sábado, 2 de julho de 2016

CANUDOS (1896-1897): PEQUENA HISTÓRIA DE UM GRANDE MASSACRE - 3

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos de Brasil, Alemanha França, EUA, Quenia, Indonésia, Portugal, Índia, Espanha Romênia e Ucrânia. Deus os abençoe

O começo do fim

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/68/Luis_Vianna.jpg
Por A_Patria_Brazileira.djvu: Virgílio Cardoso de Oliveira - http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/98/A_Patria_Brazileira.djvu/page221-646px-A_Patria_Brazileira.djvu.jpg, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=27851895

__ O recém-eleito governador Luiz Vianna (acima) sabia que pisava em ovos. Há um bom tempo que articulistas de jornais da capital faziam campanha cerrada a respeito de Antonio conselheiro e seu grupo de “fanáticos” e “ignorantes”, divergindo apenas na forma como abordar o “problema”: uns defendendo o uso da força bruta, enquanto outros reivindicavam meios mais brandos e, porque não dizê-lo, civilizados, em virtude da natureza do caso. Seja como for, no início de 1896 a imagem do profeta dos sertões estava bem denegrida para a classe média baiana.
__ Os correligionários do governador, no sertão de Canudos, por sua vez, lembravam-lhe das vantagens advindas dos choques constantes da gente do Conselheiro com o Barão de Jeremoabo, partidário da corrente oposicionista a Vianna, os gonçalvistas, e, aparentemente procuravam manter relações cordiais com Belo Monte, para desespero do Barão: “O Barão de Jeremoabo... acusa o governador de adotar a tática de “não vencer os fanáticos, mas dispersá-los para que em bandos, arrasassem e destruíssem as fazendas e propriedades dos adversários” (Jornal de Notícias, 4 de março de 1897...)” (1).

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibxTNAFTdeSsZsfxBvo9t4zVJU1MK7OT1Uzozm73dtvxoCWqbygExxWj0eEE9-MCKIUAMgzyCd09whuZPIOAwugdbOQkcuAJlRvEGpgm55AahkTmDAalZrwskxAnhsEPHROGPCLrfYPLc/s1600/MOJOR+SOLON.jpg
http://saberclopedia.blogspot.com.br/

__ No dia 29 de outubro de 1896 o governador recebe um telegrama urgente do juiz Arlindo Batista Leoni, de Juazeiro, pedindo ajuda para conter uma invasão eminente de seu município pela gente do Conselheiro. O governador, entretanto, é cauteloso: “respondi-lhe que não podia mover força induzido por simples boato, e recomendei-o, entretanto, que mandasse vigiar as estradas... Poucos dias depois [4 de novembro] recebi eu, daquele magistrado, um telegrama, em que me afirmava estarem os sequazes de Antonio Conselheiro distante a apenas dois dias de viagem do Juazeiro, pouco mais ou menos” (Vianna). O governador resolve agir e em conluio co o Comandante do 3º Distrito Militar, de Salvador, remete de trem , para Juazeiro, 104 praças e 3 oficiais do 9º Batalhão de Infantaria, sob o comando do tenente Manuel da Silva Pires Ferreira – comandava o 3º Distrito o general Frederico Solón Sampaio Ribeiro, o mesmo que entregou a Pedro II a mensagem intimando-o a deixar o Brasil (acima), e sogro de Euclides da Cunha. O 9º chegou naquele mesmo dia a Juazeiro, onde encontrou uma situação de medo e boataria generalizados, que só fez piorar após a chegada de uma força tão diminuta. Várias famílias começaram a deixar a cidade.

Prelúdio em Uauá

__ Afinal o que acontecera para que o juiz Arlindo Leoni enviasse telegramas tão alarmistas ao Governador? Segundo uns, Conselheiro mandara comprar uma partida de boa madeira, para finalizar a construção da capela do Bom Jesus, numa serraria em Juazeiro, paga antecipadamente, e corria o boato que o dono da serraria dera um calote, e não fazia a entrega da madeira nem devolvia o dinheiro ao Conselheiro, e que este, cheio de ira, prometeu que iria a Juazeiro pegar aquela madeira de um jeito ou de outro.
__ Segundo outros, ante a dificuldade de transporte de tanta madeira até Canudos-Belo Monte, Antonio Conselheiro dispôs que sua gente fosse, pacificamente, fosse até a cidade pegar a encomenda já paga; o problema é que, devidos os boatos mais extravagantes espalhados pela imprensa e pelos inimigos do Conselheiro, a possibilidade de entrada na cidade daquela gente encheu o povo de um medo infundado, e, tomados de pânico começaram a exigir providências antecipadas graves e a abandonar a cidade. O papel do juiz Leoni no episódio é suspeito, e, até onde eu saiba, nunca foi esclarecido, embora ele só tenha morrido em 1936, na cidade do Rio de Janeiro, o que torna muito provável a possibilidade de que sentimentos menores, como ciúme, vingança, tenham dirigido as ações que principiaram essa grande tragédia.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjkaIkXAtH0K7pj0GRIWUBFt6Ayhsb4QOr041hDXIKga6V5CqF2LEy1OwffkL7qBHWs8bOb0DBPnDlX25bwzrziJK01sKT7zKADrErZ9630nCDQhKIVxoXHYUAG-bwJFGw4zvZumJhoytEj/s1600/Foto+-+Canudos+12.jpg
http://cangaconabahia.blogspot.com.br/

__ Ao chegar a Juazeiro o tenente Pires Ferreira (acima) resolve, junto com as autoridades locais, prováveis correligionários de Jeremoabo ou outros gonçalvistas, a revelia do Governador e do Comando do Exército, assaltar Canudos. Houve dificuldades em arrumar provisões e guias, mas a expedição partiu à noitinha do dia 12 de novembro, para evitar a manhã do dia seguinte, 13, que era dia aziago – Euclides faz um comentário irônico: “e iam combater o fanatismo!” (Cunha, Wiki). Andando pelo agreste semiárido chegaram à localidade de Uauá, a 333 km de Canudos, vilarejo com uma centena de casebres, na manhã do dia 19, seis dias depois, e resolveram se refazer aí – ou seja, a informação constante no telegrama de Leoni ao governador, de que os conselheiristas estariam há dois dias de Juazeiro, era falsa.
__ A população recebeu a força com supresa e curiosidade, mas na manhã do dia seguinte, todos tinham desaparecido, até os doentes, fugindo durante a madrugada para Canudos, avisando aos conselheiristas da surpesa que se lhes preparava. Agora, talvez, o tenente atinasse porque não conseguira dos habitantes de Uauá, por mais que tentasse, qualquer informação consistente sobre Canudos, mas, descansado, não deu importância, e resolveu pernoitar em Uauá mais uma vez, imaginando em surpreender o inimigo no dia seguinte...
__ Ele é que foi surpreendido. Na madrugada de 21, as sentinelas dormiam profundamente, quando foram despertados pelos conselheiristas, homens e mulheres, que se aproximavam, pacificamente, cantando ladainhas, como que em procissão, da cidade. Atordoadas as sentinelas abriram fogo, matando alguns, o que gerou uma reação furiosa daqueles, que partiram para cima, enquanto as sentinelas corriam para dentro da cidade, deixando para trás um camarada retalhado a corte de facão. Na vilinha, o restante da tropa, desperto, entrou precariamente em ação, alguns só com a roupa de baixo, sem qualquer ordem de batalha, cada um por si, tentando deter, uma após a outra, as vagas de jagunços que avançavam indiferentes às mortes e às cargas fuzis de repetição. Estes salvaram o dia da tropa (2), obrigando os conselheiristas a abandonar o campo de batalha, em ordem e sem pressa.
__ Assustados com a violência do combate, os soldados aproveitaram a sua vitória para contar as baixas – 150 conselheiristas e 10 soldados mortos e mais 16 militares feridos – sepultar às pressas seus companheiros e se retirar depressa, levando, como a um estorvo, além dos camaradas feridos, o médico da tropa, que enlouquecera durante a refrega. Parecia uma fuga... (3).
__ À volta de Uauá correu um boato, dentro do Belo Monte, que um negociante local, Antonio da Mota, teria passado informações aos soldados. Imediatamente o Estado-Maior do Conselheiro juntou uma turba e acercou-se da casa de Mota. Ele tentou resistir, de arma nas mãos, junto com a sua família, mas foram todos mortos, e os corpos incinerados com o que sobrou de sua casa.

O exército assume

__ A notícia da “vitória” em Uauá comprometeu seriamente as relações do Comandante do 3º distrito com o Governador, afinal ele deveria relatar aos seus superiores no Rio de Janeiro a situação desnecessariamente humilhante a que fora submetida uma tropa do exército. Solón se justifica, não sem irritação, que mandara tropa tão diminuta confiado nos relatos do governador que afirmara serem suficientes os homens mandados. A verdade é que o governador pensara-os estacionados em Juazeiro, para defenderem a cidade de um possível ataque, e não arremetendo contra o arraial. Os maiores responsáveis pelo desastre: o tenente Ferreira, os políticos de Juazeiro e o juiz Leoni, foram esquecidos na guerra de ciúmes e sentimentos de inferioridade que marcaram as relações entre o Exército Federal e o Poder Estadual na Bahia, nessa ocasião. O exercito, tomando o episódio de Uauá como uma questão de “honra”, começará a agir a revelia do Governador, pensando em dar uma resposta “pessoal”, como numa “vingança”, e a situação começa a sair de controle, e desenha-se uma temida intervenção federal.
__ O descompasso entre o governador e o exército se aprofunda na segunda expedição a Canudos, quase toda preparada a revelia do governador, que continuava a diminuir a periculosidade dos jagunços, enquanto os militares se preparavam febris, ansiosos por vingar Uauá – nesse momento Euclides da Cunha, em Os sertões, denuncia os “interesses inconfessáveis de uma falsa política”, que nós, brasileiros, conhecemos muito bem, mas, precavidamente, não aprofunda nem cita nomes. No final venceu a força maior, e ficou acertada a intervenção federal na Bahia, com as operações contra Canudos sendo dirigidas diretamente pelo Ministro da Guerra, general Francisco de Paula Argolo, para desgosto de Vianna.

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/04/Febronio_de_Brito.jpg
Por A_Patria_Brazileira.djvu: Virgílio Cardoso de Oliveira - http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/98/A_Patria_Brazileira.djvu/page222-646px-A_Patria_Brazileira.djvu.jpg, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=27851894

__ A segunda expedição, comandada pelo major Febrôno de Brito (acima), era formada inicialmente poir 100 soldados e 8 oficiais do 9º Batalhão de Infantaria, além de 100 praças e 3 oficiais de um batalhão de polícia, partindo no dia 25 de novembro para Queimadas, a 195 km de Canudos-Belo Monte, e lá estacionou a espera de reforços. A esses se juntaram mais tarde 4 metralhadoras Nordenfeldt, 2 canhões Krupp de campanha, 100 soldados do 26º de Aracaju e mais 150 do 33º de Alagoas. Em dezembro Brito, após muitas dificuldades em juntar informações sobre pontos de apoio e guias, partiu com um grupo de 243 soldados para Monte Santo, a 56 km de Canudos-Belo Monte. Nesse ínterim, o chegaram mais 100 soldados de Salvador.
__ Quando Febrônio chegou a Monte Santo, a questão da intervenção federal no estado chegara ao seu auge, paralisando as operações, foi necessário a derribada do comandante do 3º Distrito: Frederico Solón, um prêmio de consolo ao derrotado, Luiz Vianna, para que o governador, aceitasse a intervenção federal parcial no Estado e aquiescesse com a participação de tropas e suporte estaduais contra os. Perdera-se tempo valioso, “num raio de três léguas em roda de Canudos fizera-se deserto... os escombros carbonizados de fazendas e dos pousos avultavam, insulando num grande círculo... de ruínas” (Cunha).
__ A 29 de dezembro chegou a Monte Santo, com uns 15.730 habitantes (1890), a coluna de Brito, composta por 543 soldados, 14 oficiais e 3 médicos, sendo 343 do exército e o restante da polícia. Acompanhava-os 2 krupps, com obuses de 7 ½ cm, e duas metralhadoras Nordenfeldt, sendo recebida com grandes festas, pelo povo da cidade, entre eles numerosos espias de Antonio Conselheiro, sempre a perguntar sobre o alcance das armas e o número de soldados, etc. para desaparecer em seguida, deixando para trás as comemorações pela vitória antecipada.
__ Na pressa de entrar em ação, Brito deixara em Queimadas, a maior grande parte da munição, com cada soldado levando apenas o que coubesse nas patronas, entretanto a aspereza do terreno, sobrecarregou-o de dificuldades, e ele acabou demorando muito em Monte Santo, dando bastante tempo para os conselheiristas se prepararem. De Monte Santo a coluna partiu, 15 dias depois da chegada, levando menos recursos ainda, dando crédito a toda sorte de boatos e especulações otimistas, que diziam ser os jagunços em número muito reduzidos, e estes já deviam estar correndo pelas caatingas, com medo do enfrentar força tão poderosa. O espírito era de “já ganhou!”
__ A coluna partiu no dia 12 de janeiro de 1897 em direção a Canudos, tomaram a estrada do Cambaio, muito acidentada, o que complicava o deslocamento da artilharia. Mais demora! No dia 17 ainda estavam em marcha, quando a falta comida se acentua. Agora precisavam tomar Canudos para não morrerem de fome. Carretos de mantimentos, comprados em Monte Santo, chegavam incompletos ou se extraviavam. Em 18 de janeiro, Canudos-Belo Monte estava apenas a duas léguas, quando a coluna, avançando sobre um desfiladeiro, enfrentou um repentino ataque de conselheiristas, que, descendo as encostas, arremeteram contra a tropa. Esta, por pouco não se desfez a coluna, salva pelos gritos e a presença de espírito do comandante, além de tiros de canhão, disparados a queima roupa sobre os atacantes, estonteando-os. O 33º contra-atacou, escorraçando o adversário, e o resto da tropa seguiu atrás na mais absurda desordem, cada um por si! No tiroteio os animais que puxavam o trem da artilharia debandaram, com os tropeiros correndo atrás, mas a morte do líder, João Grande, que investiu contra um canhão e recebeu um obus certeiro, os jagunços se retiram, enquanto os soldados, entre excitados e assustados, atiram a esmo, desperdiçando a escassa munição. Os canhões, agora, devem ser empurrados. O preço da vitória foi de 4 mortos e mais de vinte feridos, contra 115 jagunços mortos.
__ No dia seguinte, estando a coluna acampada às margens da Lagoa do Cipó, um obus trava na culatra do canhão. Má qualidade da munição? E os artilheiros resolvem libera-la com um disparo na provável direção de Canudos. Mas foi só haver o disparo que, imediatamente, uma multidão de uns 700 conselheiristas, saídos com que de dentro da terra, aos berros, se atirou de peito aberto contra a coluna, levando uma saraiva concentrada e organizada de balas, que causou muitas baixas, mas que não não foi suficiente para evitar o selvagem corpo a corpo que se seguiu, durante o qual quase se perdeu a artilharia, salva pela intervenção pessoal do comandante. Os conselheiristas, não conseguindo quebrar a ordem de batalha da tropa, retiram-se. Segundo Cunha, Canudos entra em pânico, e o Conselheiro se isola na torre da igreja nova. Porém, os soldados estavam com fome, esgotados e sem munição. Só restaram 20 tiros de canhão! Por isso, apesar da vitória, do número relativamente pequeno de baixas, 4 mortos e mais de trinta feridos, contra 300 dos conselheiristas, a coluna teve de recuar por falta de condições de avançar.
__ Canudos recebeu a notícia em festa. Mais um milagre do Conselheiro! E de lá partiu o mestre de guerrilhas, Pajeú, com a missão de fustigar a tropa à distância, de tal sorte que quando esta chegou á localidade de Bendengó-de-Baixo, já era 70 o número de feridos. Aí os jagunços tentaram mais uma vez se apoderar da artilharia, mas o fogo cerrado das metralhadoras os fez recuar, deixando 20 cadáveres. Assim descreve Cunha o retorno da tropa a Monte Santo: “Não havia um homem válido. Aqueles mesmos que carregavam os companheiros sucumbidos claudicavam, a cada passo, com os pés sangrando, varados de espinhos e cortados pelas pedras. Cobertos de chapéus de palha grosseiros, fardas em trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a nudez com os capotes em pedaços, mal alinhando-se em simulacro de formatura, entraram pelo arraial lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria. A população recebeu-os em silêncio”.
__ O resultado dessa expedição foi, decerto, muito desmoralizante, mas nada comparado ao desastre que lhe seguiria

http://www.matta.pro.br/rpgdigital/canudos/wp-content/uploads/sites/3/2015/08/mapa-canudos-2.jpg
http://www.matta.pro.br/

A rota das duas expedições. Roxa, a de Pires Ferreira, vermelha, a de Febrônio de Brito

Notas
(1) É um erro, creio eu, afirmar, como uns fazem alguns, que a mensagem do Conselheiro era “revolucionária”, “classista”, e como tal foi percebida pelos grandes proprietários, que apoiaram em bloco a destruição de Canudos-Belo Monte, quando várias notícias, algumas registradas por Cunha-Blaj, Novais, Wikipedia em francês, etc., mostram que havia um comércio regular e muito lucrativo entre os conselheiristas e proprietários pequenos, médios e grandes das redondezas. Canudos não precisa de modelos fora, além daquilo que normalmente se percebe na evolução de muncipios do semiárido para se explicar.
(2) Euclides da Cunha, que faz um relato vívido, cevado de muitas observações inteligentes e irônicas desse episódio, em Os sertões, acredita que a cadência muito rápida de tiro, dos modernos fuzis da tropa, soprepujando as antigas espingardas, clavinotes e bacamartes, municiados pela boca dos jagunços, impediu o completo massacre dos soldados, que estavam completamente desarvorados.
(3) Moita afirma que o relatório do tenente Ferreira sobre o episódio foi desabonador para a intendência do exército: os fuzis esquentavam demais (modelo feito na Europa não adaptado ao uso no tórrido semiárido), fardas que se despedaçavam, sapatos que não suportavam a marcha naquele terreno e se desfaziam sob os pés dos soldados – imagine-se o que é marchar desprotegido na terra fervente, no solo pedregoso e espinhoso da caatinga – os soldados dormiam ao relento, por falta de barracas! Nada disso, entretanto, foi acolhido, e os soldados das expedições seguintes enfrentaram os mesmos problemas.
É curioso que o General Paulo Duarte descreva essa mesma escandalosa falta de recursos, no seu livro Os Voluntários da Pátrias na Guerra do Paraguai, quando da partida do 26º Corpo de Voluntários da Pátria, para o front, onde essa unidade militar vivenciou o dramático episódio da Retirada de Laguna, denunciando que o exército não assimilara nada a esse respeito, nos 30 anos que separam os dois acontecimentos.

Anexo: Relato do tenente Pires Ferreira, copiado de cangaconabahia.blogspot. com.br

 Relatório do Tenente Pires Vieira - Comandante da I Expedição Contra Canudos.
.

"Combate de Uauá – Logo que chegamos ao arraial, no dia dezenove, mandei estabelecer o serviço de segurança, postando guardas avançadas nas quatro estradas que ali conduzem em distancia conveniente, afim de evitar qualquer surpreza; nomeei o pessoal de ronda, e conservei toda a força no acantonamento. O dia vinte passou-se sem nenhum incidente notavel, a não ser o abandona do arraial à noite, e furtivamente, por quase todos os habitantes. Das informações que colhi consta que assim procederam com receio da gente do Antonio Conselheiro. Inclino-me, porém, a crer que se achavam mancommunados com esta para atraiçoarem a força publica, como o fizeram, pois que até os poucos que ficaram no arraial não foram offendidos pelos bandidos, e garantiram-me antes do combate que ali não havia fanaticos, nem adeptos do Antonio Conselheiro; que este e o seu povo se achavam em Canudos, de onde não sahiriam, não obstante terem elles a certeza quando isso me affirmaram de que os mencionados bandidos se achavam a quatro léguas de distancia, dirigidos por Quimquim Coyam, e viram atacar a força na madrugada do dia immediato.
A’s cinco horas da manhã do dia vinte e um, fomos surprehendidos por um tiroteio partido da guarda avançada, colocada na estrada que vae ter a Canudos. Esta guarda, tendo sido atacada por uma multidão enorme de bandidos fanaticos, reistiu-lhes denodamente, fazendo fogo em retirada. Por essa occasião o soldado da segunda companhia Theotonio Pereira Bacellar, que por se achar muito estropeado não poude acomlpanhar, a guarda foi degolado por um bandido. Immediatamente, dispuz a força para a defensiva, fazendo collocar em distancia conveniente do acantonamento uma linha de atiradores, que causou logo enormes claros nas fileiras dos bandidos.
Estes, não obstante, avançaram sempre, fazendo fogo, aos gritos de viva o nosso Bom Jesus! Viva o nosso Conselheiro! Viva a monarchia! etc., etc., etc, chegando até alguns a tentarem cortar a facão os nossos soldados. Um delles trazia alçada uma grande cruz de madeira, e muitos outros traziam imagens de sanctos em vultos. Avançaram e brigaram com incrivel ferocidade, servindo-se de apitos para execução de seus movimentos e manobras. Pelo grande numero que apresentaram foram por algumas praças calculados em tros mil! Há, porém, nisso exagero, proveniente de erro de apreciação; seriam uns quinhentos, mais ou menos, os que nos atacara, divididos em varios grupos, que procuravam envolver a nossa força e apoderar-se do arraial, o que não conseguiram devido às energicas providencias que tomei, effecazmente auxiliado pelos officiaes e a disciplina das praças. Conseguiu, entretanto, grande numero delles, apoderar-se de algumas casas abandonadas, que se achavam desguarnecidas por insufficiencia da força e de onde nos fizeram algum mal, mas, sendo necessario incendiar as dictas casas, afim de desalogja-los, o que conseguimos depois de alguma trabalho.
Chegados a esta phase do combate, depois de mais de quatro horas de luta, conhecendo que elles já se achavam desmoralizados, pela dificuldade com que respondiam, ao nosso fogo, e porque já tentavam fugir, passei a tomar a offensiva, e fiz perseguil-os até meia legua de distancia, morrendo muitos delles nessa occasião, e ficando o resto completamente desbaratado. Não levei mais longe a perseguição e mandei toca a retirar, por constar-me, achar-se um grande reforço delles um pouco adiante, e por estar a nossa gente cançada e sem alimentar-se desde a véspera. Além disso cumpria-me reunir os elementos que me restavam, afim de resistir a uma nova aggressão que porventura se desse. Seria pouco mais ou menos meio dia, quando terminou essa luta, com o regresso de nossas praças ao acantonamento, sem que durante a perseguição tivesse soffrido prejuízo algum. Na phase mais aguda do combate, houve fogo incessante e renhido de parte à parte, durante mais de quatro horas. Todos os officiaes, inferiores e praças portarem-se nessa emergência com um heroísmo e uma disciplina sem par, o que muito concorreu para seu bom exito, faltando-me palavras com que possa exprimir o procedimento nobre, correcto e enthusiasmador de que deram exhuberantes provas, honrando assim a corporação a que pertencemos.
Os inimigos deixaram no campo e dentro das casas que occupavam mais de cento e cincoenta cadaveres, sendo incalculavel o numero de feridos que tiveram e dos que foram morrer pela estrada, ou dentro das catingas. As nossas perdas foram aliás insignificantes quanto ao numero, sendo, porém, dolorosamente sensíveis e lamentaveis, por terem sido victimados pelas balas dos bandidos o distincto e temerario alferes Carlos Augusto Coelho dos Santos, o bom e destemido segundo sargento Hemeterio Pereira dos Santos Bahia, os valorosos cabo de esquadra Manoel Francisco de Souza, anspeçada Antonio Joaquim do Bomfim, soldados Herculano Ferreira de Araujo, Victorino José dos Santos e João Chrysostomo de Abreu, além do já mencionado Bacellar, que foi degollado no começo da ação, tendo sido assim a primeira victima. Ficaram feridos: gravemente - cabos de esquadra Cesario João dos Santos, Manoel Antonio do Nascimento, Pedro Leão Mendes de Aguiar, anspeçadas Tiburtino de Oliveira Lima, Minervino Bello da Cruz, soldados José Antonio Moreira, Casemiro de Freitas Passos, João Ferreira de Pinho e Virgilio Manoel dos Reis; levemente - cabos de esquadra Athanazio Felix de Sant'Anna e Salustiano Alves de Oliveira, anspeçadas João Evangelista de Lima e Raphael Pereira Cardoso, soldados - Antonio Bispo de Oliveira e Feliciano José dos Santos. Faleceram, tambem na luta, os paisanos Pedro Francisco de Moraes e seu filho João Baptista de Moraes, que nos serviam de guias, e que se portaram com galhardia na ocasião do combate, juntando-se à força e enfrentando os bandidos. Eram ambos casados e deixaram familia sem recursos. Perdemos, portanto, um oficial, um inferior, um cabo de esquadra, um anspeçada e quatro soldados, que com os dois paisanos guias dão um total de dez homens mortos no referido combate. Me cumpre ainda notar que alguns casos de morte se deram por excessos de bravura, praticados pelas victimas que se expunham sem necessidade ás balas do inimigo. Os cadaveres do official e das praças foram cuidadosamente sepultados na capella do arraial, os dos bandidos ficaram insepultos por não dispormos de tempo, pessoal, nem dos instrumentos necessarios para o enterramento delles. Fomos forçados a retirar para Joaseiro, na tarde do mesmo dia do combate, não só para evitar o mal que poderia advir da decomposição de tantos corpos, como tambem pela falta de viveres e outros recursos em Uauá.
Os bandidos estavam armados em grande parte com carabinas Comblain e Chuchu, outros tinham bacamartes, garruchas e pistolas, e quasi todos traziam, além das armas de fogo, grandes facões, foices e machados. O dr. Antonio Alves dos Sanctos, medico adjunto do exercito, que acompanhou a força, prestou -reas serviços durante o combate, tratando as praças feridas com interresse e desvelo, mostrando-se na altura da humanitaria missão que lhe fôra confiada; tendo, porém, depois de terminada a luta apresentado symptomas de desaranjo mental, entreguei os feridos logo que cheguei ao Joaseiro aos cuidados do facultativo civil dr. Antonio Rodrigues da Cunha Melo, que se encarregou do tratamento, fazendo-o com dedicação, solicitude e interesse, operando até algumas praças, no que foi auxiliado pelo cirurgião dentista Brigido Pimentel, que muito se prestou durante alguns dias com incansavel zelo.
Armamento
Fuzil Mannlicher, de que se acha ainda armado o batalhão, comquanto seja de repetição e de grande alcance, com seu projectil dotado de uma força de penetração extraordinaria, e dando ao tiro uma justeza admiravel, comtudo não compensa com essas bôas qualidades, alliadas a muitas outras que possui, o prejuizo resultante da extrema delicadeza de seu mecanismo que facilmente se estraga, ficando o fuzil reduzido a simples arma branca, quando adaptado no extremo do cano o componente sabre-punhal. Basta um pouco de poeira ou um simples grão de areia, introduzido na camara, para que não possa o ferrolho funccionar. Acontece, além disso, que com o fogo um pouco prolongado os carregadores não podem entrar no deposito com o numero de cartuchos regulamentar, dilata-se o aço do cano que, aumentado de diametro, difficulta a introducção dos cartuchos para o tiro simples, não podendo a arma funccionar como as de repetição. Dahi um grande numero de armas incapazes para o seu mister na ocasião opportuna, como aconteceu no combate em que tive de tomal-as das mãos das praças, afim de ver si conseguia fazel-as funccionar, sendo infructiferos todos os esforços nesse sentido. Mesmo em muitas das armas que funccionavam, o extractor, peça de grande delicadeza, perdia a necessaria justeza e enfraquacia a móla, deixava de extrahir o cartucho, que tinha de ser extraido á mão, o que prejudicou a rapidez do tiro. Esse armamento não convém ao nosso exercito, por não dispor ainda este de meios de transporte facil, rapido e commodo, de que dispoem os exercitos europeus; não merece a confiança dos officiaes, nem das praças que delles se utilizam, por não poderem contar, com segurança, com seus bons effeitos numa emergencia qualquer. Não obstante os assiduos cuidados que tive pela boa conservação do armamento das praças, pois que como é intuitivo do estado delle dependeria, em grande parte, em uma dada circumstancia, a victoria ou derrota de nossa força, ainda assim tive o desprazer de observar o que venham de referir. Durante o combate muitas armas flcaram tambem inutilizadas por outros motivos, umas perderam os respectivos ferrolhos que saltaram com a violencia do choque na defesa á arma branca, outras tiveram as coronhas partidas a talho de fação ou por balas; algumas ficaram com a camisa do cano inutilisada por bala, muitas seus sabres punhais, e ainda outras com os depositos arrebentados. A poeira e as escabrosidades das estradas, o calor de um sol abrasador e insupportavel, as condições em que foram feitas as marchas, sem commodidade de ordem alguma, tudo isso, frustrando os meus previdentes cuidados, deram o resultado acima apontado. Acontece ainda que essas armas que serviram na campanha de S. Paulo e Paraná, em mil oitocentos e noventa e quatro, já se achavam bastante usadas, tendo a mór parte dellas soffrido concertos. Outras fossem as condições de resistencia e solidez de seu mecanismo, e melhor teria sido o resultado obtido na luta.
Fardamento
O das praças que compuzeram a força de meu commando ficou bastante estragado, em estado mesmo de não poder continuar a servir, devido a acção dos raios solares, da chuva e da poeira, e ainda do uso constante que delle fizeram, por necessidade, pois que não só marchavam, como dormiam com elle, á noite, sobre o solo nú e barrento das estradas, pela falta de barracas; e também pela necessidade de conservar-se a força sempre em armas em sitios cuja topographia nos era desconhecida, e onde não podiamos fiar em informações adrede preparadas, com o intuito de nos illudir. Muitas praça tiveram ainda algumas peças de seus uniformes, perdidas por completamente inutilizadas, como fossem tunicas de flanella cinzenta e calça de panno garance, rasgadas pelos galhos das arvores e espinhos das picadas, estrada, etc. Algumas perderam na marcha as gravatas de couro, ourtas tiveram no combate os gorros e os capotes crivados de balas ou cutilados a facão, em farrapos e ensanguentados. Ainda outros perderam os gôrros, levados pelas balas. O calçado incapaz de resistir a uma marcha tão longa, e por tão maus caminhos, estragou-se, ficando um grande numero de praças descalças.
Disciplina
Foi mantida em toda sua plenitude, sem que tivessem havido, infracção alguma digna de nota, durante todo o periodo de meu commando. 
Quartel da Palma, na Bahia, 10 de dezembro de 1896 - Manuel da Silva Pires Ferreira, tenente.
"

(Apud Aristides Milton, 1902, p.35)

Bibliografia
Benício, Manuel; O rei dos jagunços – Chronica historica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos; Jornal do Commercio; 1899; Rio de Janeiro. PDF
Calasans, José; Antonio conselheiro e os escravos; PDF (1)
_____    ; A vida de Antonio Vicente Mendes Maciel (1830-1897); PDF (2)
_____    ; No tempo de Antonio Conselheiro: figuras e fatos da campanha de Canudos – coletânea de textos do autor; PDF (3)
_______ ; Relatório de Frei João Evangelista; PDF (4)
Câmara, Fernando; Conselheiro e o Centenário de Canudos – palestra pronunciada na Federação das Associações Comunitárias de Quixeramobim, no dia 22 de outubro de 1993, durante a 1ª semana comunitária em homenagem à instalação de Canudos; 1993; PDF
_____  ; Carta Mensal do Colegio Brasileiro de Genealogia, Genealogia de Antonio Conselheiro, ano VIII, Nº 46, out-dez de 1997; PDF
Cunha, Cândida P. da – Blaj, Ilana; A urbanização em Canudos ocmo decorrência da necessidade de defesa; Anais do VII Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História – A cidade e a história; vol I; Revista de História; São Paulo; 1974; PDF
Cunha, Euclides da; Os sertões; Wikisource (online)
Dobroruka, Vicente; Antonio Conselheiro o profeta do sertão; PDF
Facó, Rui; Cangaceiros e fanáticos – gênese e lutas; PDF
Galvão, Walnice N.; Viver e morrer em Belo Monte; Revista de História da Biblioteca Nacional; 1/12/2014; online
Moita, Sandro T.; Todos perdemos; Revista de História da Biblioteca Nacional; 1/12/2004; (online).
Nobre, Edianne S. – Alexandre, Jucieldo F.; Missão abreviada: práticas e lugares do bem morrer na literatura espiritual portuguesa da segunda metade do século XIX; Revista Brasileira de História das Religiões, ANPHU; Ano IV; Nº 10; maio 2011. PDF
Novais Filho, Joaquim A.; Antonio Conselheiro na mira da imprensa baiana (1876-1897); UESB-Fapesb/Bahia; PDF

Vianna, Luiz; Mensagem do Dr. Governador da Bahia ao Senhor Presidente da República sobre os antecedentes e consequências das expedições contra Antonio Conselheiro e seus sequazes; Typographia do Correio de Noticias; 1897; PDF

Nenhum comentário:

Postar um comentário