BOMBARDEIOS DE
ARGEL (1682-1683) – CONTENÇÃO DA TURQUIA OU AMBIGUIDADE FRANCESA
Prof Eduardo
Simões
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De Régence
d'Alger 1700 map-fr.svg: Sémhur derivative work: Rowanwindwhistler - Régence d'Alger 1700 map-fr.svg, CC BY-SA
4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=44743828
__ A chamada
Regência de Argel era uma entidade política incomum, situada numa estreita
faixa de terra junto ao litoral da atual Argélia, no Ocidente da África (acima),
numa região historicamente conhecida como Magreb, também chamado antigamente
como Berbéria ou Barbária, porque nela moravam povos diversos chamados
genericamente de berberes. Apesar de sua área de atuação política imediata
estar muito vinculada ao litoral e ao comércio marítimo e à pirataria, essa
unidade política tinha uma grande influência no interior, nas culturas nômades
que vivam no Saara Ocidental. Porém, o que é mais curioso na Regência de Argel
é que ela surge como um domínio pessoal de um pirata turco, Keireddin Barba
Ruiva, em 1525.
__ Barba Ruiva,
o pirata mais temido e vitorioso do Mediterrâneo em seu tempo, tomou Argel e o
seu entorno, vencendo reinos locais árabe-berberes decadentes, e o enregou graciosamente à soberania turca, criando uma unidade política singular,
teoricamente uma província do Império Otomano, mas na prática com uma autonomia
que mais parecia um reino independente, cuja fonte de renda principal vinha de
duas atividades nada convencionais: o saque de navios (pirataria) e pilhagem de
vilarejos e cidades da costa mediterrânea europeia, além do comércio de
escravos; tanto os que eram trazidos pelos nômades, da África Subsaariana, como
as pessoas presas nas atividades de pirataria e saques no continente.
__ Os
governantes da Regência de Argel, titulados consecutivamente como beylerbey
(bey dos beys), paxá, aga, se tornaram
dey, em 1671, quando a elite governante local resolveu mudar o status político
do reino, dando-lhe mais autonomia, convertendo-se numa república militar governada
por um dey, em nome do sultão, onde os governantes eram escolhidos pelos
capitão de navios e oficiais da milícia terrestre: os janízaros.
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Par Jean-Léon Gérôme, Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=296024
__ Em virtude
das características de seu fundador, a Regência de Argel nasceu com vocação
para ser um covil de piratas e dar muito trabalho aos seus vizinhos, vocação
essa que só fez se acentuar com o tempo, chegando no seu auge a abrigar uma
população de 8 mil piratas. Sabe-se que piratas europeus de várias
nacionalidades aportaram em Argel nesse período, e que alguns deles, renegando
a sua pátria e a sua falta de religião, converteram-se ao Islã e levaram os
ataques piratas até ilhas remotas do Atlântico, como a Inglaterra, Irlanda e Islândia,
além de se adentrarem no Atlântico Sul (1).
A captura de tripulantes e passageiros dos navios tinha também a finalidade de
cobrar pesados resgates. Elas eram uma tipo de expedições oficiais de
sequestro. Resguardavam essas atividades um porto bem aparelhado e as poderosas
muralhas de Argel, sem falar do clima ameno, dos dias ensolarados, da paisagem
litorânea, além do conforto e da sofisticação da civilização muçulmana, onde os
piratas relaxavam de suas estressantes tarefas (acima).
__ A relação
entre os turcos e os franceses às vezes foram bem pouco ortodoxas. Durante o
reinado de Francisco I (1515-1547), este rei, no afã de derrotar o seu rival, o
austro-espanhol Carlos V (1519-1558), aliou-se ao sultão turco, para o grande
escândalo da cristandade, uma vez que Francisco, que era católico, se aliava a
um muçulmano para enfrentar outro rei católico, mas o rei francês estava firmemente decidido a não deixar que questões de religião ou de moral se
sobrepusesse às razões de estado, ou aos interesses econômicos e territoriais
de setores da elite burguesa e nobre da França. Dessa forma, a mais moderna
tecnologia bélica, e até tropas francesas, foram cedidas às forças otomanas,
que avançavam pelos Balcãs, ameaçando o domínio dos austro-espanhóis nessa
região. Portos do sul da França, em especial Marselha e Toulon (2) foram cedidos como base para os
piratas otomanos fazerem as suas razias nas cidades costeiras da Espanha e da
Itália.
http://alfutuhat.com/histoire/Barbaresques/images/mb03a.jpg
http://alfutuhat.com/
__ Os franceses
ensinaram o caminho e estimularam os maus hábitos da Regência, mas não contavam
que estes acabariam por se virar contra eles mesmos na medida em que as nações são
movidas por interesses, e os interesses mudam com frequência. Pouco mais de cem
anos depois dessa aliança paradoxal, na época, os franceses estavam começaram a
ter problemas sérios com piratas da Regência, uma vez que, para suprema
humilhação deles, em outubro de 1681, eles atacaram e tomaram, entre outros, um
navio de guerra francês, levando-o, junto o capitão e a tripulação sobrevivente,
para Argel, onde aqueles foram feitos escravos. Aproveitando a ocasião, no dia
18 de outubro o dey de Argel, Baba Hassan, declara guerra à França, dando
ciência de sua iniciativa ao cônsul francês em Argel,o padre lazarista Jean Le
Vacher.
__ Luis XIV,
sabedor da iniciativa de Hassan, também lhe declara guerra, e entrega ao vice-almirante
Abraham Duquesne, o comando de uma expedição para atacar Argel, e conseguir a
submissão do dey. A esquadra de Duquesne conta com 11 galeões, 15 galeras, 5
galeotas bombardeiras, dois brulotes (navios incendiários) e alguns barcos
menores. Partindo em 12 de julho de 1682, a esquadra estaciona frente a Argel
em 22, e como as exigências dos franceses, principalmente aquelas no tocante à
libertação dos escravos cristãos, não foram satisfeitas, tem início as
operações de guerra, ou quase isso, porque devido ao mal tempo não é possível
posicionar adequadamente os navios, por isso, já no dia 15 de agosto, sem ainda
ter iniciado as operações o bombardeio, ele é obrigado a mandar as 15 galeras
de volta à França, e somente no dia 20 de agosto, um mês depois depois da
chegada, tem início o bombardeio.
__ A missão é
muito difícil, pois além do mal tempo acredita-se que Argel tenha um cinturão
de fortalezas e postos de combates que fazem do seu porto o mais bem defendido
do Mediterrâneo, e as primeiras bombas caem justo sobre ele, com pouco efeito.
Entre 26 de agosto e 5 de setembro, tempo em que durou o bombardeio, já com os
navios definitivamente reposicionados, Duquesne lança 280 obuses explosivos
sobre a cidade, atingindo tanto porto como a área urbana, causando grandes
prejuízos, enquanto o tempo piora a olhos vistos. Encurralado pelos estragos
dos bombardeios, o dey envia o cônsul Le Vacher à Duquesne, solicitando a paz,
em 4 de setembro.
__ Duquesne
endurece o jogo e, seguindo as ordens do rei, exige que o dey venha em pessoa
pedir a paz e se submeter a um acordo, e ainda ameaça disparar sobre a cidade as
4 mil balas explosivas ainda estocadas. A meteorologia, entretanto, falou mais
alto, e a esquadra francesa, açoitada por ventos muitos fortes, teve que se
retirar dois dias depois – Luis XIV ficou muito decepcionado pelo fato de a
expedição não ter conseguido um acordo formal com o dey, mas que consolou-se ao
receber o relatório dos enormes danos causados pelas balas explosivas na cidade.
__ Sem ter
alcançado o seu objetivo, não restou ao rei senão lançar outra esquadra contra
Argel, no ano seguinte, bem maior que a de 1682 – 17 galeões, 3 fragatas, 16
galeras, 7 galeotas bombardeiras, 48 chalupas, 18 filibotes, 8 tartanas –
igualmente sobre o comando novamente de Duquesne. A frota sai do porto de
Toulon em 23 de maio de 1683.
__ Na noite de
26 para 27 de junho tem início o bombardeio; 122 bombas caem sobre a cidade e
matam umas 300 pessoas. O dey começa a ser pressionado, pelo clamor da
população, para assinar um acordo de paz, e então manda uma embaixada a Duquesne,
que impõe termos duros:
* a libertação
de todos os escravos.
* indenização correspondente
às perdas infringidas a navios franceses.
* pedido formal
de desculpas pelo início das hostilidades.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d5/Supplice_du_consul_de_france_pere_levacher.JPG
Par Jan Luyken (dead 1712) — Amsterdams
Historic Museum, Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=9489332
__ O dey Baba
Hassan resolve reiniciar a guerra, mas a “fraqueza” de sua inciativa por
conversações de paz, custa-lhe um alto preço: um grupo mais radical, chefiado
por Hadji Hassein, com o apoio do exército, dá um golpe, mata o dey – esse foi
o fim de um em cada dois deys – e amplia as agressões e provocações contra os
franceses, fazendo amarrar à boca de um enorme canhão, chamado pelos turcos de “Baba
Merzoug”, o cônsul francês e Vigário Apostólico, Jean Le Vacher, e dispara,
espalhando os seus restos, e os de outros seis franceses, nos conveses dos
navios atacantes (a ilustração holandesa mostra o cônsul francês sendo
empurrado para dentro do canhão, mas na verdade ele ficou do lado de fora,
amarrado à boca do canhão, sendo arremessado como uma shrapnel, que é uma munição
de canhão que se fragmenta em diversas partículas após o disparo; os
fragmentos, no caso, foram de ossos, pedaços de carne, sangue, etc.). O bombardeio
recrudesce e dura até 29 de julho.
__ “A cidade
então tornou-se palco de um grande incêndio, cujo brilho iluminou até duas
milhas mar adentro [alguém disse que, à noite, se podia ler um livros nos
navios franceses graças à luminosidade que vinha dos incêndios]. Todos os principais
edifícios, monumentos, lojas, palácios e mesquitas desabaram engolidos pelas chamas;
os feridos quedavam sem abrigo. A munição se esgotava e Argel teria se transformado
num campo de ruínas se as balas de canhão de Duquesne não tivessem acabado”
(Wikipedia em francês – Bombardement d’Alger
(1683)) – acredita-se que uns dez mil obuses tenham sido atirados sobre a
cidade. Ante esse dilúvio de fogo o novo dey resolve negociar, justo quando a
frota, já com a munição esgotada, se preparava para retornar à França.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/e/ef/Duquesne_fait_liberer_des_captifs_chretiens_apres_le_bombardement_d_Alger_en_1683.jpg/800px-Duquesne_fait_liberer_des_captifs_chretiens_apres_le_bombardement_d_Alger_en_1683.jpg
Par Girardet, d'après Briard —
http://www.chateauversailles.fr/decouvrir-domaine/les-collections/les-collections,
Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15666663
__ Um enviado da
Regência, Djafar Aga Effendhi, vai até Versalhes se desculpar com o rei, dos
insultos e crueldades cometidos contra tripulações e barcos da marinha
francesa, além de concordar em libertar 546 prisioneiros cristãos (é o que
vemos acima, o que não deixa de ser irônico pois os franceses já haviam fechado
os olhos para o comércio de escravos cristãos pelos turcos em seu território,
no inverno de 1543-44), além de se comprometer, durante cem anos, a não
promover ataques contra navios e a costa francesa.
__ Logo, porém,
os berberescos esquecem o acordo e voltam a atacar navios franceses, e mais uma
vez uma frota francesa é destacada para bombardear Trípoli (junho de 1885) e Argel
(julho de 1688), dessa vez sob o comando do almirante Jean d’Estrées, mas aos
primeiros disparos o dey pediu paz, e assinou, em 27 de setembro de 1688, um
novo Tratado, que cumpriu rigorosamente.
__ Esses
episódios mostram que o histórico das relações entre franceses e populações
muçulmanas na bacia do Mediterrâneo, em especial no Norte da África, são
marcadas pela ambiguidade derivada do pragmatismo e das razões de estado, em
geral vinculados a interesses econômicos de pequenos grupos, onde a questão
religiosa é tão determinante quanto complicadora. Vemos que o lado francês
evoluiu para a mais radical formas de laicismo do mundo ocidental, enquanto a
sua contraparte islâmica aprofunda-se nos ditames da sua fé, criando um diálogo
de surdos, cheio de contradições, e agora violência insana, o que é de
lamentar, pois a França tinha, e ainda tem, tudo para ser a ponta de lança de
um diálogo construtivo entre o Oriente e o Ocidente, desde que arrefeça o seu
laicismo ou secularismo imaturo e burguês, e ajude o outro lado a perceber os limites
e as vantagens da convivência com o diferente.
Notas
(1) Para se ter
uma ideia do alcance dessas ações de pirataria, existe, na lista dos muitos que
foram resgatados em troca de prisioneiros turcos ou dinheiro, o nome de vários
brasileiros, homens e mulheres, brancos ou negros, que tiveram de amargar um
duro cativeiro em Argel, onde o tratamento dado aos cativos e escravos era
famoso por sua crueldade, conforme uma guarnição de um navio de guerra inglês
pode testemunhar no local.
(2) Em 1536-37
uma esquadra argelina de Barba Ruiva inverna, na cidade de Marselha.
Posteriormente, na invernada de 1543-44, a cidade de Toulon é esvaziada de sua
população e transformada em base turca, e empório de escravos cristãos aprisionados
na Espanha, Itália e ilhas do Mediterrâneo. A própria catedral de Toulon é
transformada em mesquita por 7 meses, e a moeda turca, aí, ganhou curso
forçado.
Exsite um site
islâmico muito completo e bonito, em língua francesa, que eu recomendo:
alfutuhat.com
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