_inglese.html, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=37754135 

__ Nice pertencia originariamente ao Ducado da Saboia, um estado autônomo que durou de 1391 até 1860, quando suas terras foram divididas, por meio de plebiscitos,  ente a França e a Itália. Vemos (acima) o mapa do ducado, a área em laranja. Onde vemos Montmelian e Bard, a área azul escuro, e a parte em que está escrito Nizza (Nice em italiano), passaram a pertencer à França, o restante, a maior parte do ducado, disposto à direita da linha marrom, passou a pertencer à Região (uma unidade político territorial italiana com um estatuto semelhante aos estados do Brasil) do Piemonte. A língua branca que se estende por baixo do ducado pertence à República de Gênova (hoje região italiana da Ligúria), e nela  tem uma área em laranja com uma cidadezinha, Oneglia, que também pertenceu ao ducado. Hoje ela é italiana. Entre Nice e a fronteira italiana fica, hoje, um estado independente: o Principado do Mônaco. Em 1543, entretanto, a cidade enfrentou um cerco inusitado.
__ Tudo aconteceu como resultado do excessivo empoderamento do maior rival da França pela hegemonia do continente no século XVI: a Espanha, cujo rei, Carlos I (1519-1556), da família dos Habsburgos que reinavam na Áustria, assumiu a coroa do Sacro Império Romano Germânico, com o título de Carlos V, e de uma só vez assenhorou-se de vastas regiões no centro da Europa (Alemanha, Aústria e Balcãs e em geral) e no Mediterrâneo (Itália e Espanha), justo no momento em que os navegantes espanhóis acessavam minas de metais precisos estupendas na Américas. Ao rei francês, Francisco I (1515-1547), um homem extremamente inquieto e realizador, pareceu que se não fizesse alguma coisa a França seria engolida pelo colosso espanhol. Era necessário detê-lo, e o campo de batalha primordial, na visão de Francisco, deveria ser a Itália, cortando ou dificultando a comunicações entre o setor oriental (Áustria) e o setor ocidental (Espanha), da parte europeia do império mundial de Carlos V.

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__ Francisco (acima), entretanto, não conseguiu ser um páreo a altura do poderio espanhol, e após um início vitorioso foi fragorosamente derrotado e preso pelo rival na batalha de Pavia, em 1525. Foi então que, mesmo preso, resolveu dar um passo que escandalizou o mundo político da época, e que, de uma certa forma ainda causa debates: ele buscou aliança com o sultão turco otomano Suleiman o Magnífico (1520-1566), o mais encarniçado inimigo dos Habsburgos na região dos Balcãs – os turcos são muçulmanos – e um grande tormento para as populações cristãs daquela região, cujos vestígios e lembranças, de tão dolorosos, causaram, até recentemente, guerras sangrentas e amargas: as chamadas Guerras Iugoslavas ou Guerra Civil da Iugoslávia (1991-2001).

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__ Suleiman ficou satisfeito com o pedido de aliança, que legitimava, por meio de um soberano europeu de primeira grandeza, as suas pretensões no continente,  e começou a pressionar Carlos V pela liberação de Francisco I. Este, em troca, bom conhecedor que era da situação político militar dos soberanos europeus, recomenda Suleiman a atacar o Reino da Hungria, predominantemente católico, como a França e a Espanha. Os húngaros sofrem uma derrota arrasadora em Mohács, 29/8/1526 (acima), na qual perece o jovem rei Luis II, e a Hungria, com seus milhares de habitantes, experimenta uma dura servidão por 170 anos. Esse foi o preço para viabilizar a aliança franco-turca.
__ Uma vez livre, e após assinar tratados onde se compromete justo com o contrário do que fará a seguir, Francisco I acorda com o sultão turco expedições de saque e destruição ao longo da costa italiana e espanhola, oferecendo como suporte os portos franceses do Mediterrâneo, além de fustigar territórios imperiais próximos à fronteira francesa, entre eles a cidade de Nice, que fazia parte do Ducado as Savoia, ligado ao Sacro Império. A ocasião mais propícia seria no verão de 1543.
__ No dia 5 de agosto de 1543, a frota franco-turca, composta por 122 galés turcas, 40 galeotas, 4 barcaças e 22 galeras francesas assumiu posição frente à baía de Nice. No dia 7 de agosto a milícia da cidade sai ao encontro da infantaria turca, sendo facilmente repelida. Tem início ao fogo e contrafogo de canhões. No dia 10 chegam as tropas francesas, e um assalto é tentado no dia 12, mas fracassa.

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__ Em dia 15 de agosto, após intenso bombardeio, um pedaço da muralha cai, e é imediatamente assomado pela infantaria atacante. Um janízaro turco, mais audacioso, passa à frente dos demais, e, de cima dos restos da muralha, agita a bandeira do sultão, sem aperceber-se que dos sitiados sai uma mulher forte e raivosa, com um porrete de madeira nas mãos, um batedor para limpeza de roupas grossas, que se usava nas lavanderias da época, e com ele esmaga o crânio do turco e rouba-lhe a bandeira (acima). Dando um novo ânimo aos nicenses, que conseguem repelir o ataque.
__ Essa mulher, segundo a tradição local, era Catherina Segurane ou Segurana (acima), também conhecida como “Malafatta” (mal feita, feia), uma artesã-lavadeira, gente do povo, com muito pouca finura a classe, a ponto de não só rasgar a bandeira turca e esfrega-la em suas partes íntimas, por debaixo da saia, antes de arremessá-la de volta aos turcos. Outros dizem que ela levantou a saia e mostrou o traseiro para os turcos, que horrorizados com aquela demonstração de despudor, ficaram sem ação e foram facilmente repelidos. A Joana D’Arc de Nice era bem diferente da original e lutou pelo lado oposto.
__ De 15 a 22 de agosto, o bombardeio por mar e por terra se intensificou, provocando mais duas brechas na muralha, obrigando aos habitantes a se renderem, com uma condição: se entregariam aos franceses, o que foi aceito, para desconsolo dos turcos, que sonhavam em por as mãos em muitos escravos, embora eles também não tenham saído de mãos abanando, uma vez que fizeram várias razias na zona rural de Nice e nos territórios limítrofes, conseguindo capturar entre 500 e 2500 pessoas, posteriormente levadas aos mercados de escravos (acima) do império.
__ Em 7 de setembro, porém, ante a proximidade de um poderoso exército de socorro saboiano-imperial, os atacantes optaram pela retirada, o que foi feito entre os dias 8 e 9 de setembro, após o incêndio e o saque generalizado da cidade. As tropas assaltantes se retiraram, e a frota turca retornou ao abrigo que Francisco I lhe concedera em Toulon. As forças do Duque da Saboia, após a chegada, fizeram mais obras defensivas, além de uma dura repressão àqueles que apoiaram o ataque.

A invernada em Toulon
__ Para causar ainda mais prejuízos a seu arqui-inimigo, Francisco instou para que a frota turca ficasse abrigada em um porto francês, durante o inverno, para daí realizar ataques contra as cidades costeiras italianas e espanholas, providenciando alojamentos para Barba Ruiva, nobres e chefes turcos, além dos soldados, num total de 30 mil pessoas. A cidade escolhida foi  o porto de Toulon.
__ Para abrigar essa força a cidade teve que passar por algumas mudanças:
a) Todos os cidadãos foram obrigados a se retirar da cidade, sob pena de morte, exceção feita exclusivamente aos pais de família. Em troca, por essa amolação e possíveis prejuízos, os habitantes ficaram livres de pagar a talha por dez anos.
b) A catedral da cidade foi transformada em mesquita.
c) A moeda turca tinha curso forçado (era moeda obrigatória).
d) Nesse período esteve em funcionamento, na cidade, um ativo mercado de escravos cristãos.
e) O governo francês mantinha, com inusual cuidado, um pesado abastecimento de comida para os turcos na cidade.

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__ Graças ao abrigo em Toulon, os turcos puderam atacar e bombardear Barcelona, na Espanha, San Remo, Borghetto, Santo Espirito e Cereale, na Itália, além de alguns ataques bem-sucedidos à frota hispano-italiana, sem falar da incursão a Gênoca, que permitiu aos turcos negociar a libertação de um de seus mais notáveis piratas: Turgut Reis. Barba Ruiva gostou do lugar e simplesmente foi ficando, cada vez mais espaçoso, começando a gerar algum estresse com os franceses. Por fim, para se ver livre do incômodo aliado, Francisco teve de pagar a exorbitante quantia de 800.000 escudos (mais de 20 milhões de dólares), se comprometer a não punir piratas turcos com prisão nas galés, e assistir, impassível, ele saquear 5 navios franceses que estavam no porto, na ocasião.  Finalmente, no dia 23 de maio de 1544, ele abandonou o porto de Toulon, que ainda serviria de abrigo para o citado Turgut Reis, em uma de suas campanhas posteriores (acima, um modelo de galé de Barba Ruiva).
__ A caminho de Istambul, a frota de Barba Ruiva ainda arrasou várias cidades da Sicilia, incorporando mais uns 6 mil escravos europeus cristãos ao seu botim.

Rescaldo

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__ Nice nem sempre foi francesa, aliás, só tardiamente foi tornou-se tal. A mudança foi decorrente de uma aliança entre Napoleão III e Camilo Cavour, na qual o imperador francês se comprometia e ajudar o rei da Sardenha e Piemonte a conquistar e unificar a Itália, e em troca receberia o Ducado da Saboia e o Condado de Nice. A situação foi regularizada após um plebiscito, que aconteceu nos dias 22 e 23 de abril de 1860. O resultados, confirmou as pretensões dos franceses; votaram sim, 25.743 pessoas, não, 160, abstiveram-se, 4.779, além de 30 votos nulos.
__ A esmagadora maioria em prol da anexação francesa, entretanto, não foi suficiente para apagar as marcas de antigas pendências, inclusive do terrível cerco de 1543, que deixou, como lembrança, várias esferas metálicas, balas, disparadas pelos canhões turcos, espalhadas pelas ruínas da cidade. Uma dessas balas foi preservada e afixada numa parede, num cruzamento de ruas em Nice (veja acima), sendo que uma das ruas desse cruzamento se chama Catherine Segurane. Sob o artefato pode-se ler o seguinte: “bala de canhão da frota turca, durante o cerco de 1543, onde a heroína de Nice, Catherine Segurane se destacou”.
__ A delicadeza dessa situação transparece até hoje nos artigos da Wikipedia, onde os textos em espanhol e italiano ressaltam a ação de Catherine e a possibilidade de sua existência real, pois não há menção sobre ela fora esse episódio, o que é estranho, sem falar aldeões aprisionadas pelos turcos e levadas para mercados de escravos no Oriente, enquanto os verbetes em francês ressaltam que as tropas francesas não deixaram os habitantes da cidade serem escravizados, o que é verdade, sem se referir ao povo da zona rural, além de chamar a atenção para a possibilidade de Catherine não passar de uma lenda local, o que também é altamente provável.
__ Seja como for, a aliança franco-turca, no contexto e na motivação em que ela teve início, o ataque a Nice e a invernada em Toulon, são como que espinhos atravessados na garganta, lembrados anualmente por movimentos independentistas, como o Nissa Rebela (Nice Rebelde), numa marcha dedicada a Catherine Segurane, além de outras reivindicações de caráter regionalista e antiemigraçionista, que devem atingir um novo clímax após o grotesco atentado de 14 de julho.

        

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