sábado, 16 de julho de 2016

A SEGUNDA EMENDA (1791) NÃO É A AMÉRICA

Prof Eduardo simões

Obrigado aos amigos do Brasil, EUA, França, Portugal e Espanha. Deus os abençoe.

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__ Os recentes episódios de violência nos EUA, envolvendo a polícia, acendem um alerta sobre a liberdade indiscriminada para a compra, e às vezes até porte, de armas, baseadas principalmente numa interpretação muito “liberal” da Segunda Emenda à Constituição, discutida quase sempre de uma forma maniqueísta e ahistórica. Acima vemos uma das principais defensora da livre aquisição e porte de armas, a deputada republicana pela Assembleia Legislativa do Estado de Nevada, Michele Fiore. O texto do pôster diz: “O 2016 de Michele Fiore, seguimos conversando”, com o largo sorriso, e as mãos nas coronhas – será para o caso de ela ouvir algo que a desgrade, como um maior controle sobre a venda de armas? “Calendário da 2ª emenda”.
__ A Segunda Emenda á Constituição foi aprovada, junto com outras nove emendas, em 15 de dezembro de 1791, e trazia, na sua aprovação, a memória de fatos ainda recentes, ligados à guerra pela independência do país. De fato, quando o estresse entre colonos e autoridades britânicas se tornou mais grave, ao longo da década de 1760, uma das medidas tomadas pelos ingleses, para enfraquecer qualquer reação mais forte às suas medidas, foi a proibição dos colonos manterem arsenais domésticos, fortalecendo a ideia, entre os americanos, de que só os governos tirânicos precisam se preocupar com o armamento da população. Para muitos defensores da 2ª Emenda, um governo que se preocupa muito em controlar o acesso do povo às armas está com pretensões a se tornar absoluto ou tirânico.

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__ Mas não era só isso. Havia ainda o costume e o respaldo da Commom Law inglesa (o direito costumeiro, não escrito, dos ingleses), reforçado pelo Bill of Rights, de 1689, e embasado por um dos mais renomados juristas ingleses da época, Sir William Blackstone, que defendeu o porte de armas como um direito natural, ligado à autodefesa, á resistência à opressão e a defesa da sociedade ou do país. Os americanos não se fizeram de rogados: não só mantiveram esses arsenais, que foram fundamentais para armar as milícias continentais dos minutemen, acima, e vencer a Guerra da Independência, como sacramentaram a sua existência futura numa emenda, cobrindo um “lapso” de sua Constituição, que foi promulgada em 1787, como vimos acima.

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__ Com a expansão do país para o oeste, ocupando violentamente as terras antes pertencentes aos indígenas, os colonos, sem o suporte legal das instituições públicas, ficaram cada um por si, fazendo e desfazendo suas próprias leis, transformaram o direito de possuir uma arma num verdadeiro culto, acentuado ainda mais, no século seguinte, com o advento do cinema e a moda dos temas de faroeste (Far West) – há um provérbio americano da época que resume bem o que ele pensavam: “Deus fez os homens diferentes, mas o Colt (uma célebre marca de armas) os tornou iguais”.
__ Pode-se dizer que há dois momentos em que os americanos médios, tão ciosos de sua liberdade, que naturalmente gera diferenças, se sentem realmente iguais a todos: quando estão querelando diante de um juiz e quando estão portando uma arma, embora nos dois momentos haja, mais no passado do que agora, um forte engano. Um ricaço podia comprar a sentença de um juiz, e muitos o fizeram, enquanto dois duelistas numa cidade do faroeste – uma morte em duelo não era considerada assassinato – mesmo que tivessem armas semelhantes, um deles levava a vantagem de ser mais experiente, mais inteligente, enfim de ter ao seu lado fatores derivados de sua educação ou origem social, que transformavam a pretensa igualdade bélica numa ilusão.


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__ Com a ascensão de uma burguesia industrial e financeira muito racista e nacionalista, após a Guerra da Secessão, os limites bom senso e da propaganda enganosa, em favor das armas, são cada vez mais ultrapassados. Já não se tratava de direitos, mas de lucros. O texto, acima, querendo ressaltar a trava de segurança em revólver, cheio de contradições e exageros que confundem compradores em potencial, apareceu na revista Harper’s, numa edição de 1904 :“Os revólveres Iver Johnson não são brinquedos: eles atiram com precisão e matam [o presidente McKinley e o senador Robert Kennedy bem o sabem]. Você pode precisar disso alguma vez na sua vida: compre-o agora e o receba na hora... Impossível um tiro acidental... [na camisola da criança está escrito] Papai disse que isso não nos machuca... absolutamente segura”. Nessa época o individualismo marca a cultura local.

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__ Quando começa o século XX o culto da arma já está bem consolidado, e as empresas fabricantes de armas buscam torná-las mais acessíveis e ligadas a momentos felizes de outros ícones da cultura americana, renovados nesse período: a família e os tocantes festejos de natal, como vistos no postal acima, dos anos 1960.
__ Nesse momento o país está em paz, nada ameaça a grande família branca americana, há uma certa unanimidade nacional acerca dos valores espirituais e sociais mais adequados,  e as armas não são muito poderosas, mais para a caça, e, em geral, terminam quase sempre em mãos masculinas. Também é preciso passar uma imagem menos chocante, menos selvagem, de um país que acabara de romper o seu isolamento para o resto do mundo. Havia também a necessidade de apaziguar os espíritos traumatizados pelas vidas perdidas na Segunda Guerra. É o tempo da idealização, da romantização, máxima do “american way of life”.

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__ A peculiaridade e o sufocante peso da cultura americana, que sempre soube muito bem se apresentar e disseminar aparece nessa foto. A legenda diz. “Kingston, MA (o local): Irmãs da Divina Providência experimentam os novos rifles Harrington and Richardson, calibre 22, no campo de Mishannock. As armas devem ser usadas num programa de treinamento com rifles. Na foto, da direita para esquerda, irmã Noel, irmã Rosaria, irmã Wilfrid, irmã Mary Janet e irmã Maria. Três das freiras se tornarão instrutoras do programa de tiro. Foto tirada em 7/12/1957”.

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__ Do culto para a patologia social foi um pequeno salto, criando uma tradição de associar a compra de armas para presentes nas festas mais importantes, inclusive as de conotação religiosa e pacífica, como o Natal, após serem vencidas todas as barreiras: as armas são automáticas, não são mais apenas para a caça ou prática esportiva, rompendo-se todos os escrúpulos em relação à idade e ao sexo das crianças. O que existe agora em muitas famílias dos EUA é uma compulsão doentia pela posse, exibição e o uso de armas, inclusive contra seres humanos, o que fez multiplicar os massacres e chacinas pelo país.
__ Os EUA são um país rico, de gente alfabetizada e culta, mas com índice de violência próximo aos dos países inviáveis da África e os eternos emergentes da América Latina, campeão mundial, disparado, de serial killers e massacres escolares. Note-se que, na foto acima, todos estão, além de armados, vestidos com a mesma roupa, como se fosse um uniforme militar. O uniforme da família.

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__ À frente da resistência contra qualquer restrição à compra de armas está a poderosa NRA, Associação Nacional de Armas de Fogo (Rifles), a associação para a defesa de direitos civis mais antiga dos Estados Unidos, fundada em 1871, estritamente vinculada à Segunda Emenda, como se só ela importasse e só ela garantisse a democracia americana. É uma associação riquíssima, que não só financia vários deputados e senadores, como possui uma vasta gama de projetos sociais, que ajudam a tornar a sua imagem mais simpática ao grande público. Ela é financiada tanto pelas grandes empresas de armas como pela multidão de pessoas comuns, altamente permeáveis às propagandas alarmistas, obcecadas pela segurança e por um direito que pode, em muitas circunstâncias, lhe trazer mais prejuízo que vantagem.
__ A propaganda da NRA procura sempre associar a sua imagem aos símbolos nacionais americanos, e para que se tenha ideia da força desse apelo, saiba que o ator Charlton Heston, o eterno Moisés e Ben Hur do cinema, era um obcecado defensor da Segunda Emenda e foi presidente do NRA de 1998 a 2003.

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__ Impressionante flagrante de uma convenção nacional da NRA, em St Louis, em abril de 2012, onde aparece o pequeno Philip Kneib, de apenas 3 anos, sendo induzido pelo pai, à vista do avô, experimentar uma arma pesada, desproporcional para quem pensa apenas em caçar, ou mesmo se defender contra algum malfeitor. É uma arma para uma ação militar violenta e muito destrutiva! Foto do site do St Louis Post-Dispatch

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__ Uma estrategia de venda que o NRA faz com muito sucesso, principalmente nos veículos de comunicação social, é a associação entre a posse de armas e o sucesso do homem como macho, e da mulher como uma pessoa “livre”, “independente”. É comum a mídia apresentar imagens de mulheres seminuas, em poses provocantes, portando armas poderosas. Num programa mantido pela NRA, um apresentador jovem, bem afeiçoado, e negro, a indústria de armas não discrimina o dinheiro de ninguém, divide a tela com uma apresentadora também jovem, branca, usando uma micro minissaia. Energia, juventude, beleza, sensualidade, numa mistura ao mesmo tempo atraente e macabra, entre prazer e morte, que Francis Coppola explorou muito bem em Apocalypse Now. 

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__ Aos que se opõem a esse desatino, o NRA e seus admiradores só tem uma forma de os qualificar, como fizeram, no pôster acima, com Barack Obama dizendo: "cidadãos desfaçam-se de suas armas": são comunistas! Essa gente é herdeira daquela que, na luta pelos Direitos Civis, na década de 1950, saia nas ruas dizendo que "mistura de raças é comunismo"! Dez anos depois, cabelos compridos era comunismo. Talvez falar em paz seja comunismo, e Jesus Cristo um cripto comunista, por querer destruir a indústria armamentista americana e atentar contra Segunda Emenda!
__ Tudo bem que alguém tenha uma arma para defender a si próprio, aos seus, à sua propriedade, ao seu país, etc., mas precisa, em tempo de paz, possuir tantas e tão poderosas armas? Aparentemente há uma distorção do texto da Segunda Emenda que diz: “Sendo necessária à segurança e liberdade do Estado uma milícia bem treinada, o direito das pessoas de possuir e portar armas não deve ser restringido”. Dois pontos foram colocados pelos que combatiam a promiscuidade das armas nos EUA: primeiro, a liberdade e a segurança interna e externa do país estão muito bem asseguradas pelas forças Armadas, pela Guarda Nacional e pelas polícias, federal e estaduais; segundo, as armas de hoje são muito mais letais que as de 1791, de sorte que, pelo menos se proíbam a venda das armas automática e fuzis militares, que seriam um excesso ao direito legítimo de autoproteção. Com vistas a isso, duas ações foram parar na Suprema Corte, uma em 2008, Distrito de Columbia (Washington) v. Heller, e outra em 2010, Mc Donald v. Cidade de Chicago, e nas duas ocasiões houve decisão muito apertada na Suprema Corte , 5 x 4, determinando que a compra, venda e o uso de armas, seja quais forem, estão asseguradas pela segunda emenda, e que nem o governo federal nem o estadual podem impor qualquer restrição. A única alternativa são os congressistas, em bom número financiados pela NRA, aprovarem uma emenda extinguindo ou modificando a Segunda Emenda.  

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__ Acima o controvertido cartão de Natal e ano Novo da deputada de Nevada Michele Fiore, citada acima. Todos estão armados, menos as crianças de colo. Recentemente ela esteve no centro de uma controvérsia, quando, em novembro de 2015, indagada por alguém, num programa de rádio, se Nevada poderia receber algum refugiado sírio, ela falou: “você está de brincadeira comigo? Estou a ponto de voar para Paris e dar-lhes um tiro na cabeça eu mesma! Não concordo com os refugiados sírios. Não quero nada com terroristas. Sou a favor de abatê-los, eliminá-los, de pôr um pedaço de metal nas suas cavidades oculares e acabar com a sua existência miserável. Eu me sentiria bem com isso”. Uma psicopata cheia de poder, que está querendo se tornar um símbolo para transição que a sociedade americana enfrenta. Imaginem o que essa desmiolada não dirá agora que houve esse absurdo atentado em Nice. 


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__ Bem diferente é esse sentimento e essas palavras dos sentimentos e palavras que fundaram a grande nação do norte, e que estão bem representadas nesse quadro do pintor mexicano Alfredo Rodriguez, cujo nome é: “Escola dominical nas pradarias”, onde aparece a essência do espírito fundador da América: uma fé cristã ardente, uma família grande e muito unido, com especial cuidado pelas crianças, e um grande desejo de aprender, para resolver os problemas práticos da vida, seja aonde for. Essa é a América que aprendemos a respeitar, e até certo ponto copiar, e, note-se: todos estão desarmados.
__ O grande fracasso da América foi ter deixado o seu projeto original ser dirigido pelos interesses estreitos da burguesia industrial financeira, sem outro valor que o lucro financeiro, na segunda metade do século XIX, quando o protecionismo comercial, que protegia os interesses dessa burguesia, se confundiu com o isolacionismo, que brecava uma saudável troca cultural com o mundo afora, estiolando as mentes e as tornando intolerantes e racistas. Um belo projeto inicial, que sem dúvida teria revigorado o mundo, se fosse projetado para fora das fronteiras americanas, como fizeram os romanos, e após eles os ingleses, mas que os americanos não souberam ou não quiseram segui-los. Cabe agora, aos americanos, administrar uma difícil travessia, recuperando essas ideias tão antigas, quanto sólidas e elevados, bem acima do voo rasante dos eternos “falcões”, sempre focado para baixo.

__ Aliás, entre os homens, os falcões antes de entrarem em ação ficam sempre com os olhos vendados, para não verem outras possibilidades, inclusive mais adequadas, contra que lançar seu ataque. O alvo cega o falcão.

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