sexta-feira, 10 de julho de 2015

“COMENTÁRIOS SOBRE AS CRÍTICAS DE VYGOTSKY A RESPEITO DE LINGUAGEM E PENSAMENTO E JULGAMENTO E RACIOCÍNIO NA CRIANÇA” DE JEAN PIAGET - IV

Tradução e comentários [ente colchetes] Prof Eduardo Simões (eduardospqr@gmail.com)


https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjmHtt57iIMrdRvSizcOe9r7sx8o0ySogbOkvGXe1zhF0J3_fyi_RVbra8XbD1QFP73ExNn7RLPVzWDYbOqkZmpJeR_0rYJIEEvvuCWQ7OZiWWpodHjZLi9vyU9N9KYlpDuJZYEZ5nb91EP/s1600/Pano_100_6663.jpg
Fonte: http://blogdosnerds.blogspot.com.br/
Prédio principal da Universidade de Genebra, onde Piaget lecionou.

Conceitos espontâneos, aquisições escolares e conceitos científicos
            Eu experimentei uma autêntica alegria ao perceber que Vygotsky me aprovou por haver distinguido, na aprendizagem, os conceitos “espontâneos” dos “não espontâneos”, uma vez que se poderia esperar que um psicólogo, mais familiarizado do que nós nos problemas de aquisição escolar, viesse, apesar de tudo, a desvalorizar a parte da construção contínua e pessoal testemunhada pela atividade intelectual da criança ao longo seu desenvolvimento.  Quando Vygotsky me reprova, em seguida, por haver insistido demais nessa distinção [entre conceitos espontâneos e não espontâneos], eu ainda estou de acordo com ele, embora ele, na sua argumentação, tenha retirado aquilo que nos poria de acordo. Mas quando ele precisa o sentido dessa discordância afirmando que a aquisição de conceitos não espontâneos comporta ainda assim uma “marca” devido à mentalidade da criança [ou seja, algo que é próprio da criança, e que Piaget chama símbolo], ao mesmo tempo em que é forçoso admitir uma “interação” entre os conceitos espontâneos e os aprendidos [não espontâneos], eu me vejo, mais uma vez, perfeitamente de acordo com ele. É, com efeito, devido a um mal entendido completo que Vygotsky imagina que, sob o meu ponto de vista, o pensamento espontâneo da criança deva ser conhecido pelos professores como quem conhece um inimigo, “para melhor combatê-lo”, quando em todos os meus escritos propriamente pedagógicos... eu sempre insisti sobre o quanto a educação poderia se beneficiar ... do aproveitamento sistemático do desenvolvimento espontâneo das crianças.
            Mas, antes de discutir em abstrato alguns pontos (pouco numeroso, mas essenciais), onde parece que Vygotsky parece não ter entendido a minha intenção nem o meu pensamento, partamos daquilo que parece, ao contrário, nos colocar em perfeita concordância. Em suas opiniões sobre os meus primeiros trabalhos, Vygotsky concluiu, sem desconfiar que este seria justamente o propósito do meu trabalho... que a missão essencial da psicologia da infância seria a de estudar a formação psicológica dos conceitos científicos que se colocavam, passo a passo diante de “nossos olhos”[de Piaget, como se este não estivesse percebendo o desenvolvimento dessa ciência, ainda tão recente naquele tempo, e a importância desse processo nas crianças]. Ora, esse era justamente o meu projeto [basta tomar conhecimento das obras seguintes de Piaget; realmente um grande mal entendido]...
            Ou será que nós, tomando os resultados dos estudos sobre relações entre o desenvolvimento espontâneo e as aquisições escolares, questões sobre as quais Vygotsky se vê em desacordo comigo, vemos que na realidade isso não acontece senão em parte e justo no sentido inverso que ele imaginava?
            Partamos de um exemplo preciso; o do ensinamento da geometria. Na Suíça, na França e alhures ele apresenta três características: a) começa tardiamente (lá por volta dos onze anos), em oposição à aritmética iniciada aos sete anos; b) torna-se repentinamente geométrico e mesmo métrico [medidas geométricas], sem passar por uma fase qualitativa onde as operações espaciais se reduziriam a operações lógicas, embora aplicadas ao contínuo [a realidade concreta, analógica, ao contrário das operações feitas com números, da aritmética, de natureza discreta, descontínua]; c) segue-se, sempre, a ordem histórica das descobertas: primeiro a geometria euclidiana, bem depois a geometria projetiva e por fim (na universidade) a topologia. Ora, ao contrário disso, sabe-se hoje em dia [graças ao trabalho dos matemáticos “modernos”, em especial os Bourbakis, na França] que a geometria teórica moderna parte de estruturas topológicas, de onde derivam, paralelamente, a geometria projetiva e as estruturas euclidianas. Sabe-se, por outro lado, que essa geometria teórica é fundada na lógica, e, enfim, que existe uma conexão cada vez mais estreita entre as abordagens geométricas, e as algébricas ou numéricas (da aritmética). Se agora nós examinarmos, como era desejo de Vygotsky, a formação das operações geométricas nas crianças, nós observamos que ela é bem mais conforme o espirito dessa geometria teórica que do ensinamento clássico da geometria. 1) A criança constrói as suas operações espaciais ao mesmo tempo que as operações numéricas, com interação entre as duas (existe, em particular, um notável paralelismo entre a construção do número e o da medida do contínuo [a que se dedica a geometria]). 2) As primeiras operações geométricas das crianças são essencialmente qualitativas e são paralelas às suas operações lógicas (ordem, encaixe, etc.). 3) As primeiras estruturas geométricas que a criança percebe são as de caráter topológico, e é a partir destas que ela constrói as suas estruturas projetivas e euclidianas elementares.
            De tais exemplos... fica fácil extrair respostas às críticas de Vygotsky. Quando ele me recrimina, em primeiro lugar, de conceber a aprendizagem [escolar como não mais que uma compilação do desenvolvimento espontâneo] [o colchete anterior é obra do tradutor francês] da criança, é claro que, no meu espírito, as nossas discordâncias eventuais são imputáveis muito mais à escola que às crianças, escola essa que despreza todas as vantagens que poderia tirar do desenvolvimento espontâneo das crianças, e que deveria esforçar-se para construir procedimentos pedagógicos mais adequados àquele, em vez de contrariá-lo, como normalmente o faz. Em segundo lugar, o erro principal de interpretação que comete Vygotsky a meu respeito, nesse assunto, consiste em crer que, para mim, o pensamento adulto “afasta”, pouco a pouco, o da criança, após uma série de soluções de compromisso, e que isso se daria por um tipo de “abolição mecânica” desse último, enquanto que, hoje em dia, me reprovam justo do contrário, por interpretar o desenvolvimento espontâneo da criança como tendendo automaticamente para as estruturas lógico-matemáticas do adulto.
            Os problemas aqui levantados são dois, conforme também os identifica Vygotsky, e de cuja solução nós divergimos um pouco. O primeiro é sobre a “interação entre os conceitos espontâneos com os não espontâneos”. Essa interação é mais complexa do que Vygotsky imaginava. Em certos casos as transmissões educativas são bem assimiladas pelas crianças porque prolongam algumas de suas construções espontâneas: nesse caso há a aceleração do desenvolvimento. Mas em outros casos as intervenções educativas interveem ou muito cedo [a criança ainda não está preparada] ou muito tarde [a criança já ultrapassou essa fase] ou são apresentadas de uma maneira inacessível [falha na comunicação do professor], de sorte que não corresponda às construções espontâneas daquela: nesse caso então há frenagem do desenvolvimento ou mesmo um desvio esterilizante, como é comum acontecer na aprendizagem das ciências exatas [a criança adquire uma “birra” por esses conteúdos e uma crença paralisante sobre a possibilidade de aprendizagem dos mesmos]. Eu não acredito, portanto, como parece ser o caso de Vygotsky, que a aquisição de novos conceitos, mesmo em nível escolar, resulte sempre da intervenção didática do professor. Isso também pode acontecer, mas existe uma forma bem mais fecunda de instrução: a da escola “ativa”, esforçando-se por criar situações que por elas mesmas não são “espontâneas”, mas que provocam elaborações mentais espontâneas nas crianças, quando são bem sucedidas ao despertar o seu interesse e em por os problemas de uma forma que corresponda às construções pré-existentes na criança.
            O segundo problema, que prolonga o anterior num plano mais geral, é o das relações entre os conceitos espontâneos e as noções científicas. A “chave” do sistema de Vygotsky seria, nesse aspecto, que “as noções científicas e as espontâneas partem de origem diversa, mas se fundem mais adiante”. Nesse aspecto nós estamos plenamente de acordo, se isso significa que entre a sociogênese das noções científicas (no terreno da história das ciências, e da transmissão de uma geração à seguinte) e a psicogênese das estruturas “espontâneas” (mais influenciadas pelas interações com o meio social, familiar, escolar, etc.) há uma confluência e não simplesmente a determinação total da psicogênese pela cultura histórica e pelo ambiente. Ora, eu não quero atribuir à autoria de Vygotsky mais do que ele realmente disse, uma vez que ele admite algum tipo de espontaneidade no desenvolvimento. Resta somente determinar, agora, no que consiste.

[A interação da criança com o meio físico e social, provoca o aparecimento de algum tipo de definição, de noção, sobre o que ela percebe (objetos, acontecimentos, etc.), que tanto Piaget como Vygotsky chamam de “noções espontâneas”, em contraposição às “noções científicas” criadas pelo acúmulo de conhecimentos e mudanças paradigmáticas, ao longo da história das ciências nos mais elevados meios científicos, ao qual a criança, e até mesmo seus país, não têm acesso, exceto pelo que lhes é transmitido pelos professores, nas escolas, e por meio de livros, e mídias diversas. O objetivo da educação escolar, segundo Piaget, e aparentemente Vygotsky, é fazer com que essas duas fontes de conhecimento se encontrem e se ajudem mutuamente, no amadurecimento da criança, e é por isso que é tão importante ter uma ideia clara do nível de desenvolvimento mental da criança e da forma como ela aprende os conteúdos científicos das disciplinas. Quando isso acontece, segundo Piaget, o desenvolvimento da criança deslancha, mas quando a escola ignora esse fato elementar, ocorre uma frenagem no desenvolvimento, que ode mesmo chegar a uma paralisia asfixiante, com a criança crendo absolutamente ser incapaz de aprender isso ou aquilo. Para nós, piagetianos, essa é a principal causa dos mal-entendidos da escola e dos célebres casos de baixa autoestima que tanto pano tem dado para as mangas de todos, cujos equívocos e até absurdos, na sua interpretação, são uma das maiores chagas da escola brasileira]

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