terça-feira, 14 de julho de 2015

“RELAÇÃO ENTRE INTELIGÊNCIA E AFETIVIDADE NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA” - I  (TRECHOS DO CURSO SOBRE AFETIVIDADE MINISTRADO POR PIAGET ENTRE 1953 E 54, ARCHIVES JEAN PIAGET).

Tradução e observações [entre parênteses] Prof Eduardo Simões 


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Fonte: http://profbienveillant.com/
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I POSIÇÃO DO PROBLEMA

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            Ninguém [exceto nossas autoridades educacionais] sequer sonha em negar, hoje me dia, a interação constante que há entre a inteligência e a afetividade. Entretanto afirmar que a inteligência e afetividade são indissociáveis pode envolver dois significados muito diferentes:
            Primeiro, pode-se querer dizer que a afetividade intervém nas operações da inteligência, que ela as estimula ou perturba, que ela é causa de aceleração ou retardo do desenvolvimento intelectual, mas que ela não poderia modificar as estruturas da inteligência enquanto tal.
            Esse papel acelerador ou perturbador é incontestável. A criança, quando encorajada na escola, terá mais disposição para estudar, e aprenderá mais facilmente; entre aqueles que são fracos em matemática, uma boa parte se deve a bloqueio afetivo, a um sentimento de inferioridade especializado [só em relação essa matéria]. Esse bloqueio pode impedir, provisoriamente, que a criança de compreender (ou reter) as regras de adição, mas não muda nada nessas regras.
            Segundo, pode-se querer dizer que, pelo contrário, a afetividade intervém nas estruturas da inteligência, e que ela é fonte de conhecimento e das operações cognitivas originais.
            ..... [segue-se um punhado de autores e suas opiniões a esse respeito]
            ... comecemos agora por aclarar alguns conceitos diretores.

II DEFINIÇÕES DIRETORAS

a) A Afetividade

            Sob esse termo nós entendemos:
            - Os sentimentos propriamente ditos, as emoções.
            - As diversas tendências, aí inclusas as “tendências superiores”, em especial a vontade.
            Certos autores distinguem entre fatores afetivos (emoções, sentimentos) e fatores conativos (tendência, vontade) [conativo vem de conação, “aspecto do processo mental e/ou do comportamento que tendem a se transformar... tendência intrínseca do organismo para o movimento” (Dicionário Houaiss), para a ação, o que só acontece por influxo da vontade], mas a diferença parece ser só de grau. Pierre Janet funda os sentimentos elementares sobre a economia da conduta, e os define como uma regulação de força de que dispõe o indivíduo: pode-se mesmo conceber a vontade como a regulação dessas regulações elementares.

b) Funções Afetivas e funções Cognitivas

            É necessário distinguir cuidadosamente entre funções cognitivas (que vão da percepção e das funções sensório-motoras até a inteligência abstrata...), e as funções afetivas. Nós distinguimos essas duas funções porque elas nos parecem de natureza diferente, mas na conduta concreta do indivíduo elas são indissociáveis [veja-se, por conseguinte, o gravíssimo erro em que incorrem nossas autoridades educacionais ao menosprezarem de forma tão acintosa os aspectos afetivos na educação formal, para se dedicarem a adestrar as crianças apenas para a realização de exames padronizados; exclusividade cognitiva]. É impossível achar condutas relevantes exclusivamente afetivas, sem elementos cognitivos, e vice-versa, como demonstraremos em seguida.

1) Não há mecanismo cognitivo sem elementos afetivos
           
            Mesmo nas formas mais abstratas da inteligência os fatores afetivos intervêm sempre. Quando uma criança resolve um problema de álgebra, quando um matemático descobre um teorema, há desde o início um interesse intrínseco ou extrínseco, uma necessidade; ao longo de todo o trabalho podem intervir estados de prazer, de decepção, de ansiedade, fadiga, esforço, tédio, etc., e no fim do trabalho, sentimento de sucesso ou fracasso; podendo se juntar a eles inclusive sentimentos estéticos (coerência da solução encontrada).
            Nos atos cotidianos da inteligência prática, a indissociação é ainda mais evidente. Sempre há interesse: intrínseco ou extrínseco.
            Na percepção dá-se a mesma coisa: seleção perceptiva, sentimentos de agrado e desagrado (sendo a indiferença ela própria uma tonalidade afetiva), sentimentos estéticos, etc.

2) Não há de forma alguma estado afetivo sem elemento cognitivo

            Konrad Lorenz, estudando o instinto dos pássaros, evidenciou a existência de configurações perceptivas bem determinadas, inatas e específicas (IRM) (Mecanismo Inato de Disparo) [nota de Piaget a propósito da sigla em inglês]. Certos movimentos específicos no andar da mãe disparam no patinho tendência a segui-la imediatamente; o instinto sexual de certos papagaios pode ser disparado por uma percepção cromática (azul claro). Assim os instintos não são somente disparados por solicitações afetivas internas: eles respondem sempre a estimulações perceptivas precisas...
            Da mesma forma, nas emoções encontram-se sempre discriminações perceptuais. Wallon demonstrou que o medo do bebê está originariamente ligado à noção de perda do equilíbrio. Da mesma forma, o medo da escuridão, e mais forçosamente ainda os medos condicionados, é uma resposta a estimulações perceptivas. Os fatores cognitivos desempenham um papel nos sentimentos primários, e com mais razão nos sentimentos complexos mais evoluídos, que se misturam cada vez mais com elementos relevantes da inteligência.
(continua)

c) Adaptação: Assimilação e Acomodação

            Será que nos caracteres mais gerais da conduta, a adaptação, com seus dois polos, a assimilação e a acomodação, os fatores cognitivos e afetivos encontram-se dissociados entre si? Toda conduta é uma adaptação, e toda adaptação restabelece ao equilíbrio entre o organismo e o meio. Nós não agimos, senão quando estamos momentaneamente desequilibrados [o desequilíbrio, normalmente tão temido, rompe a nossa acomodação, definida na crença do “time que está ganhando não se mexe”]. Claparede demonstrou que o desequilíbrio se traduz por uma impressão afetiva particular, derivada de uma necessidade. A conduta chega ao fim quando a necessidade é satisfeita: todo retorno ao equilíbrio é marcado por um sentimento de satisfação. Esse esquema é muito geral, mas ainda assim podemos dizer que se não há fome não há necessidade de se nutrir; se não há carência não há necessidade de trabalho; se não há problema não há necessidade de inteligência. Sem a sensação de uma lacuna, portanto sem desequilíbrio, não há necessidade [e por conseguinte não há crescimento ou desenvolvimento; vê-se aí o grave erro de nossa didática contemporânea de querer facilitar tudo para a criança, garantindo-lhe, inclusive, a aprovação automática].
            Mas essas noções de equilíbrio e desequilíbrio têm também um valor cognitivo. A Gestalt [uma corrente da psicologia que se dedicou muito ao estudo da percepção visual e das ilusões de ótica, para mostrar o caráter inato das estruturas mentais] define a percepção como uma equilibração. A lei da boa forma [ou pregnância das formas, é uma lei da Gestalt que diz que nós percebemos melhor determinados tipos de formas como as mais simples, as simétricas, as regulares, etc.] é uma lei do equilíbrio. As operações intelectuais tendem mesmo para formas de equilíbrio... A noção de equilíbrio tem, portanto, uma significação fundamental, tanto do ponto de vista intelectual como afetivo.
            Para o sujeito da adaptação, pode-se dizer que esse equilíbrio comporta dois polos
            A assimilação, relativa ao organismo que conserva as suas formas.
            A acomodação relativa à situação exterior em função da qual o organismo se modifica.
            Essas duas noções têm uma significação tanto mental como biológica.
            Assimilação cognitiva: o objeto é incorporado aos esquemas anteriores de condutaE dessa forma encontramos:
            Uma assimilação perceptiva (os objetos são percebidos em relação aos esquemas anteriores).
            Uma assimilação sensório-motora. Um bebê de um ano, que deseje apanhar um objeto que esteja longe dele, mas sobre um cobertor, ao puxar a este, servindo-se dele como um intermediário para alcançar o objeto, está assimilando-o, o cobertor, aos seus esquemas de preensão.
            Uma assimilação conceitual, uma vez que o objeto novo não é concebido [conceitualizado], enquanto não for assimilado aos esquemas conceituais pré-existentes, ou seja, o conjunto de operações mentais de que dispõe o sujeito.
            Acomodação cognitiva. Se, ao contrário, o objeto resiste a ser assimilado pelos esquemas anteriores [é mais complexo que o habitual], é necessário proceder a uma nova transformação dos esquemas anteriores, que não se adaptam às propriedades do novo objeto.
            Pode-se falar em adaptação, quando o objeto não mais resiste mais demasiado à assimilação, por já ter provocado alguma acomodação [mudança] neste... Essas noções, todavia, têm um duplo aspecto afetivo e cognitivo.
            O interesse é a assimilação, no seu aspecto afetivo,...; enquanto que no seu aspecto cognitivo, a assimilação é a compreensão à maneira do bebê no domínio sensório-motor [quando o bebê repete à exaustão o já que aprendeu, como se encontrasse, naquela repetição, uma grande satisfação].
            A acomodação, no seu aspecto afetivo, é o interesse por um objeto como novidade; enquanto que no seu aspecto cognitivo é o ajustamento dos esquemas de pensamento aos fenômenos [observados no novo objeto].
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            [Nesse momento é necessário esclarecer o que é assimilação e acomodação no jargão de Piaget. A assimilação ocorre quando organismo manipula o objeto adaptando-o aos seus esquemas de ação atual. Por exemplo, um monitor muito fino de tv, do tipo LCD ou outra semelhante, nas mãos de quem nunca viu uma igual, pode perfeitamente ser usado como tampo de uma mesinha de centro ou como um suporte quadro muram na parede. Nesse caso o novo objeto foi assimilado aos esquemas anteriores aplicados em objetos análogos pelo sujeito. Bem diferente ocorreria se o indivíduo, que sempre abrigou sua tv antiga, analógica, muito pesada e grande, na sala de visitas, sob um grande e pesado móvel, de posse um aparelho novo, mais leve e fino, resolvesse fazer modificações no seu quarto, sondando as formas de perfurar a parede, para assistir à nova tv no conforto de cama, mudando antigos hábitos: isso é acomodação. O interesse por possuir a nova tv tem a ver com o desejo de assimilá-la ao universo de telespectador compulsivo do sujeito, que ao manuseá-la descobre suas possibilidades de instalação, bem diferente da tradicional, e não só, pois ele decidiu que fará as mudanças que for preciso para se adaptar à nova aquisição, acomodação no seu aspecto afetivo, que se tornarão em novos hábitos, posteriormente, anunciando a acomodação cognitiva. Ou seja, tanto para haver a assimilação como a acomodação, é necessário que haja o querer, a partir de um interesse pela novidade ou o corriqueiro. A novidade, é claro, informa muito mais]

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