quinta-feira, 21 de julho de 2016

BOMBARDEIOS DE ARGEL (1682-1683) – CONTENÇÃO DA TURQUIA OU AMBIGUIDADE FRANCESA

Prof Eduardo Simões

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De Régence d'Alger 1700 map-fr.svg: Sémhur derivative work: Rowanwindwhistler  - Régence d'Alger 1700 map-fr.svg, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=44743828

__ A chamada Regência de Argel era uma entidade política incomum, situada numa estreita faixa de terra junto ao litoral da atual Argélia, no Ocidente da África (acima), numa região historicamente conhecida como Magreb, também chamado antigamente como Berbéria ou Barbária, porque nela moravam povos diversos chamados genericamente de berberes. Apesar de sua área de atuação política imediata estar muito vinculada ao litoral e ao comércio marítimo e à pirataria, essa unidade política tinha uma grande influência no interior, nas culturas nômades que vivam no Saara Ocidental. Porém, o que é mais curioso na Regência de Argel é que ela surge como um domínio pessoal de um pirata turco, Keireddin Barba Ruiva, em 1525.
__ Barba Ruiva, o pirata mais temido e vitorioso do Mediterrâneo em seu tempo, tomou Argel e o seu entorno, vencendo reinos locais árabe-berberes decadentes, e o enregou graciosamente à soberania turca, criando uma unidade política singular, teoricamente uma província do Império Otomano, mas na prática com uma autonomia que mais parecia um reino independente, cuja fonte de renda principal vinha de duas atividades nada convencionais: o saque de navios (pirataria) e pilhagem de vilarejos e cidades da costa mediterrânea europeia, além do comércio de escravos; tanto os que eram trazidos pelos nômades, da África Subsaariana, como as pessoas presas nas atividades de pirataria e saques no continente.
__ Os governantes da Regência de Argel, titulados consecutivamente como beylerbey (bey dos beys), paxá, aga,  se tornaram dey, em 1671, quando a elite governante local resolveu mudar o status político do reino, dando-lhe mais autonomia, convertendo-se numa república militar governada por um dey, em nome do sultão, onde os governantes eram escolhidos pelos capitão de navios e oficiais da milícia terrestre: os janízaros.

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Par Jean-Léon Gérôme, Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=296024

__ Em virtude das características de seu fundador, a Regência de Argel nasceu com vocação para ser um covil de piratas e dar muito trabalho aos seus vizinhos, vocação essa que só fez se acentuar com o tempo, chegando no seu auge a abrigar uma população de 8 mil piratas. Sabe-se que piratas europeus de várias nacionalidades aportaram em Argel nesse período, e que alguns deles, renegando a sua pátria e a sua falta de religião, converteram-se ao Islã e levaram os ataques piratas até ilhas remotas do Atlântico, como a Inglaterra, Irlanda e Islândia, além de se adentrarem no Atlântico Sul (1). A captura de tripulantes e passageiros dos navios tinha também a finalidade de cobrar pesados resgates. Elas eram uma tipo de expedições oficiais de sequestro. Resguardavam essas atividades um porto bem aparelhado e as poderosas muralhas de Argel, sem falar do clima ameno, dos dias ensolarados, da paisagem litorânea, além do conforto e da sofisticação da civilização muçulmana, onde os piratas relaxavam de suas estressantes tarefas (acima).
__ A relação entre os turcos e os franceses às vezes foram bem pouco ortodoxas. Durante o reinado de Francisco I (1515-1547), este rei, no afã de derrotar o seu rival, o austro-espanhol Carlos V (1519-1558), aliou-se ao sultão turco, para o grande escândalo da cristandade, uma vez que Francisco, que era católico, se aliava a um muçulmano para enfrentar outro rei católico, mas o rei francês estava firmemente decidido a não deixar que questões de religião ou de moral se sobrepusesse às razões de estado, ou aos interesses econômicos e territoriais de setores da elite burguesa e nobre da França. Dessa forma, a mais moderna tecnologia bélica, e até tropas francesas, foram cedidas às forças otomanas, que avançavam pelos Balcãs, ameaçando o domínio dos austro-espanhóis nessa região. Portos do sul da França, em especial Marselha e Toulon (2) foram cedidos como base para os piratas otomanos fazerem as suas razias nas cidades costeiras da Espanha e da Itália.

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http://alfutuhat.com/

__ Os franceses ensinaram o caminho e estimularam os maus hábitos da Regência, mas não contavam que estes acabariam por se virar contra eles mesmos na medida em que as nações são movidas por interesses, e os interesses mudam com frequência. Pouco mais de cem anos depois dessa aliança paradoxal, na época, os franceses estavam começaram a ter problemas sérios com piratas da Regência, uma vez que, para suprema humilhação deles, em outubro de 1681, eles atacaram e tomaram, entre outros, um navio de guerra francês, levando-o, junto o capitão e a tripulação sobrevivente, para Argel, onde aqueles foram feitos escravos. Aproveitando a ocasião, no dia 18 de outubro o dey de Argel, Baba Hassan, declara guerra à França, dando ciência de sua iniciativa ao cônsul francês em Argel,o padre lazarista Jean Le Vacher.
__ Luis XIV, sabedor da iniciativa de Hassan, também lhe declara guerra, e entrega ao vice-almirante Abraham Duquesne, o comando de uma expedição para atacar Argel, e conseguir a submissão do dey. A esquadra de Duquesne conta com 11 galeões, 15 galeras, 5 galeotas bombardeiras, dois brulotes (navios incendiários) e alguns barcos menores. Partindo em 12 de julho de 1682, a esquadra estaciona frente a Argel em 22, e como as exigências dos franceses, principalmente aquelas no tocante à libertação dos escravos cristãos, não foram satisfeitas, tem início as operações de guerra, ou quase isso, porque devido ao mal tempo não é possível posicionar adequadamente os navios, por isso, já no dia 15 de agosto, sem ainda ter iniciado as operações o bombardeio, ele é obrigado a mandar as 15 galeras de volta à França, e somente no dia 20 de agosto, um mês depois depois da chegada, tem início o bombardeio.
__ A missão é muito difícil, pois além do mal tempo acredita-se que Argel tenha um cinturão de fortalezas e postos de combates que fazem do seu porto o mais bem defendido do Mediterrâneo, e as primeiras bombas caem justo sobre ele, com pouco efeito. Entre 26 de agosto e 5 de setembro, tempo em que durou o bombardeio, já com os navios definitivamente reposicionados, Duquesne lança 280 obuses explosivos sobre a cidade, atingindo tanto porto como a área urbana, causando grandes prejuízos, enquanto o tempo piora a olhos vistos. Encurralado pelos estragos dos bombardeios, o dey envia o cônsul Le Vacher à Duquesne, solicitando a paz, em 4 de setembro.
__ Duquesne endurece o jogo e, seguindo as ordens do rei, exige que o dey venha em pessoa pedir a paz e se submeter a um acordo, e ainda ameaça disparar sobre a cidade as 4 mil balas explosivas ainda estocadas. A meteorologia, entretanto, falou mais alto, e a esquadra francesa, açoitada por ventos muitos fortes, teve que se retirar dois dias depois – Luis XIV ficou muito decepcionado pelo fato de a expedição não ter conseguido um acordo formal com o dey, mas que consolou-se ao receber o relatório dos enormes danos causados pelas balas explosivas na cidade.
__ Sem ter alcançado o seu objetivo, não restou ao rei senão lançar outra esquadra contra Argel, no ano seguinte, bem maior que a de 1682 – 17 galeões, 3 fragatas, 16 galeras, 7 galeotas bombardeiras, 48 chalupas, 18 filibotes, 8 tartanas – igualmente sobre o comando novamente de Duquesne. A frota sai do porto de Toulon em 23 de maio de 1683.
__ Na noite de 26 para 27 de junho tem início o bombardeio; 122 bombas caem sobre a cidade e matam umas 300 pessoas. O dey começa a ser pressionado, pelo clamor da população, para assinar um acordo de paz, e então manda uma embaixada a Duquesne, que impõe termos duros:
* a libertação de todos os escravos.
* indenização correspondente às perdas infringidas a navios franceses.
* pedido formal de desculpas pelo início das hostilidades.

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Par Jan Luyken (dead 1712) — Amsterdams Historic Museum, Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=9489332

__ O dey Baba Hassan resolve reiniciar a guerra, mas a “fraqueza” de sua inciativa por conversações de paz, custa-lhe um alto preço: um grupo mais radical, chefiado por Hadji Hassein, com o apoio do exército, dá um golpe, mata o dey – esse foi o fim de um em cada dois deys – e amplia as agressões e provocações contra os franceses, fazendo amarrar à boca de um enorme canhão, chamado pelos turcos de “Baba Merzoug”, o cônsul francês e Vigário Apostólico, Jean Le Vacher, e dispara, espalhando os seus restos, e os de outros seis franceses, nos conveses dos navios atacantes (a ilustração holandesa mostra o cônsul francês sendo empurrado para dentro do canhão, mas na verdade ele ficou do lado de fora, amarrado à boca do canhão, sendo arremessado como uma shrapnel, que é uma munição de canhão que se fragmenta em diversas partículas após o disparo; os fragmentos, no caso, foram de ossos, pedaços de carne, sangue, etc.). O bombardeio recrudesce e dura até 29 de julho.
__ “A cidade então tornou-se palco de um grande incêndio, cujo brilho iluminou até duas milhas mar adentro [alguém disse que, à noite, se podia ler um livros nos navios franceses graças à luminosidade que vinha dos incêndios]. Todos os principais edifícios, monumentos, lojas, palácios e mesquitas desabaram engolidos pelas chamas; os feridos quedavam sem abrigo. A munição se esgotava e Argel teria se transformado num campo de ruínas se as balas de canhão de Duquesne não tivessem acabado” (Wikipedia em francês – Bombardement d’Alger (1683)) – acredita-se que uns dez mil obuses tenham sido atirados sobre a cidade. Ante esse dilúvio de fogo o novo dey resolve negociar, justo quando a frota, já com a munição esgotada, se preparava para retornar à França.

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Par Girardet, d'après Briard  — http://www.chateauversailles.fr/decouvrir-domaine/les-collections/les-collections, Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15666663

__ Um enviado da Regência, Djafar Aga Effendhi, vai até Versalhes se desculpar com o rei, dos insultos e crueldades cometidos contra tripulações e barcos da marinha francesa, além de concordar em libertar 546 prisioneiros cristãos (é o que vemos acima, o que não deixa de ser irônico pois os franceses já haviam fechado os olhos para o comércio de escravos cristãos pelos turcos em seu território, no inverno de 1543-44), além de se comprometer, durante cem anos, a não promover ataques contra navios e a costa francesa.
__ Logo, porém, os berberescos esquecem o acordo e voltam a atacar navios franceses, e mais uma vez uma frota francesa é destacada para bombardear Trípoli (junho de 1885) e Argel (julho de 1688), dessa vez sob o comando do almirante Jean d’Estrées, mas aos primeiros disparos o dey pediu paz, e assinou, em 27 de setembro de 1688, um novo Tratado, que cumpriu rigorosamente.
__ Esses episódios mostram que o histórico das relações entre franceses e populações muçulmanas na bacia do Mediterrâneo, em especial no Norte da África, são marcadas pela ambiguidade derivada do pragmatismo e das razões de estado, em geral vinculados a interesses econômicos de pequenos grupos, onde a questão religiosa é tão determinante quanto complicadora. Vemos que o lado francês evoluiu para a mais radical formas de laicismo do mundo ocidental, enquanto a sua contraparte islâmica aprofunda-se nos ditames da sua fé, criando um diálogo de surdos, cheio de contradições, e agora violência insana, o que é de lamentar, pois a França tinha, e ainda tem, tudo para ser a ponta de lança de um diálogo construtivo entre o Oriente e o Ocidente, desde que arrefeça o seu laicismo ou secularismo imaturo e burguês, e ajude o outro lado a perceber os limites e as vantagens da convivência com o diferente.

Notas
(1) Para se ter uma ideia do alcance dessas ações de pirataria, existe, na lista dos muitos que foram resgatados em troca de prisioneiros turcos ou dinheiro, o nome de vários brasileiros, homens e mulheres, brancos ou negros, que tiveram de amargar um duro cativeiro em Argel, onde o tratamento dado aos cativos e escravos era famoso por sua crueldade, conforme uma guarnição de um navio de guerra inglês pode testemunhar no local.  
(2) Em 1536-37 uma esquadra argelina de Barba Ruiva inverna, na cidade de Marselha. Posteriormente, na invernada de 1543-44, a cidade de Toulon é esvaziada de sua população e transformada em base turca, e empório de escravos cristãos aprisionados na Espanha, Itália e ilhas do Mediterrâneo. A própria catedral de Toulon é transformada em mesquita por 7 meses, e a moeda turca, aí, ganhou curso forçado. 


Exsite um site islâmico muito completo e bonito, em língua francesa, que eu recomendo: alfutuhat.com 

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