A nossa proposta é de sempre mostrar artigos
originais ou traduções, mas essa entrevista do psicanalista francês Charles Melman,
apresentada pela revista ISTOÉ, de 22/09/04, é tão atual, importante e reveladora do mundo
de hoje, que seria um absurdo não reproduzi-la integralmente no nosso blog,
espero que leiam, gostem e reflitam muito
- Prof Eduardo Simões
A era do prazer
Novo
destaque da psicanálise, Charles Melman afirma que os indivíduos nunca pensaram
tão pouco como hoje e que as ideologias acabaram
Celina Côrtes
O psicanalista austríaco Sigmund
Freud (1856-1939) e o francês Jacques
Lacan (1901-1980) provocaram uma revolução ao desvendar com mais profundidade o
funcionamento da mente. Embora suas teorias continuem vigorando, o homem que
eles analisaram tem diferenças fundamentais em relação ao cidadão do século
XXI. Com o cuidado de não minimizar o conhecimento de seus antecessores, o
psicanalista francês Charles Melman, 73 anos, está causando uma nova revolução
na psicanálise com o livro O homem sem gravidade,
gozar a qualquer preço (Ed. Companhia de Freud). Melman faz um
retrato de corpo inteiro do novo homem, que põe o prazer à frente do saber e
prioriza a estética em detrimento da ética. “O excesso se tornou norma”, diagnostica,
com sua voz calma e pausada, à beira da piscina do Hotel Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro. Melman esteve na cidade participando de um seminário sobre os
laços conjugais na modernidade. O evento, com o título Será que podemos dizer, com Lacan, que a mulher é sintoma do
homem?, foi promovido pela associação psicanalítica Tempo Freudiano.
Apesar de ser um dos profissionais mais badalados
do momento na psicanálise, seu tom nada tem de arrogante. Melman foi um dos
principais colaboradores de Lacan, que o escolheu para dirigir a Escola
Freudiana de Paris. Ele fundou a Associação Freudiana Internacional, que mais
tarde passou a se chamar Associação Lacaniana Internacional. O psicanalista
evita injetar julgamento nas conclusões alinhavadas em seu livro. São
constatações sobre a vida moderna, na qual ele vê aspectos positivos, entre os
quais a “formidável liberdade”, e negativos, como o processo de substituição
das neuroses pela depressão. O que ele batiza como “nova economia psíquica”
teria, entre outras coisas, transformado o sexo em uma mercadoria como outra
qualquer. Até a morte perde sua sacralidade, segundo Melman. Para ele, a
exposição sobre arte anatômica – que está correndo o mundo desde 1997 e
exibindo cadáveres plastificados e suas entranhas – seria um forte indício
dessa tendência. “A questão atual é exibir. Exibir as tripas, o interior das
tripas, o interior do interior”, analisa.
ISTOÉ -
O
que é a Nova Economia Psíquica?
CHARLES MELMAN -
Hoje a saúde mental já não se origina mais da
harmonia
com o ideal de cada um, mas do objeto
que possa trazer satisfação. Não há
limites. Há uma nova forma de pensar,
de julgar, de comer, de transar, de se casar ou não, de viver a família, a
pátria e os ideais. Essa nova economia psíquica é organizada pela exibição de
prazer e implica em novos deveres, dificuldades e sofrimentos. A partir do
momento em que há no sujeito um tipo de desejo, ele se torna legítimo, e é
legítimo esse indivíduo encontrar sua satisfação. A posição ética tradicional,
metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento, está em
falta. O excesso se tornou a norma.
ISTOÉ -
Quais
são os aspectos positivos e negativos disso?
CHARLES MELMAN -
Cada um pode satisfazer publicamente suas paixões
contando
com o reconhecimento social, incluindo
as mudanças de sexo. Há uma
formidável liberdade, mas ela é estéril
para o pensamento. Nunca se pensou
tão pouco. O trabalho do pensamento é
comandado por aquilo que produz
obstáculo. Mas nada mais representa
obstáculo, não sabemos o que há para pensar. O sujeito não é mais dividido, não
se interroga sobre sua própria existência. Como faltam referências, o indivíduo
se vê exposto, frágil e deprimido, necessitando sempre da confirmação externa.
Assim, o eu pode se ver murcho, em queda livre, gerando uma sequência de
estados depressivos diversos.
Isto
é –
Como
o sr. descreveria o indivíduo nessa economia psíquica?
CHARLES MELMAN -
A imprensa e a mídia substituíram as fontes de
sabedoria de outrora.
Daí resulta um indivíduo manipulável e
manipulado. Suas escolhas, opções e comportamento de consumidor é que organizam
seu mundo. É uma forma de identificação que, me parece, não foi observada por
Freud nem por Lacan.
ISTOÉ -
De
que forma se dá o rompimento do modelo gerador de neuroses desvendado por
Freud, no qual a relação com o mundo é marcada pela ausência do objeto querido,
e que consequências tem esse rompimento?
CHARLES MELMAN -
Com
o desaparecimento do limite, não há mais o sujeito do inconsciente de Freud,
que se expressava por seus sonhos, lapsos e atos falhos. Se houve uma
descoberta feita por Freud é a de que nossa relação com o mundo não se dá por
intermédio de um objeto, mas pela falta dele. No complexo de Édipo o objeto em
falta é a própria mãe. A pessoa precisava passar por essa perda para
estabelecer suas identificações sexuais. Hoje, para se ter acesso à satisfação
não é mais preciso passar pela perda, que era uma fonte de neuroses. Do
conjunto de pessoas que se consultam nos serviços hospitalares, 15% são casos
de depressão. Há, portanto, a emergência de um novo sintoma, a depressão, no
lugar das neuroses de defesa.
ISTOÉ -
O
prazer sexual estaria se banalizando?
CHARLES MELMAN -
O
sexo realmente se banalizou. É encarado como uma necessidade, já que caiu por
terra o limite que o tornava sagrado. Quando se fala em liberação sexual, não
se fala mais no desejo. O homem contemporâneo trata o desejo sexual, de certa
forma, como simples atividade corporal. A nova economia psíquica faz do sexo
uma mercadoria entre outras.
ISTOÉ -
De
que forma a exposição sobre arte anatômica, apresentada desde 1997 e ainda
correndo o mundo, influenciou suas idéias?
CHARLES MELMAN -
Com
essa exposição a morte deixou de ser sagrada. Passou a ser mais um bem de
consumo. Os cadáveres, protegidos da putrefação por modernas técnicas, viram
corpos plastificados expostos à visão. Algumas vezes com o interior do cérebro,
do sistema digestivo e até um feto dentro do útero à mostra. Milhares de
pessoas estão fazendo filas nos museus para ver a exposição. Estamos
ultrapassando os limites. Até então, uma das características da espécie humana
era destinar seus mortos à sepultura, com o respeito que costuma cercar a morte.
A questão atual é exibir. Exibir as tripas, o interior das tripas, o interior
do interior.
ISTOÉ -
Então
não há mais nada que choque as pessoas?
CHARLES MELMAN -
Há
sim, a pedofilia. Mas, de qualquer forma, os programas de televisão e a
imprensa mostram os casos mais escabrosos em detalhes e todos se interessam por
esse tipo de noticiário, como se fossem os fatos da atualidade. As jovens que
foram violadas acabam sendo exibidas como mais um objeto.
ISTOÉ -
Por
que a figura paterna foi esvaziada, assim como o lugar da autoridade de uma
maneira em geral?
CHARLES MELMAN -
O
problema do pai, hoje, é que não há mais autoridade, ou a função de referência.
Sua figura se tornou anacrônica. Nas famílias, o pai e a mãe passam a ter as
mesmas atribuições, o que dificulta a identificação dos filhos com a figura
masculina e com a feminina.
ISTOÉ -
Por
que o sr. diz que a vida política está desértica?
CHARLES MELMAN -
Os
jovens sempre foram revoltados com a injustiça social. Hoje, no entanto, eles
só têm uma vontade: participar da vida social. Eles não protestam contra as
injustiças. Querem apenas encontrar um meio de gozar logo os prazeres da vida
social. Por outro lado, muitos cidadãos podem constatar que falta potência ao
poder político diante das forças econômicas, verdadeiras ‘mestres’ da situação.
Então por que se engajar na vida política se ela é impotente para corrigir as
desigualdades e dificuldades da vida social? Hoje, acabaram as ideologias, as
palavras de ordem e até mesmo as utopias. Os indivíduos preferem eleger pessoas
que souberam gerir bem seus negócios. Não há mais confiança nos políticos.
ISTOÉ -
Por
que tanta desconfiança?
CHARLES MELMAN -
Porque
nessa sociedade permissiva todas as figuras de autoridade parecem abusivas, é
como se não ocupassem mais o seu lugar. É a mesma coisa com o pai na família.
ISTOÉ -
Quais
são as características desse homem? Sem gravidade??
CHARLES MELMAN -
Faltam
ao homem de hoje qualidades que lhe seriam singulares. Temos mais a impressão
de uma generalização dos traços que se tornaram comuns a todos os cidadãos. É
como se eles tivessem mais ou menos as mesmas qualidades e defeitos.
ISTOÉ -
Isso
pode ser um dos resultados da globalização?
CHARLES MELMAN -
Sim.
Fui há alguns dias ao Chile, no deserto de São Pedro de Atacama. Lá há um oásis
com três a quatro mil pessoas, a maioria de jovens originados do povo inca, que
habitava a região. Pelo que se interessam esses jovens de origem indígena, no
fundo do deserto? Pelos mesmos objetos de consumo oferecidos em Xangai, no Rio
de Janeiro e em Paris. O que vale sua cultura de origem em relação a esse culto
de objetos? Nada.
ISTOÉ -
Como
a estética está ocupando o lugar da ética?
CHARLES MELMAN -
O número de jovens que querem fazer teatro é
inacreditável, mesmo
os que já têm diplomas profissionais
importantes. Por quê? A única maneira
hoje de ser aceito pelos outros é estar
em cena, captar os olhares, agradar, ser sedutor, ou seja, a imagem de cada um
é que se tornou decisiva para ser aceita e, eventualmente, para ganhar
dinheiro. Esses progressos da estética são um ponto positivo da nossa cultura.
Por que não? É agradável ver jovens esteticamente cuidados. Mas se torna um
problema quando é o principal meio que eles têm para serem admitidos e
reconhecidos.
ISTOÉ -
O
sr. diz que a corrida à juventude perpétua gera um sentimento de desamparo, de
falta de referências, ansiedade e cansaço. Pode explicar melhor?
CHARLES MELMAN -
Nossa nova economia psíquica é muito jovem. As
gerações precedentes estão desorientadas pelos novos problemas. Ser jovem é dar
testemunho de
que se participa dessa nova moral e
inteligência. Mas, em geral, é bastante
difícil se manter nessa posição. Há,
portanto, ansiedade no indivíduo pelo medo de não ser mais reconhecido e
apreciado. Antigamente as pessoas idosas eram respeitadas por sua sabedoria.
Hoje, são rejeitadas pela velhice dos valores morais, que já não interessam.
ISTOÉ -
Quais
as influências da publicidade sobre esse novo indivíduo?
CHARLES MELMAN -
Os publicitários são muito inteligentes. Precisam
transformar
o objeto de necessidade em objeto de
desejo. Sabem que podemos nos desinteressar do objeto de necessidade
rapidamente, mas o desejo é
permanente. Quer dizer, quando a
publicidade quer vender um iogurte é
preciso apresentá-lo como um produto
estranho, enigmático. A publicidade
tem um papel pedagógico, que vai ao
sentido da liberalização dos costumes.
E as crianças são muito sensíveis às
suas mensagens.
ISTOÉ -
O
sr. diz que a mídia também tem um papel importante nesse contexto.
CHARLES MELMAN -
Considerável.
Como não temos mais grandes textos de referência, a mídia se tornou nosso meio
para pensar. Ainda assim, a parte informativa dos jornais diminuiu muito em
relação às simples notícias da atualidade. Só interessa ao leitor o que o toca,
diretamente ou por ligação afetiva.
ISTOÉ -
A
nova psique, segundo o sr. diz, está criando também um novo fenômeno
linguístico. Estaria surgindo uma nova língua?
CHARLES MELMAN -
Os
jovens se comunicam por torpedos (mensagens eletrônicas via celular) com uma
nova escrita, que tende ao desaparecimento das vogais. O privilégio é das
consoantes, com uma ortografia completamente livre, fundada na ideia de que o
receptor é incapaz de decifrar minha escrita. É uma escrita que inventa cada
frase em particular. Acredito que teremos em breve romances escritos com essa
nova linguagem. Os efeitos disso ainda não são previsíveis, mas trata-se de um
processo divertido e interessante.
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