domingo, 24 de julho de 2016

HISTÓRIA DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – XVII

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos de Brasil, USA, Rússia, França, Espanha, Suécia, Alemanha, Canadá. Que Deus os abençoe.

As serpentes rompem da casca

__ O século II não representou apenas uma evolução positiva no pensamento e na autoestima da comunidade cristã, mas também o início de uma tormenta religiosa, de potencial devastador, representado pelo crescimento das seitas gnósticas ou do gnosticismo. Um fenômeno que, em que pese suas raízes eminentemente orientais, divide os estudiosos sobre se seria ou não um fenômeno tipicamente cristão, sem se chegar a uma conclusão, uma vez que todas as tentativas de encontrar indícios de um gnosticismo pré-cristão fracassaram.
__ Fazendo uma revisão geral da evolução dessa corrente de pensamento e religiosidade baseados em Mora, comecemos com a sua definição sobre gnosticismo (1): “pretensão de conseguir o saber, gnosis, absoluto, nem sempre pela via intelectual e racional, mas antes pela “mística” e a extática”. No gnosticismo “se encontram mescladas especulações de tipo neoplatônico, com os dogmas cristãos e as tradições judeu-orientais, sem que qualquer um desses elementos, por si só, baste para explicar as peculiaridades desse gnosticismo” (p 759). Ou seja, a síntese de vários sistemas concorrentes, mas também antagônicos, que tornam a caracterização e também o combate, por parte da igreja, extremamente difícil. Para nós, brasileiros, a melhor imagem que podemos ter do gnosticismo é o sincretismo religioso que observamos na Bahia, e que já levou ao esgotamento a bispos e padres que tentaram detê-lo nas hostes católicas. Até o limite é o enriquecimento, mas passado esse limite, que é dificílimo precisar, começa uma distorção perigosa.
__ As forma mais primitiva de gnosticismo seria a mágico-vulgar, onde se explora o encanto do povo, reunido em “massas”, por fenômenos particularmente bizarros, antinaturais. O principal representante dessa corrente, já detectada no Segundo Testamento, Atos dos Apóstolos, é Simão o Mago, de Samaria, que segundos os Padres Irineu e Hipólito, “não somente pregava a existência de uma força infinita, que era o Espírito de Deus, como considerava tal força como a origem e a raiz – secretos – do universo” (p 759). Tal pensamento foi defendido pelos discípulos de Simão: Menandro de Samaria e Satumilo de Antioquia.
__ A ele seguiu o gnosticismo mitológico, de cunho oriental e vinculado a uma diversidade de seitas, cada uma com suas peculiaridades, a saber: “a) A seita dos mandeus (que dizem possuir o conhecimento, mandayya)... b) A seitas dos ofitas, seita judia ou sírio-alexandrina, que tinham como símbolo a serpente, ofis... c) A seita dos barbelo-gnóstico... seita dos Adeptos da Mãe, por admitir a existência de um princípio feminino ou a Primeira Mulher, como terceiro princípio de uma tríade fundamental, a qual incluía como primeiro princípio o Absoluto, Pai, Luz ou Primeiro Homem [um deus ‘macho’], e como segundo princípio o Segundo Homem ou o Filho do Homem. A mitologia de ofitas e barbelo-gnósticos tinham traços muito semelhantes... nas quais aparecia a Sabedoria... como uma força feminina criada pela Primeira Mulher” (p 759-760). Posteriormente haveria um combate entre a Sabedoria, com seus sete filhos, contra as forças do mal, comandadas por um tal Jaldabaoz, com a vitória da Sabedoria; e por aí seguem outros princípios e conclusões absolutamente delirantes! Quanto a doutrina dessa gente vale a pena reproduzir esse trecho de Ferrater-Mora:
“Entre essas concepções, figura em particular a da alma como um ser desterrado de outro mundo, o mundo da luz. Segundo aquelas, a alma habita em um mundo estranho, sempre ansiosa em retornar ao mundo do qual procede, e que não tem nenhuma relação com este. Por isso esse aquele outro mundo é sempre definido de uma forma negativa, é indizível, é um mundo escondido, no centro do qual habita Deus, igualmente escondido e inacessível. Estranheza, desterro, mundo sobrenatural e luminoso, voo e anelo, chamada e vigília... sombra, esquecimento, sono e morte, são alguas das categorias dramáticas que predominam no gnosticismo mitológico” (p. 760).

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__ A última etapa do pensamento gnóstico é a do gnosticismo especulativo, fruto da inserção de conceitos filosóficos na narrativa mitológica anterior. Os principais representantes seriam: Basilides, Carpócrates, Valentino e Marcião. As características principais desse gnosticismo seriam: “O dualismo entre um Deus mau, o demiurgo (2) criador desse mundo e do homem, identificado com o Deus do Antigo Testamento, e um Deus bom, revelado por Jesus Cristo. A redenção do homem por Jesus Cristo é justamente uma obra da revelação, o que consiste justamente à gnose, e só por ela poderá o homem desprender-se da matéria e do mal em que se acha submerso, e ascender até a pura espiritualidade de Deus” (idem). A ascensão da alma, segundo os gnósticos, não se dá apenas por meio da especulação ou da revelação passiva, mas por meio da luta, uma luta espiritual que reproduz, na alma, a luta universal entre o bem e o mal. Como diz Mora, o universo gnóstico não é dinâmico, extático ou dialético: é “dramático”.
“O gnosticismo pressupõe antes de tudo a impotência do Deus criador para ser plenamente bom – isso explicaria o fracasso da criação [o pecado no mundo] – sem falar que coloca frente e ele, como algo pré-existente e resistente, a matéria, que o Deus-demiurgo (segundo Marcião, o Deus dos judeus, Deus inferior, Deus vingativo e justiceiro) não pode plasmar à sua vontade” (idem).
__ Em relação à moral havia duas correntes opostas, mas não adversas: uma que preconizava uma moral ascética, corrente aceita, em geral, pelos grandes nomes do gnosticismo, e outra que aceitava uma moral relaxada, a partir da concepção de que o corpo, como o mundo da matéria, não só é essencialmente mal e degenerado, como impotente para, com sua devassidão, afetar essencialmente a caminhada da alma.
__ É preciso considerar também que além do aspecto transicional da sociedade romana do momento, que facilita a inserção de novos experimentos teórico-ideológicos, havia o intenso e já surrado cosmopolitismo dos romanos, presente dede a fundação da cidade. O romano comum sempre foi muito aberto ás novidades ao diferente, é um ser plástico ou uma “metamorfose ambulante”, como diria Raul Seixas, que em contato permanente com realidades sociais e mentalidades tão diversas dentro de seu imenso império, tinham tudo para dar um trabalho imenso a qualquer movimento reformador que visasse dar mais centralidade ao império. Não foi por isso que os imperadores optaram pela autodivinização?

... e mostram a cara

__ Para o cristianismo, que tinha um forte senso de unidade em torno de uma revelação específica, e ao mesmo tempo tão frágil e exposto a violentas perseguições estatais, isso não podia ser pior. Essa tendência a uma mistura descaracterizante poderia matar, ainda na casca, a jovem religião. Diz Jedin: “com um faro muito apurado, o gnosticismo percebeu que seu maior adversário era a Igreja nascente, e então concebeu o audaz projeto de conquistá-la internamente, penetrar em suas comunidades e dissolvê-la em uma infinidade de células gnósticas” (p 283), exatamente como a serpente no paraíso.
__ Aparentemente, tinham tudo para conseguir esse objetivo, e, no entanto, foram aniquilados de tal forma que o que sabemos hoje se deve quase exclusivamente ao deles falam os autores cristãos contemporâneos. Diz Jedin:
Uma grande parte da literatura gnóstica, que no 2º século superava de muito a da Igreja nascente, foi aniquilada após a vitória do cristianismo ou pereceu por falta de interesse [uma “onda”, uma moda, que passou]. Desse modo o material gnóstico se reduzia em grande parte [até recentemente] aos extratos e citações que deles faziam os autores antignósticos, sobretudo Irineu de Lion, Tertuliano, Hipólito, e em menor escala, Clemente de Alexandria e Orígenes, e em época tardia Epifanio de Salamina, Filastrio de Brescia”.

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__ Essa situação mudou um pouco com a descoberta de uma biblioteca gnóstica numa gruta em Nag Hammadi, no Egito, entre os anos de 1945 e 1946, que ao menos serviu para ampliar o nosso conhecimento acadêmico sobre o assunto, além de alimentar devaneios audaciosos e preocupações injustificadas das mentes mais impressionáveis (3).
__ A primeira fase do gnosticismo começou com os ensinamentos de Menandro e Saturnino (o Satumilo de Ferrater Mora, acima), da escola gnóstica samaritano-antioquena. Segundo Irineu de Lion, citado por Jedin, Saturnino defendia as seguintes ideias:

o Pai supremo, desconhecido, criou os anjos, as potências e os éons do mundo superior, enquanto o inferior, o terreno, seria obra de sete espíritos inferiores, entre os quais o maior entre eles seria o Deus dos judeus [e nosso]; a eles deveria o homem a sua mísera existência, pois não tinham, esses espíritos, um modelo para criá-lo à imagem e semelhança do ser supremo” (p 289).

__ A seguir vem Basilides, que ensinou entre 120 e 140, na cidade de Alexandria, no Egito, e foi um autor muito prolixo, escreveu um comentário aos evangelhos em 24 livros, e bem acatado no seu tempo. Segundo o seu verbete na Wikipedia em espanhol, “toda a existência deriva de um Deus supremo e incognoscível, do qual se engendram, em sucessivas emanações, numerosos estratos ou realidades, a última das quais é o nosso mundo, governado pelo Deus dos judeus. Concebe uma redenção totalmente intelectual, consistente na súbita revelação (gnosis) da existência de Deus, a quem desconhecemos por um orgulho inconsciente (que seria como que uma capa de ignorância envolvendo cada homem e todo o universo...)... A moral de Basilides era austera [o que o aproximava dos cristãos], e ele aconselhava a abstenção de casamentos”. Segundo ainda Jedin, ele pregava que Deus teria enviado Cristo para livrar este mundo do poder dos arcontes ou principados, mas que ele foi visto de forma apenas aparente, pois não estava de fato neste mundo, e ainda sobrou o pior para quem o ajudou, pois, segundo os basilidianos, foi Simão de Cirene e não Jesus Cristo quem morreu na cruz!
__ Mais perigosa foi a propaganda desenvolvida por um egípcio de nome Valentim. Nascido em Alexandria, por volta do ano 100, lá ensinou filosofia até o ano 135, quando se transferiu para Roma, de onde lançou, com muito mais abrangência, as sementes de seu pensamento, que era uma mescla complexa de platonismo, pitagorismo, estoicismo, elementos mitológicos e do cristianismo (4): há “a concepção de um Pai ou Abismo, como um ser absolutamente uno, espiritual, inominável, fora do tempo e do espaço” (Mora, p 867), claramente identificado com o Deus-Pai da Bíblia; há o Nous (inteligência) e a Aletheia (descobrimento ou verdade), “fontes do Logos, da Vida, do Primeiro Homem e da igreja” (idem); “o uso do conceito de emanação para explicar a produção dos éons... Jesus aparece no sistema de Valentim como o Purificador, um éon que, descendo à terra [algo incompatível a uma divindade “boa”], redime os capazes de regressar ao mundo dos espíritos, o único que poderá subsistir no Pleroma perfeito [a totalidade de Deus], pois tudo o mais, que é irredimível ou material, deverá desaparecer em meio a uma conflagração geral” (idem).
__ Para dar mais peso e tornar mais atraente a sua mensagem, ele “emprega copiosamente os pensamentos paulinos e palavras de Jesus mal interpretadas, e isso dá a sua doutrina um verniz bíblico, que deveria torna-la mais familiar aos cristãos” (Jedin, p 290), que nessa época deviam ser, na sua maioria, neófitos em penosa evolução em direção de uma espiritualidade e um conhecimento religioso estável e consistente. A igreja era enfim, uma flor muito tenra em um solo hostil, ameaçada a partir de dentro, com o intuito de fazê-la perecer de vez. Entretanto, ao falecer, no ano 160, Valentim pode perceber, contrariado, que seu intento falhara...
__ De Sinope, no distante Ponto, saiu, em 85, um dos adversários mais perigosos para o cristianismo: Marcião, um homem prático, mas endinheirado, empresário de navegação, um espírito irrequieto o bastante para ser excomungado da igreja por seu próprio pai, que era o bispo de Sinope na ocasião. Embora os autores sejam concordes de que ele não era um gnóstico típico, ele sempre usou do gnosticismo para mascarar suas conclusões insinuantes e muito propensas a confundir (5), visto que soube explorar habilmente o cerne do principal problema psicológico-moral bíblico (como compactuar o Deus-Vingador do Primeiro Testamento, com o Deus-Amor de Jesus?), e fazer disso o fundamento da igreja que ele criou em Roma.
__ Diz Mora: “adversário do judaísmo, Marcião opôs ao Deus do Antigo Testamento – Deus “estrangeiro”, ou melhor, um demiurgo criador de um mundo imperfeito, a partir da matéria pré-existente, e ele mesmo imperfeito – ao Deus bom e desconhecido, até que foi revelado por Jesus Cristo... a oposição entre o Antigo e o Novo Testamento foi ressaltada por Marcião... Junto a isso Marcião considerou a doutrina de Paulo (em contraposição ao suposto “judaísmo de alguns apóstolos), como a verdadeira doutrina cristã da redenção pelo Deus bondoso, de tal sorte que apresentava a sua igreja como a verdadeira continuadora da tradição paulina” (p 134-135). O que isso não mexia com a cabeça das pessoas?

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__ Diz Jedin: “ao lado das comunidades cristãs foram surgido grupos marcionitas, cujo governo estava nas mãos de bispos, apoiados por presbíteros [usavam, portanto, a mesma nomenclatura da hierarquia eclesiástica, aumentando a confusão]. A liturgia era muito parecida com a que se celebrava na Igreja, donde resulta que se tornou fácil a muitos deixar a verdadeira igreja pela de Marcião, que experimentou um forte êxito inicial... a rígida organização que Marcião deu à sua obra distinguia-a dos caóticos grupos gnósticos, e propiciou-lhe uma grande força atrativa” (p 292). A sua cristologia era de cunho docetista, a mais atraente na época, pois negava a realidade do nascimento de Cristo e de sua morte na cruz. Os líderes da igreja, percebendo o perigo que provinha da seita fundada pelo manhoso armador, incitaram grandes apologistas a tomar da pena, para combater esse desvio ao longo dos cem anos seguintes.  
__ Mas Jedin ressalta um ponto positivo da luta contra Marcião:

Ao seu inquietante êxito, contribuiu muito a seriedade de suas exigências morais [chegou a proibir o matrimônio] e, mais do que isso, a forte personalidade de seu fundador. Marcião, mais que qualquer outro do movimento gnóstico, obrigou a Igreja a refletir mais profundamente sobre a sua posição diante das Escrituras e de suas regras de fé, esclarecendo-as, a revisar suas formas de organização e a despender todas as forças no combate a essa heresia”.

__ Muitos ataques contra a semente cristã, com substâncias doutrinárias “venenosas”, a exemplo de modernos “herbicidas”, partiram de outras procedências, com fórmulas diferenciadas de “veneno” e estratégias implosivas; diz Jedin: “à margem dessas tendências principais do gnosticismo, existiam também diversos grupos quase sectários, que representavam um gnosticismo fortemente popularizado [o cristianismo era assim atacado em todos os níveis], onde ora uma ora outra tendência ou ensinamento gnóstico recebia um desenvolvimento exuberante”.

Aprendendo com o adversário

__ A Igreja, identificando a natureza dos desafios gnósticos que mais profundamente atingiam-na, reagiu com método e raciocínio para debelar a ameaça.
__ No plano institucional os bispos reagiram procurando identificar, isolar ou converter, e em seguida expulsar, os elementos que mostrassem uma prática ou simpatia pelo gnosticismo – para contornar isso, alguns gnósticos costumavam se mudar de uma igreja para outra, em cidades diferentes, toda vez que a sua ação missionária ali se quedava esgotada. O cristianismo deveria ser assumido como um compromisso sério e não como uma moda pelos fieis. Ademais forma fechadas as portas àqueles antigos cristãos que, após serem cooptados pelos gnósticos, apareciam, sem mais, simulando querer retornar à Igreja, agora na condição de eventual missionário do gnosticismo – a serpente queria voltar ao paraíso. Não seria assim tão fácil! Jedin afirma:

As queixas de alguns gnósticos de que os católicos não queriam ter nada com eles e os qualificavam de hereges, apesar de que professavam mesma doutrina [como eram manhosos!] supõem tais medidas de defesa [citadas acima]... Outros gnósticos se apartaram da Igreja quando se viram isolados e sem possibilidade de ação... Valentim não se desligou da Igreja Universal senão bem depois, embora tenha sido reiteradamente chamado a atenção, nas comunidades particulares que frequentou, por causa de suas opiniões pessoais” (p 296-297).

__ Veja-se o quanto eles eram insistentes, insidiosos, e como, maliciosamente, aproveitavam-se daquelas que eram consideradas as maiores virtudes do cristianismo, como a paciência, o acolhimento, a caridade, inclusive o diferente e o adversário, pois Deus faz chover sobre justos e injustos (Mt 5,45), da mesma forma que, apegando-se a detalhes irrelevantes, pretextavam defender a mesma doutrina dos cristãos!
__ Entretanto, graças às luzes do Espírito Santo, vários membros importantes da Igreja vislumbraram naquele momento a oportunidade, e até a necessidade, para avançar em pontos ainda obscuros ou ignorados, por força das circunstâncias, pelos cristãos, para aprimorá-los, esclarecê-los e desenvolvê-los, enriquecendo ainda mais o tesouro da fé católica. E assim em diversos lugares do mundo romano, mentes ora brilhantes ora comuns, entusiasmadas pela grandiosidade e os méritos da tarefa, puseram mãos à obra, para criar, desde pequenos textos, tipo catecismo básico, até importantes tratados de teologia-filosofia, um obstáculo à propaganda gnóstica e pagã.
__ Irineu cita uma singela homilia de um presbítero da Ásia Menor, que expunha com grande precisão e didática a doutrina católica, tendo em vista as distorções de Marcião; Dionisio de Corinto, citado por Eusebio de Cesareia, envia, por volta de 170, cartas às comunidades da Ásia Menor, e aos seus colegas bispos de uma vasta área do Mediterrâneo Oriental, exortando-os a permanecerem firmes na defesa da fé. Aos poucos começa uma cadeia de reação, dirigida pelos bispos, agora convencidos de que sua tarefa mais importante, no momento, era resguardar o depósito da fé, consubstanciada na Palavra de Deus e nas consequências doutrinárias que dela advinham.

Junto com a atividade do episcopado... se desenvolveu o trabalho de teólogos... uma extensa produção literária, saída de penas católicas, tratou de dar suporte e fundamentar teologicamente a luta dos bispos... A ela pertence Agripa Castor que impugnou o gnóstico Basílides; Rodão da Ásia Menor que enfrentou a Marcião e seu discípulo Apeles; e Modesto, cuja refutação a Marcião é particularmente estimada por Eusébio. Entre os escritores antignósticos se contam bispos como Militão de Sardes, Filipe de Gortina... e Teofilo de antioquia, que se dedicaram a rebater Marcião... contra Marcião também se mediu Justino Mártir” (p 298).
__ Combate-se fogo com fogo, contra os gnósticos, pródigos em livros apócrifos, surge uma literatura apócrifa católica antignóstica nos Atos de Paulo e Epístola dos Apóstolos, e num plano superior, bem superior, na mesma linha, encontram-se os escritos de Hegésipo (6) e Irineu de Lion, que em sua obra Contra os hereges, dirigida especialmente contra o gnosticismo, escreveu um texto tão bem fundamentado que não foi superado por nenhum outro em sua época. Apareceu ainda um escrito de autor ignorado, com o título latino de Refutação de todas as heresias, que segundo Jedin “busca demonstrar que as teses dos gnósticos não estão fundamentadas nas Sagradas Escrituras, mas nos filósofos gregos, nos mistérios, na astrologia e na magia, ou seja, em fontes não cristãs” (p 299). Outro gigante da luta contra o gnosticismo foi o teólogo africano, de expressão latina, Tertuliano.
__ Um dos principais desafios postos pelos gnósticos foi o de que eles, e somente eles, “possuíam a revelação feita por Cristo aos apóstolos, o que desqualificava tanto os livros sagrados dos cristãos, que remontavam à era apostólica, como as tradições apostólicas extrabíblica” (p 300). Ora, essa afirmação atingia frontalmente às principais muralhas defensivas da Igreja: os bispos, que eram, na opinião dos gnósticos,  justamente aquilo que não deveria existir, pois a sua existência bloqueava o principal alvo do ataque gnóstico: o correto sentido da Palavra do Senhor, garantido pelos usos, costumes e interpretações herdados dos apóstolos e transmitidos pelos bispos. Havia uma inovação perversa no gnosticismo, que pode ser representada metaforicamente da seguinte maneira: dispersem-se as ovelhas, e os pastores as reunirão novamente, dispersem-se os pastores, e o que será das ovelhas? Será que isso não existe nos dias de hoje?
__ Do desafio de Marcião sobreveio uma nova necessidade: a de aclarar o sentido e o conteúdo do depósito da fé, as Sagradas Escrituras, uma vez que aquele, no afã de repudiar o Primeiro Testamento (7), induziu a Igreja a se debruçar mais detidamente sobre a mensagem bíblica, e afirmar com mais precisão o que deveria ou não fazer parte dela, ou seja: definir o cânon bíblico.

“[a Igreja] aceitou como escritura sagrada os livros do Antigo Testamento... e em segundo lugar admitiu em seu cânon neotestamentário outros escritos rechaçados por Marcião, principalmente o Atos dos Apóstolos e o Apocalipse. Na polêmica contra o gnosticismo se firmou, cada vez mais, a autoridade desse cânon e no chamado Fragmento Muratori, que é um índice das escrituras canônicas do Novo Testamento... esse cânon se aproxima, já no final do século II, de sua forma definitiva” (p 301) (8).

__ Das discussões que se seguiram sobre os critérios que determinariam a entrada ou não de um livro no cânon, Jedin esclarece o seguinte:

Era necessário escolher um princípio que fosse objetivo, inatacável, e esse princípio foi encontrado na tradição eclesiástica. Só poderiam ser reconhecidos como canônicos aqueles escritos que remontavam a era apostólica e que, desde muito cedo, haviam gozado de apoio nas tradições das diversas igrejas. Os fiadores da autenticidade de tais tradições só poderiam ser aqueles dirigentes que, em série ininterrupta, volviam até os apóstolos [os bispos]. Com esse princípio da sucessão apostólica se assegurou, positivamente, a tradição como elemento essencial na vida, na fé e na teologia da Igreja; e, negativamente, se despojou a todos os apócrifos e escritos doutrinais gnósticos de autoridade, e se os expurgou da Igreja” (p 301).

__ Comentando o parágrafo anterior podemos dizer que o gnosticismo tentou atingir a Igreja fragilizando suas colunas e vigas mestras: os bispos, e a Igreja reagiu justamente reforçando esses elementos, e com isso colheu mais estabilidade e firmeza, e venceu, até com certa folga, o desafio gnóstico. Outras providências foram tomadas:

Justamente por volta da metade do século II o símbolo batismal [a oração do credo proferida pelo batizando adulto ou pela comunidade em lugar das crianças] recebeu aquelas ampliações cristológicas que realçavam a realidade do nascimento, paixão e morte de Jesus Cristo. Assim se feria de morte o docetismo de algumas seitas gnósticas e se assegurava a historicidade dos fatos salvíficos do Senhor, contra toda volatização espiritualista. O mesmo símbolo proclamava a Deus uno como o senhor e o criador do universo, desautorizando as especulações gnósticas sobre a origem dos cosmos e as de Marcião sobre a existência de dois deuses. A repulsa gnóstica ao corpo, como parte da matéria essencialmente má, foi contraditada pela crença cristã na ressurreição da carne” (p 301-302).

__ Novos avanços se seguiram: Irineu de Lion aprofundou a doutrina sobre a queda do homem, desfazendo algumas ilações absurdas gnósticas, inclusive a crença de que o pecado original estaria ligado intrinsecamente à parte material, orgânica, do homem, além de esvaziar a importância dada ao conhecimento, pelos gnósticos, para avançar mais na gratuidade da graça divina, como veículo de nossa salvação, mas, por outro lado, a ênfase dos gnósticos no conhecimento fez alguns Padres, como Clemente de Alexandria e Orígenes, aprofundarem os estudos sobre as relações entre as ciências e a fé; o combate ao marcionismo acelerou de uma maneira positiva, a evolução do conceito de dogma; etc. Jedin repara:

A balança se inclinara a favor da Igreja já antes do começo do século III; em poucos decênios já havia expelido o veneno inoculado, deixando o gnosticismo encerrado sobre si mesmo... o cristianismo eclesiástico conservou, frente a arremetida do gnosticismo, seu peculiar caráter de comunhão de fé e de vida natural fundada por Cristo, escapando assim do perigo de dissolver-se no mar do sincretismo helenista.”

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A heresia do Espírito Santo

__ A Igreja ainda batalhava duramente com o gnosticismo, quando explodiu, no seu seio, outra fonte extravagância doutrinária: o montanismo, também chamado por seus sequazes de “nova profecia”, enquanto seus adversários o chamavam “heresia frígia”, em virtude do local onde se deu suas primeiras manifestações: a província romana da Frígia. Esse movimento constiuía-se numa tentativa saudosista e superficial de retorno ao espírito festivo dos primeiros tempos do cristianismo, que nunca deve abandonar a Igreja, engalanado, segundo Atos dos Apóstolos, por sinais maravilhosos, nos quais os tolos detêm as vistas, ignorando as imensas dificuldades, que Atos também relata, e das quais as “aventuras” de Paulo estão repletas.
__ As manifestações carismáticas impressionam as mentes simplórias, fazendo-as esquecer que a essência da menagem cristã é a cruz, presente desde o início da missão de Jesus, no tema das bem-aventuranças, e, posteriormente, na sua pobreza “o filho do homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20), na rejeição de sua mensagem e na morte brutal e ignominiosa. Àqueles, como dizíamos, encanta as manifestações visíveis e chamativas da fé, que, aparentemente, ultrapassam a esta e transformam a crença num “fato”, no sentido positivista do termo, com a possibilidade de, por meio de milagres, mudar a natureza e a história que Deus criou e dá o sentido último. Jedin adverte que, se é verdade que esses dons, postos a serviço da comunidade, trazem um grande bem à Igreja, porém “entre eles [os carismáticos dos primeiros tempos] também apareceram, aqui e alí, falsos profetas, ilusionistas e embusteiros [como Simão o Mágico], que cobriram de descrédito a profecia e despertaram a desconfiança generalizada sobre o aparecimento de semelhantes dons. Tampouco faltaram desarmonia e tensões entre os espirituais e as autoridades eclesiásticas”. De fato, se alguém que acredita estar em “ligação direta” com o Espírito Santo, quando receber uma ordem ou orientação em contrário, de seu bispo, dificilmente o escutará.
__ Numa atitude típica de quem quer chamar a atenção sobre si, um recém-converso de uma aldeia na província da Mísia, chamado Montano, começou a ter ou simular publicamente tiques físicos estranhos, semelhantes àqueles que se manifestam em pessoas supostamente em contato com o mundo espiritual, entremeadas com palavras obscuras, confusas. Ao sair de seu transe ele disse que acabara de ser convocado pelo Espírito Santo para dar o acabamento, o sentido final e verdadeiro, das palavras de Cristo. Isso teria acontecido entre os anos 135 e 177. Em favor de Montano é necessário que se registre que havia um ambiente de apreensão geral e perspectiva de apocalipse, de espera ansiosa pela segunda vinda do Senhor para breve, conforme algumas passagens bíblicas, tanto dos Evangelhos como das Cartas, muito presente na região, que se manifestava das formas mais bizarras; “conta Hipólito que [no tempo do imperador Marco Aurélio] um bispo da Síria saiu, com toda a sua igreja, para o deserto a fim de esperar Jesus Cristo; e que outro, do Ponto, pregava que lhe fora revelado, em sonhos, que o mundo acabaria em um ano, e que se isso não acontecesse então não era mais necessário acreditar nas Sagradas Escrituras” (p 305).

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__ A princípio a mensagem de Montano não foi levada a sério, mas quando duas mulheres, supostas profetizas, chamadas Priscila e Maximila, em êxtase, começaram a profetizar a mesma coisa e a acentuar a excelência de Montano, a coisa “pegou fogo” e um entusiasmo repentino, irrefletido, começou a tomar conta de muitos fieis, e como uma onda começou a se espalhar por todo o império, em especial nas províncias do Oriente. As premissas do montanismo são as seguintes:
a) Valorização das manifestações extáticas ou carismáticas, independentes de qualquer controle – controlá-las seria ir contra o Espírito Santo “em pessoa”: “ele (Montanus) ficou fora de si, e entrando, de repente, numa espécie de frenesi extático, delirou e começou a balbuciar e proferir coisas estranhas, profetizando de forma contrária aos costumes da Igreja, constantes da tradição que nos foi transmitida desde o começo” (trecho de Eusébio de Cesareia, traduzido da Wikipedia em inglês: Montanism). Os profetas extáticos do montanismo não agiam como mensageiros de Deus, mas como que por Este possuídos, sendo-lhes, portanto, inútil e até maléfico resistir a tal movimento, por alguma forma um controle racional sobre aquilo que lhes era revelado.
b) Forte sentido escatológico, fundado principalmente nas obras de João: o fim do mundo estaria próximo e a Jerusalém celeste desceria do céu sobre a cidade de Pepuza, na Frígia, onde Montano fixou sua sede, conclamando as pessoas a irem para lá, a fim de escaparem dos eventos traumáticos previstos no Apocalipse de João, já com data marcada, além de obterem uma posição de destaque junto a Deus e seu profeta. Como consequência dessa profecia muitas pessoas pararam de trabalhar e viviam pelas praças, sem fazer nada, sem cuidar de seu aspecto ou higiene. Eventos contemporâneos, como uma grande peste e ciclos de fome ocorridos durante o reinado de Marco Aurélio, pareciam lhes dar razão.
c) Valorização exacerbada do martírio: os montanistas eram mesmo instigados a procurar seu próprio martírio, criando sérios problemas para a Igreja, que, com tato e prudência tentava estabelecer um diálogo construtivo com o Império Romano, e este de repente se via abusivamente provocado por aqueles que se diziam cristãos – acredita-se que provocações montanistas possam estar na raiz do sangrento episódio dos Mártires de Lion, já citado. Os montanistas, nesse sentido também divergiam fortemente da Igreja quanto ao tratamento a ser dado àqueles que, durante uma perseguição, apostataram, mas que depois, passada a perseguição, queriam voltar ao seio da Igreja. A determinação entre eles é de não aceitar essa gente de volta de forma alguma.
d) Penitencialismo e moralismo exagerados: valorizava-se toda sorte de penitência e destrato com o próprio corpo, talvez por influência da crença grega na maldade intrínseca da matéria, com destaque para o jejuns, que foram prescritos por duas semanas ao ano; impunham-se a xerofagia, o consumo apenas de alimentos secos com exclusão da carne. As mulheres virgens deviam usar veu obrigatoriamente e tanto as mulheres quanto as meninas não podiam usar qualquer ornamento; para certo tipo de pecado negava-se terminantemente a absolvição, independente das disposições internas e das penitências já feitas ou por fazer pelo pecador. Recomendavam ainda a castidade dentro do matrimônio e a proibição de segundas núpcias. Induzidas por isso, Maximila e Priscila abandonaram os seus maridos, e foram viver junto a Montano.
__ O montanismo se propagou mais rapidamente na Ásia e nela perdurou por mais tempo até o final do século IV, sem encontrar a mesma acolhida no Ocidente, fazendo com que alguns autores ressaltem essa heresia como um dos marcos na gradual diferenciação evolutiva entre o cristianismo asiático e o ocidental, que culminará na separação de 1054. Mas nem por isso as coisas deixaram de ser complicadas, muito complicadas, no Ocidente.
__ A reação à Nova Profecia, entretanto, começou na Ásia mesma, quando um sínodo presidido por Apolinário, bispo de Hierápolis, em 177, condenou, ou ordenou cautela, em relação à sua doutrina, seguida de um pronunciamento semelhante pelas igrejas de Lion e Vienne, no Ocidente, que já sentiam os malefícios da presença montanista. A situação, entretanto, ficou estranha, ante a atitude do Papa Eleutério (175-189), que aparentemente deu o seu assentimento à seita montanista, o que ensejou a visita de Irineu de Lion e Abercio de Hierápólis a Roma, para lhe alertar sobre essa seita, embora até hoje esteja em aberto se Eleutério foi de fato um simpatizante da seita ou apenas excedeu-se no seu intento de evitar medidas mais firmes e até um cisma. Temor que não foi partilhado pelo Papa Zeferino (199-217) que, após apoiar o movimento, denunciou-o decididamente.
__ O primeiro grande golpe contra o montanismo veio de dentro do próprio movimento, quando a profetiza Maximila, entusiasmada pelo sucesso inicial da seita, resolveu cometer o erro crasso das falsas profecias sobre esse tema: datar o fim do mundo. Ela previu que “após mim não virá nenhum outro profeta, mas a consumação dos tempos” (p 307). Maximila morreu em 179, e o mundo não acabou, e a seita então experimentou forte decadência. O montanismo foi continuamente se estiolando, até se tornar uma pequena sociedade secreta, praticamente sumida do horizonte ocidental, mas perseguida pelo estado bizantino, no Oriente, onde o imperador bizantino Justiniano, no século VI, teria mandado um general, João de Éfeso, até Pepuza para destruir os monumentos deixados pelos montanistas, inclusive as sepulturas de Montano, Priscila e Maximila. No século VIII, o imperador Leão III ordenou a conversão forçada e o batismo de alguns hereges, inclusive montanistas, mas eles preferiram se encerrar em templos e por fogo neles, morrendo incinerados. Como recomendava Montano.

Uma grande baixa

__ Entretanto o montanismo não desapareceria sem antes aplicar um vigoroso golpe em sua invencível adversária, conseguindo a conversão de um dos principais apologistas da Igreja, o africano Quinto Sétimo Florencio Tertuliano, ou simplesmente Tertuliano, à seita, em 207. Diz jedin sobre isso

Mesmo para um homem da estatura intelectual de Tertuliano, seria necessário haver um período de luta entre a sua passagem de católico para montanista fanático, pois sua nova fé o levaria a uma antítese patente... com suas antigas crenças. Agora iria blasfemar por meio de ataques desmedidos contra aquilo antes defendera e tão ardentemente adorara... Seguramente lhe atraía mais a ideia de que, na forma montanista, podia apelar em favor de suas ideias diretamente ao Espírito Santo. Ante tal instância deveriam calar-se todas as outras... inclusive o bispo de Roma... [Tertuliano, porém, não reproduziu literalmente a doutrina montanista, isto é, ele criou sua própria versão onde] nega, sobretudo, reconhecer à mulher, na comunidade montanista que ele imagina, um posto semelhante ao que ocuparam Maximila e Priscila. Não só lhe tira toda função sacerdotal, senão que lhes proíbe o ensinamento e qualquer participação no culto divino, e dá ao carisma da profecia, nas mulheres, um caráter estritamente privado. Também se aparta dos dados mais concretos sobre a descida da Jerusalém celeste sobre Pepuza [como defendiam os criadores da seita]... Tertuliano quer... dar-lhe um caráter universal... Sua verdadeira missão [do montanhismo tertuliano] consiste em levar a cristandade e a humanidade, por obra da graça do Espírito Santo, à sua maturidade. Os escritos de Tertuliano defendem os postulados rigoristas da Nova Profecia com uma vivacidade incomum e uma linguagem apaixonada... defende a proibição de fugir do martírio, e apresenta o casamento único como um mandamento ineludível do Espírito Santo (segunda núpcias é adultério), da mesma forma como demonstra a necessidade dos jejuns, a que não querem reconhecer os “psíquicos” [designação para os católicos, enquanto eles se diziam “espirituais”], a quem insulta da maneira mais brutal. De desapiedada dureza... é o seu ataque contra a prática da Igreja na questão da penitência, que o converte por princípio em inimigo inconciliável da Igreja episcopal; com isso se parta definitivamente de uma autoridade eclesiástica fundada na sucessão apostólica” (p 309).

__ O notável nisso é que Tertuliano era um severo adversário do gnosticismo, que foi justamente no seio da Igreja pelo reforço dado ao seu caráter episcopal e o fortalecimento da figura do bispo, que Tertuliano agora ataca, reproduzindo a estratégia de seus grandes inimigos. Depois da morte de Tertuliano (+/- 225), porém, ninguém mais fala do montanismo, e um pouco antes de 430 o célebre bispo de Cartago, Santo Agostinho, recebe a adesão dos últimos montanistas ou tertulianistas conhecidos que havia na África, junto com a basílica que eles possuíam naquela cidade.
__ Mas é preciso aprender com as dificuldades e até com os fracassos, e refletir que houve aquisição de elementos positivos do enfrentamento com o montanismo, que enriqueceram e nortearam as ações seguintes da Igreja, e que foram vitais até para o seu sucesso como instituição universal:

Ao recusar o extremado projeto penitencial dos montanistas, a Igreja escapou do perigo em degenerar-se numa pequena seita de exaltados, preservando-se para a missão de levar a Cristo a todos os homens e atuar eficazmente em todos os ambientes culturais. Ao repudiar o subjetivismo religioso desgovernado, com a pretensão a assumir o controle exclusivo sobre o fiel, como pretendiam os profetas frígios, assegurava às comunidades uma direção objetiva nas mãos de ministros... cuja vocação se regia por critérios objetivos. Ao renunciar a uma esperança escatológica de cumprimento imediato, conservou a possibilidade de contemplar objetivamente as suas tarefas presentes e futuras, favorecendo a sua consolidação interna e a sua ação missionária no mundo antigo decadente.”

__ Breve balanço: perseguição do estado romano, dificuldades de organização, e esclarecimento doutrinal, precária formação de seus quadros, até bispos tomando medidas extravagantes, poderosos movimentos implosivos brotando no seu interior, traição e “virada” espetacular de um de seus mais importantes defensores, tudo isso suscita de imediato uma pergunta: como uma instituição ainda nascente poderia sobreviver a tudo isso?

Notas
(1) Para além da definição do que seja o gnosticismo há toda uma rica e acalorada discussão sobre o que seria esse fenômeno na sua totalidade, quais seriam as premissas do seu aparecimento naquela época; a esse respeito reproduzo um trechos de Ferrater Mora: “para alguns o gnosticismo é uma filosofia cristã, ou pelo menos uma tentativa dela, no dizer de Harnack [importante historiador e teólogo protestante do século XIX e XX], que não difere muito da de Plotino [filósofo da Antiguidade] que no seu tratado contra os gnósticos não distingue entre eles e os cristãos... Para outros, o gnosticismo é a expressão interna da decadência do pensamento antigo, que justamente aproveita para a sua construção de elementos trazidos pelo cristianismo e pelos conflitos, reais e aparentes, entre a Antiga e a Nova Lei” (p 759).
(2) Demiurgo, que em grego quer dizer: “artífice”, “fabricante”, “genitor”, “edificador”, é um termo usado por Platão para se referir a um ser, espiritual, de cuja habilidade e mãos saíram o mundo material, o universo, e os homens, a partir de modelos observados diretamente em Deus. Em Platão, o demiurgo “fez o mundo movido por sua bondade e falta de inveja, desejando que todas as coisas fossem semelhantes a ele” (idem, p 416). Essa posição de Platão, segundo Ferrater-Mora, aproxima-se do que seria o espírito do Logos cristão, o Filho, mas mesmo tempo afasta-se dela ao trata-lo como um ser inferior e submisso a Deus.
(3) A descoberta desses manuscritos foi casual. Em dezembro de 1945, três irmãos, Muhammad, Califa e Abu, e mais quatro camponeses, fertilizavam as bases do maciço Jabal al Tarif, próximo à aldeia de Nag Hammadi, antigo local do mosteiro de Xenoboskion, fundado por São Pacômio entre 310 e 315, quando deram com os achados. Levados para casa boa parte dos manuscritos foi queimada pela mãe dos rapazes, com o receio “mágico” que pudessem ser “perigosos”, mas a maior parte acabou chegou ás mãos de autoridades da igreja cristã copta, e daí para as de estudiosos e especialistas, que constataram ser trechos de seitas gnósticas dos primeiros séculos – para se ter uma ideia, até a descoberta só se conheciam duas obras gnósicas originais: Pistis Sophia e o Livro de Jeu.
Sobre o Pistis Sophia, tinha-se cerca de cinco cópias do séc. V, de obras do séc II, descobertas em 1773. Este livro versa sobre supostos encontros de Jesus com seus discípulos, a Virgem Maria e Maria Madalena, ao longo de doze anos, após a sua ressurreição! “Nele são reveladas as complexas estruturas e as hierarquias do céu, muito comuns aos ensinamentos gnósticos... A divindade feminina dos gnósticos chama-se Sofia, um ser com muitos aspectos e nomes. Às vezes é identificada como o Espírito Santo, mas, segundo as suas capacidades, pode ser também a Mãe Universal, a Mãe da Vida... a mão esquerda (oposta a Cristo, o seu marido, que é a mão direita)... o título, Pistis Sophia, é obscuro... a melhor tradução, tendo em conta seu contexto gnóstico, é ‘a fé de Sofia’” (Wikipedia em espanhol – Pistis Sophia).
Já os Livros de Jeu, em número de dois, dos quais existe uma cópia no chamado Códice de Bruce, foram escritos na primeira metade do século III, e falam sobre revelações que Jesus teria feito a seus discípulos e algumas mulheres. Seu texto é muito complexo e cheio de símbolos misteriosos, e sua relação com o Pistis Sophia é evidente, se é que um não foi adaptado do outro.
Com Nag Hammadi isso mudou, pois nos doze códices retirados da gruta em Nag Hmammadi foram encontradas 52 obras independentes, poucas incompletas ou fragmentárias. Entre as obras encontradas algumas têm título que denunciam de cara a sua procedência gnóstica como o Evangelho da Verdade, o Livro secreto de São Tiago, o Livro secreto de João, A hipóstase dos arcontes, etc.
Em 1970, portanto fora do alcance da obra de Jedin, foi encontrado um texto gnóstico perto de Beni Masar, no Egito, no chamado Códice Tcharcos. Este continha um manuscrito em língua copta, provavelmente feito a partir de um original grego, datado, pelo carbono 14, em torno de 280, que causou um furor mundial, quando o seu conteúdo veio à tona, porque ele compunha nada menos que um “evangelho”, supostamente escrito pelo traidor de Jesus: Judas. O impacto imediato causado pela publicação desse texto foi imenso, mas, da mesma forma que “explodiu”, apagou logo depois, e foi esquecido, como parece ser o destino tradicional das “revelações” gnósticas.
(4) Tertuliano, em um de seus escritos contra os valentinianos diz: “Valentim esperava se tornar Bispo, pois ele era um homem habilidoso, tanto no intelecto quanto na eloquência. Indignado, porém, que um outro obteve a honra por causa de uma reivindicação que um confessor havia lhe feito, ele deixou a igreja da fé verdadeira. Assim como outros espíritos (incansáveis) que, quando atribulados pela ambição, são finalmente inflamados pelo desejo de vingança, ele se aplicou com todas as suas forças em exterminar a verdade; e encontrando a pista de uma certa opinião antiga, ele trilhou um caminho para si...” (Wikipedia em português - Valentim)
(5) Após ser expulso da igreja de sua terra, Marcião sofreu o boicote de grandes nomes da igreja na Ásia Menor, como Papias e Policarpo de Esmirna, indo parar em Roma, no ano 144, aonde chegou fazendo generosas doações à igreja local, chamando a atenção para a sua pessoa. Em Roma teria conhecido Cerdão, um gnóstico, que lhe introduziu nessas ideias, e imediatamente começou a pregá-las aos seus irmãos de fé. Repudiado pela igreja, ele resolveu partir para a fundação de sua própria igreja e o combate ferrenho ao cristianismo, colocando um novo perigoso desafio, em virtude de sua energia pessoal inesgotável e sua formidável capacidade de organização.
(6) Segundo Eusébio de Cesareia, Hegésipo seria um judeu convertido, que, segundo ainda Eusébio,teria escrito uma crônica dos primeiros tempos da Igreja, além de outros escritos, de cunho antignósticos, que, infelizmente, se perderam todos. Hegésipo teria morrido por volta de 180.
(7) “Marcião, declarando obrigatórios [canônicos] os livros do Novo Testamento, claramente fixados” (p 300) foi o autor do primeiro cânon bíblico que se conhece.
(8) Esse dado desmente de forma cabal e decisiva o argumento de muitos ingênuos e maliciosos, inclusive escritores ansiosos por sucesso ou dinheiro, que deram a trombetear que o atual cânon bíblico surgiu com Concílio de Éfeso, no século IV, sob pressão do imperador Constantino.
O Fragmento Muratori ou Muratoriano, é a cópia de uma lista de livros do Novo Testamento, cujo exemplar mais antigo foi encontrado na Biblioteca Ambrosiana de Milão, datado do século XVII, embora estudos posteriores comprovem que se trata da cópia de um documento datado por volta de 170. No fragmento de Muratori constam quatro evangelhos, dois claramente identificados: Lucas e João (há outros dois não identificados, pois perdeu-se o início do documento) seguindo-se o Atos dos Apóstolos, 13 cartas de São Paulo, sem Hebreus, uma carta de Judas e duas de João, além de dois Apocalipses: o de João e o de Pedro; este com reservas devidamente assinaladas: “alguns dos nossos não permitem que seja lido na Igreja” (Wikipedia em português). Veja abaixo o texto do Fragmento Muratori em espanhol:
“... en éstos, sin embargo, él estaba presente, y así los anotó.
El tercer libro del evangelio: según Lucas.
Después de la ascensión de Cristo, Lucas el médico, el cual Pablo había llevado consigo como experto jurídico, escribió en su propio nombre concordando con la opinión de [Pablo]. Sin embargo, él mismo nunca vio al Señor en la carne y, por lo tanto, según pudo seguir..., empezó a contarlo desde el nacimiento de Juan.
El cuarto evangelio es de Juan, uno de los discípulos.
Cuando sus co-discípulos y obispos le animaron, dijo Juan, "Ayunad junto conmigo durante tres días a partir de hoy, y, lo que nos fuera revelado, contémoslo el uno al otro". Esta misma noche le fue revelado a Andrés, uno de los apóstoles, que Juan debería escribir todo en nombre propio, y que ellos deberían revisárselo. Por lo tanto, aunque se enseñan comienzos distintos para los varios libros del evangelio, no hace diferencia para la fe de los creyentes, ya que en cada uno de ellos todo ha sido declarado por un solo Espíritu, referente a su natividad, pasión, y resurrección, su asociación con sus discípulos, su doble advenimiento - su primero en humildad, cuando fue despreciado, el cual ya pasó; su segundo en poder real, su vuelta. No es de extrañar, por lo tanto, que Juan presentara de forma tan constante los detalles por separado en sus cartas también, diciendo de sí mismo: "Lo que hemos visto con nuestros ojos y oído con nuestros oídos y hemos tocado con nuestras manos, éstas cosas hemos escrito". Porque de esta manera pretende ser no sólo un espectador sino uno que escuchó, y también uno que escribía de forma ordenada los hechos maravillosos acerca de nuestro Señor.
Los Hechos de todos los apóstoles han sido escritos en un libro. Dirigiéndose al excelentísimo Teófilo, Lucas incluye una por una las cosas que fueron hechas delante de sus propios ojos, lo que él muestra claramente al omitir la pasión de Pedro, y también la salida de Pablo al partir de la Ciudad para España.
En cuanto a las cartas de Pablo, ellas mismas muestran a los que deseen entender desde qué lugar y con cuál fin fueron escritas. En primer lugar [escribió] a los Corintios prohibiendo divisiones y herejías; luego a los Gálatas [prohibiendo] la circuncisión; a los Romanos escribió extensamente acerca del orden de las escrituras y también insistiendo que Cristo fuese el tema central de éstas. Nos es necesario dar un informe bien argumentado de todos éstos ya que el bendito apóstol Pablo mismo, siguiendo el orden de su predecesor Juan, pero sin nombrarle, escribe a siete iglesias en el siguiente orden: primero a los Corintios, segundo a los Efesios, en tercer lugar a los Filipenses, en cuarto lugar a los Colosenses, en quinto lugar a los Gálatas, en sexto lugar a los Tesalonicenses, y en séptimo lugar a los Romanos. Sin embargo, aunque [el mensaje] se repita a los Corinitios y los Tesalonicenses para su reprobación, se reconoce a una iglesia como difundida a través del mundo entero. Porque también Juan, aunque escribe a siete iglesias en el Apocalipsis, sin embargo escribe a todas. Además, [Pablo escribe] una [carta] a Filemón, una a Tito, dos a Timoteo, en amor y afecto; pero han sido santificadas para el honor de la iglesia católica en la regulación de la disciplina eclesiástica.
Se dice que existe otra carta en nombre de Pablo a los Laodicenses, y otra a los Alejandrinos, [ambos] falsificadas según la herejía de Marción, y muchas otras cosas que no pueden ser recibidas en la iglesia católica, ya que no es apropiado que el veneno se mezcle con la miel.
Pero la carta de Judas y las dos superscritas con el nombre de Juan han sido aceptadas en la [iglesia] católica; la Sabiduría también, escrita por los amigos de Salomón en su honor. El Apocalipsis de Juan también recibimos, y el de Pedro, el cual algunos de los nuestros no permiten ser leído en la iglesia. Pero el Pastor fue escrito por Hermas en la ciudad de Roma bastante recientemente, en nuestros propios días, cuando su hermano Pío ocupaba la silla del obispo en la iglesia de la ciudad de Roma; por lo tanto sí puede ser leído, pero no puede ser dado a la gente en la iglesia, ni entre los profetas, ya que su número es completo, ni entre los apóstoles al final de los tiempos.
Pero no recibimos ninguno de los escritos de Arsino o Valentino o Miltiado en absoluto. También han compuesto un libro de salmos para Marción [éstos rechazamos] junto con Basildo [y] el fundador asiático de los Catafrigios” (http://escrituras.tripod.com/Textos/Muratori.htm).
  


Bibliografia – Fontes Diversas
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Bíblia de Jerusalém; 3ª impressão; Paulus; São Paulo; 2004
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Bloch, Raymond e Cousin, Jean; Roma e o seu destino; trad Ma. Antonieta M Godinho; Cosmos; Lisboa-Rio de Janeiro; 1964
Cornell, Tim e Matthews, John; Roma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Feldman, Sergio A.; Entre o Imperium e a Ecclesia: os judeus no Baixo Império; Anais di XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão; ANPUH/SP-USP; São Paulo; 8-12 de setembro de 2008.
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Giordani, Mario Curtis; Antiguidade Clássica II – História de Roma; 9ª edição; Vozes; Petrópolis; 1987.
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McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.
Mercaba.org (um site completíssimo sobre tudo que diz respeito à fé católica, em espanhol)
Mora, Jose Ferrater; Diccionario de Filosofia; Sudamericana; Buenos Aires (online)

Reale, GiovanniAntiseri, Dario; História da Filosofia – Patrística e Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009.

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