quarta-feira, 25 de maio de 2016

AS CRIANÇAS DE CANUDOS (1897-1898)

Prof Eduardo Simões

Obrigado aos amigos dos EUA, BR, Bélgica e Bulgária. Deus os abençoe.

Obs: todas as fotos em preto e branco, exceto a primeira, que é de Flávio de Barros, são do grande fotógrafo Evandro Teixeira, todas batidas no sertão de Canudos.

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__ Nos primeiros dias de março de 1897, começaram a chegar à Salvador, na Bahia, os restos miseráveis da última expedição militar a Canudos, comandada pelo coronel Moreira César, um homem que em diversas oportunidades dera graves testemunhos de desequilíbrio emocional, e que morrerá, inglório, no sertão, após ter arrastado os seus comandados a uma humilhante derrota. Estava claro que a guerra contra a cidadela sertaneja, supostamente monarquista e inimiga da república, não seria vencida tão fácil.
__ Um corretor alemão, Franz Wagner, protestante, há várias décadas residindo em Salvador, resolve tomar a iniciativa de convocar a sociedade local para ajudar aos soldados e suas famílias, que, como se sabe, eram recrutados invariavelmente entre os mais pobres da população e recebiam um soldo de miséria, inversamente proporcional aos imensos sacrifícios que lhes eram impostos pelo momento e pela elite em geral indiferente.
__ O apelo de Franz Wagner faz dirigir à sua casa, em 27 de julho de 1897, uma constelação de representantes dessa elite, entre os quais se contam banqueiros, comerciantes, diretores de faculdade, executivos da Estrada de Ferro Inglesa, jornalistas, o Secretário do Interior e Justiça, o Presidente da Câmara dos Deputados da Bahia, o comandante da polícia, o Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Salvador, religiosos católicos, etc., e daí nasce, neste dia, o Comitê Patriótico da Bahia, com o objetivo de dar apoio e sustento às famílias dos soldados mortos ou incapacitados pela guerra. É claro que, para os presentes, aquela guerra era justa, e os sertanejos não passavam de jagunços bárbaros, selvagens, que precisavam, pela força das armas, serem reduzidos ao regime republicano.

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__ Mãos a obra! E, graças à militância do Comitê e à generosidade dos baianos, consegue-se levantar 588$680 (lê-se quinhentos e oitenta e oito mil e seiscentos e oitenta réis), em pouco mais de um mês de coleta. Faltava agora tomar pé do que estava acontecendo na frente de batalha para saber da melhor forma de usar esse fundo. O jornalista Lelis Piedade, secretário do Comitê, se dirige então para o interior, à localidade de Cansanção, para vistoriar a montagem de uma enfermaria de campanha. No caminho ele passa pelas localidades de Queimadas, Alagoinhas e Monte Santo, onde tomou contato com o outro lado da guerra, ouvindo as pessoas diretamente envolvidas, de um lado e de outro, assim como padres e jornalistas, além de presenciar todo rol de brutalidades e miséria, ao longo do caminho percorrido pela quarta expedição militar, sob o comando do general Arthur Oscar.
__ Ao longo dos combates, e isso é claramente colocado nos Sertões de Euclides da Cunha, como em toda guerra civil, a comiseração, a piedade e o equilíbrio emocional de comandantes e soldados são muito mais exigidos, e em geral também desprezados, que numa guerra entre nações. O outro, o adversário, é muito mais desumanizado, demonizado, que naquelas. O destino comum dos prisioneiros, homens e mulheres que resistiam, apresentados indistintamente como fanáticos, capazes de dar sua vida para não gritar “viva a República”, confirmavam as acusações de “conspiração monarquista”, ,mas não eram contrastadas pelo fato de os soldados também estarem dando sua vida pela república, e o quão selvagem, bárbaro, fanático e fora de propósito é matar alguém só por causa disso. A degola, o corte parcial do pescoço, era o fim comum dos prisioneiros.

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__ Restavam, entretanto, as crianças e suas mães, em especial aquelas, afinal em Canudos não havia apenas “fanáticos”, mas famílias, e muitas, com prole numerosa, como é comum entre os sertanejos. Seres humanos, que nem sabiam a diferença entre república, monarquia, e outras pendências de adultos, mas que já eram capazes de identificar sua fonte de prazer, alimento e segurança, só pelo cheiro ou pelo som da voz, que vinha de seus pais, que estavam a ser calados para sempre.
__ Havia mais um fator a considerar: há apenas nove anos fora abolida a escravidão no Brasil, e só os ideólogos mais encarniçados do governo, e até do abolicionismo, podiam crer que uma simples assinatura, ainda que feita com uma caneta de ouro, apagaria do dia para a noite as marcas de 400 anos de escravidão. Mas havia gente, de alto calibre intelectual, que acreditava nisso. Num dos versos do Hino da República, Medeiros Albuquerque, republicano “roxo”, diz: “nem cremos que escravos outrora, tenha havido em tão nobre país”. Esse “outrora”, tão longínquo no verso, não distava nem 3 anos da abolição da escravatura! A Abolição gerara ressentimentos e ações indenizatórias, a guisa de alienação forçada de patrimônio, resolvida, formalmente, pelo jeitinho mais simples e barato: a destruição de documentos históricos.
__ Narram os relatos que no dia 2 de outubro de 1897, um dos braços direitos de Antonio Conselheiro, Antonio Beatinho, achegou-se, com uma bandeira branca, ao comandante das tropas federais, General Arthur Oscar, e pediu-lhe que aceitasse a rendição de alguns moradores de Canudos, comprometendo-se a poupar-lhes a vida. Após breve tratativa, o acordo, perfeitamente justo e humanitário, foi selado e pouco depois apareceram os rendidos – segundo o repórter Favila Nunes, do Gazeta de Noticias, do Rio de Janeiro, de 17 de outubro de 1897, eles seriam 60 homens e 500 mulheres. Os homens, na verdade, eram estropiados de guerra, apresentando terríveis ferimentos, alguns já evoluindo para gangrena. Ou seja, os canudenses saudáveis transferiam o “abacaxi” de cuidar de feridos e não combatentes para o exército, e assim continuar a luta mais desembaraçados. Foi o que entenderam os oficiais da tropa.

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__ Indagado sobre o que fazer com os prisioneiros, o Ministro da Guerra, Marechal Carlos Bittencourt, é categórico: “não temos como alimentar e cuidar de tanta gente”. E isso era verdade, pois os soldados, devido a grande improvisação e falta de profissionalismo, passavam até fome, e necessidades diversas. No final ele acrescenta, à sua resposta, um enigmático “tome providências” (verhttp://guerradecanudos1896.blogspot.com.br/). A providência tomada foi a execução sumária dos prisioneiros escapando somente algumas crianças, cujo choro comoveu aos soldados ou acendeu neles a ideia de um ganho extra, além das mulheres mais “apresentáveis” e “prendadas”, que poderiam se tornar damas em algum bordel ou trabalhar em casa de família. Acredita-se que em torno de algumas poucas dezenas de mulheres e crianças tenham sido poupadas, sem nem por isso deixarem de sofrer os abusos que tradicionalmente se praticam nesses momentos, como o estupro. Nenhum homem foi poupado, inclusive o negociador de Canudos, Antonio Beatinho, uma fonte de informações sobre Canudos e o Conselheiro maravilhosa, degolado junto com os outros.
__ No dia 5 de outubro de 1897 caiu a última resistência no arraial de Canudos, no sertão da Bahia. No dia seguinte, seguindo as ordens do comandante da expedição, as casas do arraial foram contadas e incineradas. Ao todo umas 5.200, contadas em apenas poucas horas!, o que, junto com a degola generalizada dos prisioneiros, nos faz desconfiar de uma tentativa deliberada de ocultar o tamanho e o caráter da revolta, para não expor tanto a incompetência do exército como o despropósito de tamanha mortandade e destruição. Não se fez prisioneiro em Canudos; a “queima de arquivos”, pelo menos aqueles que caíram nas mãos do exército, foi completa.
__ Cansadas, exauridas, famintas, e amendrontadas pelos casos de varíola que começavam a graçar, as tropas deixaram o lugar não em ordem, mas em quase debandada, deixando para trás armas e munições, posteriormente encontradas por pesquisadores locais ou de universidades.
__ Outro drama, entretanto, já começara: o das crianças, algumas vezes arrancadas à força de seus familiares e parentes ligados à causa do Conselheiro e distribuídas entre os soldados como butim de guerra. O repórter Favila Nunes, do jornal Gazeta de Notícias, tenta justificar a forma descarada como o General Arthur Oscar, faz a “distribuição” dessas crianças. Para Nunes, isso se deve ao fato de o General ter “um belo coração de pai, dá gostosamente estas crianças a quem as possa tratar, e por isso eu levarei a pobre Josefa. Quase todos os oficiais já têm uma desgaçadinha destas para proteger [negritos de minha autoria]. O que se faz com carinho e dedicação. Até o General Arthur tem uma...” O adjetivo no diminutivo parece tentar justificar que essas crianças sejam tratadas como objetos ou coisas à disposição, passadas de mão em mão, como um presente! O jornalista, por sua vez, não deixa de tirar partido da situação, e proclama isso como atitude meritória!


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__ Chegando ao sertão de Canudos, entretanto, Lelis Piedade se inteira, por meio de conversas muito com gente do lugar, inclusive conselheiristas, padres, jornalistas que cobriam a guerra, e mesmo pelas cenas ocorridas antes seus olhos, de toda a extensão e gravidade daquela tragédia, e seu entendimento começa a mudar; pois, embora ainda tratando os sertanejos como “fanáticos”, não conseguiu deixar de se admirar com a educação e a honradez da mulher sertaneja, além de ficar profundamente tocado com a situação das crianças e a selvageria dos soldados – ele viu prisioneiros sendo levados à parte, por seus verdugos, para serem degolados; a venda rotineira de crianças, inclusive uma mulher ébria, traz-lhe crianças com marcas de espancamento e as tenta vender-lhe; soube de adolescentes sendo degolados e uma criança de doze anos estuprada por um soldado, com o conhecimento e a indiferença de seus superiores. Ele também notifica que ouvira relatos de sertanejos, dizendo que pessoas eram jogadas vivas em fogueiras, por se recusarem a dar “vivas à república” (talvez como uma forma de vingança contra a incineração do cadáver do coronel Moreira César, da terceira expedição, pelos sertanejos).
__ Mesmo durante a debandada final, quando já destruído fora o arraial e seus defensores aniquilados, se deixou assistir a cenas aterradoras; segundo frei Pedro Sinzig, em seu livro Reminiscências de um frade: “Dona Joana, mãe de seu João Régis, presenciou a sogra... e a cunhada... morrerem de fome e de sede, caídas na caatinga, na marcha forçada que o exército comandou, tangendo mulheres e crianças até Alagoinhas... Caia gente como mosca, mas os soldados não deixavam o povo nem ajudar com uma reza... os que iam arriando à beira da estrada, sem direito a enterro. Era como bicho”. Segundo o relato de uma de suas irmãs, que sobrevivera à retirada, um menino de apenas 3 anos, por não conseguir acompanhar os soldados, foi abandonado no caminho.
__ Ao voltar a Salvador, o relato de Lelis cai como um raio, esfarelando a consciência ingênua de muitos, que viam naquela guerra uma causa “patriótica”, e das discussões que se seguiram a maioria da direção do Comitê chegou a uma conclusão, que não foi unânime nem isenta de crítica, que era preciso incorporar aos cuidados com as famílias dos militares, os cuidados com o que restara das famílias sertanejas envolvidas na guerra, entre as quais se incluíam, prioritariamente as crianças que haviam perdido os pais ou estavam, junto com eles, em situação de extrema miséria e total indignidade, conforme consta de ata datada de 20 de janeiro de 1898. Da ação desse Comitê nós devemos muito do que sabemos sobre um dos aspectos mais escabrosos dessa guerra, ausentes dos livros mais conhecidos.
__ Indiferentes às críticas os membros do comitê se dirigiram, em primeiro lugar, aos militares, pedindo-lhe que devolvessem as crianças a fim de serem levadas às suas famílias originais ou a parentes próximos, ou ainda a um orfanato. Essa “colheita”, entretanto, foi escassa, pois boa parte das crianças já havia sido doada ou vendida a diversas pessoas, desde comerciantes a donos de fazenda, onde elas já estavam sendo usadas para realizar trabalhos domésticos e outros afazeres, e em diversos casos não foram, simplesmente, devolvidas, pois já haviam sido compradas e incorporadas aos “bens” do patriarca – o senhor Matias da Costa Batista, um próspero comerciante de Alagoinhas, se apropriara de três crianças, que lhes teriam sido supostamente dadas por oficiais do exército, recusou-se a dar informações sobre o paradeiro das crianças, afirmando que estas lhes pertenciam e que não achava justo que se protegesse filhos de “jagunços”.
__ Enquanto isso, dificultando as iniciativas do Comitê, artigos na imprensa procuravam justificar a atitude dos soldados como casos de extremo de heroísmo e humanidade, levando a crer que soldados famélicos, fazendo das tripas coração, tentavam proteger as crias do inimigo, um inimigo, além do mais, degenerado pela miscigenação, e elas próprias, as crianças, portadoras, em sua carne, desse pecado capital. Era verdade que os soldados estavam famélicos, e eram também, eles próprios, mestiços, embora disso não fale a imprensa, mas esse soldado teve, em diversos casos, teve uma postura muito mais pragmática, “capitalista”, do que a descrita naqueles panegíricos. Era um miserável tirando vantagem de outro, mais miserável ainda. Um padrão de relação social, herdada do passado, que se espalhava do centro rico à periferia pobre.

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__ Entretanto, os casos de sequestro, bem distante da piedade cristã, durante a retirada, estão muito bem documentados nas notas que o comitê fazia circular pelos jornais da cidade, pedindo notícias sobre o paradeiro de crianças, como o caso do menino Hermenegildo, de 2 para 3 anos, que a mãe vira sendo levado por um oficial de nome Maximiano; do menino Manuel Florêncio, levado por um soldado de polícia, com o assentimento de seu sargento, este de nome Magdaleno; a menina Silvina, de apenas 9 anos, cujos pais, ainda vivos, moravam na Serra de Aporá; etc.
__ O resultado do trabalho altamente meritório do Comitê Patriótico foi que 13 meninos e meninas forma devolvidos a pais e mães, logo tinha sido sequestrados, enquanto outras 13 foram entregues a parentes; 21 foram entregues a pessoas idôneas, civis ou militares, a guisa de adoção, e 50 encaminhadas a orfanatos, para adoção. O próprio Lelis acabou abrigando em sua casa três filhas de um líder famoso de Canudos, o comerciante Juaquim Macambira, que haviam sido tomadas por soldados do batalhão do coronel Dantas Barreto, da polícia, e levadas para Salvador. Posteriormente duas delas seriam devolvidas a parentes e uma terceira ficou com Lelis, para completar os estudos.
__ Dificuldades adicionais obstacularizavam os trabalhos do Comitê, como a necessidade de se conseguir salvo conduto às mulheres e crianças resgatadas, para poderem voltar aos seus familiares no entorno de Canudos, sem sofrer represálias por parte de fazendeiros, que conservavam antigos ódios contra a comunidade conselheirista, sem falar na recusa da Santa Casa, de 18 de março de 1898, em receber as crianças de Canudos em seu abrigo de órfãos, tanto pelo fato de elas terem mais de 10 anos, como pelo fato de que eles “talvez tenham recebido uma educação viciosa”, e, por conseguinte, não convinha “pô-los em contato com os filhos da instituição”. As crianças são então enviadas ao asilo de mendicidade. Uma justificativa burocrática, palaciana, cega para a excepcionalidade da situação, e uma recusa de um olhar cristão sobre a realidade.

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__ Afora eles, salvaram-se todos...



O jaguncinho de Euclides

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__ Um dos termos que mais marcou e discriminou essas crianças, vítimas da brutalidade militar-estatal, foi o de “jaguncinho”, com que os jornalistas e intelectuais lhes apodaram, como se a natureza “degenerada” de seus pais, que era antes uma condição social, fosse-lhes transmitida na fecundação, entre os quais o famoso Euclides da Cunha, escritor de Os sertões, que, quando de sua estadia em Belo Monte, em setembro de 1897, foi ofertado com uma criança pelo General Arthur Oscar, criança esta que Euclides só tratava por “jaguncinho”. Esta, assim como diversas outras, escaparam da ação protetora do Comitê Patriótico, uma vez que foram espalhadas, sem qualquer critério, pelo imenso território nacional, por soldados e jornalistas de outros estados.

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__ O “jaguncinho”, de nome Ludgero, foi trazido para São Paulo, e entregue, para sorte do menino, a um amigo de Euclides, o educador Gabriel Prestes, acima, sem filhos. O menino desde o início chamava atenção pela sua inteligência vivaz, prática, tipicamente sertaneja, e a memória minuciosa que tinha dos eventos que redundaram na morte de seus pais e na destruição de seu mundo. Tentando desvinculá-lo de tudo que dissesse respeito a Canudos, como a uma mácula de origem, o menino é registrado Ludgero Prestes e é-lhe atribuído uma data de nascimento “adequada”, não se sabia a real: 15 de novembro, o dia da Proclamação da República, a mesma que destruíra a sua família, contra a qual seu pais lutaram até a morte.
__ Em 1908, onze anos após o encontro, Euclides da Cunha, agora escritor famoso, lhe escreve uma cartinha, saudando o homem que ele se tornara, mas sem deixar de lembrar quem ele realmente era: “o pobre jaguncinho que me apareceu pela primeira vez... no final de uma batalha”. É curioso perceber duas coisas nessa cartinha: O menino, lhe “apareceu”, não foi-lhe “trazido”, como quando acontece com alguém que aparece de livre e espontânea vontade, como que para fazer uma visita ou travar amizade. Euclides o lembra de que ele era um “jaguncinho”, como a dizer-lhe: “lembre-se sempre que, originalmente, você não é um dos nossos, e que nós não lhe devemos nada pela destruição de sua família e sua infância, afinal você descende de jagunços”. Euclides, que viu e denunciou Canudos, chama aquilo de batalha! No final da carta Euclides dá-lhe o endereço de sua casa no Rio, sem deixar de tornar ao “assunto”: “uma casa tão hospitaleira quanto a minha rude barraca em Canudos”. Será que alguma vez acudiu a Euclides perguntar ao menino se ele preferia estar protegido na “rude barraca” ou lá fora, junto com seus pais legítimos?
__ As coisas mudam, é não é tão fácil assim apagar uma memória legada de fatos tão trágicos, principalmente, quando os principais interessados em apagá-la fazem de tudo para reavivá-la. Em 1898, Ludgero começa o seu curso escolar, com o nome de Ludgero Prestes, filho de pais desconhecidos, tutelado de Gabriel Prestes, originário da Bahia; mas, no final de
seu curso de professor já parece, na filiação, o nome de seu pai verdadeiro, um tal João Luiz, e, quando de seu casamento, o documento que traz o nome de seus genitores aponta-os como sendo João Luiz e Maria Luiz, e o local de seu nascimento Canudos, na Bahia. Uma reviravolta digna de um filme.

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Autor desconhecido - Fotografia de 1908, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7474066

__ Ludgero Prestes recusa a adoção espúria, porquanto forçada e segregadora, e avança poderosamente nos símbolos, buscando resgatar sua identidade e retornar às suas origens, tão destroçadas. Dificilmente ele teria nascido em Canudos, que, em 1890, era uma humilde fazenda com poucas casas – Euclides afirma que ele foi “achado” em Cocorobó, uma fazenda a 15 km de Canudos, local mais provável de nascimento. Então ele conscientemente quis retomar a herança e a esperança de seus pais em sua vida, sem falar que foi aí que ele entrou na idade da razão, os 7 anos, justo na destruição do arraial. Como ele soube o nome dos pais? Fez uma pesquisa a respeito? Esteve na Bahia? Não sabemos. Mas há uma pista na via dos símbolos: Ludgero é uma das formas latinas do nome Luiz, logo seus pais podem ter sido uma criação de Ludgero; João e Maria são nomes comuns no sertão e de personagens de uma fábula muito conhecida: João e Maria, largados numa floresta por um pai covarde e uma madrasta má. Seria razoável crer que, para ele, essa madrasta era a personificação da república?
__ Ludgero não se apartará do sobrenome de Prestes, nem deixou de fazer jus à força de sua raça e à fama de “sobrevivente”, que os sertanejos carregam, além da “sina”, da maioria, inclusive o que vos escreve, de acabar em São Paulo. Tornou-se um professor, casou-se, e foi o primeiro diretor do Grupo Escolar de Bebedouro, diretor do Grupo Escolar de Olimpia, e orador do Serra Negra Futebol Clube, de Serra Negra. Constituiu família, deixando descendência: quatro filhos. Morreu precocemente, em 13 de outubro de 1934, na cidade de Amparo, com apenas 43 anos, vítima de câncer no fígado, a sede dos sentimentos intensos, das emoções represadas.

Fontes
http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10799/10799_5.PDF
Wikipedia em portugês - Ludgero Prestes

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