quinta-feira, 9 de julho de 2015

“COMENTÁRIOS SOBRE AS CRÍTICAS DE VYGOTSKY A RESPEITO DE LINGUAGEM E PENSAMENTO E JULGAMENTO E RACIOCÍNIO NA CRIANÇA” DE JEAN PIAGET - III

Tradução e comentários [entre colchetes] Prof Eduardo Simões (eduardospqr@gmail.com)


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Fonte:http://www.diarioliberdade.org/ 

A Linguagem egocêntrica
            Não há razão para que o egocentrismo cognitivo, caracterizado por suas centrações privilegiadas inconscientes, ou como nós preferimos simplesmente, por seu caráter de “indiferenciação de ponto de vista”, não se aplique igualmente às relações interindividuais, em especial aquelas mediadas pela linguagem. Para tomar um exemplo de adultos, certamente bem conhecido pelos psicólogos, um professor iniciante em atividade percebe, cedo ou tarde, que as suas primeiras aulas eram incompreensíveis [para seus alunos], porque ele, a maior parte do tempo, falava apenas de seu próprio ponto de vista, indo descobrir, pouco a pouco (muito laboriosa e lentamente), o quanto é difícil se colocar do ponto de vista de alunos incultos, mesmo quando se conhece bem a si mesmo e a matéria que leciona [afirmação incrível e verdadeira, para quem nunca esteve em sala de aula regularmente]. Segundo... toda arte da discussão consiste em se colocar no lugar do interlocutor, para tentar convencê-lo a partir de seus próprios argumentos, de outro modo a discussão é vã, como frequentemente se dá entre psicólogos.
            Ao estudar as relações entre pensamento e linguagem, do ponto de vista das centrações e descentrações cognitivas, eu procurei estabelecer se existia uma linguagem egocêntrica, em oposição a uma linguagem da cooperação propriamente dita. Em meu primeiro livro, “Linguagem e pensamento na criança”... eu dediquei três capítulos a esse problema... eu procurei confirmar os resultados por meio de experiência sobre a compreensão das crianças a partir de uma explicação causal. Para esclarecer esses fatos, essenciais para mim, eu fiz um inventário da linguagem espontânea entre as crianças, procurando dissociar a parte dos monólogos [quando a criança fala sozinha, como se estivesse diante de um amigo invisível] e monólogos coletivos [quando as crianças, mesmo juntas, falam sozinhas para si mesmas, sem escutar ou responder o que as outras estão dizendo], por oposição às comunicações adaptativas, na esperança de encontrar aí em algum tipo de medida do egocentrismo verbal.
            .........
            Antes de retornar a Vygotsky, eu gostaria de destacar aquilo que há de “positivo” e “negativo” entre os inúmeros fatos levantados tanto por meus “seguidores” [followers, no original] como por meus numerosos contraditores: 1) as medições feitas sobre a linguagem egocênctrica mostraram que existe uma tão grande variedade, conforme o ambiente e a situação, que é impossível achar uma medida confiável, seja do egocentrismo intelectual ou mesmo do egocentrismo verbal; 2) o fenômeno, o qual se tentava testar a frequência relativa em crianças nos diferentes níveis de seu desenvolvimento, e sua diminuição com a idade, não pode ser contradito porque ele ainda é mal compreendido: expresso em termos de centração deformante sobre a própria ação e de descentração, se mostrou bem mais significativo no terreno das ações mesmas, e de sua interiorização na forma de operações intelectuais, do que da linguagem, mas ainda é possível que um estudo centrado nas discussões entre crianças, e sobretudo nas condutas (acompanhadas de linguagem) de verificação e argumentação forneça índices métricos confiáveis.

[Em outras palavras, fracassaram, até aquele momento, as tentativas para descobrir se havia um tipo de linguagem, ou o uso de determinadas palavras, que pudesse, por si só, determinar se a criança estaria em um estádio de egocentrismo intelectual, e Piaget foi honesto em reconhecê-lo. Isso, mais o que ele falou no final, de que a linguagem egocêntrica estaria mais ligada a um conjunto de ações, interiorizadas na forma de operações intelectuais, nos revela que é a complexificação das ações, seja motora, verbal o mental, induzida pelo meio, professores e pais inclusive, que determina o desenvolvimento da linguagem, e não o oposto, mostrando a superioridade dos métodos ativos. Por fim ele argumenta que, observando a linguagem das crianças, associada a condutas variadas, talvez um dia se possa avançar nesse sentido. Não tenho informação a esse respeito ]
           
            Esse longo preâmbulo foi necessário, para que eu pudesse deixar claro o que penso da posição de Vygotsky sobre o problema da linguagem egocêntrica... Vygotsky entendeu que havia aí um problema real, e não um mero detalhe estatístico [como supunha a psicologia americana behaviorista]. Em segundo lugar, ele sinalizou as mesmas observações, ao invés de negá-las por meio de artifícios e medidas; e suas observações sobre a frequência da linguagem egocêntrica em crianças, quando estas encontram dificuldades no transcorrer de uma ação, e a diminuição da frequência dessa linguagem quando adquirem a linguagem interiorizada [quando ocorre a conexão do pensamento com a linguagem], é de grande interesse. Em terceiro lugar ele levantou uma hipótese nova ao afirmar que a linguagem egocêntrica constitui o ponto de partida da linguagem interiorizada dos sujeitos mais desenvolvidos, precisando que essa linguagem interiorizada poderia servir tanto para fins autísticos [fantasiar livremente para si próprio] como lógicos [explicação mental, estruturada, normatizada, de algum fenômeno para si próprio ou para os outros]; e nesse sentido eu estou plenamente de acordo com ele.
            Entretanto, parece-me, Vygotsky não conseguiu ver, apesar de todas as evidências, que o egocentrismo é, ele próprio, um obstáculo à coordenação dos pontos de vista e da cooperação. Vygotsky me recrimina, com razão, por não haver insistido, desde o início, para o aspecto funcional dessas questões. É verdade, mas eu o fiz em seguida no “Julgamento moral na criança”, onde eu estudei os jogos coletivos dos pequenos... e constatei que antes dos sete anos eles não sabem coordenar suas regras de jogo durante uma partida, jogando cada um por  si e ganhando sempre, sem compreender que se trata de uma disputa [match, no original]. R. F. Nielsen (1)... encontra na própria ação tudo aquilo que eu já havia percebido na linguagem. Há, portanto, um fenômeno geral [que seria o egocentrismo], que Vygotsky parece negligenciar.
            Logo, quando Vygotsky conclui que a primeira função d linguagem seria a comunicação, e, em seguida, que ela se diferencia em linguagem egocêntrica e linguagem “comunicativa”, eu estou de pleno acordo com ele. Mas quando ele sustenta que essas duas formas de linguagem são socializadas, diferenciadas apenas por sua função [a linguagem egocêntrica se dirigiria ao indivíduo mesmo, como num diálogo interno, e a comunicativa ao grupo], eu não posso concordar, porque a palavra socialização quedaria equívoca. Por exemplo, se um indivíduo A acredita que outro indivíduo, B, pensa como ele ou não, e que não é capaz de perceber a diferença entre pontos de vista [o dele e o do outro], isso, evidentemente, é uma conduta social, mas apenas no sentido de que há algum contato entre os dois; mas eu chamaria isso de uma conduta desadaptada no sentido da cooperação intelectual. Ora, essa perspectiva corresponde justamente àquela a qual eu mais me interessei, e que Vygotsky parece desprezar [ou seja, Piaget se interessa mais em saber sobre as condições em que há comunicação efetiva, e não meras trocas verbais].
            Em seu belo estudo sobre os gêmeos, Zazzo (2) coloca claramente a questão. Para ele a dificuldade da noção de “linguagem egocêntrica” proviria de um duplo sentido na linguagem, que seria errado não dissociar: a) a linguagem capaz de reciprocidade intelectual, b) uma linguagem “não destinada ao outro”. Do ponto de vista da socialização do pensamento ou da cooperação intelectual (a única que me interessa), isso dá no mesmo. E eu, inclusive, acredito que jamais falei em “linguagem não destinada ao outro”, o que é algo muito equivocado [Piaget lança confete, mas depois dá uma rasteira em Zazzo], porque eu sempre reconheci que a criança fala a outrem, julgando estar se fazendo entender. Eu simplesmente disse que, na linguagem egocêncrica, a criança fala para si (no sentido que um conferencista [ou um professor] às vezes fala só para si, embora destinando suas palavras ao público). Zazzo... responde-me gravemente que a criança não fala “para si”, mas “segundo a si mesma” [aqui há uma clara ironia]. Tudo bem! Modifiquemos então em meus textos a expressão “para si” por “segundo a si mesma”, e eu creio que não teremos modificado em nada aquilo que constitui o único sentido válido para egocentrismo, ou seja: ausência de descentração, tanto nas relações sociais como em todas as outras. Eu afirmo, por outro lado, que é precisamente a cooperação (no plano das relações cognitivas entre indivíduos) que nós aprendemos a falar “segundo” ou outros, e não “segundo” nós mesmos [mais ironia!]. (continua)

Notas
(1) Ruth Fröiland Nielsen. Sem dados
(2) René Zazzo (1910-1995), foi um psicólogo francês e 
ativista da Resistência, durante a Segunda Guerra Mundial, ligado ao grupo de Wallon, particularmente interessado na psicologia infantil, em especial aquela passível de ser aplicada à esfera escolar. No âmbito mais geral preocupou-se com a formação da identidade, no como tornar-se pessoa.
(visite o blogue historiatexto.blogspot.com.br)
Agradeço à minha esposa Margarida Guimarães

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