segunda-feira, 13 de julho de 2015

“COMENTÁRIOS SOBRE AS CRÍTICAS DE VYGOTSKY A RESPEITO DE LINGUAGEM E PENSAMENTO E JULGAMENTO E RACIOCÍNIO NA CRIANÇA” DE JEAN PIAGET - V

Tradução e comentários [entre colchetes] Prof Eduardo Simões

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Fonte: http://educacao.estadao.com.br/

Piaget e Vygotsky. Montagem. Os dois nunca se encontraram pessoalmente.

            Operações e Generalização
            Pode ser que sobre a questão da natureza da atividade espontânea subsista uma divergência entre Vygotsky e eu, mas ela não faz mais que prolongar aquilo que já havíamos notado a propósito do egocentrismo e da necessidade de uma descentração para assegurar o progresso no desenvolvimento da criança.
            Começando pelas decalages [“demoras”, “atrasos aparentes”, apesar de as crianças de certa idade já estarem aptas para discernir o que acontece, não o fazem] na tomada de consciência, onde nós, ao que parece, estamos um pouco de acordo, salvo que Vygotsky não admite que a ausência de tomada de consciência seja um resíduo do egocentrismo. Vejamos o que ele propõe: 1) o caráter tardio da tomada de consciência resultaria simplesmente da “lei”, segunda a qual essa tomada de consciência, assim como a verificação [ato de observar cuidadosamente o que acontece, emitir juízos e propor contraprovas] não apareceria senão ao termo do desenvolvimento de uma função; 2) essa tomada de consciência não visaria, a princípio, mais que ao resultado da ação, para se concentrar em seguida somente ao “como” ou às operações propriamente ditas. Essas duas afirmações são exatas, mas elas apenas se referem aos fatos sem os explicar. A explicação começa quando se compreende que um sujeito centrado apenas em suas ações não tem condições de tomar consciência de outra coisa que não sejam os seus resultados [de suas ações], enquanto que uma situação de descentração, na qual uma ação é comparada a outras possíveis, e, sobretudo, às de outro sujeito, conduz a uma tomada de consciência do “como” e à operação.
            A diferença de concepção entre um sistema puramente linear, como o de Vygotsky, e o esquema de descentração é ainda mais visível quando se refere ao motor principal do desenvolvimento intelectual. Pela leitura dos textos de Vygotsky (apenas a este que me refiro, pois eu não conheço o resto de sua obra) [Piaget é sempre muito cauteloso ao emitir opinião sobre o pensamento de alguém, que ele conhece pouco], parece que o fator principal deve ser procurado na “generalização das percepções”, apenas ele bastando para conduzir à tomada de consciência das operações mentais. Nós pensamos o contrário, pois no conjunto dos trabalhos citados acima sobre o desenvolvimento espontâneo das noções científicas, observamos que o fator central era a construção das operações mesmas, enquanto ações interiorizadas que se tornavam reversíveis, e se coordenavam em operações de conjunto bem definidas (em uma grande variedade). Os progressos na generalização [no pensamento infantil] não seriam senão o resultado da construção de estruturas operatórias, que não derivam das percepções e sim das ações.
            Ora, Vygotsky estava muito próximo disso quando sustentou que o sincretismo [mistura de realidade e fantasia], a justaposição [não estabelecer nexo lógico entre as partes do discurso], indiferença à contradição, e outras características daquilo que nós hoje chamamos de nível pré-operatório (de preferência a pré-lógico) do desenvolvimento da criança, não seria mais que uma “falha de sistema”, porque é a construção de sistemas que caracteriza mais profundamente a chegada da criança ao nível do raciocínio lógico. Mas esses “sistemas” não são apenas produtos da generalização: são estruturas operatórias múltiplas e diferenciadas, às quais se pode, hoje em dia, seguir a sua elaboração passo a passo.
            Um pequeno exemplo da diferença entre os nossos pontos de vista é fornecida por uma observação de Vygotsky a respeito da inclusão. Ao lê-lo se diria que a criança descobre a inclusão por uma combinação de generalizações e aprendizagem (!), aprendendo primeiro a palavra “rosa” e em seguida a palavra “flor”, as justapondo no início, mas lhe permitindo, depois, proceder à generalização “todas as rosas são flores”, e descobrir que a recíproca não é verdadeira, por entender o sentido da inclusão, posto que “as rosas incluem as flores”. Ora, nós estudamos esse problema de perto e sabemos, hoje, o quanto ele é complexo, pois mesmo afirmando que todas as rosas são flores e que todas as flores não são rosas, a criança, até a um certo nível, não saberá concluir que existem mais flores do que rosas, para chegar a essa extensão da primeira conclusão será necessário construir um sistema operatório, tal que A (rosas) + A¹ (flores não rosas) = B (flores); A = B – A¹, portanto A<B, sistema cuja reversibilidade constitui uma condição necessária da inclusão.
            Eu não abordei aqui a questão da socialização como condição necessária ao desenvolvimento intelectual, que Vygotsky sobreleva em várias oportunidades no seu comentário. Na minha perspectiva atual ela [a socialização] já não se coloca tanto quanto nos meus primeiros estudos, porque a consideração sobre as operações e a descentração ligada à construção de estruturas operatórias modificou os seus termos. Toda lógica pensada é socializada, porque ela supõe a comunicação entre indivíduos. Mas essa troca interindividual repousa sobre correspondências, uniões, intersecções, reciprocidades, etc., que são ainda operações. Entre essas operações interindividuais há, portanto, identidade [uma condição necessária ao pensamento lógico e à comunicação]. A conclusão a se tirar disso é que as estruturas operatórias que se constroem espontaneamente constituem-se primordialmente em estruturas de coordenação, quer se trate das coordenações interiores de ações feitas pelo individuo, quer se trate da coordenação de ações feitas por indivíduos distintos, portanto de cooperação.

FIM

[observamos que Piaget, nesse texto, parece reduzir os problemas de socialização apenas ao seu aspecto lógico, dentro de estruturas operatórias, definidas matematicamente. De um ponto de vista estritamente epistemológico ele está certo, afinal interessa-lhe apenas definir em que condições se dá o conhecimento, mas do ponto de vista psicológico, que seria o de Vygotsky, e de quem trabalha com educação, isso poderia ser um reducionismo perigoso ou esterilizante, ao trabalho do educador e do psicoterapeuta, afinal permanece, como uma espada de Dâmocles, a afetividade de tocaia, interferindo não só na qualidade das ações como das conclusões a respeito destas, definido limites, por vezes muito estreitos, às possibilidades das estruturas, não só quanto à sua ação como à sua formação. Como muito bem reparou Jean-Marie Dolle, em uma de suas obras, se é verdade que o pensamento lógico é regido pela lei da não contradição, o mesmo não se dá com as manifestações da afetividade, que, quer queiramos quer não, condicionam o primeiro, talvez mais do que seja por aquele condicionada]

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