AS CRIANÇAS DE
CANUDOS (1897-1898)
Prof Eduardo
Simões
Obrigado aos
amigos dos EUA, BR, Bélgica e Bulgária. Deus os abençoe.
Obs: todas as
fotos em preto e branco, exceto a primeira, que é de Flávio de Barros, são do
grande fotógrafo Evandro Teixeira, todas batidas no sertão de Canudos.
http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/bitstream/handle/bras/3275/P001FBAC65.jpg.jpg?sequence=2&isAllowed=y
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__ Nos primeiros
dias de março de 1897, começaram a chegar à Salvador, na Bahia, os restos
miseráveis da última expedição militar a Canudos, comandada pelo coronel
Moreira César, um homem que em diversas oportunidades dera graves testemunhos
de desequilíbrio emocional, e que morrerá, inglório, no sertão, após ter arrastado
os seus comandados a uma humilhante derrota. Estava claro que a guerra contra a
cidadela sertaneja, supostamente monarquista e inimiga da república, não seria
vencida tão fácil.
__ Um corretor
alemão, Franz Wagner, protestante, há várias décadas residindo em Salvador,
resolve tomar a iniciativa de convocar a sociedade local para ajudar aos
soldados e suas famílias, que, como se sabe, eram recrutados invariavelmente entre
os mais pobres da população e recebiam um soldo de miséria, inversamente proporcional
aos imensos sacrifícios que lhes eram impostos pelo momento e pela elite em
geral indiferente.
__ O apelo de
Franz Wagner faz dirigir à sua casa, em 27 de julho de 1897, uma constelação de
representantes dessa elite, entre os quais se contam banqueiros, comerciantes,
diretores de faculdade, executivos da Estrada de Ferro Inglesa, jornalistas, o
Secretário do Interior e Justiça, o Presidente da Câmara dos Deputados da
Bahia, o comandante da polícia, o Presidente do Instituto Histórico e
Geográfico de Salvador, religiosos católicos, etc., e daí nasce, neste dia, o
Comitê Patriótico da Bahia, com o objetivo de dar apoio e sustento às famílias
dos soldados mortos ou incapacitados pela guerra. É claro que, para os
presentes, aquela guerra era justa, e os sertanejos não passavam de jagunços
bárbaros, selvagens, que precisavam, pela força das armas, serem reduzidos ao
regime republicano.
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__ Mãos a obra!
E, graças à militância do Comitê e à generosidade dos baianos, consegue-se
levantar 588$680 (lê-se quinhentos e oitenta e oito mil e seiscentos e oitenta
réis), em pouco mais de um mês de coleta. Faltava agora tomar pé do que estava
acontecendo na frente de batalha para saber da melhor forma de usar esse fundo.
O jornalista Lelis Piedade, secretário do Comitê, se dirige então para o
interior, à localidade de Cansanção, para vistoriar a montagem de uma
enfermaria de campanha. No caminho ele passa pelas localidades de Queimadas,
Alagoinhas e Monte Santo, onde tomou contato com o outro lado da guerra,
ouvindo as pessoas diretamente envolvidas, de um lado e de outro, assim como
padres e jornalistas, além de presenciar todo rol de brutalidades e miséria, ao
longo do caminho percorrido pela quarta expedição militar, sob o comando do
general Arthur Oscar.
__ Ao longo dos
combates, e isso é claramente colocado nos Sertões
de Euclides da Cunha, como em toda guerra civil, a comiseração, a piedade e o
equilíbrio emocional de comandantes e soldados são muito mais exigidos, e em
geral também desprezados, que numa guerra entre nações. O outro, o adversário,
é muito mais desumanizado, demonizado, que naquelas. O destino comum dos
prisioneiros, homens e mulheres que resistiam, apresentados indistintamente
como fanáticos, capazes de dar sua vida para não gritar “viva a República”,
confirmavam as acusações de “conspiração monarquista”, ,mas não eram contrastadas
pelo fato de os soldados também estarem dando sua vida pela república, e o quão
selvagem, bárbaro, fanático e fora de propósito é matar alguém só por causa
disso. A degola, o corte parcial do pescoço, era o fim comum dos prisioneiros.
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__ Restavam,
entretanto, as crianças e suas mães, em especial aquelas, afinal em Canudos não
havia apenas “fanáticos”, mas famílias, e muitas, com prole numerosa, como é
comum entre os sertanejos. Seres humanos, que nem sabiam a diferença entre
república, monarquia, e outras pendências de adultos, mas que já eram capazes
de identificar sua fonte de prazer, alimento e segurança, só pelo cheiro ou
pelo som da voz, que vinha de seus pais, que estavam a ser calados para sempre.
__ Havia mais um
fator a considerar: há apenas nove anos fora abolida a escravidão no Brasil, e
só os ideólogos mais encarniçados do governo, e até do abolicionismo, podiam
crer que uma simples assinatura, ainda que feita com uma caneta de ouro,
apagaria do dia para a noite as marcas de 400 anos de escravidão. Mas havia
gente, de alto calibre intelectual, que acreditava nisso. Num dos versos do
Hino da República, Medeiros Albuquerque, republicano “roxo”, diz: “nem cremos
que escravos outrora, tenha havido em tão nobre país”. Esse “outrora”, tão
longínquo no verso, não distava nem 3 anos da abolição da escravatura! A Abolição
gerara ressentimentos e ações indenizatórias, a guisa de alienação forçada de
patrimônio, resolvida, formalmente, pelo jeitinho mais simples e barato: a destruição
de documentos históricos.
__ Narram os
relatos que no dia 2 de outubro de 1897, um dos braços direitos de Antonio
Conselheiro, Antonio Beatinho, achegou-se, com uma bandeira branca, ao
comandante das tropas federais, General Arthur Oscar, e pediu-lhe que aceitasse
a rendição de alguns moradores de Canudos, comprometendo-se a poupar-lhes a
vida. Após breve tratativa, o acordo, perfeitamente justo e humanitário, foi
selado e pouco depois apareceram os rendidos – segundo o repórter Favila Nunes,
do Gazeta de Noticias, do Rio de Janeiro, de 17 de outubro de 1897, eles seriam
60 homens e 500 mulheres. Os homens, na verdade, eram estropiados de guerra,
apresentando terríveis ferimentos, alguns já evoluindo para gangrena. Ou seja,
os canudenses saudáveis transferiam o “abacaxi” de cuidar de feridos e não
combatentes para o exército, e assim continuar a luta mais desembaraçados. Foi
o que entenderam os oficiais da tropa.
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__ Indagado
sobre o que fazer com os prisioneiros, o Ministro da Guerra, Marechal Carlos
Bittencourt, é categórico: “não temos como alimentar e cuidar de tanta gente”.
E isso era verdade, pois os soldados, devido a grande improvisação e falta de
profissionalismo, passavam até fome, e necessidades diversas. No final ele
acrescenta, à sua resposta, um enigmático “tome providências”
(verhttp://guerradecanudos1896.blogspot.com.br/). A providência tomada foi a
execução sumária dos prisioneiros escapando somente algumas crianças, cujo
choro comoveu aos soldados ou acendeu neles a ideia de um ganho extra, além das
mulheres mais “apresentáveis” e “prendadas”, que poderiam se tornar damas em algum
bordel ou trabalhar em casa de família. Acredita-se que em torno de algumas
poucas dezenas de mulheres e crianças tenham sido poupadas, sem nem por isso
deixarem de sofrer os abusos que tradicionalmente se praticam nesses momentos,
como o estupro. Nenhum homem foi poupado, inclusive o negociador de Canudos,
Antonio Beatinho, uma fonte de informações sobre Canudos e o Conselheiro
maravilhosa, degolado junto com os outros.
__ No dia 5 de
outubro de 1897 caiu a última resistência no arraial de Canudos, no sertão da
Bahia. No dia seguinte, seguindo as ordens do comandante da expedição, as casas
do arraial foram contadas e incineradas. Ao todo umas 5.200, contadas em apenas
poucas horas!, o que, junto com a degola generalizada dos prisioneiros, nos faz
desconfiar de uma tentativa deliberada de ocultar o tamanho e o caráter da revolta,
para não expor tanto a incompetência do exército como o despropósito de tamanha
mortandade e destruição. Não se fez prisioneiro em Canudos; a “queima de
arquivos”, pelo menos aqueles que caíram nas mãos do exército, foi completa.
__ Cansadas,
exauridas, famintas, e amendrontadas pelos casos de varíola que começavam a
graçar, as tropas deixaram o lugar não em ordem, mas em quase debandada, deixando
para trás armas e munições, posteriormente encontradas por pesquisadores locais
ou de universidades.
__ Outro drama, entretanto,
já começara: o das crianças, algumas vezes arrancadas à força de seus
familiares e parentes ligados à causa do Conselheiro e distribuídas entre os
soldados como butim de guerra. O repórter Favila Nunes, do jornal Gazeta de
Notícias, tenta justificar a forma descarada como o General Arthur Oscar, faz a
“distribuição” dessas crianças. Para Nunes, isso se deve ao fato de o General
ter “um belo coração de pai, dá
gostosamente estas crianças a quem as possa tratar, e por isso eu levarei a
pobre Josefa. Quase todos os oficiais já têm uma desgaçadinha destas para proteger
[negritos de minha autoria]. O que se faz
com carinho e dedicação. Até o General Arthur tem uma...” O adjetivo no diminutivo
parece tentar justificar que essas crianças sejam tratadas como objetos ou
coisas à disposição, passadas de mão em mão, como um presente! O jornalista,
por sua vez, não deixa de tirar partido da situação, e proclama isso como
atitude meritória!
http://cariricangaco.blogspot.com.br/
__ Chegando ao
sertão de Canudos, entretanto, Lelis Piedade se inteira, por meio de conversas
muito com gente do lugar, inclusive conselheiristas, padres, jornalistas que
cobriam a guerra, e mesmo pelas cenas ocorridas antes seus olhos, de toda a
extensão e gravidade daquela tragédia, e seu entendimento começa a mudar; pois,
embora ainda tratando os sertanejos como “fanáticos”, não conseguiu deixar de
se admirar com a educação e a honradez da mulher sertaneja, além de ficar
profundamente tocado com a situação das crianças e a selvageria dos soldados –
ele viu prisioneiros sendo levados à parte, por seus verdugos, para serem
degolados; a venda rotineira de crianças, inclusive uma mulher ébria, traz-lhe
crianças com marcas de espancamento e as tenta vender-lhe; soube de
adolescentes sendo degolados e uma criança de doze anos estuprada por um
soldado, com o conhecimento e a indiferença de seus superiores. Ele também
notifica que ouvira relatos de sertanejos, dizendo que pessoas eram jogadas
vivas em fogueiras, por se recusarem a dar “vivas à república” (talvez como uma
forma de vingança contra a incineração do cadáver do coronel Moreira César, da
terceira expedição, pelos sertanejos).
__ Mesmo durante
a debandada final, quando já destruído fora o arraial e seus defensores
aniquilados, se deixou assistir a cenas aterradoras; segundo frei Pedro Sinzig,
em seu livro Reminiscências de um frade:
“Dona Joana, mãe de seu João Régis,
presenciou a sogra... e a cunhada... morrerem de fome e de sede, caídas na
caatinga, na marcha forçada que o exército comandou, tangendo mulheres e
crianças até Alagoinhas... Caia gente como mosca, mas os soldados não deixavam o
povo nem ajudar com uma reza... os que iam arriando à beira da estrada, sem
direito a enterro. Era como bicho”. Segundo o relato de uma de suas irmãs,
que sobrevivera à retirada, um menino de apenas 3 anos, por não conseguir
acompanhar os soldados, foi abandonado no caminho.
__ Ao voltar a
Salvador, o relato de Lelis cai como um raio, esfarelando a consciência ingênua
de muitos, que viam naquela guerra uma causa “patriótica”, e das discussões que
se seguiram a maioria da direção do Comitê chegou a uma conclusão, que não foi
unânime nem isenta de crítica, que era preciso incorporar aos cuidados com as
famílias dos militares, os cuidados com o que restara das famílias sertanejas
envolvidas na guerra, entre as quais se incluíam, prioritariamente as crianças
que haviam perdido os pais ou estavam, junto com eles, em situação de extrema
miséria e total indignidade, conforme consta de ata datada de 20 de janeiro de
1898. Da ação desse Comitê nós devemos muito do que sabemos sobre um dos
aspectos mais escabrosos dessa guerra, ausentes dos livros mais conhecidos.
__ Indiferentes
às críticas os membros do comitê se dirigiram, em primeiro lugar, aos
militares, pedindo-lhe que devolvessem as crianças a fim de serem levadas às
suas famílias originais ou a parentes próximos, ou ainda a um orfanato. Essa
“colheita”, entretanto, foi escassa, pois boa parte das crianças já havia sido
doada ou vendida a diversas pessoas, desde comerciantes a donos de fazenda,
onde elas já estavam sendo usadas para realizar trabalhos domésticos e outros
afazeres, e em diversos casos não foram, simplesmente, devolvidas, pois já
haviam sido compradas e incorporadas aos “bens” do patriarca – o senhor Matias
da Costa Batista, um próspero comerciante de Alagoinhas, se apropriara de três
crianças, que lhes teriam sido supostamente dadas por oficiais do exército, recusou-se
a dar informações sobre o paradeiro das crianças, afirmando que estas lhes
pertenciam e que não achava justo que se protegesse filhos de “jagunços”.
__ Enquanto
isso, dificultando as iniciativas do Comitê, artigos na imprensa procuravam
justificar a atitude dos soldados como casos de extremo de heroísmo e
humanidade, levando a crer que soldados famélicos, fazendo das tripas coração,
tentavam proteger as crias do inimigo, um inimigo, além do mais, degenerado
pela miscigenação, e elas próprias, as crianças, portadoras, em sua carne,
desse pecado capital. Era verdade que os soldados estavam famélicos, e eram
também, eles próprios, mestiços, embora disso não fale a imprensa, mas esse
soldado teve, em diversos casos, teve uma postura muito mais pragmática,
“capitalista”, do que a descrita naqueles panegíricos. Era um miserável tirando
vantagem de outro, mais miserável ainda. Um padrão de relação social, herdada
do passado, que se espalhava do centro rico à periferia pobre.
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https://revistasalsaparrilha.com/
__ Entretanto,
os casos de sequestro, bem distante da piedade cristã, durante a retirada, estão
muito bem documentados nas notas que o comitê fazia circular pelos jornais da
cidade, pedindo notícias sobre o paradeiro de crianças, como o caso do menino
Hermenegildo, de 2 para 3 anos, que a mãe vira sendo levado por um oficial de
nome Maximiano; do menino Manuel Florêncio, levado por um soldado de polícia,
com o assentimento de seu sargento, este de nome Magdaleno; a menina Silvina,
de apenas 9 anos, cujos pais, ainda vivos, moravam na Serra de Aporá; etc.
__ O resultado
do trabalho altamente meritório do Comitê Patriótico foi que 13 meninos e
meninas forma devolvidos a pais e mães, logo tinha sido sequestrados, enquanto outras
13 foram entregues a parentes; 21 foram entregues a pessoas idôneas, civis ou
militares, a guisa de adoção, e 50 encaminhadas a orfanatos, para adoção. O
próprio Lelis acabou abrigando em sua casa três filhas de um líder famoso de
Canudos, o comerciante Juaquim Macambira, que haviam sido tomadas por soldados
do batalhão do coronel Dantas Barreto, da polícia, e levadas para Salvador.
Posteriormente duas delas seriam devolvidas a parentes e uma terceira ficou com
Lelis, para completar os estudos.
__ Dificuldades
adicionais obstacularizavam os trabalhos do Comitê, como a necessidade de se
conseguir salvo conduto às mulheres e crianças resgatadas, para poderem voltar
aos seus familiares no entorno de Canudos, sem sofrer represálias por parte de
fazendeiros, que conservavam antigos ódios contra a comunidade conselheirista,
sem falar na recusa da Santa Casa, de 18 de março de 1898, em receber as
crianças de Canudos em seu abrigo de órfãos, tanto pelo fato de elas terem mais
de 10 anos, como pelo fato de que eles “talvez
tenham recebido uma educação viciosa”, e, por conseguinte, não convinha “pô-los em contato com os filhos da
instituição”. As crianças são então enviadas ao asilo de mendicidade. Uma
justificativa burocrática, palaciana, cega para a excepcionalidade da situação,
e uma recusa de um olhar cristão sobre a realidade.
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__ Afora eles,
salvaram-se todos...
O jaguncinho de Euclides
https://salsaparrilhablog.files.wordpress.com/2015/06/iu.jpeg?w=558&h=542
https://revistasalsaparrilha.com
__ Um dos termos
que mais marcou e discriminou essas crianças, vítimas da brutalidade
militar-estatal, foi o de “jaguncinho”, com que os jornalistas e intelectuais
lhes apodaram, como se a natureza “degenerada” de seus pais, que era antes uma
condição social, fosse-lhes transmitida na fecundação, entre os quais o famoso
Euclides da Cunha, escritor de Os sertões,
que, quando de sua estadia em Belo Monte, em setembro de 1897, foi ofertado com
uma criança pelo General Arthur Oscar, criança esta que Euclides só tratava por
“jaguncinho”. Esta, assim como diversas outras, escaparam da ação protetora do
Comitê Patriótico, uma vez que foram espalhadas, sem qualquer critério, pelo
imenso território nacional, por soldados e jornalistas de outros estados.
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__ O
“jaguncinho”, de nome Ludgero, foi trazido para São Paulo, e entregue, para
sorte do menino, a um amigo de Euclides, o educador Gabriel Prestes, acima, sem filhos.
O menino desde o início chamava atenção pela sua inteligência vivaz, prática,
tipicamente sertaneja, e a memória minuciosa que tinha dos eventos que
redundaram na morte de seus pais e na destruição de seu mundo. Tentando
desvinculá-lo de tudo que dissesse respeito a Canudos, como a uma mácula de
origem, o menino é registrado Ludgero Prestes e é-lhe atribuído uma data de
nascimento “adequada”, não se sabia a real: 15 de novembro, o dia da
Proclamação da República, a mesma que destruíra a sua família, contra a qual seu
pais lutaram até a morte.
__ Em 1908, onze
anos após o encontro, Euclides da Cunha, agora escritor famoso, lhe escreve uma
cartinha, saudando o homem que ele se tornara, mas sem deixar de lembrar quem
ele realmente era: “o pobre jaguncinho
que me apareceu pela primeira vez... no final de uma batalha”. É curioso
perceber duas coisas nessa cartinha: O menino, lhe “apareceu”, não foi-lhe
“trazido”, como quando acontece com alguém que aparece de livre e espontânea
vontade, como que para fazer uma visita ou travar amizade. Euclides o lembra de
que ele era um “jaguncinho”, como a dizer-lhe: “lembre-se sempre que,
originalmente, você não é um dos nossos, e que nós não lhe devemos nada pela
destruição de sua família e sua infância, afinal você descende de jagunços”. Euclides,
que viu e denunciou Canudos, chama aquilo de batalha! No final da carta
Euclides dá-lhe o endereço de sua casa no Rio, sem deixar de tornar ao
“assunto”: “uma casa tão hospitaleira
quanto a minha rude barraca em Canudos”. Será que alguma vez acudiu a
Euclides perguntar ao menino se ele preferia estar protegido na “rude barraca”
ou lá fora, junto com seus pais legítimos?
__ As coisas
mudam, é não é tão fácil assim apagar uma memória legada de fatos tão trágicos,
principalmente, quando os principais interessados em apagá-la fazem de tudo
para reavivá-la. Em 1898, Ludgero começa o seu curso escolar, com o nome de
Ludgero Prestes, filho de pais desconhecidos, tutelado de Gabriel Prestes,
originário da Bahia; mas, no final de
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/24/Ludgero_Prestes.jpg
Autor
desconhecido - Fotografia de 1908, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7474066
__ Ludgero
Prestes recusa a adoção espúria, porquanto forçada e segregadora, e avança
poderosamente nos símbolos, buscando resgatar sua identidade e retornar às suas
origens, tão destroçadas. Dificilmente ele teria nascido em Canudos, que, em
1890, era uma humilde fazenda com poucas casas – Euclides afirma que ele foi
“achado” em Cocorobó, uma fazenda a 15 km de Canudos, local mais provável de
nascimento. Então ele conscientemente quis retomar a herança e a esperança de
seus pais em sua vida, sem falar que foi aí que ele entrou na idade da razão,
os 7 anos, justo na destruição do arraial. Como ele soube o nome dos pais? Fez
uma pesquisa a respeito? Esteve na Bahia? Não sabemos. Mas há uma pista na via
dos símbolos: Ludgero é uma das formas latinas do nome Luiz, logo seus pais
podem ter sido uma criação de Ludgero; João e Maria são nomes comuns no sertão
e de personagens de uma fábula muito conhecida: João e Maria, largados numa
floresta por um pai covarde e uma madrasta má. Seria razoável crer que, para
ele, essa madrasta era a personificação da república?
__ Ludgero não
se apartará do sobrenome de Prestes, nem deixou de fazer jus à força de sua raça
e à fama de “sobrevivente”, que os sertanejos carregam, além da “sina”, da
maioria, inclusive o que vos escreve, de acabar em São Paulo. Tornou-se um
professor, casou-se, e foi o primeiro diretor do Grupo Escolar de Bebedouro,
diretor do Grupo Escolar de Olimpia, e orador do Serra Negra Futebol Clube, de
Serra Negra. Constituiu família, deixando descendência: quatro filhos. Morreu
precocemente, em 13 de outubro de 1934, na cidade de Amparo, com apenas 43
anos, vítima de câncer no fígado, a sede dos sentimentos intensos, das emoções
represadas.
Fontes
http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10799/10799_5.PDF
Wikipedia em portugês - Ludgero Prestes
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