terça-feira, 7 de julho de 2015

“COMENTÁRIOS SOBRE AS CRÍTICAS DE VYGOTSKY A RESPEITO DE LINGUAGEM E PENSAMENTO E JULGAMENTO E RACIOCÍNIO NA CRIANÇA” DE JEAN PIAGET - II 

Tradução e comentários [entre colchetes] do Prof Eduardo Simões (eduardospqr@gmail.com)



http://simonraulot.free.fr/Neuch09/Neuch

Aspecto atual de Neuchâtel, cidade de origem de Piaget.

            Portanto, é para designar esse fracasso inicial na descentração do pensamento infantil que eu uso a palavra “egocentrismo”. Seria errado falar apenas em “centrismo”, mas como as centrações iniciais são sempre relativas às ações do próprio sujeito, eu falei em “egocentrismo”, enfatizando que se tratava sempre de um egocentrismo intelectual e cognitivo, sem nenhuma relação com aquilo que a linguagem comum chama de egocentrismo (uma hipertrofia da consciência de si): o egocentrismo cognitivo é proveniente, e eu procurei deixar bem esclarecido, de uma indiferenciação entre o próprio ponto de vista e outros possíveis [pontos de vista, ou seja, a criança imagina que os outros veem exatamente o que ela vê, apesar de estarem em posições diferentes, e até opostas], e de maneira alguma a um individualismo anterior à relação com os outros [um egocentrismo consciente e de nascença]...
            ....
            Passemos então àquilo que causa mais desconforto a Vygostsky, na minha teoria sobre egocentrismo, que é a comparação que faço com o autismo de Bleuler (1) e com o “princípio do prazer” (2) [em alemão no original] de Freud. Sobre o primeiro ponto... não nega, como os meus críticos franceses, que existe um autismo natural em cada indivíduo, como o meu mestre Bleuler também o admitia. Ele apenas acha que eu insisti demais nas semelhanças entre egocentrismo e autismo e pouco nas diferenças, e ele está com a razão. Mas se eu agi assim, é porque as semelhanças, admitidas por Vygotsky, me parecem muito adequadas para explicar a gênese do jogo simbólico na criança... onde se manifesta frequentemente esse “pensamento não dirigido e autístico” [a criança fala sozinha, ao léu], de que fala Bleuler, e que eu procurei explicar a partir da predominância, no jogo simbólico inicial da criança, da assimilação sobre a acomodação.
            Quanto ao “princípio do prazer”, que Freud situa geneticamente antes do “princípio da realidade”, Vygotsky também acerta ao me recriminar por haver aceitado sem crítica suficiente esse esquema tão simplório: o fato de que toda conduta é adaptativa, e que a adaptação é sempre um equilíbrio de forma variada (estável, instável, etc.) entre assimilação e acomodação, permite às vezes: 1º, explicar o princípio do prazer, com suas manifestações precoces, pelo aspecto afetivo com predominância frequente da assimilação, 2º, justificar as restrições de Vygotsky, quando ele sustenta que sempre há uma necessidade de prazer, quando de uma adaptação ao real, uma vez que mesmo quando a assimilação predomina, ela se faz acompanhar sempre de uma acomodação [ver abaixo].
            Por outro lado, eu não posso acompanhar Vygotsky, quando ele supõe que, havendo separado a necessidade e o prazer de sua função de adaptação ao real (o que eu creio jamais ter feito, e se o fiz corrigi depressa em livros posteriores...), eu me veria obrigado a apresentar o pensamento “realista” ou objetivo como separado de necessidades concretas, como se fosse um pensamento puro, que busca em suas operações internas a sua própria satisfação. Sobre esse ponto de vista, tudo o que se seguiu em minhas obras... demonstra suficientemente que eu não separo o pensamento da ação. É verdade que eu tenho muitas vezes afirmado que as raízes das operações lógicas são mais profundas que as ligações linguísticas, enquanto eu estudei, sobretudo, o pensamento no nível da linguagem, o que nos leva para o segundo ponto... (continua)

[a adaptação, como diz Piaget, é fruto de um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. A assimilação consiste em mudar o que está fora, o mundo, para se ajustar àquilo que está internamente, a estrutura mental da criança, que, na eventualidade dela ser simbólica, pode transformar um cabo de vassoura em um cavalo, e isso lhe dá, certamente, muito prazer, ao contrário de quando ela precisa se acomodar ao fato de aquilo ser um instrumento de trabalho, e que de vez em quanto ela vai ter que empunhar o cabo da vassoura para ajudar nas tarefas domésticas. Ora, nesse caso haveria uma adaptação ao mundo, ou algo que, guardado o contexto meramente explicativo e analógico, assemelha-se ao princípio do dever de Freud, e que Piaget chama de acomodação: o organismo se acomoda às exigências do ambiente, para de lutar contra ele em tudo, de tentar assimilá-lo, e passar a seguir seu modo de funcionamento, para aquela tarefa específica. Quando isso se dá, ainda assim há um pouco de assimilação, de tal sorte que não dá para separar a adaptação do mundo de uma necessidade real, biológica, cognitiva, afetiva ou social do organismo, como se a apreensão do mundo se desse apenas pela via do pensamento, isolado da realidade, como Vygotsky supôs, Deus sabe lá porque!, que Piaget defendia. Como já dizia aquele axioma piagetiano: o interesse – sinal de afeto ou prazer pelo que se faz ou vai fazer – é o sintoma da necessidade

Notas
(1) [Piaget ressalta que faz uso do conceito de “autismo” recém-criado, em 1911, pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857-1939), quando ele refez e criou o conceito de “esquizofrenia”, que antes se chamava “demência precoce”, devido ao psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1856-1826). A Wikipédia espanhola traz a seguinte definição:] “é um conjunto de transtornos caracterizados por um grave déficit de Desenvolvimento, permanente e profundo, que afeta a socialização, a comunicação, o raciocínio e a reciprocidade emocional, e se revela por meio de condutas repetitivas e incomuns. Os sintomas são a falta de interação social (mostram dificuldades em se relacionar com crianças de sua idade, fazem pouco ou nenhum contato visual, evitam o contato físico, não respondem ao ser chamados pelo nome, não apresentam linguagem ou a pronunciam com muitas alterações), as estereotipias (movimentos repetitivos), pouca tolerância à frustração, risos ou prantos sem motivo aparente; às vezes apresentam hiperatividade ou são muito passivos, não desenvolvem o jogo simbólico nem jogos com regras... [(tradução livre)]

(2) [Laplanche e Pontalis definem o princípio do prazer como] um dos dois princípios [o outro é o da realidade] que, segundo Freud, regem o funcionamento mental: o conjunto das atividades psíquicas que tem por finalidade evitar o desprazer e procurar o prazer. Dado que o desprazer está ligado ao aumento da quantidade de excitação [a fome, por exemplo, causa uma excitação, uma necessidade de se alimentar], e o prazer à diminuição [pela satisfação da necessidade alimentar, sexual, etc.], o princípio do prazer constitui um princípio econômico [ou seja, busca economizar ou equilibrar a energia psíquica; trecho citado pela Wikipédia espanhola]. Dentro do princípio do prazer se deve incluir os sonhos noturnos e a tendência humana de apartar-se das lembranças ou sensações desagradáveis... O princípio do prazer responde essencialmente às demandas do ego [do “eu” consciente, que permanece tanto mais ligado a esse princípio quanto mais imaturo é] [trecho da Wikipédia espanhola]
Fonte: http://simonraulot.free.fr/Neuch09/Neuch09.html 
(visite historiatexto.blogspot.com.br)
Agradecimentos à minha esposa Margarida Guimarães

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