HISTÓRIA
DA IGREJA BASEADA EM JEDIN – XVII
Prof
Eduardo Simões
Obrigado aos amigos de Brasil, USA, Rússia, França, Espanha, Suécia, Alemanha, Canadá. Que Deus os abençoe.
As serpentes rompem da
casca
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O século II não representou apenas uma evolução positiva no pensamento e na
autoestima da comunidade cristã, mas também o início de uma tormenta religiosa,
de potencial devastador, representado pelo crescimento das seitas gnósticas ou
do gnosticismo. Um fenômeno que, em que pese suas raízes eminentemente
orientais, divide os estudiosos sobre se seria ou não um fenômeno tipicamente
cristão, sem se chegar a uma conclusão, uma vez que todas as tentativas de encontrar
indícios de um gnosticismo pré-cristão fracassaram.
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Fazendo uma revisão geral da evolução dessa corrente de pensamento e
religiosidade baseados em Mora, comecemos com a sua definição sobre gnosticismo
(1): “pretensão de conseguir o
saber, gnosis, absoluto, nem sempre
pela via intelectual e racional, mas antes pela “mística” e a extática”. No
gnosticismo “se encontram mescladas especulações de tipo neoplatônico, com os
dogmas cristãos e as tradições judeu-orientais, sem que qualquer um desses
elementos, por si só, baste para explicar as peculiaridades desse gnosticismo”
(p 759). Ou seja, a síntese de vários sistemas concorrentes, mas também
antagônicos, que tornam a caracterização e também o combate, por parte da
igreja, extremamente difícil. Para nós, brasileiros, a melhor imagem que
podemos ter do gnosticismo é o sincretismo religioso que observamos na Bahia, e
que já levou ao esgotamento a bispos e padres que tentaram detê-lo nas hostes
católicas. Até o limite é o enriquecimento, mas passado esse limite, que é
dificílimo precisar, começa uma distorção perigosa.
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As forma mais primitiva de gnosticismo seria a mágico-vulgar, onde se explora o encanto do povo, reunido em
“massas”, por fenômenos particularmente bizarros, antinaturais. O principal
representante dessa corrente, já detectada no Segundo Testamento, Atos dos
Apóstolos, é Simão o Mago, de Samaria, que segundos os Padres Irineu e
Hipólito, “não somente pregava a existência de uma força infinita, que era o
Espírito de Deus, como considerava tal força como a origem e a raiz – secretos
– do universo” (p 759). Tal pensamento foi defendido pelos discípulos de Simão:
Menandro de Samaria e Satumilo de Antioquia.
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A ele seguiu o gnosticismo mitológico,
de cunho oriental e vinculado a uma diversidade de seitas, cada uma com suas
peculiaridades, a saber: “a) A seita dos mandeus (que dizem possuir o
conhecimento, mandayya)... b) A seitas dos ofitas, seita judia ou
sírio-alexandrina, que tinham como símbolo a serpente, ofis... c) A seita dos
barbelo-gnóstico... seita dos Adeptos da Mãe, por admitir a existência de um
princípio feminino ou a Primeira Mulher, como terceiro princípio de uma tríade
fundamental, a qual incluía como primeiro princípio o Absoluto, Pai, Luz ou
Primeiro Homem [um deus ‘macho’], e como segundo princípio o Segundo Homem ou o
Filho do Homem. A mitologia de ofitas e barbelo-gnósticos tinham traços muito
semelhantes... nas quais aparecia a Sabedoria... como uma força feminina criada
pela Primeira Mulher” (p 759-760). Posteriormente haveria um combate entre a
Sabedoria, com seus sete filhos, contra as forças do mal, comandadas por um tal
Jaldabaoz, com a vitória da Sabedoria; e por aí seguem outros princípios e
conclusões absolutamente delirantes! Quanto a doutrina dessa gente vale a pena
reproduzir esse trecho de Ferrater-Mora:
“Entre
essas concepções, figura em particular a da alma como um ser desterrado de
outro mundo, o mundo da luz. Segundo aquelas, a alma habita em um mundo
estranho, sempre ansiosa em retornar ao mundo do qual procede, e que não tem
nenhuma relação com este. Por isso esse aquele outro mundo é sempre definido de
uma forma negativa, é indizível, é um mundo escondido, no centro do qual habita
Deus, igualmente escondido e inacessível. Estranheza, desterro, mundo
sobrenatural e luminoso, voo e anelo, chamada e vigília... sombra,
esquecimento, sono e morte, são alguas das categorias dramáticas que predominam
no gnosticismo mitológico” (p. 760).
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A última etapa do pensamento gnóstico é a do gnosticismo especulativo, fruto da inserção de conceitos filosóficos na
narrativa mitológica anterior. Os principais representantes seriam: Basilides,
Carpócrates, Valentino e Marcião. As características principais desse
gnosticismo seriam: “O dualismo entre um Deus mau, o demiurgo (2) criador desse mundo e do homem,
identificado com o Deus do Antigo Testamento, e um Deus bom, revelado por Jesus
Cristo. A redenção do homem por Jesus Cristo é justamente uma obra da
revelação, o que consiste justamente à gnose, e só por ela poderá o homem
desprender-se da matéria e do mal em que se acha submerso, e ascender até a
pura espiritualidade de Deus” (idem). A ascensão da alma, segundo os gnósticos,
não se dá apenas por meio da especulação ou da revelação passiva, mas por meio
da luta, uma luta espiritual que reproduz, na alma, a luta universal entre o
bem e o mal. Como diz Mora, o universo gnóstico não é dinâmico, extático ou
dialético: é “dramático”.
“O
gnosticismo pressupõe antes de tudo a impotência do Deus criador para ser
plenamente bom – isso explicaria o fracasso da criação [o pecado no mundo] –
sem falar que coloca frente e ele, como algo pré-existente e resistente, a
matéria, que o Deus-demiurgo (segundo Marcião, o Deus dos judeus, Deus inferior,
Deus vingativo e justiceiro) não pode plasmar à sua vontade” (idem).
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Em relação à moral havia duas correntes opostas, mas não adversas: uma que
preconizava uma moral ascética, corrente aceita, em geral, pelos grandes nomes
do gnosticismo, e outra que aceitava uma moral relaxada, a partir da concepção
de que o corpo, como o mundo da matéria, não só é essencialmente mal e degenerado, como impotente para, com sua devassidão, afetar essencialmente a
caminhada da alma.
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É preciso considerar também que além do aspecto transicional da sociedade
romana do momento, que facilita a inserção de novos experimentos
teórico-ideológicos, havia o intenso e já surrado cosmopolitismo dos romanos, presente dede a fundação da cidade. O romano comum sempre foi muito aberto ás
novidades ao diferente, é um ser plástico ou uma “metamorfose ambulante”, como
diria Raul Seixas, que em contato permanente com realidades sociais e
mentalidades tão diversas dentro de seu imenso império, tinham tudo para dar um trabalho imenso a qualquer movimento reformador que visasse dar mais
centralidade ao império. Não foi por isso que os imperadores optaram pela
autodivinização?
... e mostram a cara
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Para o cristianismo, que tinha um forte senso de unidade em torno de uma
revelação específica, e ao mesmo tempo tão frágil e exposto a violentas
perseguições estatais, isso não podia ser pior. Essa tendência a uma mistura
descaracterizante poderia matar, ainda na casca, a jovem religião. Diz Jedin: “com um faro muito apurado, o gnosticismo
percebeu que seu maior adversário era a Igreja nascente, e então concebeu o
audaz projeto de conquistá-la internamente, penetrar em suas comunidades e
dissolvê-la em uma infinidade de células gnósticas” (p 283), exatamente
como a serpente no paraíso.
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Aparentemente, tinham tudo para conseguir esse objetivo, e, no entanto, foram
aniquilados de tal forma que o que sabemos hoje se deve quase exclusivamente ao
deles falam os autores cristãos contemporâneos. Diz Jedin:
“Uma grande parte da literatura gnóstica, que
no 2º século superava de muito a da Igreja nascente, foi aniquilada após a
vitória do cristianismo ou pereceu por falta de interesse [uma “onda”, uma
moda, que passou]. Desse modo o material
gnóstico se reduzia em grande parte [até recentemente] aos extratos e citações
que deles faziam os autores antignósticos, sobretudo Irineu de Lion,
Tertuliano, Hipólito, e em menor escala, Clemente de Alexandria e Orígenes, e
em época tardia Epifanio de Salamina, Filastrio de Brescia”.
http://andrewgough.co.uk/re21.jpg
http://asoutrasalmas.blogspot.com.br/
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Essa situação mudou um pouco com a descoberta de uma biblioteca gnóstica numa
gruta em Nag Hammadi, no Egito, entre os anos de 1945 e 1946, que ao menos
serviu para ampliar o nosso conhecimento acadêmico sobre o assunto, além de
alimentar devaneios audaciosos e preocupações injustificadas das mentes mais
impressionáveis (3).
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A primeira fase do gnosticismo começou com os ensinamentos de Menandro e Saturnino (o Satumilo de Ferrater Mora, acima), da escola gnóstica
samaritano-antioquena. Segundo Irineu de Lion, citado por Jedin, Saturnino
defendia as seguintes ideias:
“o Pai supremo, desconhecido, criou os anjos,
as potências e os éons do mundo superior, enquanto o inferior, o terreno, seria
obra de sete espíritos inferiores, entre os quais o maior entre eles seria o
Deus dos judeus [e nosso]; a eles
deveria o homem a sua mísera existência, pois não tinham, esses espíritos, um
modelo para criá-lo à imagem e semelhança do ser supremo” (p 289).
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A seguir vem Basilides, que ensinou
entre 120 e 140, na cidade de Alexandria, no Egito, e foi um autor muito
prolixo, escreveu um comentário aos evangelhos em 24 livros, e bem acatado no
seu tempo. Segundo o seu verbete na Wikipedia em espanhol, “toda a existência
deriva de um Deus supremo e incognoscível, do qual se engendram, em sucessivas
emanações, numerosos estratos ou realidades, a última das quais é o nosso
mundo, governado pelo Deus dos judeus. Concebe uma redenção totalmente
intelectual, consistente na súbita revelação (gnosis) da existência de Deus, a
quem desconhecemos por um orgulho inconsciente (que seria como que uma capa de
ignorância envolvendo cada homem e todo o universo...)... A moral de Basilides
era austera [o que o aproximava dos cristãos], e ele aconselhava a abstenção de
casamentos”. Segundo ainda Jedin, ele pregava que Deus teria enviado Cristo
para livrar este mundo do poder dos arcontes ou principados, mas que ele foi
visto de forma apenas aparente, pois não estava de fato neste mundo, e ainda
sobrou o pior para quem o ajudou, pois, segundo os basilidianos, foi Simão de
Cirene e não Jesus Cristo quem morreu na cruz!
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Mais perigosa foi a propaganda desenvolvida por um egípcio de nome Valentim. Nascido em Alexandria, por
volta do ano 100, lá ensinou filosofia até o ano 135, quando se transferiu para
Roma, de onde lançou, com muito mais abrangência, as sementes de seu
pensamento, que era uma mescla complexa de platonismo, pitagorismo, estoicismo,
elementos mitológicos e do cristianismo (4):
há “a concepção de um Pai ou Abismo, como um ser absolutamente uno, espiritual,
inominável, fora do tempo e do espaço” (Mora, p 867), claramente identificado
com o Deus-Pai da Bíblia; há o Nous (inteligência) e a Aletheia (descobrimento
ou verdade), “fontes do Logos, da Vida, do Primeiro Homem e da igreja” (idem);
“o uso do conceito de emanação para explicar a produção dos éons... Jesus
aparece no sistema de Valentim como o Purificador, um éon que, descendo à terra
[algo incompatível a uma divindade “boa”], redime os capazes de regressar ao
mundo dos espíritos, o único que poderá subsistir no Pleroma perfeito [a
totalidade de Deus], pois tudo o mais, que é irredimível ou material, deverá
desaparecer em meio a uma conflagração geral” (idem).
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Para dar mais peso e tornar mais atraente a sua mensagem, ele “emprega copiosamente os pensamentos paulinos
e palavras de Jesus mal interpretadas, e isso dá a sua doutrina um verniz
bíblico, que deveria torna-la mais familiar aos cristãos” (Jedin, p 290),
que nessa época deviam ser, na sua maioria, neófitos em penosa evolução em
direção de uma espiritualidade e um conhecimento religioso estável e
consistente. A igreja era enfim, uma flor muito tenra em um solo hostil, ameaçada
a partir de dentro, com o intuito de fazê-la perecer de vez. Entretanto, ao
falecer, no ano 160, Valentim pode perceber, contrariado, que seu intento falhara...
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De Sinope, no distante Ponto, saiu, em 85, um dos adversários mais perigosos
para o cristianismo: Marcião, um
homem prático, mas endinheirado, empresário de navegação, um espírito
irrequieto o bastante para ser excomungado da igreja por seu próprio pai, que
era o bispo de Sinope na ocasião. Embora os autores sejam concordes de que ele
não era um gnóstico típico, ele sempre usou do gnosticismo para mascarar suas
conclusões insinuantes e muito propensas a confundir (5), visto que soube explorar habilmente o cerne do principal
problema psicológico-moral bíblico (como compactuar o Deus-Vingador do Primeiro
Testamento, com o Deus-Amor de Jesus?), e fazer disso o fundamento da igreja
que ele criou em Roma.
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Diz Mora: “adversário do judaísmo, Marcião opôs ao Deus do Antigo Testamento –
Deus “estrangeiro”, ou melhor, um demiurgo criador de um mundo imperfeito, a
partir da matéria pré-existente, e ele mesmo imperfeito – ao Deus bom e
desconhecido, até que foi revelado por Jesus Cristo... a oposição entre o
Antigo e o Novo Testamento foi ressaltada por Marcião... Junto a isso Marcião
considerou a doutrina de Paulo (em contraposição ao suposto “judaísmo de alguns
apóstolos), como a verdadeira doutrina cristã da redenção pelo Deus bondoso, de
tal sorte que apresentava a sua igreja como a verdadeira continuadora da
tradição paulina” (p 134-135). O que isso não mexia com a cabeça das pessoas?
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http://tr.geoview.info/
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Diz Jedin: “ao lado das comunidades
cristãs foram surgido grupos marcionitas, cujo governo estava nas mãos de
bispos, apoiados por presbíteros [usavam, portanto, a mesma nomenclatura da
hierarquia eclesiástica, aumentando a confusão]. A liturgia era muito parecida com a que se celebrava na Igreja, donde
resulta que se tornou fácil a muitos deixar a verdadeira igreja pela de
Marcião, que experimentou um forte êxito inicial... a rígida organização que
Marcião deu à sua obra distinguia-a dos caóticos grupos gnósticos, e propiciou-lhe
uma grande força atrativa” (p 292). A sua cristologia era de cunho
docetista, a mais atraente na época, pois negava a realidade do nascimento de
Cristo e de sua morte na cruz. Os líderes da igreja, percebendo o perigo que
provinha da seita fundada pelo manhoso armador, incitaram grandes apologistas a
tomar da pena, para combater esse desvio ao longo dos cem anos seguintes.
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Mas Jedin ressalta um ponto positivo da luta contra Marcião:
“Ao seu inquietante êxito, contribuiu muito a
seriedade de suas exigências morais [chegou a proibir o matrimônio] e, mais do que isso, a forte personalidade
de seu fundador. Marcião, mais que
qualquer outro do movimento gnóstico, obrigou a Igreja a refletir mais
profundamente sobre a sua posição diante das Escrituras e de suas regras de fé,
esclarecendo-as, a revisar suas formas de organização e a despender todas as
forças no combate a essa heresia”.
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Muitos ataques contra a semente cristã, com substâncias doutrinárias “venenosas”,
a exemplo de modernos “herbicidas”, partiram de outras procedências, com
fórmulas diferenciadas de “veneno” e estratégias implosivas; diz Jedin: “à margem dessas tendências principais do
gnosticismo, existiam também diversos grupos quase sectários, que representavam
um gnosticismo fortemente popularizado [o cristianismo era assim atacado em
todos os níveis], onde ora uma ora outra
tendência ou ensinamento gnóstico recebia um desenvolvimento exuberante”.
Aprendendo com o
adversário
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A Igreja, identificando a natureza dos desafios gnósticos que mais
profundamente atingiam-na, reagiu com método e raciocínio para debelar a
ameaça.
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No plano institucional os bispos reagiram procurando identificar, isolar ou
converter, e em seguida expulsar, os elementos que mostrassem uma prática ou
simpatia pelo gnosticismo – para contornar isso, alguns gnósticos costumavam se
mudar de uma igreja para outra, em cidades diferentes, toda vez que a sua ação
missionária ali se quedava esgotada. O cristianismo deveria ser assumido como
um compromisso sério e não como uma moda pelos fieis. Ademais forma fechadas as
portas àqueles antigos cristãos que, após serem cooptados pelos gnósticos,
apareciam, sem mais, simulando querer retornar à Igreja, agora na condição de
eventual missionário do gnosticismo – a serpente queria voltar ao paraíso. Não
seria assim tão fácil! Jedin afirma:
“As queixas de alguns gnósticos de que os católicos
não queriam ter nada com eles e os qualificavam de hereges, apesar de que
professavam mesma doutrina [como eram manhosos!] supõem tais medidas de defesa [citadas acima]... Outros gnósticos se apartaram da Igreja
quando se viram isolados e sem possibilidade de ação... Valentim não se
desligou da Igreja Universal senão bem depois, embora tenha sido reiteradamente
chamado a atenção, nas comunidades particulares que frequentou, por causa de
suas opiniões pessoais” (p 296-297).
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Veja-se o quanto eles eram insistentes, insidiosos, e como, maliciosamente,
aproveitavam-se daquelas que eram consideradas as maiores virtudes do
cristianismo, como a paciência, o acolhimento, a caridade, inclusive o
diferente e o adversário, pois Deus faz chover sobre justos e injustos (Mt
5,45), da mesma forma que, apegando-se a detalhes irrelevantes, pretextavam
defender a mesma doutrina dos cristãos!
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Entretanto, graças às luzes do Espírito Santo, vários membros importantes da
Igreja vislumbraram naquele momento a oportunidade, e até a necessidade, para
avançar em pontos ainda obscuros ou ignorados, por força das circunstâncias,
pelos cristãos, para aprimorá-los, esclarecê-los e desenvolvê-los, enriquecendo
ainda mais o tesouro da fé católica. E assim em diversos lugares do mundo
romano, mentes ora brilhantes ora comuns, entusiasmadas pela grandiosidade e os
méritos da tarefa, puseram mãos à obra, para criar, desde pequenos textos, tipo
catecismo básico, até importantes tratados de teologia-filosofia, um obstáculo à propaganda gnóstica e pagã.
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Irineu cita uma singela homilia de um presbítero da Ásia Menor, que expunha com
grande precisão e didática a doutrina católica, tendo em vista as distorções de
Marcião; Dionisio de Corinto, citado por Eusebio de Cesareia, envia, por volta
de 170, cartas às comunidades da Ásia Menor, e aos seus colegas bispos de uma
vasta área do Mediterrâneo Oriental, exortando-os a permanecerem firmes na
defesa da fé. Aos poucos começa uma cadeia de reação, dirigida pelos bispos,
agora convencidos de que sua tarefa mais importante, no momento, era resguardar
o depósito da fé, consubstanciada na Palavra de Deus e nas consequências
doutrinárias que dela advinham.
“Junto com a atividade do episcopado... se
desenvolveu o trabalho de teólogos... uma extensa produção literária, saída de
penas católicas, tratou de dar suporte e fundamentar teologicamente a luta dos
bispos... A ela pertence Agripa Castor que impugnou o gnóstico Basílides; Rodão da Ásia Menor que enfrentou a
Marcião e seu discípulo Apeles; e Modesto, cuja refutação a Marcião é
particularmente estimada por Eusébio. Entre os escritores antignósticos se
contam bispos como Militão de Sardes, Filipe de Gortina... e Teofilo de
antioquia, que se dedicaram a rebater Marcião... contra Marcião também se mediu
Justino Mártir” (p 298).
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Combate-se fogo com fogo, contra os gnósticos, pródigos em livros apócrifos,
surge uma literatura apócrifa católica antignóstica nos Atos de Paulo e Epístola dos
Apóstolos, e num plano superior, bem superior, na mesma linha, encontram-se
os escritos de Hegésipo (6) e Irineu
de Lion, que em sua obra Contra os
hereges, dirigida especialmente contra o gnosticismo, escreveu um texto tão
bem fundamentado que não foi superado por nenhum outro em sua época. Apareceu
ainda um escrito de autor ignorado, com o título latino de Refutação de todas as heresias, que segundo Jedin “busca demonstrar que as teses dos gnósticos
não estão fundamentadas nas Sagradas Escrituras, mas nos filósofos gregos, nos
mistérios, na astrologia e na magia, ou seja, em fontes não cristãs” (p
299). Outro gigante da luta contra o gnosticismo foi o teólogo africano, de
expressão latina, Tertuliano.
__
Um dos principais desafios postos pelos gnósticos foi o de que eles, e somente
eles, “possuíam a revelação feita por
Cristo aos apóstolos, o que desqualificava tanto os livros sagrados dos
cristãos, que remontavam à era apostólica, como as tradições apostólicas
extrabíblica” (p 300). Ora, essa afirmação atingia frontalmente às principais
muralhas defensivas da Igreja: os bispos, que eram, na opinião dos gnósticos, justamente aquilo que não deveria existir,
pois a sua existência bloqueava o principal alvo do ataque gnóstico: o correto
sentido da Palavra do Senhor, garantido pelos usos, costumes e interpretações
herdados dos apóstolos e transmitidos pelos bispos. Havia uma inovação perversa
no gnosticismo, que pode ser representada metaforicamente da seguinte maneira:
dispersem-se as ovelhas, e os pastores as reunirão novamente, dispersem-se os
pastores, e o que será das ovelhas? Será que isso não existe nos dias de hoje?
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Do desafio de Marcião sobreveio uma nova necessidade: a de aclarar o sentido e
o conteúdo do depósito da fé, as Sagradas Escrituras, uma vez que aquele, no
afã de repudiar o Primeiro Testamento (7),
induziu a Igreja a se debruçar mais detidamente sobre a mensagem bíblica, e
afirmar com mais precisão o que deveria ou não fazer parte dela, ou seja:
definir o cânon bíblico.
“[a
Igreja] aceitou como escritura sagrada os
livros do Antigo Testamento... e em segundo lugar admitiu em seu cânon
neotestamentário outros escritos rechaçados por Marcião, principalmente o Atos
dos Apóstolos e o Apocalipse. Na polêmica contra o gnosticismo se firmou, cada
vez mais, a autoridade desse cânon e no chamado Fragmento Muratori, que é um
índice das escrituras canônicas do Novo Testamento... esse cânon se aproxima,
já no final do século II, de sua forma definitiva” (p 301) (8).
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Das discussões que se seguiram sobre os critérios que determinariam a entrada
ou não de um livro no cânon, Jedin esclarece o seguinte:
“Era necessário escolher um princípio que fosse
objetivo, inatacável, e esse princípio foi encontrado na tradição eclesiástica.
Só poderiam ser reconhecidos como canônicos aqueles escritos que remontavam a
era apostólica e que, desde muito cedo, haviam gozado de apoio nas tradições
das diversas igrejas. Os fiadores da autenticidade de tais tradições só
poderiam ser aqueles dirigentes que, em série ininterrupta, volviam até os
apóstolos [os bispos]. Com esse
princípio da sucessão apostólica se assegurou, positivamente, a tradição como
elemento essencial na vida, na fé e na teologia da Igreja; e, negativamente, se
despojou a todos os apócrifos e escritos doutrinais gnósticos de autoridade, e
se os expurgou da Igreja” (p 301).
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Comentando o parágrafo anterior podemos dizer que o gnosticismo tentou atingir
a Igreja fragilizando suas colunas e vigas mestras: os bispos, e a Igreja
reagiu justamente reforçando esses elementos, e com isso colheu mais
estabilidade e firmeza, e venceu, até com certa folga, o desafio gnóstico.
Outras providências foram tomadas:
“Justamente por volta da metade do século II
o símbolo batismal [a oração do credo proferida pelo batizando adulto ou
pela comunidade em lugar das crianças] recebeu
aquelas ampliações cristológicas que realçavam a realidade do nascimento,
paixão e morte de Jesus Cristo. Assim se feria de morte o docetismo de algumas
seitas gnósticas e se assegurava a historicidade dos fatos salvíficos do
Senhor, contra toda volatização espiritualista. O mesmo símbolo proclamava a
Deus uno como o senhor e o criador do universo, desautorizando as especulações
gnósticas sobre a origem dos cosmos e as de Marcião sobre a existência de dois
deuses. A repulsa gnóstica ao corpo, como parte da matéria essencialmente má,
foi contraditada pela crença cristã na ressurreição da carne” (p 301-302).
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Novos avanços se seguiram: Irineu de Lion aprofundou a doutrina sobre a queda
do homem, desfazendo algumas ilações absurdas gnósticas, inclusive a crença de
que o pecado original estaria ligado intrinsecamente à parte material,
orgânica, do homem, além de esvaziar a importância dada ao conhecimento, pelos
gnósticos, para avançar mais na gratuidade da graça divina, como veículo de
nossa salvação, mas, por outro lado, a ênfase dos gnósticos no conhecimento fez
alguns Padres, como Clemente de Alexandria e Orígenes, aprofundarem os estudos
sobre as relações entre as ciências e a fé; o combate ao marcionismo acelerou
de uma maneira positiva, a evolução do conceito de dogma; etc. Jedin repara:
“A balança se inclinara a favor da Igreja já
antes do começo do século III; em poucos decênios já havia expelido o veneno
inoculado, deixando o gnosticismo encerrado sobre si mesmo... o cristianismo
eclesiástico conservou, frente a arremetida do gnosticismo, seu peculiar
caráter de comunhão de fé e de vida natural fundada por Cristo, escapando assim
do perigo de dissolver-se no mar do sincretismo helenista.”
http://sixintheworld.com/wp-content/uploads/2007/04/monksvalleylong1.jpg
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A heresia do Espírito
Santo
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A Igreja ainda batalhava duramente com o gnosticismo, quando explodiu, no seu
seio, outra fonte extravagância doutrinária: o montanismo, também chamado por
seus sequazes de “nova profecia”, enquanto seus adversários o chamavam “heresia
frígia”, em virtude do local onde se deu suas primeiras manifestações: a
província romana da Frígia. Esse movimento constiuía-se numa tentativa
saudosista e superficial de retorno ao espírito festivo dos primeiros tempos do
cristianismo, que nunca deve abandonar a Igreja, engalanado, segundo Atos dos
Apóstolos, por sinais maravilhosos, nos quais os tolos detêm as vistas,
ignorando as imensas dificuldades, que Atos também relata, e das quais as
“aventuras” de Paulo estão repletas.
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As manifestações carismáticas impressionam as mentes simplórias, fazendo-as
esquecer que a essência da menagem cristã é a cruz, presente desde o início da
missão de Jesus, no tema das bem-aventuranças, e, posteriormente, na sua
pobreza “o filho do homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20), na
rejeição de sua mensagem e na morte brutal e ignominiosa. Àqueles, como
dizíamos, encanta as manifestações visíveis e chamativas da fé, que,
aparentemente, ultrapassam a esta e transformam a crença num “fato”, no sentido
positivista do termo, com a possibilidade de, por meio de milagres, mudar a
natureza e a história que Deus criou e dá o sentido último. Jedin adverte que,
se é verdade que esses dons, postos a serviço da comunidade, trazem um grande
bem à Igreja, porém “entre eles [os
carismáticos dos primeiros tempos] também
apareceram, aqui e alí, falsos profetas, ilusionistas e embusteiros [como
Simão o Mágico], que cobriram de
descrédito a profecia e despertaram a desconfiança generalizada sobre o
aparecimento de semelhantes dons. Tampouco faltaram desarmonia e tensões entre
os espirituais e as autoridades eclesiásticas”. De fato, se alguém que
acredita estar em “ligação direta” com o Espírito Santo, quando receber uma
ordem ou orientação em contrário, de seu bispo, dificilmente o escutará.
__
Numa atitude típica de quem quer chamar a atenção sobre si, um recém-converso de
uma aldeia na província da Mísia, chamado Montano, começou a ter ou simular publicamente
tiques físicos estranhos, semelhantes àqueles que se manifestam em pessoas
supostamente em contato com o mundo espiritual, entremeadas com palavras
obscuras, confusas. Ao sair de seu transe ele disse que acabara de ser
convocado pelo Espírito Santo para dar o acabamento, o sentido final e
verdadeiro, das palavras de Cristo. Isso teria acontecido entre os anos 135 e
177. Em favor de Montano é necessário que se registre que havia um ambiente de
apreensão geral e perspectiva de apocalipse, de espera ansiosa pela segunda
vinda do Senhor para breve, conforme algumas passagens bíblicas, tanto dos
Evangelhos como das Cartas, muito presente na região, que se manifestava das
formas mais bizarras; “conta Hipólito que
[no tempo do imperador Marco Aurélio] um
bispo da Síria saiu, com toda a sua igreja, para o deserto a fim de esperar
Jesus Cristo; e que outro, do Ponto, pregava que lhe fora revelado, em sonhos,
que o mundo acabaria em um ano, e que se isso não acontecesse então não era mais
necessário acreditar nas Sagradas Escrituras” (p 305).
http://imgc.allpostersimages.com/images/P-473-488-90/45/4550/BK1DG00Z/posters/gnostic-in-ecstasy.jpg
http://www.occultopedia.com/
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A princípio a mensagem de Montano não foi levada a sério, mas quando duas
mulheres, supostas profetizas, chamadas Priscila e Maximila, em êxtase,
começaram a profetizar a mesma coisa e a acentuar a excelência de Montano, a
coisa “pegou fogo” e um entusiasmo repentino, irrefletido, começou a tomar
conta de muitos fieis, e como uma onda começou a se espalhar por todo o império,
em especial nas províncias do Oriente. As premissas do montanismo são as
seguintes:
a)
Valorização das manifestações extáticas ou carismáticas, independentes de
qualquer controle – controlá-las seria ir contra o Espírito Santo “em pessoa”:
“ele (Montanus) ficou fora de si, e entrando, de repente, numa espécie de
frenesi extático, delirou e começou a balbuciar e proferir coisas estranhas,
profetizando de forma contrária aos costumes da Igreja, constantes da tradição
que nos foi transmitida desde o começo” (trecho de Eusébio de Cesareia,
traduzido da Wikipedia em inglês: Montanism).
Os profetas extáticos do montanismo não agiam como mensageiros de Deus, mas
como que por Este possuídos, sendo-lhes, portanto, inútil e até maléfico
resistir a tal movimento, por alguma forma um controle racional sobre aquilo
que lhes era revelado.
b)
Forte sentido escatológico, fundado principalmente nas obras de João: o fim do
mundo estaria próximo e a Jerusalém celeste desceria do céu sobre a cidade de
Pepuza, na Frígia, onde Montano fixou sua sede, conclamando as pessoas a irem
para lá, a fim de escaparem dos eventos traumáticos previstos no Apocalipse de
João, já com data marcada, além de obterem uma posição de destaque junto a Deus
e seu profeta. Como consequência dessa profecia muitas pessoas pararam de
trabalhar e viviam pelas praças, sem fazer nada, sem cuidar de seu aspecto ou
higiene. Eventos contemporâneos, como uma grande peste e ciclos de fome
ocorridos durante o reinado de Marco Aurélio, pareciam lhes dar razão.
c)
Valorização exacerbada do martírio: os montanistas eram mesmo instigados a
procurar seu próprio martírio, criando sérios problemas para a Igreja, que, com
tato e prudência tentava estabelecer um diálogo construtivo com o Império
Romano, e este de repente se via abusivamente provocado por aqueles que se
diziam cristãos – acredita-se que provocações montanistas possam estar na raiz
do sangrento episódio dos Mártires de Lion, já citado. Os montanistas, nesse
sentido também divergiam fortemente da Igreja quanto ao tratamento a ser dado
àqueles que, durante uma perseguição, apostataram, mas que depois, passada a
perseguição, queriam voltar ao seio da Igreja. A determinação entre eles é de
não aceitar essa gente de volta de forma alguma.
d)
Penitencialismo e moralismo exagerados: valorizava-se toda sorte de penitência
e destrato com o próprio corpo, talvez por influência da crença grega na
maldade intrínseca da matéria, com destaque para o jejuns, que foram prescritos
por duas semanas ao ano; impunham-se a xerofagia, o consumo apenas de alimentos
secos com exclusão da carne. As mulheres virgens deviam usar veu
obrigatoriamente e tanto as mulheres quanto as meninas não podiam usar qualquer
ornamento; para certo tipo de pecado negava-se terminantemente a absolvição,
independente das disposições internas e das penitências já feitas ou por fazer pelo
pecador. Recomendavam ainda a castidade dentro do matrimônio e a proibição de
segundas núpcias. Induzidas por isso, Maximila e Priscila abandonaram os seus
maridos, e foram viver junto a Montano.
__
O montanismo se propagou mais rapidamente na Ásia e nela perdurou por mais
tempo até o final do século IV, sem encontrar a mesma acolhida no Ocidente, fazendo
com que alguns autores ressaltem essa heresia como um dos marcos na gradual
diferenciação evolutiva entre o cristianismo asiático e o ocidental, que
culminará na separação de 1054. Mas nem por isso as coisas deixaram de ser
complicadas, muito complicadas, no Ocidente.
__
A reação à Nova Profecia, entretanto, começou na Ásia mesma, quando um sínodo
presidido por Apolinário, bispo de Hierápolis, em 177, condenou, ou ordenou
cautela, em relação à sua doutrina, seguida de um pronunciamento semelhante pelas igrejas de Lion e Vienne, no Ocidente, que já sentiam os malefícios da
presença montanista. A situação, entretanto, ficou estranha, ante a atitude do
Papa Eleutério (175-189), que aparentemente deu o seu assentimento à seita
montanista, o que ensejou a visita de Irineu de Lion e Abercio de Hierápólis a
Roma, para lhe alertar sobre essa seita, embora até hoje esteja em aberto se
Eleutério foi de fato um simpatizante da seita ou apenas excedeu-se no seu
intento de evitar medidas mais firmes e até um cisma. Temor que não foi
partilhado pelo Papa Zeferino (199-217) que, após apoiar o movimento,
denunciou-o decididamente.
__
O primeiro grande golpe contra o montanismo veio de dentro do próprio
movimento, quando a profetiza Maximila, entusiasmada pelo sucesso inicial da
seita, resolveu cometer o erro crasso das falsas profecias sobre esse tema:
datar o fim do mundo. Ela previu que “após
mim não virá nenhum outro profeta, mas a consumação dos tempos” (p 307).
Maximila morreu em 179, e o mundo não acabou, e a seita então experimentou
forte decadência. O montanismo foi continuamente se estiolando, até se tornar
uma pequena sociedade secreta, praticamente sumida do horizonte ocidental, mas
perseguida pelo estado bizantino, no Oriente, onde o imperador bizantino Justiniano,
no século VI, teria mandado um general, João de Éfeso, até Pepuza para destruir
os monumentos deixados pelos montanistas, inclusive as sepulturas de Montano,
Priscila e Maximila. No século VIII, o imperador Leão III ordenou a conversão
forçada e o batismo de alguns hereges, inclusive montanistas, mas eles
preferiram se encerrar em templos e por fogo neles, morrendo incinerados. Como
recomendava Montano.
Uma grande baixa
__
Entretanto o montanismo não desapareceria sem antes aplicar um vigoroso golpe em
sua invencível adversária, conseguindo a conversão de um dos principais
apologistas da Igreja, o africano Quinto Sétimo Florencio Tertuliano, ou
simplesmente Tertuliano, à seita, em 207. Diz jedin sobre isso
“Mesmo para um homem da estatura intelectual
de Tertuliano, seria necessário haver um período de luta entre a sua passagem
de católico para montanista fanático, pois sua nova fé o levaria a uma antítese
patente... com suas antigas crenças. Agora iria blasfemar por meio de ataques
desmedidos contra aquilo antes defendera e tão ardentemente adorara... Seguramente
lhe atraía mais a ideia de que, na forma montanista, podia apelar em favor de
suas ideias diretamente ao Espírito Santo. Ante tal instância deveriam calar-se
todas as outras... inclusive o bispo de Roma... [Tertuliano, porém, não
reproduziu literalmente a doutrina montanista, isto é, ele criou sua própria
versão onde] nega, sobretudo, reconhecer
à mulher, na comunidade montanista que ele imagina, um posto semelhante ao que
ocuparam Maximila e Priscila. Não só lhe tira toda função sacerdotal, senão que lhes proíbe o ensinamento e
qualquer participação no culto divino, e dá ao carisma da profecia, nas
mulheres, um caráter estritamente privado. Também se aparta dos dados mais
concretos sobre a descida da Jerusalém celeste sobre Pepuza [como defendiam
os criadores da seita]... Tertuliano
quer... dar-lhe um caráter universal... Sua verdadeira missão [do montanhismo
tertuliano] consiste em levar a
cristandade e a humanidade, por obra da graça do Espírito Santo, à sua
maturidade. Os escritos de Tertuliano defendem os postulados rigoristas da Nova
Profecia com uma vivacidade incomum e uma linguagem apaixonada... defende a
proibição de fugir do martírio, e apresenta o casamento único como um
mandamento ineludível do Espírito Santo (segunda núpcias é adultério), da mesma
forma como demonstra a necessidade dos jejuns, a que não querem reconhecer os
“psíquicos” [designação para os católicos, enquanto eles se diziam
“espirituais”], a quem insulta da maneira
mais brutal. De desapiedada dureza... é o seu ataque contra a prática da Igreja
na questão da penitência, que o converte por princípio em inimigo inconciliável
da Igreja episcopal; com isso se parta definitivamente de uma autoridade
eclesiástica fundada na sucessão apostólica” (p 309).
__
O notável nisso é que Tertuliano era um severo adversário do gnosticismo, que
foi justamente no seio da Igreja pelo reforço dado ao seu caráter episcopal e o
fortalecimento da figura do bispo, que Tertuliano agora ataca, reproduzindo a
estratégia de seus grandes inimigos. Depois da morte de Tertuliano (+/- 225),
porém, ninguém mais fala do montanismo, e um pouco antes de 430 o célebre bispo
de Cartago, Santo Agostinho, recebe a adesão dos últimos montanistas ou
tertulianistas conhecidos que havia na África, junto com a basílica que eles
possuíam naquela cidade.
__
Mas é preciso aprender com as dificuldades e até com os fracassos, e refletir
que houve aquisição de elementos positivos do enfrentamento com o montanismo,
que enriqueceram e nortearam as ações seguintes da Igreja, e que foram vitais
até para o seu sucesso como instituição universal:
“Ao recusar o extremado projeto penitencial
dos montanistas, a Igreja escapou do perigo em degenerar-se numa pequena seita
de exaltados, preservando-se para a missão de levar a Cristo a todos os homens
e atuar eficazmente em todos os ambientes culturais. Ao repudiar o subjetivismo
religioso desgovernado, com a pretensão a assumir o controle exclusivo sobre o
fiel, como pretendiam os profetas frígios, assegurava às comunidades uma
direção objetiva nas mãos de ministros... cuja vocação se regia por critérios
objetivos. Ao renunciar a uma esperança escatológica de cumprimento imediato,
conservou a possibilidade de contemplar objetivamente as suas tarefas presentes
e futuras, favorecendo a sua consolidação interna e a sua ação missionária no
mundo antigo decadente.”
__
Breve balanço: perseguição do estado romano, dificuldades de organização, e
esclarecimento doutrinal, precária formação de seus quadros, até bispos tomando
medidas extravagantes, poderosos movimentos implosivos brotando no seu
interior, traição e “virada” espetacular de um de seus mais importantes
defensores, tudo isso suscita de imediato uma pergunta: como uma instituição
ainda nascente poderia sobreviver a tudo isso?
Notas
(1)
Para além da definição do que seja o gnosticismo há toda uma rica e acalorada
discussão sobre o que seria esse fenômeno na sua totalidade, quais seriam as
premissas do seu aparecimento naquela época; a esse respeito reproduzo um
trechos de Ferrater Mora: “para alguns o gnosticismo é uma filosofia cristã, ou
pelo menos uma tentativa dela, no dizer de Harnack [importante historiador e
teólogo protestante do século XIX e XX], que não difere muito da de Plotino
[filósofo da Antiguidade] que no seu tratado contra os gnósticos não distingue
entre eles e os cristãos... Para outros, o gnosticismo é a expressão interna da
decadência do pensamento antigo, que justamente aproveita para a sua construção
de elementos trazidos pelo cristianismo e pelos conflitos, reais e aparentes,
entre a Antiga e a Nova Lei” (p 759).
(2)
Demiurgo, que em grego quer dizer: “artífice”, “fabricante”, “genitor”,
“edificador”, é um termo usado por Platão para se referir a um ser, espiritual,
de cuja habilidade e mãos saíram o mundo material, o universo, e os homens, a
partir de modelos observados diretamente em Deus. Em Platão, o demiurgo “fez o
mundo movido por sua bondade e falta de inveja, desejando que todas as coisas
fossem semelhantes a ele” (idem, p 416). Essa posição de Platão, segundo
Ferrater-Mora, aproxima-se do que seria o espírito do Logos cristão, o Filho,
mas mesmo tempo afasta-se dela ao trata-lo como um ser inferior e submisso a
Deus.
(3)
A descoberta desses manuscritos foi casual. Em dezembro de 1945, três irmãos,
Muhammad, Califa e Abu, e mais quatro camponeses, fertilizavam as bases do
maciço Jabal al Tarif, próximo à aldeia de Nag Hammadi, antigo local do
mosteiro de Xenoboskion, fundado por São Pacômio entre 310 e 315, quando deram com
os achados. Levados para casa boa parte dos manuscritos foi queimada pela mãe
dos rapazes, com o receio “mágico” que pudessem ser “perigosos”, mas a maior
parte acabou chegou ás mãos de autoridades da igreja cristã copta, e daí para
as de estudiosos e especialistas, que constataram ser trechos de seitas
gnósticas dos primeiros séculos – para se ter uma ideia, até a descoberta só se
conheciam duas obras gnósicas originais: Pistis
Sophia e o Livro de Jeu.
Sobre
o Pistis
Sophia, tinha-se cerca de cinco cópias do séc. V, de obras do séc II,
descobertas em 1773. Este livro versa sobre supostos encontros de Jesus com
seus discípulos, a Virgem Maria e Maria Madalena, ao longo de doze anos, após a
sua ressurreição! “Nele são reveladas as complexas estruturas e as hierarquias
do céu, muito comuns aos ensinamentos gnósticos... A divindade feminina dos
gnósticos chama-se Sofia, um ser com muitos aspectos e nomes. Às vezes é
identificada como o Espírito Santo, mas, segundo as suas capacidades, pode ser
também a Mãe Universal, a Mãe da Vida... a mão esquerda (oposta a Cristo, o seu
marido, que é a mão direita)... o título, Pistis Sophia, é obscuro... a melhor
tradução, tendo em conta seu contexto gnóstico, é ‘a fé de Sofia’” (Wikipedia
em espanhol – Pistis Sophia).
Já
os Livros de Jeu, em número de dois,
dos quais existe uma cópia no chamado Códice de Bruce, foram escritos na
primeira metade do século III, e falam sobre revelações que Jesus teria feito a
seus discípulos e algumas mulheres. Seu texto é muito complexo e cheio de
símbolos misteriosos, e sua relação com o Pistis Sophia é evidente, se é que um
não foi adaptado do outro.
Com
Nag Hammadi isso mudou, pois nos doze códices retirados da gruta em Nag
Hmammadi foram encontradas 52 obras independentes, poucas incompletas ou
fragmentárias. Entre as obras encontradas algumas têm título que denunciam de
cara a sua procedência gnóstica como o Evangelho
da Verdade, o Livro secreto de São
Tiago, o Livro secreto de João, A hipóstase dos arcontes, etc.
Em
1970, portanto fora do alcance da obra de Jedin, foi encontrado um texto
gnóstico perto de Beni Masar, no Egito, no chamado Códice Tcharcos. Este
continha um manuscrito em língua copta, provavelmente feito a partir de um
original grego, datado, pelo carbono 14, em torno de 280, que causou um furor
mundial, quando o seu conteúdo veio à tona, porque ele compunha nada menos que
um “evangelho”, supostamente escrito pelo traidor de Jesus: Judas. O impacto
imediato causado pela publicação desse texto foi imenso, mas, da mesma forma
que “explodiu”, apagou logo depois, e foi esquecido, como parece ser o destino
tradicional das “revelações” gnósticas.
(4)
Tertuliano, em um de seus escritos contra os valentinianos diz: “Valentim esperava se tornar Bispo, pois ele era um homem
habilidoso, tanto no intelecto quanto na eloquência. Indignado, porém, que um
outro obteve a honra por causa de uma reivindicação que um confessor havia lhe
feito, ele deixou a igreja da fé verdadeira. Assim como outros espíritos
(incansáveis) que, quando atribulados pela ambição, são finalmente inflamados
pelo desejo de vingança, ele se aplicou com todas as suas forças em exterminar
a verdade; e encontrando a pista de uma certa opinião antiga, ele trilhou um
caminho para si...” (Wikipedia em português - Valentim)
(5) Após ser expulso da igreja de
sua terra, Marcião sofreu o boicote de grandes nomes da igreja na Ásia Menor,
como Papias e Policarpo de Esmirna, indo parar em Roma, no ano 144, aonde
chegou fazendo generosas doações à igreja local, chamando a atenção para a sua
pessoa. Em Roma teria conhecido Cerdão, um gnóstico, que lhe introduziu nessas
ideias, e imediatamente começou a pregá-las aos seus irmãos de fé. Repudiado
pela igreja, ele resolveu partir para a fundação de sua própria igreja e o
combate ferrenho ao cristianismo, colocando um novo perigoso desafio, em
virtude de sua energia pessoal inesgotável e sua formidável capacidade de
organização.
(6) Segundo Eusébio de Cesareia,
Hegésipo seria um judeu convertido, que, segundo ainda Eusébio,teria escrito
uma crônica dos primeiros tempos da Igreja, além de outros escritos, de cunho
antignósticos, que, infelizmente, se perderam todos. Hegésipo teria morrido por
volta de 180.
(7) “Marcião, declarando obrigatórios [canônicos] os livros do Novo
Testamento, claramente fixados” (p 300) foi o autor do primeiro cânon bíblico
que se conhece.
(8) Esse dado desmente de forma cabal e decisiva o argumento
de muitos ingênuos e maliciosos, inclusive escritores ansiosos por sucesso ou dinheiro,
que deram a trombetear que o atual cânon bíblico surgiu com Concílio de Éfeso,
no século IV, sob pressão do imperador Constantino.
O Fragmento Muratori ou Muratoriano, é a cópia de uma lista
de livros do Novo Testamento, cujo exemplar mais antigo foi encontrado na
Biblioteca Ambrosiana de Milão, datado do século XVII, embora estudos
posteriores comprovem que se trata da cópia de um documento datado por volta de
170. No fragmento de Muratori constam quatro evangelhos, dois claramente
identificados: Lucas e João (há outros dois não identificados, pois perdeu-se o
início do documento) seguindo-se o Atos dos Apóstolos, 13 cartas de São Paulo,
sem Hebreus, uma carta de Judas e duas de João, além de dois Apocalipses: o de
João e o de Pedro; este com reservas devidamente assinaladas: “alguns dos
nossos não permitem que seja lido na Igreja” (Wikipedia em português). Veja
abaixo o texto do Fragmento Muratori em espanhol:
“... en éstos, sin embargo, él estaba
presente, y así los anotó.
El tercer libro del evangelio: según Lucas.
Después de la ascensión de Cristo, Lucas el médico,
el cual Pablo había llevado consigo como experto jurídico, escribió en su
propio nombre concordando con la opinión de [Pablo]. Sin embargo, él mismo
nunca vio al Señor en la carne y, por lo tanto, según pudo seguir..., empezó a
contarlo desde el nacimiento de Juan.
El cuarto evangelio es de Juan, uno de los
discípulos.
Cuando sus co-discípulos y obispos le animaron,
dijo Juan, "Ayunad junto conmigo durante tres días a partir de hoy, y, lo
que nos fuera revelado, contémoslo el uno al otro". Esta misma noche le
fue revelado a Andrés, uno de los apóstoles, que Juan debería escribir todo en
nombre propio, y que ellos deberían revisárselo. Por lo tanto, aunque se
enseñan comienzos distintos para los varios libros del evangelio, no hace
diferencia para la fe de los creyentes, ya que en cada uno de ellos todo ha
sido declarado por un solo Espíritu, referente a su natividad, pasión, y
resurrección, su asociación con sus discípulos, su doble advenimiento - su
primero en humildad, cuando fue despreciado, el cual ya pasó; su segundo en
poder real, su vuelta. No es de extrañar, por lo tanto, que Juan presentara de
forma tan constante los detalles por separado en sus cartas también, diciendo
de sí mismo: "Lo que hemos visto con nuestros ojos y oído con nuestros
oídos y hemos tocado con nuestras manos, éstas cosas hemos escrito".
Porque de esta manera pretende ser no sólo un espectador sino uno que escuchó,
y también uno que escribía de forma ordenada los hechos maravillosos acerca de
nuestro Señor.
Los Hechos de todos los apóstoles han sido escritos
en un libro. Dirigiéndose al excelentísimo Teófilo, Lucas incluye una por una
las cosas que fueron hechas delante de sus propios ojos, lo que él muestra
claramente al omitir la pasión de Pedro, y también la salida de Pablo al partir
de la Ciudad para España.
En cuanto a las cartas de Pablo, ellas mismas
muestran a los que deseen entender desde qué lugar y con cuál fin fueron
escritas. En primer lugar [escribió] a los Corintios prohibiendo divisiones y
herejías; luego a los Gálatas [prohibiendo] la circuncisión; a los Romanos
escribió extensamente acerca del orden de las escrituras y también insistiendo
que Cristo fuese el tema central de éstas. Nos es necesario dar un informe bien
argumentado de todos éstos ya que el bendito apóstol Pablo mismo, siguiendo el
orden de su predecesor Juan, pero sin nombrarle, escribe a siete iglesias en el
siguiente orden: primero a los Corintios, segundo a los Efesios, en tercer
lugar a los Filipenses, en cuarto lugar a los Colosenses, en quinto lugar a los
Gálatas, en sexto lugar a los Tesalonicenses, y en séptimo lugar a los
Romanos. Sin embargo, aunque [el mensaje] se repita a los Corinitios y los
Tesalonicenses para su reprobación, se reconoce a una iglesia como difundida a
través del mundo entero. Porque también Juan, aunque escribe a siete iglesias
en el Apocalipsis, sin embargo escribe a todas. Además, [Pablo escribe] una
[carta] a Filemón, una a Tito, dos a Timoteo, en amor y afecto; pero han sido
santificadas para el honor de la iglesia católica en la regulación de la
disciplina eclesiástica.
Se dice que existe otra carta en nombre de Pablo a
los Laodicenses, y otra a los Alejandrinos, [ambos] falsificadas según la
herejía de Marción, y muchas otras cosas que no pueden ser recibidas en la
iglesia católica, ya que no es apropiado que el veneno se mezcle con la miel.
Pero la carta de Judas y las dos superscritas con
el nombre de Juan han sido aceptadas en la [iglesia] católica; la Sabiduría
también, escrita por los amigos de Salomón en su honor. El Apocalipsis de Juan
también recibimos, y el de Pedro, el cual algunos de los nuestros no permiten
ser leído en la iglesia. Pero el Pastor fue escrito por Hermas en la ciudad de
Roma bastante recientemente, en nuestros propios días, cuando su hermano Pío
ocupaba la silla del obispo en la iglesia de la ciudad de Roma; por lo tanto sí
puede ser leído, pero no puede ser dado a la gente en la iglesia, ni entre los
profetas, ya que su número es completo, ni entre los apóstoles al final de los
tiempos.
Pero no recibimos ninguno de los escritos de Arsino
o Valentino o Miltiado en absoluto. También han compuesto un libro de salmos
para Marción [éstos rechazamos] junto con Basildo [y] el fundador asiático de
los Catafrigios” (http://escrituras.tripod.com/Textos/Muratori.htm).
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Mercaba.org (um site completíssimo sobre tudo
que diz respeito à fé católica, em espanhol)
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Reale, Giovanni – Antiseri, Dario;
História da Filosofia – Patrística e
Escolástica; trad. Ivo Torniolo; 4ª edição; Paulus; vol 2; São Paulo; 2009.
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